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Maus-tratos e o poder

de correção
Crimes contra as pessoas

Catarina José Palindra Gonçalves (n.º 142723019)


Maria de São José Marques (n.º 142723057)
MESTRADO FORENSE – 2023/2024
1. Enquadramento jurídico

A reforma penal de 2007 veio tipificar em preceitos distintos os crimes de maus-tratos,


previsto e punível nos termos do artigo 152.º-A do Código Penal, e de violência doméstica,
previsto e punível nos termos do artigo 152.º do Código Penal, precisamente por se entender que
o bem jurídico era variável nos diferentes crimes.
Segundo a Proposta de Lei, na descrição típica da violência doméstica e dos maus-tratos,
recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, com o intuito de esclarecer que
não é condição necessária uma continuação criminosa. Entendemos que a revisão procurou
fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o Direito Penal é a última ratio,
pelo que nem todas as ofensas constituem maus-tratos.
Perante a epígrafe do crime de maus-tratos, verificamos que se pretende punir “condutas
maltratantes sobre menores por quem tem sobre estes uma especial relação, como é o caso dos
pais ou das pessoas à guarda de quem se encontram, dos professores, educadores e auxiliares
de educação, ou dos empregadores1”.

O crime de maus-tratos é um crime em que o tipo subjetivo integra o tipo doloso, e


embora esteja integrado no Título III, a sua ratio vai muito para além dos maus-tratos físicos,
visto que o bem jurídico protegido é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em especial, a
saúde, que abrange a saúde física, psíquica e mental.
Portanto, no que respeita ao tipo objetivo, as condutas ilícitas tanto podem ser de ofensas
corporais à vítima, como comportamentos que afetem a dignidade da pessoa e dificultem o normal
e saudável desenvolvimento da personalidade da criança, seja através de injúrias, ameaças,
privações de liberdade, ausência de prestações de cuidados, entre outros.
o O agente tem de se encontrar numa relação de supra-ordenação face à vítima, i.e., tem
de haver uma relação/dever de cuidado, de guarda, de direção ou de educação, ou uma
relação de empregador.
o A vítima tem de se encontrar numa relação de subordinação existencial ou laboral, tendo
de ser menor de idade ou particularmente indefesa. Em sentido negativo, é necessário que
não exista entre o agente e a vítima uma relação de coabitação.
o A propósito do crime de maus-tratos, decidimos trazer aqui uma questão, questão esta
que já foi suscitada várias vezes tanto na doutrina como na jurisprudência, e que diz
respeito à admissibilidade de castigos físicos com fins educativos.

1
Neves, José Francisco Moreira das, Os maus-tratos infantis na jurisdição criminal, 2003, p. 4.
2. Existência ou não de um poder de correção?

Por outras palavras, cumpre clarificar o que é, ou não, considerado castigo legítimo e o que
é, ou não, considerado maus-tratos.
Note-se que, por força do artigo 31.º, números 1 e 2, al. b), do Código Penal, um facto não é
ilícito e, consequentemente, não será punível se praticado no exercício de um direito. Neste
sentido, para conseguirmos responder a esta questão, importa analisar se existe efetivamente um
poder de correção e se, por sua vez, existe algum direito ao castigo.

Se analisarmos o artigo 1878.º do Código Civil, constatamos que são atribuídos aos pais – no
exercício das suas responsabilidades parentais – um conjunto de poderes-deveres que devem ser
exercidos tendo em vista o superior interesse da criança. As responsabilidades parentais são, pois,
um direito familiar de carácter pessoal que se apresentam como irrenunciáveis, como podemos
ver no art. 1880.º do Código Civil.
Aliás, estes poderes estão constitucionalmente previstos no artigo 36.º, n.º 5 da Constituição
da República Portuguesa, pelo que não só consubstanciam um efetivo direito dos pais, como
também um dever na sua realização.

Ou seja, o que a lei prevê expressamente é o direito de os pais educarem os seus filhos.
Contudo, na nossa perspetiva, consideramos que existe sim o direito de correção, e que ele é uma
decorrência necessária do direito de educação referido (este sim legalmente consagrado). A
doutrina maioritária segue este entendimento, nomeadamente os Professores Figueiredo Dias,
Taipa de Carvalho e Paula Ribeiro de Faria, que iremos referir um pouco mais à frente.
Não obstante, há também quem defenda que este direito foi abolido desde a revogação do
artigo 1884.º do Código Civil de 1977, que previa o poder de “corrigir moderadamente os filhos”,
nomeadamente a Dra. Maria Clara Sottomayor.
Ao invés de um poder de correção, a mesma defende “uma educação para a
autorresponsabilidade, sem autoritarismo, num quadro em que a afetividade é o valor principal”.

Apesar de concordarmos, parcialmente, com esta visão, parece-nos que ela é um pouco
excessiva, na medida em que haverá certamente casos em que uma “mera conversa afetiva”
poderá não ser suficiente para sinalizar à criança a gravidade do erro que esta cometeu. Para além
do mais, o poder de correção não abrange exclusivamente castigos físicos.
3. Estão os castigos físicos a menores justificados pelo direito de correção?

Apesar de haver esta pequena divergência doutrinária, a grande questão levanta-se, não ao
nível da existência deste direito, mas sim quanto ao seu conteúdo: em particular, se este abrange
os castigos físicos.
Também neste âmbito podemos identificar duas posições principais, nomeadamente:
o Por um lado, uma que defende a absoluta proibição de castigos corporais, mesmo que a
sua finalidade seja educativa – segundo esta posição, qualquer destes castigos se subsume
ao crime de maus-tratos.
o Por outro lado, uma que defende a possibilidade deste tipo de castigos, desde que:
• Estejam condicionados ao direito de correção;
• Cumpram com determinados princípios, nomeadamente os da proporcionalidade
do castigo e a dignidade humana do menor.

Ora, uma das razões que levam a esta divergência é a falta de uma previsão legal concreta
que defina aquilo em que, na prática, consiste no direito de correção. Este direito está previsto,
como já referimos anteriormente, mas não há nenhuma norma que defina o seu conteúdo.
Alguns acórdãos já procuraram esclarecer este conceito, sendo que destacamos o Acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa2, de 17/05/2022, em que é dito que “(...) o direito e o dever de
educação dos pais sobre os filhos passa por os fazer entender o significado e repercussões
negativas do seu modo de proceder (...)”. Ou seja, é deste direito-dever de educação que decorre
o poder de os pais corrigirem os filhos
Só que este poder de corrigir pode traduzir-se em vários comportamentos distintos, desde
advertências verbais e chamadas de atenção até às palmadas, puxões de orelhas, entre outros.

Categorizando-se, existem castigos verbais e castigos físicos, sendo que é face aos que se
enquadram nestes últimos que surgem as maiores dúvidas e incertezas.
Na doutrina, já referimos que a Prof. Maria Clara de Sottomayor se coloca do lado da
proibição total dos castigos físicos.
No lado mais moderado, temos o Prof. Taipa de Carvalho3, que refere, no fundo, que "a
finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples". Por outro lado, a
Prof. Paula Ribeiro de Faria4, afirma que "de acordo com o ponto de vista maioritário, a ofensa
da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim
educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção".

2
Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/0172009, proferido em processo n.º 1501/04.7TACBR.C1.
3
Figueiredo Dias, Jorge; Costa Andrade, Manuel. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo II, Vol. I.
(2022) 2.ª ed., Lisboa: Gestal, anotação ao artigo 152.º-A.
4
Idem, ibidem.
Para além destes dois autores, o Prof. Jorge Figueiredo Dias5 apresenta três condições
cumulativas que a doutrina dominante segue para que os castigos físicos sejam justificados, e por
isso, não puníveis:
o Que o agente atue com finalidade educativa, e não para libertar a sua irritação, para
descarregar a tensão nervosa ou pelo prazer de infligir sofrimento ao dependente;
o Que o castigo seja criterioso e, portanto, proporcional;
o Em consequências destes dois requisitos, que ele seja sempre e em todos os casos
moderado, nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou atentória
da dignidade do menor.

4. Conclusão

Face ao exposto, parece-nos que estes critérios apresentados por Jorge Figueiredo Dias são
adequados, pelo que estamos cientes que este é um tema sensível e que se encontra em constante
mudança, influenciada também pelas mudanças sociais.
Contudo, parece-nos que uma visão que condene qualquer ato físico dos pais e educadores
face aos filhos menores de idade é excessivamente conservadora e que se traduziria numa
intromissão demasiado gravosa nas relações familiares que se estabelecem entre pais e filhos.
Neste sentido, é do nosso entender que os castigos físicos aplicados pelos pais estarão
justificados, mas desde que se verifiquem os pressupostos acima referidos, ou seja, desde que se
mostrem adequados a atingir um determinado fim educativo.

5
Figueiredo Dias, Jorge; Costa Andrade, Manuel. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo II, Vol. I.
(2022) 2.ª ed., Lisboa: Gestal, anotação ao artigo 152.º-A.

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