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Bem vindos a Direito penal!

O que é o direito penal?

Direito Penal é um conjunto das normas que articulam determinados fatos, os crimes,
como determinadas consequências jurídicas, as sanções criminais;

Sanções criminais:
 Penas;
 Multas;
 Medidas de segurança;

As sanções criminais servem para prevenir o crime. Toda e Qualquer sanção é um


instrumento preventivo que visa obter cumprimento de uma norma. As penas e as medidas de
segurança são meias coercivos previstos nas normas que visam impedir a prática de crimes.

A medida de segurança tem um fundamento diferente das penas. As penas fundamentam-


se pelas praticos dos crimes porque são uma espécie de resposta aos crimes, as medidas de
segurança fundamentam-se ,emborra também se destinam a prevenir os crimes, e exigem e
requerem as praticas de crime, a sua razão de ser fundamenta-se na perigosidade dos agentes.
As medidas de segurança são muito mais preventivistas que as penas.
Regra geral as medidas de segurança, são aplicadas aqueles que não tem capacidade de culpa,
inimputáveis, artigos 19 e 20 do Código Penal. Não obstante também podem ser aplicadas,
aqueles que tem capacidade de culpa, os inimputáveis.

O que esta foi visto até agora é uma mera visão descritiva, positivista, formal e estrutural
do que é o direito penal, É uma decisão que permitiria um leigo perceber de uma forma muito
reduzida o que significa direito, sendo assim uma abordagem insuficiente. Pode acontecer que
uma dada norma não se apresente formalmente como penal, e que um legislador não
caracterize como tal, mas que o seu âmbito de aplicação se equipara, materialmente, como uma
norma penal. Existe jurisprudência no Tribunal europeu dos direitos humanos TEDH, que
procura "fiscalizar”, as normas de direito penal dos estados, quer a nível processual quer a nível
material. Existe uma preocupação em criar critérios para caracterizar direito penal com o
objetivo de evitar uma auto qualificação estatal do que é direito penal. O TEDH visa por exemplo,
evitar que que os estados recorram a normas administrativos para sancionar os indivíduos
preterindo a necessidade de processo penal,

Há assim, uma necessidade pratica de caracterizar materialmente e definir o que é


Direito Penal é assim necessário definir o que é materialmente crime, ou seja, ir em busca do
conceito material de crime.

No âmbito de caracterizar o conceito material de crime, problema iminentemente


pratico, é necessário recorrer a um esforço teórico, o objetivo é poder definir o que é crime, e
quem é o criminoso busca de impedir que o legislador consiga superar as exigências necessárias
para que algo seja considerado crime.

O conceito material de crime é o bilhete de identidade do direito penal em que vai


definir o objeto juridicamente relevante que o Direito Penal vai visar tratar. Este problema não
é um problema do legislador, e não é através da legislação que é o crime fica materialmente
definido. Cabe assim a doutrina e a jurisprudência, nacional e internacional, definir este
conceito. Quer O TEDH como o Tribunal constitucional TC vão procurar definir o que é o direito
penal através da definição do conceito material de crime.
A importância do conceito material crime, que é uma questão jurídica e essencialmente
pratica, acompanha o direito penal, e o ensino de direito penal, de uma forma constante.
Mesmo após este estar definido, será sempre necessário abordá-lo num momento posterior

Como é que a cadeira de penal ira se estruturar:

1. Direito penal I
a. Conceito material de crime;
b. Princípios de direito penal;
c. Fontes de Direito penal;
d. Princípio da legalidade;
e. Concurso de crimes;
2. Direito penal II
a. Matéria mais difícil, segundo a regente:
b. Teoria geral da infração criminal;
c. Critérios de atribuição da responsabilidade;

Nota: Não é estudado a parte especial do direito penal.

De volta ao conceito material de crime:

Caso Galileu vs inquisição

Galileu é acusado de crimes, crimes da ciência, afirmações científicas validas em torno


da discussão acerca do heliocentrismo. O processo Galileu foca-se, num confronto entre o
Heliocentrismo de Galileu e geocentrismo defendida pela inquisição.

No passado, muitos morreram a fogueira por afirmarem que o sistema solar girava ao
centro do sol, Galileu assim foi constato com a mesma hipótese em que, ou negava as suas
teorias admitindo que era uma fraude ou era queimado na fogueira. Galileu optou por sensatez
negar a sua tese científica.
Galileu e os seus contemporâneos, no final do processo acrescentaram. Não interessa o
que eles dizem, ou o que a religião diz, o que interessa é que é factual que a terra se move em
torno de si mesmo e em torno do Sol e que podem negar o que quiserem, e rejeitaram a
realidade cientifica, que não lhes da razão.

No direito, apesar de criar um mundo de conceitos, critérios ficções, não pode fazê-lo
contra os factos, contra a realidade. O direito não pode partir de ficções que vão contra a
realidade, contra verdades de facto.

Direito penal requer um conteúdo normativo valido?


Sim! Considerar crime dizer a verdade não faz sentido nenhum, admitir que Galileu foi
criminoso, e que as suas afirmações científicas são crime, é algo que nem naquele tempo, e até
hoje profundamente ridículo. Não tem cabimento criminalizar alguém por dizer verdades
científicas, e mesmo que fosse mentira também não faria sentido, pois esta causa a liberdade
de expressão e opinião.

Até hoje, negar factualidades científicas e até negar acontecimentos históricos, não
pode ser objeto de incriminação . O único limite, é discurso de odio ou de algum modo afetar
direitos de terceiros. Nem tudo pode ser objeto de direito penal, a mera negação de verdades
de facto não pode ser objeto de incriminação.

O presente PowerPoint visa apresentar um conceito formal de crime. Definição que


apoia na estrutura de normas jurídicas, em que a relação entre a previsão e a estatuição baseia-
se numa noção de dever ser.

No 2 semestre, vai ser estudado algo que não se encontra no PowerPoint. Existe um
momento entre a Previsão e a estatuição ,que se chama nexo de imputação. Este traduz-se num
dever ser, que tem vários critérios que visam determinar o nexo de imputação da
responsabilidade. Este momento é o cerne de Direito Penal II.
conceito material?
Que factos podem ser considerados crimes?

Possíveis respostas:
1. Todos os objetos que são sanção criminal;
2. Todo os tem uma certa gravidade moral:
3. Todos os que revelam perigosidade do agente;
4. Todos os que são danosas numa certa medida para a sociedade;

Individualmente estas respostas não conseguem dar resposta a pergunta acima , estas iram
falhar em definir o que é direito penal. Não obsante em conjunto é possível construir um
conceito que vá determinar o que é materialmente crime.

0. TODOS OS QUE SÃO OBJETO DE SANÇÃO CRIMINAL:

Mera definição formal em que define que tudo o que é sanção criminal é considerado crime!
Caso: Jovem que passeia de minissaia num pais árabe e é gravada em vídeo ,foi condenada
criminalmente por comité da prevenção do vicio.

Em direito penal , num estado de direito valeria?


Obviamente que a resposta é pela negativa. A condenação da jovem a luz de um estado de
direito democrático , isto não pode valer legitimamente como direito penal, materialmente isto
não é direito penal, sendo apenas direito penal formal.

RESPOSTA 1:
É circular, numa perspetiva de fundamentação, pois não define os factos que uma norma , deve
caracterizar como crime

1. TODOS OS QUE TEM UMA CERTA GRAVIDADE MORAL:

Esta reposta parte da noção de que o crime pode ser definido a luz da moral. O crime pode
ser definido consoante uma certa gravidade moral.

A professora desde já acrescenta, que é possível discutir esta afirmação, abrindo a


hipótese de que o crime tem uma gravidade moral, mas provavelmente todos nem tem de ter,
nem basta que exista uma gravidade moral para que algo seja considerado crime.

Se nos quisermos que baste uma certa gravidade moral , para que um comportamento seja
criminoso, é possível criminalizar?

Resposta deve ser pela negativa , pois há comportamentos que são moralmente reprováveis
e que não se justifica punir penalmente:
 Por exemplo direito canónico pune o aborto se forma indiscriminada e unificadora,
punindo qualquer tipo de aborto. A moral , a partira, também ira censurar o aborto.
 Antes, nomeadamente nos EUA, existe a criminalização de comportamentos
homossexuais, com base na moral. Tipifica-se estes atos como crimes antinatural e que
como eram imorais, deviam ser punidos.
 O próprio inseto que é uma discussão muito debatida na Alemanha, é visto com maus
olhos pela moral;

Ao analisar estes exemplos e realmente a ideia de que chegamos a que não basta uma
certa gravidade moral para que um comportamento seja criminoso. Direito penal , não se
pode confundir com as precetivas morais, éticas e até mesmo religiosas.

Outra pergunta relevante é saber se Algo pode ser crime se não for imoral?[ a prof apenas dize
isto , deixou no vazio e não acrescentou mais nada]

Resposta 2:
Fundamenta, mas pressupõe que a moral é um critério do direito ou que se confunde com o
Direito.

2. TODOS OS QUE REVELAM PERIGOSIDADE DO AGENTE;

Também outra resposta possível é esta, em que qualquer agente que apresente
perigosidade pode ser criminalizado. É verdade que maior parte dos crimes revela perigosidade
do agente, uns mais do que outros, nomeadamente os crimes negligentes, mas será que isto
basta para definir direito penal?

Também não apenas a perigosidade do agente para que uma lei seja materialmente considerada
como crime!
Porquê?

Filme Minority report , é um filme, muitíssimo interessante, em que se podia prever através
de um sistema alguns anos depois se alguém iria praticar um crime. Tom Cruise que atue como
um polícia ,que esta inserido no sistema, foi acusado por este próprio sistema que no futuro iria
praticar um crime, e que seria perigoso.

É claro, nos sabemos que isto é um mero filme de ficção científica, mas que há vários agentes
que são perigosos. Agentes que até já foram condenados por um crime, nomeadamente os
agentes de crimes sexuais , que depois de cumprirem a pena e saírem da prisão voltam a
reincidir e a praticar violações. Justifica-se criminalizar a mera perigosidade?

A resposta é negativa, pois não é por haver elevados índices de perigosidade , que nós
deveríamos justificar em aplicar uma pena, em que a perigosidade valeria como a prática de um
crime . A luz de uma constituição de um estado direito isto seria impossível :
1. Não há certeza de que a agente ira reincidir;
2. Mesmo se iram fazê-lo, ainda não fizeram! Não puseram em perigo os outros!
a. Este agente também tem direitos e não podem ser usados como mero
instrumento;
b. Nota que isto apenas se aplica a agente não inimputáveis, pois se este for
inimputável a a questão já se coloca de forma diferente. Nestes casos pode ser
aplicado medidas de segurança, pois estas podem ser indiciadas pela prática dos
crimes anteriores.
i. As medidas de segurança preventivas de liberdade não se aplicam a não
ser aos inimputáveis;

Resposta 3:

Desloca a caraterização do facto para a personalidade ou qualidades do agente. Há factos


irrelevantes que podem revelar perigosidade e factos habitualmente considerados crimes que
não revelam perigosidade por serem esporádicos ou revelarem uma situação-limite vivida pelo
agente.
3. TODOS OS QUE SÃO DANOSOS NUMA CERTA MEDIDA PARA A SOCIEDADE?

Todos os que pratiquem factos danosos para a sociedade devem ser considerados crimes?
Não.

Existe factos danosos, que são de natureza acidental. Mesmo que exista um prejuízo
muito grande para terceiros, em que não podemos atribuir, nem a título de negligencia,
responsabilidade penal ao agente. Existe factos que são meramente acidentais. O agente pode
ter feito algo, que nem como deveres especiais de cuidado poderia ter impedido o resultado
daquele facto.

O facto de existir mero dano, não pode significar uma criminalização.


Neste filme , filmes de emigrantes portugueses violaram uma rapariga, e no filme teve
que ser provado em tribunal que esta não foi uma provocadora em busca da conduta dos
agentes. Assim é relevante dizer que neste caso, existe dano , facto , perigosidade e até uma
situação imoral

Resposta 4:
Há factos muito danosos que são acidentais.

Para concluir , em busca de responder as perguntas feitas anteriormente:

O que é necessário para definir o crime de modo satisfatório?


Para podermos atingir uma resposta orientadora , embora que tenha dito o necessário
para definir, o que interessa é definir os limites de um território. Muitas vezes para delimitar
algo é necessária definir pela negativa o conteúdo dessa coisa. Filosofo Espinosa defendia que
qualquer definição é negação de uma coisa! E é isto mais ou menos que vamos fazer, propor o
que não é possível no direito penal , do que afirmar o que é direito penal .

Mais a afrente ira ser discutido , se alguma coisa deverá ser direito penal. Se deve haver
incriminações obrigatórias .Desde já nego. Tal como ROXIN ou o PROFESSOR FIGUEIRO DIAS e
até mesmo TC, negam uma necessidade de incriminações obrigatórias. As únicas incriminações
obrigatórias , são as de responsabilidade política previstas na constituição. A constituição apenas
exige que o direito penal tem que intervir na responsabilização criminal de agentes políticos,
através de uma meta norma introdutória do porpiá legislação ordinária. Não existe assim
obrigação de incriminação por força constitucional.

Mesmo que se entenda que por exemplo os homicídios, violações… sejam


necessariamente crimes. Eu diria que é justificadamente crimes , até poderia ser, mas um estado
direito constitucional mesmo para estas determinados crimes, mas se justificaria deixar para o
legislador ordinário e através da pena e do direito penal tutelar estes direitos , do que deixar
para o direito constitucional. O estado atual de desenvolvimento de valores constitucionais, e é
pacifico que determinados comportamentos são crimes, como o homicídio, não é passível
admitir que era possível dispensar que certos comportamentos não sejam tipificados como
crimes. Não obstante, a constituição esta formulada não no sentido de exigir que o legislador
intervenha no direito penal , com exceção dos crimes de responsabilidade política, mas a
constituição esta sim formulada para o legislador ter que justificar as incriminações. Portanto,
a luz do artigo 18º/2 CRP que prevê o princípio da necessidade da pena a constituição tem uma
perspetiva liberal, em que se preocupa com o fundamento da pena e não com uma obrigação
em punir. Posto isto não há também , impedimento constitucional de encontrar uma alternativa
ao direito penal.

Existe uma Visão liberal , subjacente a CRP, uma visão que prevê que o direito penal
tem de se justificar, sendo assim o problema do conceito material crime, um problema de
justificação da pena. Tradicionalmente ,a preocupação não é a luz de um apelo a incriminações
obrigatórias, mas sim o que justifica as criminalizações existentes.

Em busca do conceito material de crime é necessário em busca de uma fundamentação


normativo pelo direito em seleção dos factos e não a mera descrição formal, temos que
encontrar uma razão universalizável no âmbito do sistema jurídico, como uma certa gravidade
na intervenção nos direitos e bens jurídicos alheios. O artigo 18º/2 , vem neste sentido dar uma
orientação de tipo de resposta, universalizável , quando nos diz que é realmente a da
necessidade da proteção sem alternativas. Pressupõem-se assim que não pode haver
intervenção penal a não ser que haja alternativas, como direito civil; no caso das injurias; ou do
direito administrativo, ou direito contraordenacional . Muitas vezes recorrer ao direito penal de
mera ordenação social é mais eficaz em busca de tutelar certos bens jurídicos que o direito penal
em sentido próprio, já que através da coima consegue-se uma tutela jurídica mais efetiva.

Portanto , é na ideia o princípio da necessidade da pena que vamos encontrar uma


razão universalizável no âmbito do conceito material de crime. Esta razão universalizável ira de
dividir em dois planos num Plano subjetivo e num Plano objetivo. Pode existir objetivamente
falando, um dado facto a luz do 18º/2 justifica-se incriminação ,mas que subjetivamente o
controlo do agente sobre o dano não é reconhecido, não tendo agente assim controlo sobre o
resultado, o direito penal não pode intervir. O direito penal não pode limitar a liberdade do
agente quando este não tem culpa. O plano subjetivo traduz-se na responsabilidade do agente
,já que retirar a liberdade ao agente é algo gravíssimo, que tem estar proporcionalmente ligada
a pena em si.

É necessário assim criar uma metodologia, com base nas características específicas nas
sanções criminais. Por exemplo, um estacionamento proibido que é não existe interesse ao
direito penal intrevir, existindo assim soluções alternativas muito mais adequadas.

Quais serão os factos jurídicos que podem impor as sanções criminais?

Para além da razão universalizável do princípio da necessidade da pena, são todos os


direitos constitucionalmente reconhecido. Não pode o direito penal intervir, mesmo que
prejudique terceiros, nos casos de objeção de consciência, de como o não serviço militar ou de
recursa de intervenção medica em casos de aborto.

Em suma , apenas pode haver intervenção penal em conformidade com o princípio da


necessidade da pena e com valores constitucionais previstos .

Conclusões:
2 PARTE DA AULA!

Em busca de fundamentar estas conclusões ainda é necessário ir busca da história, e dos


filósofos que inspiraram constitucionalmente o direito penal. É necessário recorrer a ciência
política e a história das ideias politicas em busca da noção de contrato social

O contrato social vai busca de perceber o Estado como um poder limitado o Estado como
racionalmente justificado. Em direito penal o contrato social ira ser refletir na legitimidade do
poder punitivo do estado, o contrato social será assim o fundamento e o limite de como o
estado ira punir os seus cidadãos. O próprio contrato social é que fundamenta o poder punitivo
do estado, já que através deste é que se ira justificar a legitimidade de poder tirar liberdade aos
cidadãos no caso deste não ser cumprido.

Na história das ideias políticas, numa primeira abordagem é necessário destacar dois
grandes filosos. JEAN JACQUES ROSSEUA e JOHN LOCK.

LOCKE / ROSSEAU! (INTREPETAÇÃO DA PROF) [esquemas fui eu que fiz]

LOCKE ( INDIVIDUALISMO)
 Estado é instrumento da liberdade e igualdade, não é gerador.
 Parte da ideia do direito natural, em que o indivíduo tem direitos emanantes a
sua natureza;
ROSSEAU: ( COLETIVISMO)
 Tradição democrática;
 Pendor coletivista:
o CONTRATO SOCIAL:
 "como não há qualquer associado sobre o qual não se adquira o mesmo
direito que cada um lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente
de tudo o que se perde e mais força para se conservar o que se tem.."
o A associação dos indivíduos no estado permite o seu desenvolvimento pelo
desenvolvimento da vontade coletiva, a realização da igualdade. O coletivo é a
condição da realização dos indivíduos
 " articulação coletiva, permite originalmente a própria liberdade e da igualdade- não é
opressor. Estado é gerador desta possibilidade"
Se quiséssemos fazer o exercício de realazionar as duas tradições, PROF. SOUSA BRITO,
como tinha feito, homenageando o PROF. CASTRO MENDES. Faz uma relação entre o direito
penal e o crime e pena , com base nas duas noções de contrato social acima expostas:

Na tradição liberal tem uma condicionante individualista do direito penal. O crime será
a ofensa aos direitos naturais dos cidadãos, e o estado como seu instrumento , ira que tutelar
estes direitos em defesa do crime. Existe uma restrição de direitos através de penas em busca
de defender outros direitos.

Na tradição democrática, de pendor coletivista. O estado tem que condicionar,


estrutura e racionalizar a justiça e a igualdade, em nome do coletivo. O desenvolvimento da
pessoa ira partir deste coletivo, e o crime será uma barreira a este desenvolvimento . O coletivo
permite a igualdade, é o coletivo que permite a realização dos direitos. Na tradição democrática
o crime é uma ofensa a vontade coletiva, o crime não esta limitado a ofensa a direitos
individuais.

Estes filósofos do contrato social , emborra partam de uma hipotese racional uma
experiente de pensamento, apesar de não haver um contrato que tenha existido um contrato
efetivo. Estes filósofos usam a ideia do contrato como reflexo das realidades em busca da
racionalização dos interesses dos indivíduos.

Posteriormente, Kant vai também aceitar a racionalizar a ideia de contrato social,


aceitando a noção do contrato social no âmbito de fundamentar a existência do estado:
O pensamento histórico e filosófico do direito define direito em busca da sua essência
de articulação de comportamento uns com os outros é necessário uma lei vá em busca de
racionalizar a liberdade e Kant , ira matar dois coelhos de uma cajadada , e consegue dizer que
o direito é tirar liberdade para dar liberdade.

Kant que a restrição de liberdade através do direito é criar uma lei da liberdade. Quando
Kant se exprime não tem em busca os interesses individuais nem interesses experimentais do
ser humano. Kant analise o interesse moral do ser humano. Aparentemente, Kant parece que
exprime o mesmo que Locke e Rousseau, Kant vai racionalizar o ser humano como um ser moral,
em busca da realização dos seus interesses morais em detrimento dos seus interesses naturais.
Kant o que quer dizer é pensar numa ideia de livre arbítrio e de liberdade, quem tem haver como
uma liberdade penal , e não em busca de interesses dispares e individuais de cada pessoa como
fazia Locke.
Kant também vai em buscar de fundamentar o porque se contra a pena de morte. O que
acontecia muito nos filósofos liberais, admitindo nenhum ser humano racional, iria
contratualmente expor a sua própria vida. Tal como os Liberais , como Locke , Kant também
contra a pena de morte .Kant tenta demostrar que não é essa vontade associada ao homo
phaenomenon , homem fonométrico da emoções dos sentidos, os interesses egoístas imediatos
e empíricos mas sim que a vontade se baseia no homo noumneon. O que está em causa, isto é "
a razão pura juridicamente legisladora em mim"- a minha razão que legisla em mim, em que
eu me universalizo, em última análise não é racionalizar a própria morte. Quando se formula
uma lei contra si mesmo, ao ponto de terminar a própria vida é algo que vai contra a minha
razão.

Conclusão:

 Contrato social não é um negócio atual entre os cidadãos entre o governo. Critica a
anglo-saxónica.
 A vontade , por outro lado, não é uma escolha arbitraria e é a razão patrícia e esta incluir
a subordinação à lei e ao estado;
 Não é o interesse individual que justifica a subordinação do estado , mas o direito
justificado como a liberdade para todos Critica a Locke e , uniformização com Rosseau.
Conceções contemporâneas do contrato social:

Há uma discussão em termos do poder político do estado. E essa linha de pensamento


não deixou de ser importante em filósofos contemporâneos. Nomeadamente JOHN RAWLS.

John Rawls vai em busca de uma teoria da justiça que apela a uma racionalidade de
interesses, tal como a teoria do contrato social, que justificaria na posição original, em que cada
pessoa , decidiria coberto por um véu de ignorância, a escolha dos princípios da justiça. O
individuo sobre este véu ira se aperceber a organização da sociedade em termo da justiça e dos
seus princípios.

Rawls não se prescinde totalmente uma visão utilitarismo do interesse, mas a


justificação da subordinação ao estado está numa escolha racional dos princípios da justiça ;

RAWLS VS UTILITARISMO BRITANICO:


 UTILITARISMO BRITANICO- Estado é instrumento do estado como serviço da Maioria (
próximo a tradição democrática)
 Rawls junta o utilitarismo a noção de justiça- INTERESSE NA IGUALDADE SOCIAL!

O debate entre Rawls e o utilitarismo , delimita que não é a favor da realização do bem estar
da maioria . Não pode haver observação dos interesses individuais pelo coletivo. Não obstante,
não se desinteressa completamente das visões do utilitarismo , ele vai mais além busca de
responder a seguinte questão:

Quando é que há interesse em perder liberdade?


Quando a justiça assim o exige!
Princípios de justiça
 Redistribuição da riqueza!
 Liberdade
o Rawls não esta preocupado com direito penal, vai em busca da
fundamentação do estado e das liberdades
 Diferença;
o Na distribuição de riqueza, toda a sua consequência tem que
racionalizadas e abatidas, nomeadamente acessão educação, saúde…

O pensamento de Rawls não é muito dado ao direto penal , o que é interessante , é que
existe uma justificação racional da perda liberdade que é muito limitada . Uma conceção , que
se aproxima da liberdade, no que toca a limitação da liberdade é muito próxima da tradição
liberal. Crimes de expressão, como injurias ou comportamentos que sejam incriminados por
ofenderem a honra das pessoas , não iram existir. Rawls é apologista da maximização das
liberdades individuais . Rawls não trata desta questão, é deduzido pelo seu pensamento.

Rawls ira ponderar é alguma intervenção no campo do direito penal económico em


nome da proteção dos mais fracos pela luta das igualdades socias. Crime contra o património
teriam a sua justificação, mas crimes de pouco prejuízo patrimonial não seriam aplicados

Em suma , para Rawls o direito penal muito invasivo e muito repressivo seria muito
injustificado para Rawls. Já que na sua visão , todo o direito teria que obedecer aos princípios
da justiça em prol da maximização das liberdades individuais.

Outra conceção contemporânea do contrato social , que até podem se chamar de pós-
contratualistas , é por exemplo a de MARTHA NUSSBAUM, Capabilites approach.

MARTHA NUSSBAUM- Capabilites approach


Seriam as capacidades humanas o critério de uma escolha justa?
Sim!

Esta autora vai mais longe que Rawls em busca da fundamentação da existência do
estado. Ela procura desenfiar esta ideia através de um conceito de escolha justa. Este conceito
está profundamente ligado a ideia de que, nos como seres humanos necessitamos de
desenvolver aquilo que são as capacidades humanas. Estas capacidades são simultaneamente
o fundamento e a fonte dos princípios políticos. Aqui a uma clara rotura , com a tradição liberal
e com a noção de interesse individual.
As capacidades de NUSSBAUM, é claro reflexo de uma teoria de pendor Kantiano. As
capacidades humanas são o reflexo de que o que ser humano consegue fazer e ser, através de
uma forma informada e intuitiva.

Isto até pode ser vago, mas ela procura fundamentar esta noção com a noção de
fundamentação do direito :

NUSSNAM não é jurista, mas da sua teoria a professora retira é que a restrição de
direitos através das penas deve ancorar na realização de interesses tidos como fundamentais,
mas numa perspetiva pós-contratualista, tal como foi inaugurado por Kant e se revela em
RAWLS, mas também é NUSSBAM.A minha interpretação conjunta destes autores é que chego
a conclusão que é necessário justificar penas. Não se trata do preço do contrato nem de
interesses individuais da tradicional liberal, mas da escolha racional dos princípios de justiça que
regem uma sociedade os factos que justificam as penas devem ser especialmente atentatórios
desses princípios de Justiça.

Nem todos tem interesse em desenvolver as mesmas capacidades, tem que haver uma
articulação e desenvolvimento das capacidades. As capacidades de cada um são fundamentais.
Não obsante, NUSSBAM mostra e cria uma lista as capacidades humanas que são centrais para
convivência em sociedade:
Todas estão são as centrais capacidades humanas que tornam a maneira aristotélica,
que tornam possível uma vida feliz, uma vida possível com sentido. O estado não é só
fundamento para dar garantia de interesses individuais e egoístas, mas nesta linha pós-kantiana
e até aristotélica , que o estado também serve para dar luz a estes interesses, interesses que
configuram o cerne de uma vida Humana digna de ser vivida. Para mais conclusões, livro dela:
Esta só uma mera amostragem de como temos que relacionar e racionalizar os temas
da fundamentação do estado , em simultâneo, com as restrições impostas a liberdade de cada
um. Abordagens filosóficas que visam a discutir a legitimidade e o funcionamento de como deve
funcionar o poder punitivo do estado: o objetivo é delimitar os princípios que iram delimitar as
penas.

A última pergunta visa a concluir a aula e a definição destas teorias. O direito penal não
pode e não deve ser retributivo, mas sim um direito penal reintegrativo , pela positiva.

Chegamos assim as primeiras conclusões , desta aula:

As capacidades de NUSSBAM são fulcrais no fundamento do estado de forma racional.


Tem que existir ,um direito penal que tutela e projete a capacidade humanas quer para a vitima
quer para o agente.
Não é por ser punido que é legitimamente criminoso, pode ser injustamente punido por
algo sem a razão de o ser, por uma lei que não é materialmente crime. Sendo ilegitimamente
punido por mera lei formal, será inconstitucional a punição que substancialmente não seja
crime.

Este é o padrão de poder discutir questões, em alargar o direito penal no âmbito familiar
ou até mesmo ambiental, da proteção da democracia, enfim…
Para além das conclusões normativas:

Os modelos anteriores são essencialistas , baseados numa visão estática do mundo e da


vida .Por isso estes esgotam-se pela ignorância do caso concreto. Esta teoria tem aplicabilidade
jurídica, tem que ser referidos ,explicam soluções constitucionais, mas que sozinhos não iram
conseguir chegar a resposta do que é legitimamente considerado materialmente como crime.

Nas próximas aulas , serão abordadas novas perspetivas que iram complementar tudo
o que visto até agora.

Para acabar esta aula , convém analisar o artigo 6 da convenção europeia dos direitos dos
Humanos e fazer uma correlação com o conceito material crime.
Aqui estão expostas várias orientações que colocam o problema material de crime, em
face a experiência constitucional portuguesa, que podem ser considerados estandardizados e
orientados para a materialização do conceito de direto penal, o direito do crime.

Face a necessidade de analisar , vários paises que contem ordenamentos jurídicos


completamente diferentes o TEDH criou critérios de substanciam que seja crimes , são:
1. Classification on domestic law;
a. O TEDH não põe causa a classificam de uma norma se é direito penal ou não,
assume que se formalmente uma norma é penal . Procura sim em saber se o o
agente tem critérios de defesa;
2. Nature of the offence;
a. Noção flexiva de dinâmica e de direito penal;
3. Severity of the penalty that the person concernerd risks incuring
[pessoal basicamente ta para aí 7 PowerPoint com acórdãos que a professora acha interesse
para tema de oral de melhoria , ou para simples análise, não pus o resto para não ocupar
espaço]

Como se vera , sobretudo na aula praticas , uma abordagem puramente conceptual do


direito penal, é para pôr na gaveta de alguma forma, o que interessa é uma função dinâmica e
funcional na resolução de casos concretos. O próprio TEDH precisa de um critério baseado na
proteção típica do direito penal, como o problema fundamental.

Ao analisar jurisprudência do TC é possível perceber que já há uma certa linha


jurisprudencial que tem controlo os poderes do legislador uma arbitrariedade a classificar algo
como crime. A jurisprudência quer evitar que certos comportamentos sejam punidos como
crime , a luz do conceito material de crime.
Existe o acórdão fulcral nesta matéria da deserção da marinha mercante, acórdão de
99 em que fui coautora, em que foi discutido se era possível que uma lei antiga, permitisse uma
pena de prisão para os desertores da marinha mercante. Realmente, o TC que a violação do
contrato de trabalho, era visto como uma ofensa a um bem essencial , condição essencial de
liberdade geral, estando assim violado o princípio da necessidade da pena.

Além destes acórdãos também é relevante o do enriquecimento ilícito , ou os acórdãos


relativos ao crime do Lenocínio . Existe uma grande discussão do que pode ou não pode ser
considerado crime.

Principalmente em altura de pandemia, esta discussão tem particular relevância. Casos


de propagação , ou questões de obrigatoriedade de usar mascaras. Problemas de criminalização
de certas condutas, a eventual desobediência. Isto é tudo problemas que esta ligado, ao direito
penal e ao conceito material de crime.
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Aula 2, 1º Parte:
Na primeira aula tratámos já do conceito material de crime, referindo-nos ao direito penal
através da sua identidade substancial.
O direito penal identifica-se/diferencia-se dos outros ramos jurídicos pela natureza das
suas normas, que está condicionada pela gravidade das sanções que são previstas no direito penal.
Historicamente, essas sanções são configuradas como as medidas de segurança, mas
sobretudo as penas - “Hoje em dia são as penas privativas de liberdade que identificam mais
significativamente o direito penal ao ponto de que quando outras penas são aplicadas, como as
penas de multa por exemplo, se essas penas não forem cumpridas por razões injustificadas, pelo
menos no direito português há uma conversão das penas de multa em penas de prisão”).
PORTANTO, é a gravidade das sanções do direito penal que requer que ele não possa ser baseado
numa escolha formal do legislador, mas que tenha quer ser justificado pela natureza dos
comportamentos que irão ser pressupostos/fundamento das próprias penas.
Na última aula vimos que esta mesma natureza das penas tem a ver com um poder
cateterístico do Estado e procurámos estudar os meandros da filosofia política e entender o que
justifica o poder do Estado e que se aplicará ao direito penal enquanto emanação do poder punitivo
do próprio Estado. No fim da aula, como se recordam, houve também no power point uma
passagem pelas orientações do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos acerca duma
caraterização substancial do direito penal (FERNANDA PALMA: chama à atenção que este é um
problema prático e não meramente teórico, pois está mesmo associado à resolução de casos
práticos).
Na sequência da matéria estudada na aula anterior, existem uma serie de decisões que têm
formado uma certa jurisprudência constitucional sobre o conceito material de crime e sobre as
quais gostaria de fazer breve uma referência, e para isso escolhi 2 acórdãos que eu considero
significativos.
O 1º acórdão é o Acórdão 211/95, processo 607/92, 1ª Secção. Era um caso que tinha a
ver com uma legislação anterior à própria constituição de 76, e que aborda uma situação de
deserção na marinha mercante, ou seja, o marinheiro não compareceu no local do embarque e
com isso atrasou e prejudicou o armador, e para estes casos estava previsto a aplicação de uma
pena de prisão. O Tribunal Constitucional disse várias vezes que estas normas eram
inconstitucionais e veio utilizar vários argumentos, nomeadamente o princípio da
proporcionalidade, porque os tipos de danos produzidos não eram proporcionalmente adequados
à aplicação de uma sanção penal, e também a ideia de que isto tinha a natureza de direito laboral
e o direito penal não poderia intervir numa área em que os conflitos se resolveriam através de
outro tipo de relacionamento jurídico/ramo do direito. PORTANTO, neste Acórdão vem dizer-se
que estas normas eram inconstitucionais, pois violavam o artigo 18º/2 CRP, o princípio da
necessidade da pena (associado à ideia da proporcionalidade, adequação), e ainda a falta de
natureza criminal, mas sim natureza laboral desta matéria.
O 2º acórdão é o Acórdão 144/2004, processo 566/2003, 2ª Secção. Este acórdão trata a
situação do crime do lenocínio. Refere-se a uma situação em que uma pessoa lucrava com práticas
de prostituição na medida em que arrendava os seus apartamentos para o exercício das mesmas.
Entendia-se nessa altura, de acordo com o artigo 171º do Código Penal, agora artigo 169º, que
estas situações eram situações de aproveitamento da exploração da prostituição, na medida em
que facilitavam/favoreciam a prática da prostituição, e com intenção lucrativa. O Tribunal
Constitucional veio considerar que não existia aqui inconstitucionalidade desta norma. A

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

inconstitucionalidade desta norma era invocada em função da liberdade de atividade económica


relativo à arguida que arrendava os seus apartamentos, no facto de a própria prostituição em si
não ser proibida, e até havia quem defendesse estar presente neste caso concreto a violação do
princípio da necessidade da pena. Mas o Tribunal Constitucional entendeu por unanimidade que
nesta situação não havia nenhuma violação do princípio da necessidade da pena, nem qualquer
inconstitucionalidade da norma, porque o Tribunal Constitucional analisou a história desta norma,
e o que mostrava era que a norma anterior a esta exigia uma prova de que havia um
aproveitamento/exploração da pessoa dedicada à prática da prostituição, e que esta nova
formulação prescindia de que o Ministério Público provasse esse aproveitamento concreto da
exploração da pessoa que se entregava à prostituição. FERNANDA PALMA destaca como os
tópicos fundamentais neste Acórdão: 1º- neste caso o que justifica a incriminação da prática é a
proteção da liberdade de as pessoas que se entregavam à prostituição não serem exploradas (uma
espécie de liberdade contra a exploração e o aproveitamento por terceiros). PORTANTO, aqui o
que estava em causa era não admitir que as pessoas fossem sujeitas à exploração por outras. 2º -
possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em
casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de
censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade em face das
circunstâncias concretas do caso. Surge assim como um fundamento no sentido de limitar a
amplitude do outro fundamento, ou seja, o tribunal não negava que pudesse existir situações em
que a prostituição não estivesse associada a práticas de exploração da sexualidade alheia. Este
acórdão foi invocado em muitos outros, sendo um caso orientador de uma jurisprudência
posterior, houve vários acórdãos que o atualizaram e desenvolveram.
Em 2020 no início da pandemia, no dia 3 de março, surge o Acórdão 134/2020, processo
1458/17, 3ª secção. Note-se que é um acórdão de secção, ou seja, não exprime ainda a
jurisprudência atual do Tribunal Constitucional, e por isso não declara inconstitucionalidade com
força obrigatória geral. Este acórdão vem rebater a argumentação do anterior, com vários
argumentos, havendo um que eu acho que não tem qualquer cabimento que é o argumento de não
haver nenhum bem jurídico. (A ver de FERNANDA PALMA, o argumento não tem qualquer
cabimento porque: haver ou não bem jurídico depende da natureza desse bem jurídico, e o
conceito de bem jurídico é um conceito relativamente instrumental e não absoluto, e, portanto,
não encontrarmos uma delimitação perfeita de um interesse material onde possamos pôr o apelido
de bem jurídico é muito comum no direito penal contemporâneo). Eu também dou importância
ao conceito de bem jurídico, mas nunca como um dogma, portanto aquela ideia/argumentação de
que não se descobre aqui um bem jurídico, ou seja, que a dignidade da pessoa humana não é um
bem jurídico em si mesmo porque é uma coisa muito imprecisa/vaga, eu acho que esse argumento
não colhe relativamente ao acórdão anterior, porque não é nenhum dogma, não resulta da CRP, e
nem é unânime no pensamento penal contemporâneo que realmente tenha de existir um bem
jurídico. E por outro lado, é muito discutível que essa dimensão concreta da dignidade da pessoa
humana de ter o direito a não sacrificar à necessidade económica ou social a sua sexualidade não
seja um interesse autonomamente protegido pelo direito e pelo direito penal, porque tem a ver
com a dignidade humana, que se consubstancia num dos pilares do Estado de Direito
Democrático, e, por isso, há aqui realmente uma razão bastante mais forte para que intervenha o
direito penal. PORTANTO, este acórdão procura deslocar-se para um terreno ideológico que não
é aceitável, porque não é um terreno onde se colocou o acórdão de 2004. Refere que quando
incriminamos aquele que explora e se aproveita economicamente dos serviços de prostituição de
pessoas que em princípio estarão numa situação de necessidade social, o que estaria aqui em causa
com essa incriminação seria a dignidade dos outros, ou seja, dos terceiros que lucram com a
atividade dos prostitutos. (FERNANDA PALMA considera-o como sendo o pior argumento deste
acórdão porque é óbvio que não está em causa nenhuma liberdade essencial, mas sim a liberdade
de negociar/lucrar com a prostituição das outras pessoas, estando as outras pessoas em princípio

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

e regra geral numa situação de carência social e económica, o que é alguma coisa que quanto a
mim é obsoleto pensar-se nestes termos sobretudo quando há um problema de política criminal
subjacente que é reconhecido em toda a Europa). No fundo, o meu discurso não se baseia em
discursos moralistas, mas apenas numa valoração fundamental de que as pessoas não podem ser
sujeitas à utilização do seu corpo e sexualidade por razões de necessidade, porque isso afeta o
aspeto essencial da dignidade da pessoa humana.
Na 2º parte da aula vamos iniciar a relação da fundamentação do direito penal e do
conceito material de crime com as ciências empíricas do crime, ou seja, com a criminologia.

Aula 2, 2º Parte:
Voltando ao tema da 1ª parte da aula, o problema que eu deixo já aqui suscitado é a de
saber se todos os problemas/argumentos que o Tribunal Constitucional invoca para considerar
constitucional ou não uma determinada ação, se há uma linha de continuidade desse pensamento.
Será então analisado ao longo das aulas teóricas e práticas diversos acórdãos que nos permitam
reunir uma informação mais teórica necessária para fazer essa pesquisa e responder às perguntas:
“O quê que o Tribunal Constitucional tem mantido como essencial no princípio da necessidade
da pena na diversidade dos casos que trata? Onde é que tem havido hesitações/perspetivas
alternativas sobre a relação com os casos do princípio da necessidade da pena? E quais são esses
parâmetros fundamentais?”.
FERNANDA PALMA: eu penso que no que diz respeito ao tema do lenocínio entre o
acórdão de 2004 (refere-se ao mesmo como sendo um acórdão que não é fundamentalista, na
medida em que apenas considera que a norma não é inconstitucional sem proceder a grandes
aprofundamentos, e considera ainda que outros acórdãos que o vieram a invocar, embora
estivessem bem estruturados, não se concentraram nos argumentos fundamentais do acórdão de
2004 e com isso permitiram enfraquecer a argumentação que era relativamente minimalista no
mesmo) e o acórdão de 2020 é que apesar de tudo existe uma jurisprudência consolidada, e quando
se tem que pôr em causa uma jurisprudência consolidada de 16 anos, há que utilizar muito mais
argumentos, há que reunir muito mais razões, e nomeadamente é preciso fazer algum direito
comparado também e que falta no acórdão de 2020, há que perceber as tendências ao nível da
união europeia, que são completamente contrárias ao sentido do acórdão de 2020, e também
aquilo que eu irei chamar o argumento criminológico que se baseia no facto de que quando surge
o acórdão de 2004, a doutrina portuguesa trata do problema e o Tribunal Constitucional no
acórdão de 2020 não refere esse tipo de análise, não se vê na necessidade de se debater com ela,
e também nem de procurar uma jurisprudência constitucional comparada, ou seja, perceber como
é que noutros Tribunais Constitucionais Europeus o parâmetro da necessidade da pena tem sido
aflorado. PORTANTO, falta aqui algum estudo, porque quando um acórdão vem invocar a ideia
de um outro, óbvio que não é necessário fazer referência a todas as normas, livros, doutrina e
jurisprudência, mas, num acórdão que pretende inverter totalmente a jurisprudência, realmente
tem esse ónus. Este é um aspeto. O outro aspeto relativo a este acórdão, que é de secção, e que
portanto, como eu disse, não declarou inconstitucionalidade, é que parecem estar reunidas as
condições para uma futura declaração de inconstitucionalidade (pois basta haver 3 acórdãos neste
sentido coincidente para ser requerida a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória
geral e tanto como eu pude informar-me penso que estará iminente, ou que será possível muito
em breve essa solução, mas isto significará, caso haja uma maioria no Tribunal Constitucional
para considerar esta norma inconstitucional, que a norma desaparecerá do ordenamento jurídico,
ou seja, as situações que não preencham os casos de especial gravidade previstos no 169º/2, serão
descriminalizadas via Tribunal Constitucional, o que não é o que acontece em países que têm uma

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

política mais liberal no sentido de terem um sistema em que até legalizaram a prostituição, como
é o caso do sistema alemão).
Nesta 2º parte da aula, eu irei fazer uma relação que é fundamental para nós entendermos
um pouco melhor o que justifica a criminalização, ou seja, o enquadramento no direito penal de
certos comportamentos, e para isso deveremos procurar informação nas ciências empíricas sobre
o crime.
POWER POINT “Criminologia e Direito Penal – Da definição criminológica à
dimensão normativa do crime”: procura estabelecer alguns traços da relação entre o direito penal
e a criminologia.

No início do power point começa por fazer referência ao filme “Laranja Mecânica”, de
Anthony Burgess. Retrata o cenário de um jovem que quando ouvia Beethoven praticava crimes.
É então submetido a um tratamento psiquiátrico nos termos do qual consistia na visualização de
cenas terroríficas (muitas vezes cenas de crimes que cometeu) enquanto ouvia a música de
Beethoven, o que acaba por criar nele um sentimento de repulsa de modo a que passará a associar
dor e sofrimento ao ouvir Beethoven. A ideia da “Laranja Mecânica” é uma espécie de
mecanicidade da própria moralidade que permite afastar em certo sentido o agente da prática de
crimes violentos. Através destes tratamentos o agente era configurado como um instrumento em
que seriam inseridos determinados mecanismos de repulsa, e uma vez automaticamente acionados
esses mecanismos de repulsa pelo cérebro, ele não seria conduzido à prática de crimes,
configurando-se assim como uma forma de reinserção na sociedade.

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Portanto a definição criminológica do crime (que eu não estou a dizer que é esta da
“Laranja Mecânica”) , tendo em conta uma ideia quase intuitiva e de senso comum das narrativas
do cinema, podem nos levar a esta ideia de que o crime é algo incontrolável e o facto de podermos
resolver através destes meios demonstra que é incontrolável e que tem a ver com algumas
configurações do cérebro humano e que por isso o debate sobre a legitimidade da incriminação,
que é associado a valores, perderia um pouco do seu sentido.

PORTANTO, estamos aqui a procurar saber através das ciências empíricas sobre o crime
se nós temos alternativas de análise, ou se os modelos racionais que apresentámos logo no início
como propostas não têm de ser completadas/repensadas à luz das ciências empíricas, grosso modo
da criminologia.
Em geral, a criminologia como ciência tem procurado diversas respostas (presentes no
slide acima). Veremos que depois há outras que até vão um pouco mais longe em que quando
criticam a estrutura social, criticam mesmo os modos de criminalização, ou seja, o crime seria
mesmo um produto dos próprios critérios utlizados pelo legislador, que como se vê isto é em parte
verdade, como no caso do lenocínio por exemplo.
Indo agora procurar as soluções propostas pela primeira via, encontramos logo Cesare
Lombroso, um psiquiatra militar que se contrapôs à posição da Escola Clássica, como por
exemplo Francesco Carrara. O que caraterizava a ideia de crime da Escola Clássica era que o
crime é um ente jurídico, porque a sua essência deve consistir na violação de um direito, portanto,
o direito deve ter uma vida e critérios pré-existentes que são obrigatórios, colocados ao legislador
humano. Portanto, a ciência do crime é alguma coisa de puramente racional, mas que como ele
diz, emana das leis morais jurídicas e é pré-existente a todas as normas, ou seja, é um pouco um
direito natural embutida de racionalidade que está aqui em causa.

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

É natural que Cesare Lombroso venha reagir a este extremo racionalismo, porque é um
psiquiatra militar que se ocupa da análise dos casos concretos, e na sua obra “L´uomo
delinquente” vem inverter totalmente o pensamento de Francesco Carrara e da Escola Clássica.
Vem dizer que:

O crime então, para Lombroso, que estava influenciado obviamente pela Escola Positiva
ao nível da filosofia da ciência, é:

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Qual foi o desfecho do pensamento de Lombroso na história do pensamento científico e


do pensamento jurídico? Foi sujeito a muitas críticas:

“L´uomo delinquente” é um livro dos fins do século XIX e teve muita influência nas
ciências forenses, também portuguesas, fazendo-se muitas experiências relativamente aos
criminosos, e há evidências de que realmente se procurava esses traços, como consta do artigo
abaixo:

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Estas ideias foram muito bem recebidas em Portugal, e há um conjunto de obras que
difundem a ideia de que o crime não é um ato consciente e de livre escolha, mas sim uma herança
física e biológica patente em certas categorias físicas e psicológicas.

Não podemos deixar de citar os 2 grandes autores que foram os pais da antropologia
criminal em Portugal e que entraram na discussão europeia, nomeadamente Júlio de Matos e
Miguel Bombarda.

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Temos aqui também uma outra figura que se encontra muito esquecida, mas que se
posiciona como muito importante no pensamento da antropologia criminal portuguesa,
designadamente Mendes Correia:

Voltando a Lombroso, pode-se perguntar se o papel dele é um papel negativo. O facto de


as suas teses não terem credibilidade científica não significa que ele não tenha tido importância
na história do pensamento. Acabou por ter um papel importante pois:

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

EM SUMA,

PORTANTO, aparentemente havia aqui uma despolitização pelo afastamento da moral e


dos valores que eram politicamente dominantes, mas por outro lado estas conceções neutrais da
ciência sobre o crime são a porta aberta para ainda uma prepotência superior do Estado porque já
não é em nome de uma orientação política, mas a partir da verdade neutral da ciência, que passa
a ser indiscutível.
Pois bem, voltando à “Laranja Mecânica”, eu diria que nos princípios do século XX de
alguma forma se terá chegado à moral automática da “Laranja Mecânica” em que realmente são
defendidas práticas eugénicas. Esta via que foi revolucionária, todavia, vai ter um efeito muito
perverso porque a discussão sobre o que é o crime ou o que é criminalizável aparentemente deixa
de ter sentido.

É verdade que seriamos muito injustos se nós consideraremos que a discussão portuguesa
e estes autores foram tao fundamentalistas e que abririam caminho, embora sem ser
intencionalmente, a este tipo de vias. De facto, a discussão portuguesa foi bastante humanista, e
estes autores, mas sobretudo Bombarda, eram republicanos, e no caso deste último,
profundamente humanista.

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Miguel Bombarda associava muito as suas ideias científicas à crítica política. Uma das
suas frases que vale a pena destacar é:

Esta frase consubstancia-se numa associação de um discurso científico com um discurso


político, mas que se figura marcante e de certa forma crucial destacá-la.

Sílvia Faria
Direito Penal I – Maria Fernanda Palma 21 de setembro de 2020

Miguel Bombarda ilustra com a sua própria vida esta sua posição. Veio a ser assassinado
por um militar que tinha tratado anteriormente, nomeadamente o tenente Aparício Rebello, mas
não morre logo, dirigindo-se para o Hospital de S. José para ser operado. Encontrando-se no
hospital, antes de morrer tem uma frase que ilustra a sua grande coerência moral e que a crença
na ciência e a visão da vida que ele associava a essa crença estavam intrinsecamente nele, portanto
é um homem admirável porque ao invés de demonstrar sentimentos de ódio ou vingança pelo
tenente, a sua frase antes de morrer foi: “-Não lhe façam mal. Ele é um doente!”. E até ao fim ele
foi convicto das suas análises e das suas ideias sobre o que é o crime, e isto é alguma coisa de
muito significativo na história do pensamento europeu e que nós devemos mencionar.
CONCLUINDO, nesta 2ª parte da aula nós iniciámos o estudo da criminologia através do
estudo da antropologia criminal. Na próxima aula vamos ver como estas relações se manifestaram
ao longo do século XX, tendo-se em conta que atualmente volta a estar em primeiro plano as
relações entre o comportamento criminal e a neurociência, e, portanto, será esse o primeiro ponto
da próxima aula. Depois passaremos ainda à análise da pessoa do delinquente, através da via da
psicologia criminal, e por fim iremos tratar da sociologia criminal. Logo, a próxima aula ainda
será dedicada à criminologia, com o objetivo de, ponderando todas estas contribuições do
pensamento científico, estabelecer um quadro das relações entre o direito penal e a criminologia.

Sílvia Faria
Aula 3

28.09.2020

A psicologia criminal e a criminologia vão tão longe que um autor Goffman viria a conceber a
consciência de si próprio como uma espécie de brinquedo em que as pessoas assumiriam um
papel e identidades conforme as expetativas e as reações dos outros significativos, e
assumindo que o papel dos outros transfeririam para além de si mesmos.

Nós estamos a entrar no caminho da criminologia depois de termos procurado uma


fundamentação do Direito Penal nos trilhos da filosofia política em que se procura a
racionalização máxima do poder punitivo do Estado e aceitabilidade de cada um de nós das
consequências do crime e, portando de que podemos vir a ser privados da nossa liberdade.

Na história da criminologia, e começando por Lombroso e a Escola Positiva italiana, o que seria
central para explicar o crime e consequentemente os sistema jurídicos e legais que tratariam o
crime e as medidas desses sistemas, seria uma deficiência da pessoa delinquente. O crime
como um problema da pessoa delinquente, mas chegaremos a outras conceções como esta,
em que nos colocamos nos antípodas da racionalização da decisão criminosa e, portanto, da
representação do destinatário da norma criminal como um ente racional que pode escolher
livremente através de uma estrutura absolutamente deliberativa baseada no livre arbítrio,
entre escolher praticar crimes e não praticar crimes.

Em todo o modelo de fundamentação do crime da filosofia política, mesmo nas conceções


mais recentes, nós encontraremos sempre um modelo racional, de escolha e uma justificação
do Direito Penal como expressão total de uma liberdade de violar ou não violar a norma e
justificação do Direito Penal e do poder punitivo do Estado como produto de um compromisso
ou de um contrato social. Não é totalmente o eu antropológico e eu empírico mas o ser
racional de que fala Kant que torna legítima a intervenção do Direito Penal.

Estas aulas não pretendem pôr em causa as filosofias politicas, mas tornar mais compreensiva
a racionalização dessas conceções e perceber até que ponto nelas ainda lhes falta integrar
outro tipo de discurso, outra análise crítica, para que o modelo racionalizador se torne mais
adequado à realidade humano, e nesse sentido incorporem também o discurso científico.

Na criminologia percorro vários caminhos, crime como a deficiência da pessoa, crime como
deficiência social, crime como uma deficiência da própria da sociedade, e uma última visão
que guardarei para o fim em que o que se estuda não é tanto o comportamento criminoso, ou
a pessoa delinquente mas sim o próprio processo social de criminalização.
Não podemos dizer que as conceções de tipo antropológico associadas à biologia e
neurobiologia e Às características da pessoa delinquente tenham desaparecido do
pensamento científico e que tenham de ser desconsideradas pelo Direito Penal. Pelo contrário,
há um ressurgimento deste foco da pessoa delinquente do Século XX e desenvolvimentos
posteriores no decorrer do Século XX e XXI no percorrer da neurociência. Algumas
descobertas, há um período mais pujante e outro mais controverso, em que se volta a orientar
para o estudo da pessoa delinquente mas na sua perspetiva neurobiológica, a perspetiva da
agressividade e criminalidade.

Na parte final do séc. XX novos estudos sobre o cérebro que hoje estão na moda e são
interpelantes que voltam a colocar o problema da pessoa criminosa no centro das
preocupações científicas e de explicações que interpelam o pensamento do Direito.
Nos anos 60 do séc. XX, há uma descoberta interessante em que parece ter validade científica
por Patrícia Jacobs, deu nome ao síndrome de Jacobs e que no fundo está associada à
genética, ao cromossoma da violência.

Ela vem a concluir que em alguns deles haveria uma perturbação cromossomática e embora
haja uma combinação normal nos homens – XY –, em alguns haveria um excesso – XYY –, que
associaria à violência. O cromossoma da masculinidade seria o Y e que nos homens que não
teriam essa anormalidade cromossomática, o que as caracteriza é o XY; nos tais ‘supermales’,
os que têm uma reforçada masculinidade, teriam esse XYY, que estaria associada a traços
físicos e psicológicos de grande agressividade.
Começou-se a falar do cromossoma da violência, no mundo saxónico chegou aos tribunais, e
em determinados casos procurou-se evitar a pena de morte, e diminuir a responsabilidade
penal, em que teriam esta alteração cromossomática e que seria injusto, pelo que não
poderiam ter evitado a conduta. Há casos célebres em que se invocou, embora noutros casos
não se comprova que em situações de excesso de violência os protagonistas tivessem essa
alteração cromossomática.

Para alguns outros autores a conceção legal de crime é geralmente pressuposto das
investigações. Nós hoje temos facilidade em concordar que há crimes de maus tratos, de
violência doméstica, não eram autonomizados o ano passado e não tinham o mesmo
conhecimento negativo social e portanto os dados da própria analise empírica estão
condicionados pelas conceções sociais, justificadas, nomeadamente quando as pessoas
mostram traços de rebelião, podem estar associadas a um desentendimento com ordem
dominante. Há crimes que hoje foram cometidos e do ponto de vista da análise politica são
reconhecidos, por exemplo os terrorismos (e não estou a falar do terrorismo islâmico) houve à
volta deles uma discussão politica e ideológica sobre a justificação e associá-los a traços
biológicos é algo dependente de uma conceção de fundo, politica e de uma visão da própria
sociedade. Há um livro de Albert Camus chamado ‘Les Justus’ em que ele vem mostrar da
perspetiva do teatro, como nunca se justifica o sacrifício de inocentes por uma causa política
ainda que justa.

Aqui as conceções de crime da alteração de cromossomas da violência nunca é suficiente. Os


americanos nos anos 60, 70 estavam predispostos para reconhecer estes dados científicos
para uma revisão de categorias morais e jurídicas e não conseguem demonstrar, até de um
ponto de vista científico, desta causalidade dos comportamentos criminoso.
Havendo uma relação seria de colocação em causa da responsabilidade e aumento da área da
chamada culpa ou inimputabilidade, previsto no art.20º para situações de anomalia psíquica.
Também estas conceções seriam um quadro muito propício para as conceções eugénicas e de
seleção social. Quanto mais importância se dá ao dados da ciência mais tendência há pela
alteração do modelo normativo, por um modelo em que substitui as penas por outro tipo de
análise que não é de censurabilidade ética ou jurídica.

Faço análise também ao nosso prémio nobel da Medicina, Egas Moniz foi um autor muito
importante pelas descobertas que fez, nomeadamente da lobotomia. A lobotomia é uma
técnica que poderia alterar os padrões da agressividade do comportamento dos pacientes.
Tratava-se de uma operação cirúrgica, que consistia no seccionamento das fibras nervosas da
região pré-frontal dos núcleos medianos do tálamo.

Professor Lobo Antunes foi biógrafo de Egas Moniz, herdeiro da sua cadeira na faculdade de
Medicina e ajuda-nos a enquadrar a importância de Egas Moniz. Foi muito criticado
posteriormente pelas consequências negativas da utilização da lobotomia, por tratar pessoas
com problemas de agressividade, disfuncionalidades sexuais. Sobretudo nos EUA houve casos
muito célebres, como a irmã do presidente Kennedy que foi tratada desse modo. Há uma peça
muito conhecida em que se faz a crítica da aplicação deste tipo de técnicas e de ideologia
subjacente.

O professor Lobo Antunes dizia que a ideia de Egas Moniz era interromper circuitos fixos e a
fixidez destes circuitos que tinham como consequência a criação de ideias fixas; se aplicarmos
um estímulo elétrico, em vez de cortar, os circuitos neurológicos ficam interrompidos.
Continua no sentido de mostrar que a lógica da racionalidade subjetiva era cientificamente
produtiva, mas o modelo como se fazia era bastante violento para o paciente e muito radical
na sua aplicação.

A Neurociência que no fundo é com Egas Moniz que se exprimia numa fase bastante incipiente
e menos controlada com preocupações éticas do que hoje, vem se colocar hoje a questão da
mente humana numa base naturalista rejeitando que seja algo diferenciado na sua natureza,
do corpo. A ideia básica da neurociência, para nós leigos, é que não há verdadeiro mutualismo
entre mente e corpo. No sentido que diz Damásio “sem corpo não haveria mente”, não seria
haver estrutura mental se não houvesse estrutura corporal. Há uma envolvência naturalista
que rejeita fundamentalmente o pensamento cartesiano, de dualismo entre o espírito e o
corpo/matéria; nas neurociências domina o pensamento monista, esta perspetiva de que ou
há para alguns uma total identidade entre mente e cérebro, e o pensamento mais avançado
admite que não é a mesma coisa apenas diz que sem corpo não haveria mente, sem cérebro
não haveria mente.

Chamo à atenção que não podemos pôr de parte aqueles, que do campo da filosofia da mente,
não aceitam este monismo e põem em causa esta afirmação de Damásio que sem corpo não
havia mente. Claro que os desenvolvimentos da inteligência artificial vêm poder conceber para
alguns que realmente há uma qualidade diferente dos fenómenos mentais dos corporais que
de um ponto de vista qualitativo, que quando falamos de mente não falamos do mesmo que
dos fenómenos corporais. Esta discussão que continua a ser feita e que não existe para quem
vem do campo da neurociência (?).
Para uma perspetiva mais de tipo naturalista a pergunta que há a fazer é se há uma
consequência normativa da visão da neurociência. Não há uma consequência determinante
para as nossas conceções naturalistas, embora tenhamos de considerar o que nos diz a
neurociência aquela afirmação de Damásio, que as lesões pré-frontais afetam a solução de
dilemas morais. Podemos dizer que não há consequências porque as nossas valorações
baseadas na ideia de liberdade correspondem ao nosso modo de funcionamento, estamos
condenados ao livre arbítrio, retirada de um poeta que já citei que nos diz paradoxalmente
que nós estamos fatalmente condenados a ser livres, como se o próprio determinismo (?), mas
diz que um dos traços do determinismo relativamente ao ser humano é que estamos
deterministicamente determinados a ser livres. É realmente uma crença expressa de forma
paradoxal e que o nosso livre arbítrio é inultrapassável da nossa condição.

(FIM POWERPOINT )

Esta análise que é feita pela neurociência é puramente tratada, tem sido objeto de muitas
críticas, nos podemos perceber que há uma certa (?).

Aquilo que tem sido dito por pessoas mais cautelosas relativamente à neurociência é que
facilmente se cai na falácia neurológica, isto é, em tomar a parte pelo todo; uma determinada
lesão que é detetada numa certa parte do cérebro, corresponde a uma alteração do
funcionamento global da pessoa e enfim, da sua mente. São dois campos que têm patamares
distintos: um é o da afeção detetável visíveis em termos da neurociência, e a questão dos
dilemas morais, o funcionamento da pessoa deliberando sobre dilemas morais, não entra só
aquela alteração do cérebro mas todo um redimensionamento do seu modo de funcionar.
Pode haver uma falácia de tipo neurológico ou tipo naturalista, em que há um hiato entre
quem explica as diferenças morais de certas pessoas, e aquela localização de uma
perturbação/alteração do funcionamento do seu cérebro.
A psicologia é um caminho muito aliciante no sentido de mostrar como é que o processo
psicológico leva aos comportamentos desviantes e como se pode reconhecer e representar.

Começo pela leitura de uma passagem de Thomas Fuchs homem da filosofia da psiquiatria, é
um cientista, um vulto da ciência europeia, ele diz que as pessoas tornam-se elas mesmas, não
no mundo interior mental ou neuronal mas no seu estar no mundo corporalmente e
intercorporalmente e atuando no mundo. Tornarmo-nos nós mesmos pessoas humanas,
implica que nos tornemos reais uns para os outros. A unidade do interior e exterior reside na
interação intercorporal dos indivíduos onde a sua própria perspetiva de realidade e a realidade
compartilhada pelos outros coincidem. O que interessava a este autor era acentuar que há um
momento de incorporação, há um momento de incorporação com a relação com o corpo,
essencial para a afirmação de si mesmo e desenvolvimento de si mesmo e de
intercorporalidade na relação com os outros enquanto também realidades mentais
incorporadas mas, apesar disso, esta importância da incorporação e de sermos corpos em que
a mente está incorporada na relação com outras mentes, isto não significa que a importância
da incorporação não significa que qualquer manipulação direta sobre o cérebro seja uma
forma de promover a maturidade ou desenvolver a pessoa porque “só através da intervenção
sobre o meio social e sobre o relacionamento entre as pessoas, é que pode haver um efeito de
verdadeira intervenção e de desenvolvimento do próprio cérebro», não é uma manipulação
mecânica do cérebro que pode alterar o comportamento mas sim a intervenção sobre o
próprio meio através do meio e da educação e interação que pode desenvolver o próprio
cérebro. Esta ideia de relação entre o cérebro e o mundo, não se trata de uma intervenção
mecânica no cérebro que transformará uma certa realidade mas sim a relação com o meio que
o cérebro se interrelaciona com os outros e com o meio e assim desenvolve as suas
potencialidades.

«Caminho para a educação e a maturidade do indivíduo não é através da direta manipulação


do cérebro, que apenas pode ter efeito de inibição ou de modelação mas nunca um efeito ??
mas antes através da organização do meio e relações que influenciam o cérebro».

Não estou a relativizar a importância das neurociências, acho que há muito saber que estimula
até os quadros jurídicos e talvez apele a uma alteração de algumas respostas do direito mas
não se pode cair num total reducionismo naturalista e apelarmos a uma espécie de “admirável
mundo novo”. Como bem Fuchs defende, há uma relação profunda com o meio para que se
desenvolva e modifique o comportamento e o cérebro se adapte e reoriente o nosso
comportamento para desenvolvimentos mais adequados. As normas, a convivência com os
outros e, no caso do crime, há que evitar-se que se repita a reincidência no comportamento
criminoso. Estamos com Thomas Fuchs e muito longe da laranja mecânica. A ideia de que as
neurociências nos abrem um caminho para diretas intervenções no cérebro humano é
duvidosa cientificamente, é disto que retiro do livro de Fuchs, porque o cérebro não funciona
assim, o cérebro depende da relação com o meio, relação com os outros, o processo de
aprendizagem está longe de intervenções mecânicas.
Chamo à atenção a propósito da lobotomia, ‘Subitamente no verão passado’, de Tennesse
Williams, o qual tinha uma irmã com problemas e foi sujeita à lobotomia, era frequente este
tipo de intervenção, e ele era revoltado com esta situação.

As neurociências têm realmente uma pujança imensa e fornecem hoje em dia um quadro de
informação e discussão cientifica em que efetivamente se procura não só explicar o
comportamento em geral e criminoso, como dar o passo da laranja mecânica que se poderia
tratar do comportamento criminoso através de intervenções. Thomas Fuchs duvida deste tipo
de intervenções.

Para além desta via da antropologia e das neurociências, ainda na perspetiva das explicação do
crime pela pessoa do delinquente e pelas perturbações e pela deficiência (agora no sentido
leigo) do delinquente, nós encontramos todo um caminho percorrido pela psicologia criminal.

A psicologia criminal ocupa-se dos fenómenos internos do psiquismo que explicariam o


comportamento criminoso. Deficiência da sociedade criminosa que justifica o comportamento
criminoso através de factos sociais. Quer da própria interação das pessoas que fornecem a
cada pessoa uma espécie de padrão inevitável, como quer de depressão do próprio grupo
sobre o comportamento individual

Quanto à Psicologia Criminal, o que é? É a explicação dos crimes através do psiquismo


individual, de cada pessoa.

Existem várias tendências, não são necessariamente conflituantes e que se podem articular,
outras de facto são mais paralelas e divergentes. As teorias psicodinâmicas que explicam o
crime através dos problemas de infância, desenvolvimentos da pessoa. As teorias
comportamentais/behaviorismo, está mais ligado não só ao certo ideologismo mas também a
psicologia social e que explicam os comportamento a partir da resposta a estímulos exteriores,
ou de tipo biológico ou de tipo social. As teorias cognitivas que explicam os comportamentos a
partir do modo como o mundo é percecionado. Outras que explicam os comportamentos a
partir de traços de personalidade. Outras teorias focadas na inteligência.

As teorias psicodinâmicas são especialmente interessantes. Segundo elas o crime que se


explicaria por traumas de infância, espécie de história de vida. Estaria com Freud explicado em
muitos criminosos por um poderoso sentido de culpa que curiosamente existem antes da
prática do crimes, não sendo uma consequência mas um motivo do crime. O crime estaria
relacionado com a fraqueza do ego. Haveria uma ponte entre o id e o ego. Freud, nesta altura
chega a fazer esta afirmação de que há motivação do crime por um certo sentimento de culpa.

Esta ideia surge muito bem explicitada num outro tipo de narrativa, de literatura, de Agustina
Bessa-Luís, ela retrata a história, inspirado num caso de um tribunal, em que uma mulher tem
uma relação incestuosa com o pai e mata o pai. A explicação que surge no romance é que o
homicídio é explicado como forma de remeter para o tribunal penal para o Estado, um conflito
do plano íntimo, ético e moral, que ela não conseguia solucionar, ela precisava da pena
pública, que a vitimizaria de alguma forma para transferir a pena ética insuportável para uma
pena pública. Que se vitimizaria sempre esta mulher e com que ela aliviasse a sua dor
insuportável da dor moral. Tem a ver com esta perspetiva de Freud.

Tem também a ver com estes autores, Alexander/Staub. Esta explicação tão complexa do
crime leva-nos a pensar que a ideia de que o ser racional, sujeito racional pode controlar evitar
o crime, não é tao simples e aceitável como parece, mas sendo um pressuposto da
responsabilidade criminal, quando existem estas dinâmicas, a ciência através da psicanálise
reconhecem na origem de alguns crimes.

Também outra dupla de autores Eysenck também vêm falar na herança genética que
condicionaria as diferenças de funcionamento do sistema nervoso cortical e autonómica, há
uma aproximação clara as análises biologistas mas também se deteta a génese do crime no
desenvolvimento, no funcionamento partido a partir da própria herança genérica, Hans
Eysenck vem considerar que haveria uma espécie de cocktail explosivo de características da
personalidade que tinham a ver com o funcionamento do próprio sistema nervoso e herança
genética, a extroversão, o neurotismo e psicotismo os quais em combinação produziriam
pouca condicionalidade aos estímulos sociais e menor controlo do comportamento, portanto a
psicologia criminal vai nos fazer olhar para o crime numa perspetiva radicalmente diferente da
perspetiva da racionalidade do destinatário das normas e numa perspetiva de tipo moral
acerca do crime.

A personalidade do delinquente, assim como este texto desenvolve é a conjugação destas


características da extroversão, neurotismo e do psicotismo. Estas características podem não
estar em combinação umas com as outras mas tem a ver com o modo de funcionamento do
sistema nervoso, está ligado aos estímulos exteriores. No caso do neurotismo esta referência à
estabilidade da personalidade e a um elevado padrão de neurotismo, mostrar que alguém é
mais reativo e volátil, e mais facilmente comprometido nos comportamentos ofensivos.
Isto pode levar a caracterização ou até à previsão em certos da prática de comportamentos
criminosos, está aqui um certo biologismo de Lombroso, a partir dos traços psicológicos
individuais, modos de comportamento com estímulos, exteriores que é realmente diferente do
biologismo de Lombroso. Relaciona o crime com traços de personalidade.

Quanto à terceira via, a da psicologia criminal, esta abordagem é bastante diferente das
outras. Foca-se com aspetos comportamentais objetivos, tudo o que diga respeito à
introspeção não faz parte dos seus métodos nem tem para o behaviorismo qualquer valor
científico. Para o behaviorista procura-se um esquema unitário, de estudar a resposta animal
aos estímulos. Não se reconhecendo nenhuma distinção, nenhuma fronteira especifica entre
os seres humanos e animais. O comportamento dos seres humanos deixava de fazer parte do
esquema total do comportamento dos animais na perspetiva behaviorista. o objetivo do
estudo era a perdição e o controlo do comportamento, em função dos estímulos exteriores.
Podemos encontrar críticas importantes a estas teses: a psicologia deve ser vista como uma
ciência, estudada à maneira científica. Behaviorismo está relacionado com um comportamento
observável.

Podemos encontrar várias críticas ao behaviorismo primitivo, nomeadamente deste autor que
diz que o ambiente não provoca automaticamente o comportamento. O comportamento gera
o próprio ambiente e o comportamento reage ao ambiente resultante, há uma interação e não
uma relação unívoca entre o meio e o comportamento.
Estes dois autores também criticam dizendo que a personalidade individual é uma praxis. Há
uma criatividade que não está automaticamente traçada pelo estímulo e que é característica
do comportamento humano. E por isso o behaviorismo nestas abordagens às críticas não está
totalmente posto de parte mas está reformulado no sentido interacionista.

Numa outra linha das que apontamos, a psicologia cognitiva, na qual eu diferenciaria duas vias
de abordagem do problema: a via da explicação do crime pelo modo como se faz no
desenvolvimento moral, de Piaget quando estuda psicologia do desenvolvimento, da infância
até a vida adulta; e também uma outra via que destaca a relação com o desenvolvimento,
pratica de comportamentos criminosos com a relação do agente com o processo
informacional.
Começando pela primeira via e aqui por KHOLBERG, tem uma explicação do comportamento
irregular, em que não se consegue cumprir as regras sociais baseada na ideia de
desenvolvimento moral em que distingue 3 fases: pré-convencional, convencional, e pós-
convencional.

Ora aqui se vê os estádios, estados de desenvolvimento desde a infância até à maturidade,


estão associados a estádios etários. Assim como se verá, nem todos os adultos atingem o
último estádio, o desenvolvimento moral perfeito. Num primeiro estádio, relativamente ao
cumprimento das regras, é a perspetiva da punição como estímulo que provoca a obediência e
é por esse tipo de estimulo que se cumprem as regras; ainda nesta fase pré-convencional há
um desenvolvimento de uma orientação instrumental relativista, a pessoa previamente sabe
que vais ser punida e evita praticar esse comportamento, e é deste modo que se orienta pelas
normas numa perspetiva reativa. Num estádio mais avançado que corresponde à adolescência,
começa a existir uma integração no grupo, orientação de cada pessoa para uma concordância
interpessoal e o conhecimento de uma autoridade da ordem social, a relação já não é com o
estímulo punitivo de quem impõe as regras mas com o grupo e com a lógica e o poder do
próprio grupo. A pessoa cumpre as regras na medida em que está integrada em que reconhece
esta autoridade social, é a chamada fase convencional, não há nenhuma razão substancial
senão as próprias convenções a que a pessoa tem que aderir.

Na fase pós-convencional, encontramos um reconhecimento numa fase mais adulta ou inicio


da fase adulta, o reconhecimento das orientações legalistas, do contrato social, certa
racionalidade de interesse de cumprir as regras gerais não apenas porque se reconhece que
elas existem e que há um interesse racional a que sejam cumpridas. Finalmente, a fase do topo
do desenvolvimento moral é aquela em que a pessoa orienta o seu comportamento por
princípios éticos. Não apenas por respeito do seu interesse em cumprir racionalmente as leis
estabelecidas numa lógica de contrato social levada à letra, mas porque consegue universalizar
princípios e orientar o seu comportamento por princípios éticos.

O ponto de vista dele é a análise da evolução da capacidade de cada pessoa evoluir no sentido
de atingir um desenvolvimento moral mais complexo e de se relacionar nesses termos com as
normas e não explica o comportamento da pessoa a partir o exemplo da interação social e o
modo como ela funciona, não é esse o seu objetivo. Esta última fase de maturidade será já na
idade dos 20 e alguns anos que se atinge, situa numa fase mais avançada e muitos adultos
nunca atingem essa fase. É bastante complexo adaptar o nosso comportamento a princípios
éticos universais. O ideal do imperativo categórico de Kant do ponto de vista antropológico é
desfasado de algumas fases do desenvolvimento moral, estudados pela psicologia de Kohlberg.

O sistema penal português prevê um sistema jurídico especial até aos 21 anos, espelha a
adaptação das penas também a este desenvolvimento psicológico. Na lógica de Kohlberg as
penas deveriam ter uma modelação de acordo com o desenvolvimento moral.
Esta perspetiva de Kohlberg que considero interessante e importante, teve vozes criticas e
pertinentes, por exemplo esta autora, vem dizer numa perspetiva do pensamento feminista
que a conceção de Kohlberg é orientada para a justiça que visa resolver dilemas morais,
entende que associa um desenvolvimento moral profundo a um tipo de pensamento e
comportamento masculino e deve ser substituído a uma ética do cuidado q é característica do
comportamento feminino. Acho que suscita uma questão muito pertinente, porque explicar o
comportamento de todos os indivíduos por padrões de desenvolvimento que podem não ser
adequados às características psicológicas de todos os indivíduo, poderá por um lado ser
cientificamente não suficientemente explicativo porque tende a explicar o universo de todos
os indivíduos pelas características de uma parte dos indivíduos e por outro lado, porque
associa a ideia aparentemente cientifica uma componente ideológica e normativa que dá
preferência a essa perspetiva, torna-se uma espécie de dever ser, em detrimento de outras
perspetivas. Na realidade, as mulheres pelo papel que têm tido na historia, e hoje têm menos,
foram sempre associadas ao tratamento dos filhos, maridos, familiares, ou mesmo nas
atividades de saúde a enfermagem, é natural que tenham histórica e culturalmente
desenvolvido apetências e características mais próprias de uma ética de cuidado e de
proximidade e menos de desenvolvimento de princípios racionais e orientações éticos
relativamente à ação. Isso não significa que estes critérios de uma ética de cuidado não sejam
até mais profundos e mais importantes do ponto de vista da formação da maturidade da
pessoa. Mas também é verdade se as características do em todo de cuidado, associadas a um
estatuto social condicionado e até inferior em certo sentido, das mulheres, poder-se-ia pensar
que então teríamos de reconhecer que parte da população não teria alcançado aquelas
características da racionalidade, de puro desenvolvimento moral e abria uma espécie de
inferioridade mas que se constataria a uma parte da população. Acho que não deveremos ver
as coisas nestes termos, claro que se realmente as mulheres desenvolvem mais as
características numa ética de proximidade e cuidado e menos numa logica princípios morais
universais, isto assim por razoes históricas e da natureza das coisas, do modo de ser feminino,
e não tem de ser necessariamente o produto de uma inferioridade ou estatuto social
descriminado, ou se foi não tem de ser mau. As situações históricas de descriminações não
têm de produzir necessariamente neste caso, padrões éticos mais frágeis e inconsistentes, até
podem desenvolver padrões éticos mais profundos porque estão associadas a um estatuto
menos privilegiado e mais autêntico. Esta critica penso que é valida e põe em causa o padrão
do desenvolvimento moral, dela retiramos que a consideração de que uma espécie de
patamares ou níveis de desenvolvimento moral e algo mais complexo e é influenciada pelos
condicionamentos culturais e não pode ser tao uniforme e única como pretendia Kohlberg mas
que algo deste tipo, pode ser o índice de reconhecimento do estádio a que cada pessoa terá
atingido.

Uma outra perspetiva, para além da perspetiva do desenvolvimento moral, também a


psicologia cognitiva, teria uma outra linha que explica o comportamento através do modo
como as representações da realidade e a informação seriam geridas pelas pessoas. Este autor,
nessa linha fala nas chamadas distorções cognitivas que explicariam a capacidade com que as
pessoas teriam de suportar o peso moral de comportamentos incorretos. Há distorções
cognitivas que distorcem o reconhecimento da autoria, levando a que elas não se vejam como
os autores dos comportamentos, ou a desvalorizarem a responsabilidade do seu próprio
comportamento, suportando o baixo nível de desenvolvimento moral. Realmente, a questão
que resultaria do pensamento de Kohlberg é que os criminosos nunca teriam atingido o
máximo desenvolvimento moral, mas sabemos que não é bem assim, porque há certo tipo de
pessoas que praticam crimes e que do ponto de vista da racionalidade moral teriam todas as
condições para evitar a violação das normas. Também com isso interferem as distorções
cognitivas. Há uma interferência da gestão da informação do fundo e conhecimento e
desenvolvimento por força deste tipo de situações que Gibbs qualifica como distorções
cognitivas.
Da psicologia cognitiva há modelos explicativos que associam o comportamento criminoso a
perceções limitadas das situações, a questão da representação, da forma como se gere o
conhecimento e das soluções para os problemas que são colocados, não conseguindo os
agentes, técnicas alternativas à violência para resolver conflitos. É um problema de afetação
do desenvolvimento psicológico por incapacidades cognitivas porque as pessoas em certas
situações veem reduzida a perceção do conflito e da situação vivida e sobretudo não
conseguem compreender os modos alternativos de resolver os conflitos interpessoais. Há
também uma dificuldade de compreender a informação, em certas formas de
comportamentos irregulares antinormativos de gerir o conhecimento para resolver conflitos
vividos através de técnicas alternativas à violência.
Só mesmo para terminar este ponto, vou aqui citar este psicólogo que tem trabalhado, até
através de estudos práticos, as chamadas técnicas de mentalização. Ele defende que é
necessário desenvolver o conhecimento de si próprio e a consciência de si mesmo mas
também a capacidade de representar não só a si mesmo mas estados mentais do outro, como
forma de evitar excessiva culpabilização de si próprio que leva a comportamentos criminosos.
Desenvolve sobretudo esta ideia quanto às crianças e à delinquência juvenil, a necessidade da
criança de desenvolver a capacidade de compreender o estado mental do outro,
nomeadamente o que cuida dela, para uma eventual rejeição ou mau trato, seja visto como
falsa crença de que é um problema seu, ou que a rejeição parental tem alguma razão,
adotando a criança uma perspetiva negativa relativa a ela mesma.

Isto está na fase muitas vezes da delinquência juvenil, leva a que a pessoa não tenha a
suficiente autoestima, porque se vê a si próprio como alguém que não tem possibilidade de
ser melhor ou que tenha capacidade de evitar a prática desses factos. O que Fonagy defende é
a necessidade de cada pessoa de não só ter uma forte representação de si mesma como
também o reconhecimento e a capacidade de reconhecer o estado mental do outro.

A psicologia cognitiva através de todas estas propostas, aproxima-se já da sociologia criminal


mas o que também permite antever é que este conhecimento do modo de comportamento de
cada pessoa, dá uma base, um ponto de partida para a intervenção na alteração de
comportamento quando é desviante. Nas últimas perspetivas há uma certa aproximação, não
se trata apenas de descrever uma situação mas na compreensão e na descrição temos o motor
os fatores, os elementos suficientes para fazer uma reorganização dessa realidade para intervir
sobre os comportamentos alterando os seus comportamentos.

A compreensão dos processos motivacionais e decisórios permite desenvolver técnicas de


alteração do comportamento. Tem havido modelos complexos e desenvolvidos na análise do
comportamento dos indivíduos desde os percussores biológicos que fazem retrato das
características do comportamento que dão origem ao crime e permitem prever a reincidência
da atividade. Portanto os modelos em que também as situações de infância e fraca regulação
emocional, processos de desenvolvimento na adolescência, e a associação com parceiros
criminosos. Estes modelos que selecionam estes critérios, elementos caracterizadores dos
comportamentos não só permitem prever eventualmente comportamentos de risco para
terceiros como na perspetiva que interessa à psicologia permitem justificar uma atuação sobre
os mesmo fatores que venham modificar o comportamento destes agentes.
Na abordagem da sociologia, o crime não é expressão da deficiência da pessoa, ou
desenvolvimento psicológico de alguma coisa de individual e específica da pessoa. Mas a
expressão do processo social da pessoa. Ou para outros na estrutura social, numa atribuição
interacionista do desvalor.

Para a sociologia a explicação do crime parte do contexto social, não das características
individuais.

Fazemos uma breve referência aos pilares da sociologia criminal. Durkheim é o fundador da
sociologia como ciência, as suas regras do método sociológico são o ponto de partida do
pensamento da sociologia, a ideia de que há uma ordem dos factos que apresenta
características muito especiais e são objeto da sociologia. Ocupa-se de factos sociais e não de
processos individuais de comportamento. Essa ordem consiste em maneiras de agir, de pensar
e sentir mas que são exteriores ao individuo, e que são dotadas de poder de coerção. Essas
maneiras de agir, pensar e sentir na surgem da produção de desenvolvimento individual mas
sim de uma organização social, de uma combinação de atividade social que cria as tais
maneiras de agir pensar e sentir exteriores ao próprio individuo. Por conseguinte elas não se
confundiriam com fenómenos organizacionais porque são representações de ações e não são
fenómenos organizacionais, nem com os fenómenos psíquicos que só têm existência na
consciência individual. Estes tais fenómenos objetivos da sociologia constituem uma espécie
nova e a eles que deve ser reservada a qualificações sociais. Não tendo o individuo por
substrato, não podem ter substrato que não seja a sociedade, seja sociedade política, quer
seja qualquer um dos grupos parciais que integra como a literatura, confissões religiosas, etc.

Esta perspetiva é muito forte na explicação do crime, leva a conclusões que ainda hoje nos
podem surpreender, porque ainda estamos ligados a uma concretização jurídica do crime. Para
Durkheim o crime é fenómeno normal, porque uma sociedade seria impossível sem ele, é
necessário e por isso é útil, porque é indispensável a evolução normal do direito; e funcional
permitindo afirmar as regras, e exprimirá inovações comportamentais inerentes à evolução
social. Dá o exemplo do filosofia de Sócrates que por contestar as leis de Atenas veio mostrar
como elas são injustas, vai à discussão da sua justiça que permitiria pensar na inovação e
modificação das mesmas leis.
A tradição de Durkheim vai ser estudada na próxima aula, através da influência de Merton.

O segundo pilar da sociologia criminal: George Herbert Mead. Foi o fundador da primeira
escola de Chicago. Era um meio em que o crime se tinha desenvolvido muito por força da
imigração e conflito na cidade, na urbe entre zonas em que emigrantes se cruzavam com as
pessoas.

Mead é o fundador dessa linha de autores que se dedicam ao estudo empírico sobre crime, e o
construtor da metodologia de análise, ele diz que o processo a partir do qual o próprio ‘self’
surge/emerge é um processo social, não é um processo individual. O qual implica a interação
entre indivíduos do grupo, que preexiste no grupo; implica uma certa atividade cooperativa
nas quais os diferentes membros dos grupos estão envolvidos. Fora deste processo pode-se
desenvolver uma mais elaborada organização da qual emerge o self e que os selves são os
órgãos, a parte essencial pelo menos desta mais elaborada organização social, dentro da qual
estes selves emergem, assim existe um processo social da qual emergem os selves e dentro da
qual tomam lugar interior a evolução e organização, os comportamentos sociais são resultado
da interação entre a sociedade e o individuo. A construção de si mesmo é provocada pela
interação social.

Isto vai para além de Durkheim, há aqui uma certa linha sociologista em que há primazia dos
factos exteriores sociais aos próprios fenómenos mentais, neste caso à construção de si
mesmo, mas Mead vai um pouco mais longe, por ser o autor que inicia o interacionismo
simbólico é ele que estabelece as suas traves mestras. A realidade para Mead não é uma
realidade absolutamente objetiva sendo contruída a partir de fora, a partir da interação das
pessoas, é uma realidade que define significados das coisas sociais. Esse significado estabelece
a partir da interação social, ou seja, ….(lê o pp).
Deve-se acentuar, embora Mead não se tenha ocupado dos media, que a questão da
comunicação é fundamental no pensamento, porque a realidade constrói-se a partir da
comunicação. A escola de Chicago é a primeira a desenvolver uma regulação teórica sobre a
comunicação e a sua interferência na sociedade.

Sutherland explica o crime numa lógica que não é a de Mead mas se encontra adequada na
metodologia do pensamento de Mead.
Aula 4 – Direito Penal
A sociologia criminal, diferentemente da psicologia criminal explica os
comportamentos criminosos a partir das realidades sociais, dos factos sociais e
não de motivações, estados de consciência, da própria personalidade, das
emoções e por isso há uma perspetiva exterior ao individuo e relacionada à ação
social e menos introvertida do objeto da análise na sociologia relativamente à
psicologia criminal.
Durkheim via muito incisivamente o crime como uma manifestação de uma
funcionalidade ou até mesmo de uma função de uma utilidade social. Nesse
sentido, era explicado por padrões comuns e externos de organização de
comportamento social e não a partir da constituição do indivíduo. Havia
tendência em explicar objetivamente a partir de factos socias. Mead tem uma
abordagem que não é absolutamente extinta de Durkheim, também de tipo
sociológico e de exterioridade social e de processo social, mas é um pouco mais
complexa e interessante, os fenómenos sociais e da consciência não são
menosprezados ou como se não tivesse um lugar novo na explicação de
comportamentos sociais.
A grande inovação da abordagem de Mead é que a própria mente é uma forma de
participação num processo social, não um produto de um mundo do indivíduo
isolado, mas sendo resultado da interação com outros, como resultado de um
processo social. A mente não é assim e pode ser explicada ou redutível pelo
aspeto orgânico, pela neurofisiologia do indivíduo orgânico mas emerge da
própria dinâmica do processo social. A expressão característica de Mead “o si
mesmo não existiria nos indivíduos a partir do nascimento, decorreria do processo
e da experiência social e da atividade fundacional das pessoas com o grupo e com
o outro geral (identificador do grupo, a tribo)” é ainda hoje de grande
importância. Do ponto de vista metodológico, esta perspetiva significa que o
comportamento humano (Mead não é um pai da criminologia, não falava muito
do crime) nem se explica a partir de quadros mentais individuais ou de fatores
culturais, uma espécie de nexo causal de comportamentos (“este comportamento
criminoso resulta desta experiência social, destes fatores sociais, destes fatores
culturais ou é consequentes de características da personalidade ou por
representações do mundo por parte do agente” – para Mead isto não existe) mas
antes de compreender ou estudar o processo mais complexo em que a interação
social vai gerar ou fazer emergir as próprias representações ou significados dos
conceitos que são utilizados no desenvolvimento da ação social.
A ação, na perspetiva de interação, não é uma forma de palco ou arena onde se
desenvolva o comportamento dos indivíduos, não é um mero meio onde as coisas
se passam, é sim onde se gera e produz o significado e ação e se constitui
propriamente o indivíduo, o si mesmo, constitui-se através dessa interação social,
não está pré-determinado, não é a tradição que produz o significado das coisas, é
a interação social. Há obviamente um herança de conhecimento e significado que
contribui para a constituição da mente individual.
Chamo a atenção para o que se fala de hoje de estereótipos de género, em que se
diz que cada um de nós herda ou que advém da tradição, que está armazenado e
que é transportado por cada um de nós mas esta visão interacionista de Mead não
entende desta forma, conduz-nos para uma dinâmica presente de interação, não
são quadros rígidos e fixos da mente individual, mas sim produzidos na dialética
da interação social em continuidade e esta ideia é completamente diferente da que
usamos metodologicamente. E digo-o em ligação a Herbert Blumer, muito
influenciado por esta 1ª Escola de Chicago de Mead, que utiliza pela primeira vez
a expressão interacionismo simbólico, chamando muita à atenção para que a
metodologia interacionista procura compreender fenómenos sociais e a mente não
como um produto de uma espécie de causalidade fatores sociais, que até é um
pouco simplista, mas como o produto da própria interação social e a relação entre
uma pessoa e as outras e o tal outro geral e que está em constante
desenvolvimento e que gera até o conceito particular de diálogo social, sendo até
a mente uma espécie de diálogo social dentro de nós, sendo este conceito
desenvolvido por outros autores como Erving Goffman, em que nós nos tornamos
objeto de nós mesmos, em que nós temos um diálogo social com nós mesmos,
acabando por ser desdobrados ou fragmentados numa espécie de eu e de outro
que dialogam para nos identificarmos, em que esse outro é o outro social, é o
outro social que nós representamos, que nós interiorizamos para dialogar
connosco mesmo e construir a nossa identidade.
Mas, portanto, a ação humana seria sempre nesse sentido não pré-determinado
por fatores sociais extrínsecos e objetivos mas seria antes o produto do
desenvolvimento de significados na interação social que é constitutiva da mente
individual mesmo na perspetiva de que vivemos a nossa consciência individual
do que somos e que determinamos as nossas razões de agir e que nos desdobramos
interiormente entre eu e um outro social, ideia que é depois retomada por autores
de outra linha tal como Paul Ricoeur. Esta ideia de Mead é importante porque a
compreensão do comportamento social e também criminoso pressupõe a
compreensão de um modo com os agentes concretizam uma espécie de processo
interpretativo ao lidar com todas as coisas a partir de uma espécie de constituição
em desenvolvimento de significados.
O nosso comportamento é um comportamento que se explica pela interpretação
do significado daquilo com que nos relacionamos, significado esse que não é
originariamente produzido pela mente individual mas que é um produto da
interiorização em nós de uma constituição comum no fundo, comunicacional de
significados. Claro que aqui numa perspetiva filosófica básica que tem mais a ver
com o pragmaticismo americano, ideia de fundamentação, de verdade, de
legitimidade que dependem da forma do conceito que enquadrar a realidade pode
oferecer, que está na base do pensamento interacionista, que no caso adaptado ao
pensamento criminoso tem a ver com uma perspetiva de verificação do
significado do próprio comportamento e como é que se atinge esse tipo de
comportamento. É uma compreensão que procura encontrar um ponto de partida
em algo que seja não só observado mas em algo em que nós possamos detetar a
reprodução de efeitos, e que este seja a própria ação.
Esta perspetiva encarada ao nível científico ou até filosófico não é uma espécie
de axioma “isto é assim porque alguém teve a intuição genial de dizer que é
assim”, é sim a de que estamos perante uma hipótese de compreensão
metodológica possível do comportamento social que pode ter testado através de
inquéritos ou do estudo de grupo de casos, percebendo através destes o
significado do comportamento dos outros e como é que os agentes concretizaram
de certo modo os seus comportamentos, tendo assim esta hipótese possibilidade
de verificação e será aceitável como explicação da realidade conforme o produto
e as consequências a que a sua análise chega. É uma perspetiva bastante
interessante, sendo o motor do interacionismo simbólico, como já explicado e
veio a influenciar a própria criminologia e no chamado labelling aproach. Esta
perspetiva pode ser obviamente aplicada a toda a criminalidade mas, por
exemplo, na violência doméstica ou nos crimes sexuais parece óbvio a forma
como o comportamento dos agentes partem da interação social e de fenómenos
sociais em que o significado do comportamento dos outros vai integrar a
disposição ou disponibilidade pelo agente por uma representação de si mesmo
que o leva a justificar estes comportamentos violentos e agressivos para si
mesmo. Porque esta perspetiva visa verdadeiramente compreender como a
própria mente individual se coloca a si própria, como objeto de si mesmo, num
diálogo interno consigo próprio, como é que resolve os dilemas de perceber o
mundo, fazendo uma certa performance do mundo e como é que realmente
assume a decisão desta certa performance social, com os dados que a pessoa
dispõe, oriundos da interação social.
Também é verdade que no comportamento criminoso conseguimos mais
compreender do que atingir verdadeiramente o motivo pelo qual o agente
necessitou de tomar a decisão da pratica do facto criminoso, porque pode
acontecer que agente em situações semelhantes não cheguem a mesma solução.
Esta via interacionista oferece, se a perspetiva for cientificamente válida,
efetivamente também uma possibilidade de intervenção e de reconfiguração do
mundo do agente, tal como a psicologia permite, porque se compreendermos o
processo de atribuição de significado não controlado pelo agente e em que há um
dialogo do agente com um outro social, totalmente dominável, pelo menos nos
comportamentos normais em sociedade mas, no entanto, não criando a pessoa
sozinha o seu mundo, podemos nós então coletivamente contribuir para a criação
desse mundo, de cada um de nós e dos outros. Este barril de pólvora que é a
interação social, quer no sentido positivo quer negativo que faz sempre emergir
significados e que nos faz atuar com interpretes dos significados na relação com
os outros, pode ser melhorada se refletirmos mais profundamente nestes
processos, ,que levam a prática de crimes, o próprio processo mental dos agentes
ma sempre nesta perspetiva do mundo que eles criaram e na relação com os
outros, não é alguma coisa que estejam absolutamente sozinhos, ou seja, que não
criam sozinhos o seu mundo.

Falando agora de Sutherland, que também se integra na 1ª Escola de Chicago (se


encararmos a 2ª depois da 1ª Guerra Mundial), escola esta no sentido de
afinidades na forma como encaram a realidade metodológica, e não no local em
si. É considerado um dos pais da criminologia pelos americanos. Começando
pelas suas teses, o comportamento criminoso é aprendido, ou seja, não é algo
inato, diferentemente do que dizem os lombrosianos e não só, mesmo algumas
perspetiva da psicologia criminal, por exemplo os que falem de psicológica
cognitiva ou de processo individual ou mesmo como produtos de trauma de
infância, aí realmente o tónico é o processo individual e portanto biológico. O
comportamento criminoso é aprendido, ou seja, é produto, aproximando-se assim
da perspetiva de Mead.
A segunda tese é a de que este comportamento é aprendido com a interação com
outras pessoas num processo de comunicação, aqui claramente interacionismo,
ocorrendo principalmente dentro de grupos privados, sendo para este sentido
pouco significativos os papéis desempenhados por filmes, jornais, etc para o
comportamento criminoso. Portanto a ideia é a de que o cinema e os meios de
comunicação social não são determinantes para os comportamentos, percebendo
isto Sutherland através de estudos empíricos que o levam a perceber que o
comportamento criminoso se aprende sim em grupo privados, como bairros,
famílias, proximidade em geral.
A terceira tese é a de que compreende não só as técnicas (no caso de carteiristas
por exemplo) mas também as orientações de motivos e impulsos, entre outros. A
orientação específica de motivos e impulsos é aprendida a partir de definições
positivas ou negativas dadas aos códigos legais, relacionando-se muito esta
próxima tese com esta, a de que o facto da pessoa se tornar delinquente se dever
ao excesso de definições em favor da violação da lei que preponderam sobre
aquelas em oposição à infringência desta, dependendo tudo isto da frequência,
duração, prioridade e intensidade, como em qualquer processo de aprendizagem.
Portanto, a ideia de Sutherland é que a aprendizagem do comportamento
criminoso é idêntica à de qualquer outra aprendizagem, ou seja, significa que
pessoas, em famílias ou em grupos sociais, que não são criminosas podem
condicionar uma aprendizagem de impulsos ou de motivações criminosas. Do
discurso crítico que se faz à polícia ou aos tribunais, se for muito intenso, um
fator de motivação criminosa ou para infringir a lei, ou vice-versa, que é um
pensamento interessante de Sutherland, o facto de haver criminosos que
transmitem valores de respeito pela lei, porque realmente o seu discurso, o seu
modo de comunicação não instila naqueles que estão num processo de
aprendizagem com eles valores criminosos. É esta ideia básica de Sutherland,
através da interação social, o processo de aprendizagem criminosa é como
qualquer outro processo de aprendizagem, aprende-se a ser criminoso como se
aprende a ser advogado, como se aprende a ser mão ou pai de família.
O crime não é nenhuma excrescência no comportamento social em geral, pode
ser definido pelas necessidades gerais e valores tal como o comportamento
criminoso também o é. O Sutherland é um autor particularmente interessante
porque é ele, a partir de um estudo que faz nos anos 40, que cria a expressão dos
white collar crimes. Nesse estudo, já em face da Teoria da Associação Diferencial
que defendia, que nos crimes de colarinho branco também há um processo de
aprendizagem, também há um processo de associação diferencial e nestes casos
destes comportamentos irregulares ao nível das empresas ou de pessoas bastante
bem integradas na sociedade, o crime não é consequência da pobreza ou da
pertença da classe social. O crime, embora seja a expressão de necessidades ou
valores, não se explica a partir destes preexistentes que não tenham sido
aprendidos nesses processos de associação diferencial, nem pelo meio social ou
deficiências do indivíduo, mas sim pela precocidade de certos contratos sociais,
sendo o crime um fenómeno associativo, revelando-se mais este conceito nos
crimes de colarinho branco. Este pensamento é muito produtivo no sentido que
se o crime é um fenómeno de aprendizagem, associativo, então é possível
desenvolver uma política social de prevenção de crime e de, no caso de
cumprimento da pena e da execução das penas, reintrodução por novas
associações diferencias, agora “positivas”, de encetar processos de reinserção
social. É verdade que esta possibilidade que nos é oferecida pelo pensamento de
Sutherland, não tem sido muito eficaz e levada à pratica nos tempos que correm,
mas o que é certo é que há aqui também um otimismo.
O crime não é um produto de um determinismo social, psicológico ou biológico
mas de um determinismo social onde somos todos colaborantes, portanto
conhecendo mecanismos da solução individual que leva à pratica de crimes,
solução de dilemas ou opções de vida que leva à pratica de crimes, nós podemos
interferir nessas mesmas práticas refletindo sobre a interação social, havendo aqui
uma interligação com o interacionismo simbólico de modo a quer prevenir o
crime quer ulteriormente em momento de execução da pena, modificar o
comportamento delinquente.
Numa outra perspetiva que assenta a explicação do crime na própria organização
e na própria estrutura da sociedade. O autor mais significativo desta corrente é
Robert Merton, o qual explicava os comportamentos criminosos por um certo
desfasamento entre as metas culturais e os meios institucionais disponíveis numa
sociedade para cumprir essas metas. Quando há coincidência entre os fins
culturais e os meios institucionais, os comportamentos são de conformidade.
Quando os comportamentos são desconformes, há várias hipóteses: numa das
hipóteses, do ritualismo, ele incluiria a burocracia, de facto há um
desconhecimento dos fins culturais mas uma aceitação dos meios institucionais,
os burocratas não sabem ou não querem saber para que é que se justificam as
formalidades, não procuram justificar as soluções que dão para os problemas
colocados em função dos fins culturais para que esses procedimentos são criados
mas obedecem cegamente aos meios institucionais, sobrepondo-se estes aos fins
culturais, tornando-se insuportável; outro tipo de comportamento é o da
passividade, de uma certa anemia, de uma certa incapacidade de compreender os
fins culturais, quer para os atingir utilizar os meios institucionais, que é o exemplo
de toxicodependentes, que têm uma certa apatia social, que os impede de ter um
comportamento inovador quer relativamente aos meios culturais quer aos fins
institucionais.
Depois há outros dois tipos de comportamento que são os mais interessantes no
sentido problemático: o que há uma rejeição simultânea de ambos, defendendo
novos meios institucionais e novos fins culturais, são os revolucionários, que
entendem que vivem num sociedade injusta, que até pode não ser uma rejeição
legítima, podendo estar aqui enquadrado o terrorismo; e depois a da inovação, em
que podemos enquadrar quer os criminosos, quer os artistas ou empreendedores,
nesta cultura de inovação que se caracteriza por se manterem os fins culturais e
não se respeitar os meios institucionais, criando novos para atingir esses mesmos
fins culturais, o que é bastante bom em termos de inovação empresarial, ou até
política, ou até artística, havendo na opinião da professora até uma linha ténue
entre a rebelião e a inovação, sobre a qual Merton não estava interessado (o que
interessa sim é que o comportamento criminoso seria um modo de inovação, ou
seja, imaginando a riqueza como fim cultural, mas rejeitando os meios
institucionais para a obter, como o trabalho, o investimento, a poupança, dando
uma enorme importância às finalidades instituídas na sociedade, vão roubar,
utilizar fraudes, corrupção, outras formas de atingir os fins culturais,
caracterizando isto segundo Merton o comportamento criminoso). Merton
associa assim o crime à disfuncionalidade, residindo esta na dissonância entre os
objetivos institucionais e as oportunidades sociais.
Claro que as teses de Merton e as teses de Sutherland partem de hipóteses
diferentes de explicação e procuram uma aplicação diversa mas não são
incompatíveis, apenas paradigmas diferentes. Claro que as teses de Merton estão
mais associadas aquilo que o interacionismo simbólico critica, através de Blumer,
que é a explicação do crime por fatores sociais, mas de facto mas as teses de
Merton não podem ser rejeitadas, porque são notórias situações em que não há
realmente uma oportunidade social.
O que se pode perguntar relativamente a Merton é porque é nuns casos a falta de
oportunidade social conduz quase inevitavelmente a um comportamento
criminoso e pessoas que vivem em meios sociais semelhantes conseguem sair
desse patamar. Em resposta a isto, talvez sejam mais interessantes as teses de
Sutherland, de associação diferencial. E há realmente várias críticas feitas a
Merton: não explica que situações idênticas em termos sociais conduzam a
desfechos distintos; não valoriza os aspetos individuais-psicológicos, permite
manipulações funcionais; através da política do empobrecimento como ideal
cultural (não sendo esta ideia de Merton mas levada ao extremo, olhando por
exemplo para Portugal até ao 25 de Abril, o crime encontrava-se muito
controlado, porque obviamente os ideais de enriquecimento e de sociedade de
consumo não estavam patentes, ou seja, se excluírem essas metas culturais de
consumo e houver até uma perspetiva de empobrecimento como ideal cultural,
quando se fala até desta ideia de socialismo de pobreza pelos críticos do
socialismo do passado, quando confrontadas as sociedades capitalistas e
socialistas, quando retirados esses ideais como o de consumo, no modelo de
Merton, encontraríamos sociedades que não teriam estas divergências pois são
seriam sociedades mais funcionais e os comportamentos desviantes já não se
verificavam do mesmo modo. Outro exemplo, sociedades por castas, no caso das
sociedades indianas, se cada um se mantiver na sua casta, não podendo ascender
para lá da sua casta, não há disfuncionalidade ao nível do crime, mas tornam-se
fundamentalmente disfuncionais ao nível do desenvolvimento dos indivíduos);
não consegue explicar a criminalidade dos muito ricos e poderosos.

Retomar a sistematização feita relativamente a criminologia, em que se reuniam


e diferenciavam as perspetivas dos que explicam o crime como a ciência do
comportamento, outros como a ciência da civilização e a seguir os que explicam
o crime como uma deficiência da estrutura social, e finalmente uma outra
perspetiva. A professora Maria Fernanda Palma diria que é muito revolucionária
no sentido de modificar a metodologia, a perspetiva epistemológica mesmo sobre
o estudo do crime, de uma forma absolutamente radical.
Se as outras perspetivas procuram conhecer as causas do comportamento
criminoso ou compreender como é que o processo social que se desenrola no
sentido de se chegar a pratica de crimes, mas ainda é a prática de crimes que
procuram explicar, esta ultima torna objeto do estudo não já o crime e as causas
do crime mas sim o próprio processo social de definição dos comportamentos
delinquentes ou de, como a professora tem muitas vezes dito, seleção das
requeiras criminosas.
Aquilo que se procura explicar como objeto cientifico com importância prática e
com consequências para a análise da questão fundamental da criminologia, o que
se procura explicar são os próprios intérpretes, os definidores dos
comportamentos dos outros como comportamentos criminosos. É realmente isso
o cerne do chamado “labeling aproach”, aproximação por estigmas numa
tradução mais ou menos literal, que correspondeu a uma modificação
metodológica do pensamento da criminologia, ainda oriunda do interacionismo
simbólico, mas com uma modificação sobre aquilo que interessa cientificamente
analisar.
Claro que há uma certa relação desta perspetiva que no fundo é de uma segunda
fase da Escola de Chicago – uma Segunda Escola de Chicago, pode-se dizer –
com uma Primeira Escola de Chicago, e com o pensamento médico e com o
interacionismo simbólico, há uma relação intrínseca. No sentido de que como
Becker diz o ser criminoso não é nenhuma realidade de um comportamento
humano, que o torne diferente dos outros ou especifico, é antes o resultado de
um processo social de estigmatização de comportamentos e de agentes e de
definição de comportamentos como criminosos. O que é preciso ser estudado é
esse processo e não a natureza dos comportamentos que o termo desse processo
são assinalados como criminosos
Aliada a esta perspetiva do labeling também se desenvolve uma perspetiva muito
relevante a chamada deviance secundaria, é a que se distingue da deviance,
desvio, irregularidade primária, e que se deve ao Edwin Lemert nos anos 50, a
obra de Becker é dos outsiders, dos anos 60, mas este autor da linha do labeling
aproach é influenciado pelo interacionismo simbólico. Este autor vem assinalar
que há um momento de desvio dos comportamentos relativamente padrão à regra
que é pouco relevante: é um desvio primário que ainda não é infração, ainda não
tem as características formais de uma infração a que vem criar reações. Há
determinadas reações que se suscitam em interação com esses comportamentos,
de pessoas que fazem parte de grupos sociais (escolas famílias, quaisquer outros
grupos religiosos, qualquer associação de pessoas e relacionamento de pessoas
que vão ser estigmatizadas por serem diferentes ou por haver a previsão de que
elas vão praticar crimes e esse papel que lhes é atribuído ainda numa fase pré
delinquente, podemos dizer, vai ser interiorizado pelas pessoas que
(provavelmente umas não aceitam) e procuram demonstrar ao grupo que o papel
que lhes estão a atribuir não é aceitável ou não corresponde ao que elas são
efetivamente, ou ao que elas podem ser, mas o estigma do grupo é muito difícil
de superar e por vezes é interiorizado e as pessoas passam a comportar-se de
acordo com aquela estigmatização, e vão no al processo de deviance secundaria
vão realizar comportamentos que já são irregulares já tem alguma gravidade já
temem só o produto do seu ressentimento em relação ao grupo ou um
acomodamento/ ajustamento à definição deles próprios pelo grupo social.
Nesta ideia, da deviance secundária esta presente também o chamado Teorema
de Thomas -um autor da 1ª escola de Chicago desse grupo- segundo o qual
existiriam predições que profecias que assim mesmo se cumprem. Thomas dizia
nesse seu teorema famoso na sociologia e não só, que quando algo não é real mas
é tido como real, é definido como tal, passará a ser real nas suas consequências.
Portanto, aqui se encerra nesta lógica de Thomas já o que vem a ser desenvolvido
por Lemer como deviance secundária.
Mas, enfim, antes de fazer o comportamento, não nos podemos esquecer que este
processo de estigmatização não é só levado pelos grupos informais, (como os
gangues, as famílias, os grupos de bairro, grupos vizinhos, pequenas associações,
igrejas, escolas..) mas na realidade é mais opressivo quando é levado a cabo pelas
instituições formais, (polícias, pelos tribunais e pelo próprio legislador).
Por exemplo, a polícia para factos idênticos persiga determinadas pessoas e outras
deixe sem perseguir- isto em, sociedades como a americana é muito comum. Hoje
em dia quando se elaboram perfis até mesmo com inteligência artificial para
identificar suspeitos é obvio, assumido até que há um processo de estigmatização,
que pode ser injusto e justificado em relação a determinadas pessoas mas que é
muito discutida. Também os tribunais quando com certos estereótipos para factos
idênticos assumem decisões diferentes, e a ideia deste labeling haverá factos
absolutamente idênticos serão tidos de formas ou são idóneos e outros não só.
Há um estudo de Zelman, sociólogo alemão, que no fundo põe em prática este
labeling e demonstra que nos meios urbanos e nos meios rurais os tribunais
tendem a ser mais severos para os comportamentos em que há morte de uma
pessoa na sequencia de ofensas corporais, nos meios rurais há tendências para
punir esse tipo de casos como homicídio com dolo eventual. Enquanto casos
semelhantes nos meios urbanos muitas vezes os tribunais vão considerar que há
apenas uma ofensa corporal agravada pelo resultado, que é um crime menos
grave, não e um crime de homicídio, portanto é menos gravemente punido.
Para alem destes exemplos de seleção social praticados pelas instâncias chamadas
formais de controlo, há ainda a instancia formal de controlo e regulação da
criminalidade de excelência que é o legislador: depende dele a opção pela
definição de um certo comportamento como crime; legislador este democrático
com todas as garantias de representatividade do estado de direito democrático,
mas de facto há muitas vezes mais intensamente um efeito criminógeno de certas
opções legislativas. Por exemplo punir o consumo de estupefacientes ou se opta
por punir o pequeno trafico ou se se opta por exemplo por se discutir de
recriminalizar ou neo criminalizar os grafites nos comboios porque houve
realmente esta descriminalização, foram considerados contra-ordenações, crimes
com coimas, há esse tipo de opções estamos a intervir através do legislador na
própria definição do que seja crime.
Quando se criam esses crimes houve aumento de criminalidade geral, ou a
legislação se expande e se engrossa o volume dos comportamentos considerados
criminosos é obvio que aumenta a criminalidade e nos comportamentos
secundários também, associados à formação de certos casos com
comportamentos criminosos.
Muitas vezes, para esconder os crimes para esconder os outros, até não seriam
muito graves ou necessário criminalizar, a Regente não esta a discutir isto, mas
sim a sugerir que uma grande antecipação e insistência na via de incriminação
quando existirem alternativas ou quando seja ainda prematuro, porque ainda não
há uma relação direta de interesses relevantes dos comportamentos vai criar um
efeito criminogeno, e por outro lado criar comportamentos subsequentes
associados a pratica desses crimes. Há também uma expansão da criminalidade
potenciada pela seleção levada a cabo pelo legislador.
Em suma, antes do PowerPoint que a Professora vai mostrar para terminar,
salientou duas considerações muito importantes quanto ao labeling e ao
conhecimento da criminalidade e processo de criminalização de comportamentos.
Tem até uma linha até pragmática, tem utilidade e consequências a considerar de
grande importância.
Por um lado, há processos de estigmatização que são injustos, porque
discriminam e tratam desigualmente situações iguais, e há um problema de
justifica que tem de ser resolvido a par da solução do problema das carreiras
criminosas. Por outro, há um efeito criminogeno da própria estigmatização dos
comportamentos, e estas questões para o labeling aproach é que são importantes,
não são as questões do combate ao crime, nem da explicação das causas do crime
porque a partir de Becker veio-se dizer de forma perentória que a natureza
criminosa de um comportamento não é nenhuma realidade inerente.
Quanto a este ponto, a professora apenas acrescentou que era uma questão de
poder do grupo sobre os membros de uma sociedade, ou de um grupo social e dos
diversos grupos sociais, o crime é uma questão de exercício e de carreiras
criminosas com sucesso
Falou também de Goffman, autor canadiano que se refere a um processo
dramaturga, interacionista, em que a construção de si mesmo é produto de uma
espécie de modelação como um brinquedo, em que o eu social vai modelar a
mente e a identidade de cada pessoa

I
Volta a dizer, o labeling chama-nos a atenção para os problemas de Justiça de
discriminação associados a definição dos comportamento como criminosos
através do processo de seleção social e estigmatização, por instancias não formais
e formais de controlo, e para, sobretudo, a deviance secundaria o papel
criminogeno da estigmatização dos comportamentos
Aula 5

• Primeira Parte

Na última aula tínhamos ficado após o filme do Manuel de Oliveira, tínhamos ficado na
questão sobre o proveito que poderíamos tirar da criminologia para o Direito Penal. Antes disso
eu tinha dito, tinha prometido que ainda se falaria um pouco dos desenvolvimentos posteriores
ao Labelling Approach da criminologia, é obvio que como estamos a tratar de Direito Penal não
podemos fazer um estudo muito aprofundado da disciplina, embora as relações entre o Direito
Penal e a Criminologia cada vez mais se tornem prementes.

Remetendo para a síntese que faço no meu livro, posso dizer que talvez se possam
sistematizar algumas tendências no estado atual da criminologia, com efeito os
desenvolvimentos do interacionismo simbólico levaram a uma certa radicalização crítica da
criminologia como também a linha de pensamento do Merton, isso tornou a criminologia
relativamente hostil aos governos, enfim, às entidades que têm de desenvolver uma política
criminal e, que têm responsabilidades nas sociedades democráticas perante os cidadãos no que
diz respeito à prevenção e contenção ou controlo do crime.

A criminologia que foi muito desenvolvida no pensamento anglo-saxónico e sobretudo


americano acabou por se tornar um campo de teóricos radicais, também por exemplo na Itália a
criminologia crítica é uma abordagem muito hostil ou muito insubordinada à organização ao
controlo que o Estado tem de ter relativamente à questão da criminalidade. Há uma certa
incompatibilidade entre a ciência, neste caso os desenvolvimentos da ciência muitas vezes
também algo ideológicos e as políticas criminais, é muito isto que veio a acontecer até porque a
determinado tempo, desde logo no início dos anos 70 e depois anos 90, houve na Europa um
acréscimo da criminalidade, um pouco da criminalidade contra o património, e também em
certos países da criminalidade violenta, por isso desenvolveram-se políticas de Law and Order
ou nos EUA as Broken Windows que são realmente uma resposta de uma política criminal
atuante, também baseada em conceções criminológicas mas de tipo diferente da abordagem do
Labelling Approach e antes de todo o enquadramento metodológico do interacionismo
simbólico.

E então, como eu disse, se quisermos fazer alguma sistematização podemos dizer que se
veio a desenvolver um pensamento criminológico mais instrumental das políticas criminais
baseado em estudo empíricos sobre certos grupos de crimes ou certas classes de crimes, certos
agentes, certos tipos de agentes, mas instrumental de políticas criminais e realmente esses
modelos já partem de uma conceção de tipo legal ou de tipo jurídico da escolha livre, da
possibilidade dos agentes serem reorientados preventivamente para a não prática de crimes,
portanto serem dissuadidos da prática de crimes. Estes estudos são estudos parcelares, muitas

1
Aula 5
vezes desenvolvidos com técnicas da sociologia, inquérito, estatística, etc, mas na verdade esta
linha instrumental das políticas criminais, os dados, veio desembocar numa justiça incapacitante
em que a questão fundamental é afastar da sociedade aqueles agentes que têm um
comportamento nocivo e que causam danos sociais intoleráveis, ou que tendem a fazê-lo. Isto é
uma linha bastante instrumentalista e cética ainda baseada em estudos empíricos, sem dúvida,
mas que no fundo vem apenas defender uma subtração dos agentes de crimes à sociedade no
sentido de proteger a sociedade.

Também a linha das Broken Windows que foi uma linha de política criminal muito utilizada
nos EUA, p.e. na cidade de NY e que teve um certo efeito de controlo da criminalidade e de
diminuição da criminalidade, é uma linha deste tipo incapacitante mas não tão cética,
incapacitante preventiva no sentido de fazer intervir o sistema penal numa fase precoce em que
os agentes têm apenas comportamentos desviantes e regulares mas que ainda não são graves do
ponto de vista da criminalidade mais violenta e que p.e. partir as janelas, por isso se chama
Broken Windows, urinar na via pública o fazer alguns danos, pequenos danos nos sítios
comunitários e nos sítios públicos e aí a ideia era dar-se às polícias uma possibilidade de
intervenção precoce para que sendo esses agentes (muitas vezes jovens), levados, confrontados
com a justiça seria atalhado o seu caminho para a criminalidade mais grave ou as suas carreiras
criminosas. Esta linha das Broken Windows não se pode dizer que é uma linha que não produz
efeitos em termos de política criminal pode aliviar em certas sociedades ou certas comunidades
durante algum tempo as pessoas que maioritariamente não praticam crimes, ou que são vítimas
destes crimes de não sofrerem os mesmos e por isso são políticas que eu diria populistas e em
certos casos produzem alguns efeitos, não considero que esta linha que pode assentar até em
estudos criminológicos empíricos, enfim sobre determinadas áreas da criminalidade e sobre o
modo do comportamento dos indivíduos em certos aspetos da psicologia criminal, não tenha
doseadamente algum interesse, mas realmente por si só ela não é fundamentalmente justa
porque vai criar uma antecipação excessiva da intervenção do Direito Penal e nesse sentido a
fundamentação da política, ou da filosofia política que nós andamos a procurar do Direito
Penal, o modelo liberal também está posto em causa com esta linha de pensamento. Claro que
esta linha de pensamento sobretudo nos casos mais tardios, do terrorismo, no caso da
investigação de suspeitos, as políticas preventivas, da utilização de perfis pelas polícias, o
controlo de pessoas p.e. nos aeroportos mantém-se enquanto técnica policial mas os Broken
Windows procuravam ir mais além numa técnica policial ser já um confronto com o sistema de
justiça para dissuadir futuras carreiras criminosas. Esta é uma primeira linha que não tem nada a
ver com o interacionismo simbólico que procurava uma desconstrução da ideia de que o crime
era uma qualidade de certos agentes ou de certos comportamentos e que fazia radicar a interação
entre os membros da sociedade e o grupo social, o outro social e o individuo, portanto a criação

2
Aula 5
de uma interpretação do mundo, de um sentido e de um significado do comportamento q em
certas situações explicaria ou permitiria compreender a prática de crimes.

Outra via diferente desta será uma via que agora está muito na moda, tem muito a ver com a
justiça restaurativa, a Dr. Sónia Reis está muito interessada nessa linha de pensamento, e que
não se pode enquadrar no primeiro grupo, é uma linha de pensamento nos termos da qual se
aproveitam algumas das considerações do interacionismo simbólico até e há uma espécie de
aproveitamento dos sentimentos gerais, ou dos sentimentos gerados na sociedade e na vítima,
sobretudo na vítima são sentimentos de ressentimento tendo uma certa necessidade de
retribuição de vingança e de rutura entre as vítimas e os agentes do crime para fazer um
processo de superação desses sentimentos, fazendo-os interiorizar enquanto vergonha, enquanto
sentimentos de vergonha mas num sentido positivo de superação dessa mesma vergonha ou de
algum sentimento de culpa, fazendo-o interiorizar esses sentimentos para que o agente na
relação com a vítima, para que as relações entre o agente e a sociedade sejam reatadas num
modo positivo. Braithwaite, é um dos autores desse movimento e tem a ver com a justiça
restaurativa que tem uma característica muito específica relativamente à qual eu sou muito
crítica: faz deslocar a questão penal muito do campo das relações entre individuo e estado que é
realmente o enquadramento clássico da fundamentação do direito penal no poder punitivo do
estado o direito penal como poder punitivo do estado, faz deslocar esse enquadramento, a
questão penal para a primazia ou protagonismo quase absoluta à relação com a vítima, há uma
certa privatização do DP, porque são realmente os sentimentos gerados pelo crime, a
compreensão do sofrimento da vítima, também a necessidade de reajustamento do agente do
crime à sociedade que são a questão fundamental do DP.

Citando alguns autores que até são bastante radicais nesta linha de pensamento é como se
procurasse uma alternativa ao DP, é como se realmente a questão penal em vez de ser uma
justificação do poder punitivo do Estado passa-se a ser uma questão de reparação, e portanto de
solução de um conflito entre privados. Diria que é preciso ter alguma moderação e não podemos
pura e simplesmente afastar a relevância da justiça restaurativa porque em muitos casos é uma
forma de resolver o conflito social gerado pelo crime que aliás até já tinha antecedentes no
pensamento correcionalista português do séc. XIX do Maria Jordão p.e. que dizia que o
principal dano do crime era o dano do criminoso para além do dano da sociedade, para além do
dano da própria vítima ( com as exceção dos casos em que a vida da vítima fosse suprimida),
mas em geral quando a vítima pudesse sobreviver, não fosse uma questão de atentado à sua
própria vida, as penas serviriam para reparar para além do dano da sociedade e do Estado, para
além do dano da vítima também serviria para repara o principal dos danos que era o dano do
criminoso. E o dano do criminoso seria exatamente a sua rutura, o seu afastamento da sociedade
que teria de ser superado através de uma pena expiativa, no fundo de uma correção era uma

3
Aula 5
perspetiva preventiva ou especial, falaremos mais tarde, mas uma perspetiva de alguma
reparação.

É possível ter uma conceção de justiça restaurativa que não seja radical que não suprima o
problema penal e o fundamento das penas o fundamento também das normas incriminadoras e
das respetivas penas à relação do agente com o poder punitivo do Estado, é uma questão de
fundamentação do poder do próprio Estado enquanto essa reparação do dano do delinquente for
uma perspetiva importante. Embora haja algumas conceções de justiça restaurativa que
procuram ser muito radicais e anular no fundo a colocação tradicional do problema penal como
um problema de relação entre o agente e o poder punitivo do Estado. Para além desta outra via
que eu contrapôs à das Broken Windows, não por serem contrárias, são vias completamente
diversas e esta última do Braithwaite ainda tem a ver com o interacionismo simbólico, eu diria
que pode haver uma utilização mais moderada e tem havido do interacionismo simbólico até do
próprio Labbeling Approach na perspetiva de poder fazer intervir o DP, a lei, os tribunais as
polícias num sentido controlado, isto é evitando os excessos discriminatórios e sistematizantes
que os estudos empíricos baseados na orientação do Labelling, ou orientados para se perceber
como é que se define na prática a criminalidade permitem concluir e nesse sentido as
intervenções baseadas em estudos orientados por uma perspetiva de Labbeling podem ser
intervenções mitigadoras dos processos de estigmatização, corretivas de alguma forma das
justiças das desigualdades dos processos de estigmatização e sobretudo impeditivas da deviance
secundária, sendo advertências ao próprio legislador de que não deve intervir cedo de demais,
p.e. as Broken Windows serão quando se erigem em conflitos comportamentos ainda de pouca
relevância social (grafitis p.e.), em certas situações estamos a admitir um processo de
estigmatização e de deviance secundária e o DP deve encarregar-se de formular incriminações
que sejam potenciadoras da criminalidade ou da deviance secundária ou seja um criminógeno e
só intervir na altura certa, portanto quando o dano social é muito difícil de reparar ou de
prevenir, ou enfim de estabilizar as expectativas sociais sem ser através da intervenção do DP.

Uma utilização de Labbeling numa análise cujos resultados podem contribuir para estudar
os processos de definição da criminalidade pelas polícias, pelos tribunais, etc. em relação a
determinados comportamentos evitando a estigmatização de grupos e com isso também
melhorando as práticas quer das polícias, quer dos tribunais e antes disso o próprio legislador e
impedindo certas formas de criminalização que possam antecipar excessivamente a
criminalidade e serem fatores de deviance secundária é realmente um modo adequado, talvez
não o modo suficiente, mas adequado para utilizar com alguma produtividade para o DP e a
justiça Penal o pensamento interacionista. Ainda assim posso dizer que também há formas de
utilização do Labelling um pouco inconscientes, porque no fundo o paradigma epistemológico
do Labelling Aproache é possível que não se coloque a si próprio sobre observação, portanto a

4
Aula 5
possível utilização pelos teóricos, pelos cientistas sociais (os sociólogos) de uma análise tipo
Labbeling também ela esta sujeita a pré compreensões e ao interacionismo simbólico, à
interpretação, enfim da relação com os tribunais com os polícias, enfim com todos os
intervenientes do processo criminalizador de uma produção de significados muitas vezes
significados críticos que característicos também de uma formação académico, de um certo estilo
de realizar a ciência, portanto não se pode dizer que o Labelling e todo o desenvolvimento
académico do interacionismo simbólico não tenha levado até a divulgar conceções pouco
conscientes por parte de alguns intervenientes nos processos de seleção social que devem ser
sujeitas a crítica, pode ter levado ou pode levar a uma excessiva politização ou politicização
como se quiser dizer do DP, nomeadamente porque de uma perspetiva do princípio da
oportunidade se tende a escolher a perseguição de determinados crimes em detrimento de outros
, algum menosprezo pelo crime violento por vezes, ou vice versa, ou se faz um incidência nos
crimes tradicionais do pobres nos crimes contra o património, etc ou diversamente se deixa de
proteger ou de controlar esse tipo de criminalidade para se acentuar a criminalidade dos
poderosos e isso é um fenómeno que se constata bastante em sociedades como a portuguesa, a
italiana, no sul da Europa houve muito esse tipo de lógica que corresponde a uma espécie de
conversão dos quadros do Labbeling Aproache num certo senso comum nos agentes da justiça
que por vezes utilizam de facto esses processos de definição do crime para supostamente
realizarem a justiça social, portanto também a justiça social não se realiza através do DP, claro
que o DP como qualquer outro instrumento do Direito contribui para a justiça social mas não é
realmente o seu fim, por excelência é o controlo da criminalidade é a realização da justiça penal
a prevenção se quisermos, mas a justiça social parece não ser o seu grande fim primário.

No estado atual da criminologia diria que há uma tendência de regressão relativamente a


modelos de racionalidade dos agentes criminais que despreza toda a reflexão do interacionismo
simbólico e também os desenvolvimento da psicologia criminal e baseia-se numa ideia de
agente racional que pode escolher entre violar as normas e não as violar e portanto aí também
numa perspetiva da psicologia da escolha e de criação de automatismos de resposta a estímulos,
entra-se na tal lógica de antecipação da criminalização ou do confronto com a justiça penal ou
na justiça incapacitante as diversas perspetivas do Labelling, umas mais moderadas e diria
positivas e outras mais radicais e confundem objetivos do DP com objetivos da política e
realmente ainda a outra via que pode ser conjugada com estas todas, aquela linha da justiça
restaurativa que também tem algumas relações com os conhecimentos da criminologia e com o
estudo do significado do crime na sociedade, mas deslocando até o topus fundamental do crime
e da pena, da relação do agente com o Estado para a relação entre o agente e a vítima e o
problema social subjacente.

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Aula 5
A grande questão que falta elucidar, é realmente a questão de como é que a criminologia se
relaciona com o DP? Este é um problema que tem ocupado muitos autores, quer da sociologia,
do DP, mas sobretudo até da sociologia quando procuram relacional os legal studies com os
estudos da sociologia e da criminologia, há um autor cujo o livro tenho aqui e podem encontra-
lo, o David Nelken que tens muitos artigos, posso dar-vos a indicação de um ou outro que
podem arranjar através da internet, em que de facto ele reflete muito sobre o possível
aproveitamento pelo DP da criminologia, aproveitamento nem é esta a expressão é qual é o
plano interdisciplinar metodologicamente aceitável entre a criminologia e o DP. De facto a
questão depois das aulas anteriores em que fizemos um percurso pela criminologia, nós
podemos chegar a um ponto de uma tensão insuperável em que realmente e como se vê em
alguns autores mais radicais da criminologia, não há diálogo algum possível entre o DP e a
criminologia porque são discursos, são análises que têm premissas completamente distintas. A
criminologia procura explicar o crime como fenómeno social, compreendê-lo, explicá-lo,
procura uma certa neutralidade objetiva e o DP tem antes a necessidade de decidir conflitos, de
invocar uma espécie de verdade ou uma certa razão jurídica para atingir a decisão válida dos
casos ou enfim formar as normas, que são as normas válidas e que têm justificação, portanto
todo o sistema penal tem uma premissa de fundamentação, de validade e de validação que não
apenas de descrição nem de compreensão objetiva dos factos e pode o sistema penal como
qualquer sistema normativo ser compreendido num modo absolutamente fechado, isolado que
em si mesmo se coloca e se produz funcionando a partir das suas próprias razões e tendo apenas
como critério de validação a coerência. Se assim entendermos as coisas e de facto no discurso
jurídico somos levados a isolar-nos de qualquer informação oriunda de outros discursos, de
outras ciências então a tensão entre a criminologia e o DP é absoluta e irresolúvel, porque a
criminologia não está preocupada com a validade das normas, não está, pelo menos numa
primeira análise não está preocupada com o facto de se um determinado comportamento merece
ser considerado crime ou não merece ser considerado crime a questão do merecimento não é
importante e não é um dos seus critérios, claro que pode sim pronunciar-se sobre as razões que
levam as pessoas, os membros das sociedades e os grupos sociais a considerar um determinado
comportamento como digno de ser considerado crime, mas não propriamente a pronunciar-se de
forma direta sobre as questões de valor, não são as questões de valor mas sim as questões da
compreensão porque se atinge ou porque se atribui um determinado valor e portanto é quase
insuperável que nós a percorrermos os caminhos da criminologia e também do pensamento
jurídico reconhecemos que há uma tensão e que pode ser resolvida de diversas formas,
nomeadamente dizendo que à sociologia o que é da sociologia, ao direito o que direito e o
direito nada tem a aprender com a sociologia, mas é o Direito que configura a própria ordem
social em que se pratica a sociologia e também se pode dizer: os nossos critérios são

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Aula 5
absolutamente distintos, os nossos problemas são autónomos, são sistemas incompatíveis não há
possível interdisciplinaridade ou comunicabilidade entre sistemas.

Também da parte da sociologia pode-se dizer o mesmo em relação ao direito, até se pode
ser bastante negativo em relação ao direito, defendendo-se que o direito é um epifenómeno, é
um fenómeno que tem realidade histórica, mas que não tem cientificidade nenhuma portanto
tudo o que se diga ao nível do direito são opiniões, são convicções, que há um discurso dos
juristas que aliás é muitas vezes não consensual que nem sequer dá a devida segurança a muitas
pessoas das outras ciências, mesmo a Universidade Portuguesa que ficou muito assustada com o
facto de haver entre os juristas opiniões muito distintas sobre um mesmo assunto, portanto o
direito não tem nenhum critério de cientificidade (dirão eles) e é uma retórica para se decidirem
os casos e no fundo uns dirão que o direito é política, é ideologia, é um discurso retórico que
não tem nenhuma cientificidade e assim se desfazem totalmente os pontos de contacto entre o
direito e a sociologia. A proposta do meu curso é de que esse ponto de contacto não só é
possível como é recomendável e é tanto para o direito como para a própria sociologia e
criminologia ou psicologia, enfim essas outras ciências do crime ou do comportamento
criminoso. Do ponto de vista do Direito é possível na perspetiva de que o Direito ao formular as
normas ao determinar os critérios da sua aplicação e da sua resolução dos casos, o Direito tem q
se ajustar à realidade que regula e o vértice do Direito são os valores de justiça e não há
possibilidade de realização de justiça assente na ideia de igualdade, na ideia de merecimento de
dar a cada um o que merece (a cada um o que lhe é devido, Upiano) esses valores de justiça
assentes na igualdade, na responsabilidade no merecimento, etc prossupõem que as normas do
Direito e os seus critérios de decisão, de interpretação e decisão sejam ajustáveis, sejam
adaptáveis ou coincidem com a natureza da matéria dos factos sociais, das necessidades sociais
das pessoas e portanto o projeto do Direito é um projeto de adaptação à realidade social, não é
um processo de submissão porque o Direito muitas vezes é proativo e está à frente do status quo
porque o Direito muitas vezes é proativo e está à frente do status quo e também promove o
desenvolvimento ou superação de impasses, o desenvolvimento de vias superadoras de
impasses. A compreensão dos processos da definição da criminalidade da interação social de
uma certa consciência de que o Direito é um também um fenómeno social e tem de ser
compreendido como um fenómeno inserido no processo de interpretação da realidade e que por
isso não há uma justificação absoluta dos valores do direito ou dos critérios do Direito, há uma
justificação que tem de considerar várias coordenadas desde a história com as necessidades
sociais, a maneira de ser dos destinatários o modo como nós interpretamos a utilidade e
reproduzimos a realidade, as nossas debilidades enquanto estigmatizadores dos outros, este
colocar do Direito também um pouco sobre suspeita, portanto em vez de se arvorar como uma
espécie de moral absoluta de uma sociedade é alguma coisa que só faz bem ao Direito, porque

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Aula 5
torna o Direito uma instância de comunicação e uma instância de compreensão crítica da
sociedade .

E por isso, uma certa interferência da lógica interacionista na formulação das normas
incriminadoras, evitando formulações estigmatizadoras de grupos sociais ou antecipações
criminógenas da incriminação sem um claro e visível dano social, a compreensão do que sejam
necessidades sociais fundamentais, há um conjunto de análises que a própria teoria da
sociedade, também um teoria crítica da sociedade permite informar o Direito e torna-se por isso
muito importante enquanto mesmo instância de compreensão e de legitimação das soluções, que
dá uma visão de possibilidades e portanto substitui uma perspetiva de valores absolutos e
fechados por uma perspetiva de alternativas para solucionar problemas com formulações
alternativas das normas e de validar enfim pelas consequências, no estudo das consequências de
validar as melhores soluções ou as soluções que são menos criminógenas p.e., ou as soluções
que são mais adequadas a um determinado efeito social.

Do ponto de vista da própria criminologia o diálogo com o Direito é bastante importante


também porque a criminologia para poder oferecer também ao direito algum do seu grande
estofo teórico terá que compreender como funciona o Direito, os sociólogos têm de perceber o
pensamento jurídico não o podem menosprezar tem de perceber o seu valor histórico, o direito é
um projeto histórico que não será eterno eventualmente, mas é um processo histórico que foi
ganhando uma solidez, uma dimensão, uma função que realmente o torna autónomo da política,
da economia e que permite uma convivência social pacífica e portanto a atribuição de garantias
e de direitos que não seriam atingíveis através da economia, da religião, nem do amor sequer,
mas sim de uma ordem, de um Estado democrático que permita a realização desses objetivos.

A minha conclusão neste momento é de que realmente o estudo da criminologia é um


estudo de uma lógica sobre o crime completamente paralela e sem nenhum contacto com o
estudo das normas penais, do que seja o crime do ponto de vista jurídico e a pena de forma
completamente incomunicável, há realmente aqui que estabelecer algumas importantes pontes e
de facto tudo o que foi dito no início do ano parece ser uma discussão que tem o seu campo
próprio quanto à fundamentação do Direito Penal mas que não consegue chegar a critérios a
argumentos de legitimação dos limites do DP, dos fundamentos do DP que são totalmente
praticáveis, que são totalmente convincentes e que têm aquele quid de objetividade, de
imparcialidade critica que é típico do pensamento científico, a filosofia política também ganha
na questão da fundamentação das normas penais, também ganha com a abordagem
criminológica.

• Segunda Parte

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Aula 5
Uma das grandes questões do pensamento penal, ou da filosofia do DP é a discussão à cerca
dos fins das penas, é uma discussão multisecular que desde a Antiguidade Grega ocupou o
espírito dos filósofos, e durante a Idade Média os filósofos cristãos e posteriormente os grandes
mestres da filosofia europeia ocidental: Kant e Hegel ocuparam-se dos fins das penas. A
discussão à cerca dos fins das penas é uma discussão sobre o sentido a racionalidade, o para que
servem as penas e como é que elas se fundamentam. É uma discussão sobre a sua finalidade
passional, o para quê e o seu porquê e para esta discussão existem respostas que nós podemos
sistematizar (3 respostas): a resposta retributiva, que não tem essencialmente um para quê, mas
sim um porquê, justifica-se pelo crime e é reclamada pelo crime (ponto final), realmente a
pessoa é punida porque cometeu o crime, porque pecou, há um porquê, não há propriamente um
para quê não serve para um fim anterior, mas tem uma justificação, apenas que se justifica em si
mesmo, mas não tem uma instrumentalidade qualquer (as chamadas teorias absolutas), depois
há combinações teorias que têm uma componente de retribuição, mas são relativas porque
associam à sua retribuição uma finalidade, um para quê. As teorias preventivas essas têm uma
resposta para o quê das penas, mais até de que para o porquê, muitas vezes combinam-se com as
retributivas, mas acentuando-se sobretudo a finalidade da pena, do sentido da finalidade da pena
e não o fundamento. As teorias preventivas justificam as penas exatamente porque há um
determinado efeito sobre o criminoso, ou sobre a sociedade que é instrumental da pena, a pena é
instrumental de uma determinada utilidade ou de um determinado efeito. A prevenção especial,
p.e., como eu disse já se encontram discussões sobre as penas no pensamento dos filósofos
gregos e podemos dizer que é exemplar o pensamento de Platão e Protágoras, em que a
mensagem fundamental é que a virtude se ensina e se aprende e portanto que as penas que
responda ao mal do crime não pode ter como justificação acrescentar ao mal do crime outro
mal, mas sim promover o bem, no fundo promover a virtude, a tal virtude que se ensina e isto é
um aspeto de racionalização da pena que se encontra presente no pensamento de Platão. As
conceções preventivo-especiais tiveram uma grande elaboração sobretudo no século XIX, com o
sistema de phone list o qual concebia toda uma gradação dos fins de prevenção especial das
penas, o seu sistema é um sistema concebido à volta de uma finalidade de prevenção especial,
existe um primeiro patamar de desmotivação ou de advertência do criminoso, um outro de
recuperação do criminoso, e nos casos em que nem a advertência é motivação suficiente para
impedir de praticar o crime nem a própria recuperação ou reinserção social como nós dizemos é
possível, então há o efeito de incapacitação que em último caso justificaria até a pena de morte.
Todas as estas conceções têm muitas dificuldades de justificação, gostaria agora de falar do
significado da teoria da prevenção geral. A prevenção geral que é muito orientada por um
pensamento utilitarista e por uma certa perspetiva também psicologista do destinatário das
normas penais, assume a perspetiva da coação psicológica, a pena tem efeitos positivos no
sentido de evitar a prática dos crimes, na medida em que dissuade os potenciais futuros agentes

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Aula 5
de crimes das práticas dos mesmos, portanto ela age dissuadindo e coagindo psicologicamente,
prevenção geral negativa. Também, no séc. XX se desenvolveram as chamadas conceções de
prevenção geral positiva, segundo essas conceções a finalidade da pena é não tanto, também
agindo sobre os que não participaram crimes, os que são potenciais criminosos e também
mesmo aqueles que nunca serão criminosos é de promover positivamente o efeito de respeito e
de confiança de fortalecimento de expectativas e de confiança dos tais agentes que nunca
praticarão crimes ou que não participaram pelo menos, em redor do direito, a prevenção geral
positiva consiste em promover a confiança dos destinatários do Direito no sistema jurídico no
sentido de que uma vez que se aplica uma pena àqueles que cometeram crimes isto reforça a
confiança de que haverá dissuasão de outros e quando se praticam crimes há uma resposta do
sistema e portanto o sistema funciona, tem uma certa perspetiva também psicanalista envolvida
no sentido em que cria uma confiança, uma espécie de descanso dos destinatários do direito e
todos os membros da comunidade jurídica em redor do sistema jurídico. Claro que também se
pode falar de prevenção especial positiva no sentido da criação do efeito de portanto de
recuperação e reintegração do agente e não apenas da dissuasão, um efeito de adesão ao sistema
daquele a quem se dirige a pena preventivo-especial, não apenas a perspetiva de evitar que ele
continue a praticar crimes, portanto de controlar a sua perigosidade mas também a perspetiva de
fomentar a adesão ao sistema e a reintegração na sociedade do agente.

Vamos voltar agora às teorias retributivas, porque aparentemente há uma certa falta de
racionalidade ou de racionalidade suficiente nas teorias retributivas já que elas não se debruçam
sobre o para quê, não justificam a pena em função de um efeito a que a pena se dirige, mas sim
apenas pelo passado, pelo crime. As duas grandes conceções retributivas que realmente
mostram que a retribuição não é tão absurda como se possa imaginar, que não está
necessariamente associada à lei taliónica, embora obviamente a lei taliónica seja expressão de
uma conceção retributiva, até primitiva das penas, o “olho por olho” realmente é uma expressão
eu diria primitiva da retribuição. Os filósofos do iluminismo, Kant e Hegel tornaram muito mais
complexa a questão dos fins das penas e da própria conceção retributiva da pena, muito mais
complexa, muito mais satisfatória também para as nossas exigências de justificação e de
compreensão.

O Kant numa obra fundamental, “A metafísica dos costumes” dá um exemplo que é


uma espécie de experiência do pensamento do que acontece ou que deve acontecer a um
criminoso que é condenado à morte por ter praticado um homicídio numa ilha em que o Estado
se vem a dissolver, o que Kant quer explanar e discutir é se realmente há uma associação
intrínseca entre a pena e as finalidades do Estado e se realmente nós quando o Estado deixou de
existir perdemos a justificação racional (também moral) para punir. Pois o Kant diz que nessas
circunstâncias quando a sociedade se dissolveu na tal ilha imaginária mesmo assim se deveria

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Aula 5
antes de partir cada um para seu lado executar a pena, a condenação à morte, ele diz isto porque
adverte: senão o sangue derramado pelo criminoso como que recairia sobre todos os elementos
dessa sociedade em dissolução e que seriam uma espécie de cúmplices do crime, a
responsabilidade individual passaria a uma responsabilidade coletiva. Esta ideia é muito
interessante, podemos pensar nesta ideia tendo em conta toda a filosofia de Kant, do imperativo
categórico, do dever absoluto que a moralidade impõe, mas é também importante pelo facto de
Kant neste ponto estar muito influenciado pelas leituras bíblicas e pela sua formação religiosa, e
de facto o que Kant procura é explicar que não podemos anular a responsabilidade individual
porque então el acaba por ser transposta para uma responsabilidade coletiva, há então uma
espécie de responsabilidade coletiva em assegurar a responsabilidade individual, e isto tem
reminiscências no pensamento bíblico, na passagem do Antigo para o Novo Testamento, a ideia
de que a não punição de alguém responsável individualmente fará recair a culpa, a sua culpa
individual na comunidade. A ideia da responsabilidade coletiva é muito importante no Antigo
Testamento enquanto que a ideia da responsabilidade individual é central no Novo Testamento.

A ideia de Kant é racional também, para além das reminiscências bíblicas e do


pensamento religioso que está associado é também racional cumprir a execução do último
condenado à morte, é racional porque é quase como que uma exigência da ideia de Direito
provavelmente, no sentido de que quem comete um crime não só põe em causa os direitos da
vítima ou da própria sociedade mas atenta para além disso em valores mais universais, a certa
altura Kant diz: se tu roubaste, roubaste-te a ti mesmo, se tu mataste, mataste-te a ti mesmo ( no
sentido em que deves ser condenado à morte, na perspetiva de Kant). Mas a ideia do se tu
roubaste, roubaste-te a ti mesmo é muito importante, porque o que Kant quis dizer é que quem é
ladrão, portanto quem rouba põe em causa não só os interesses e o objeto da propriedade alheia,
mas o próprio direito de propriedade, de tal modo que entra em autocontradição porque procura
ser proprietário, dá valor ao direito de propriedade porque rouba, quer comportar-se
relativamente às coisas como proprietário e no entanto põe em causa o direito de propriedade e
portanto não tem possibilidade de ver esse seu direito reconhecido, nem de realizar o seu intento
que é ser proprietário (ser protegido enquanto proprietário, ser respeitado enquanto
proprietário). Esta ideia retributiva de Kant associa o mal do crime a uma dimensão muito mais
abstrata muito mais universal do que qualquer ideia Taliónica, portanto não é a vingança a
reparação imediata que está em causa mas sim já se pronuncia em Kant que o crime afeta ideias
mais universais, mais gerais, ideias do Direito que têm de ser repostas, compensadas,
reafirmadas isso já está presente em Kant. Claro que no exemplo da ilha ele está muito
associado a uma certa simbologia religiosa, mas também na execução do último criminoso, a
realização de um princípio universal de afirmação da responsabilidade individual.

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Aula 5
Hegel não sendo um filósofo muito claro, mas nos princípios da filosofia de Direito ele
até é bastante claro, o Hegel associa a pena, também contestado as posições utilitaristas do
Beccaria, quer Kant quer Hegel tem uma controvérsia com o utilitarismo no sentido de que com
Kant a pessoa é um fim em si mesmo, o próprio criminoso não pode ser instrumental de algum
bem para terceiros, na realização de um bem para terceiros, no sentido de ser tratado como se
fosse um animal, o que seria enfim recuperado ou instrumentalizado ao serviço de um
determinado bem para terceiros, portanto ele teria de ser tratado como um ser racional, Hegel
vem dizer que deve haver, deve-se honrar o próprio criminoso ele deve ser tratado como sujeito
e não como alguém a quem se aplica como que um remédio, que não é dignificado enquanto
sujeito, a pena não é nenhum remédio, não é nenhum meio instrumental de fazer reatar a relação
entre a sociedade e o criminoso ou de inserir o criminoso, não tem essas características, o
criminoso (Kant diria) deve ser tratado como um fim em si mesmo e o Hegel dever-se-ia honrar
o criminoso. Pois bem, o Hegel quando define a pena ou quando explica o sentido da pena pelos
princípios da filosofia do Direito ele procura demonstrar que a pena é mesmo inerente ao
conceito de crime, faz parte dele no sentido intrínseco, isto é um pouco difícil de compreender
porque parece que não há nada mais antagónico do que a pena e o crime, que a pena de
contrapõe e está em contradição com o crime, mas a dialética hegeliana não vê nas contradições
um antagonismo absoluto porque as contradições no fundo nascem de uma pertença racional
intrínseca de uma ideia a outra que estão em convívio embora em tensão e portanto as
contradições são na verdade sempre superáveis, através da superação dialética e há como que
um estádio inicial em que os conceitos contraditórios se coo pertencem. Com efeito, o Hegel o
que diz é que o crime é uma negação do Direito e a pena é uma negação do crime ou a pena é
uma reafirmação do Direito, esta ideia faz da pena alguma coisa que de facto já está no crime,
enquanto o crime nega o direito, o crime não se autonomiza conceptualmente do Direito porque
precisa do Direito para se afirmar, portanto o crime é uma negação do Direito, pertence ao
Direito enquanto negação também lhe pertence logicamente e no próprio Direito já está
implícita a pena enquanto reafirmação contra todas as suas violações e por isso o crime
enquanto negação do Direito reclama lógica e inevitavelmente a pena, porque a negação do
Direito contém em si a necessidade racional intrínseca da sua reafirmação, porque é da natureza
do Direito ser uma reafirmação de normas, de imperativos, de uma afirmação de exigências,
sendo assim a sua negação reclama, já prossupõe o direito como afirmação. Esta ideia
hegeliana, desloca o problema do crime e da pena do problema do merecimento ou do desvalor
da vontade subjetiva, p.e. e transporta o plano do crime e da pena para a chamada moralidade
objetiva própria das comunidades históricas e do Estado. A ideia de Hegel é que só no Estado se
superaria o particularismo e a subjetividade numa perspetiva moral e a moralidade se situaria
num plano meramente objetivo, portanto a pena não era uma essência moral (em Kant talvez),
mas em Hegel já não é uma essência moral, aliás de um ponto de vista moral só o perdão

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Aula 5
resolveria bem o conflito gerado pelo crime, pois elevaria a consciência de quem julga a uma
libertação do crime e não o tornaria (ao julgador) idêntico ao criminoso, a superioridade moral
de quem julga reclamaria o perdão, mas não é nesse plano moralista que Hegel coloca o
problema do crime e da pena, mas antes num plano de moralidade objetiva da racionalidade do
Estado. Não há para Hegel lugar à moralização da pena, não se trata realmente de uma
superioridade moral do julgador, nem sequer de uma superioridade moral do Estado mas sim o
que existe necessariamente é a ideia de Direito enquanto afirmação de orientações de
imperativos relativamente aos seus destinatários, a ideia do direito não convive com a sua
negação, a ideia do direito reclama a sua afirmação, e a pena ao negar o crime exprime a
essência do Direito, sem ter esse papel de moralização ao nível da moralidade subjetiva. Isto é
bastante importante porque permite também desvincular do pensamento de Hegel uma conceção
retributiva, é verdade que aparentemente isto não é mais do que uma conceção retributiva
porque a pena não serve para nada exterior à sua própria aplicação, portanto ela não tem
nenhum para quê, a realização do tal bem compensador do mal do crime de que fala o
Protágoras ( como a sua essência da racionalidade).

A ideia de Hegel é a de que quando se comete um crime o Direito tem de se reafirmar,


é do seu conceito, é da sua essência lógica isso mesmo, é como a negação do Direito ser a
negação de alguma coisa que é uma afirmação, isto é um pouco abstrato, mas quando se nega
algo é como se se afirmasse esse algo que se nega, porque se reconhece, portanto quando se
nega o direito violando-o, só há a violação dessa conceptualidade que é o Direito como um certo
modo de afirmação e por isso a pena é uma expressão inevitável do Direito. Como eu estava a
dizer isto não requer um retribuição de tipo moralista, nem sequer verdadeiramente eticista, esta
ideia requer sim uma forma qualquer de reafirmar o Direito, o que está no pensamento de Hegel
é fundamentalmente a necessidade perante o crime da reafirmação do Direito e a reafirmação do
Direito não tem de ser através da pena tradicional, da pena que causa sofrimento, a reafirmação
do Direito tem de ser a reafirmação do Direito e não tendo Hegel chegado a essa conclusão,
talvez nada nos impeça no plano das ideias de admitir que também se pode fazer a reafirmação
do Direito na perspetiva hegeliana através de um modo que não o histórico e tradicional que era
insuperável no tempo de Hegel da pena como instituição histórica, poderá conceber-se em
alternativa uma afirmação do Direito que até seja o perdão. Há aqui uma possibilidade de
associar o pensamento de Hegel a conceções contemporâneas de prevenção geral positiva, p.e.,
de conceber a pena como uma reafirmação da confiança no direito dos destinatários da norma.

Sobre a questão de saber qual é a solução preferível ou quais são as limitações de


qualquer uma destas construções, há 2 coisas em que devemos assentar, todas estas construções
tem deficiências na sua fundamentação à luz do fundamento do próprio Estado de Direito,
revelam uma certa incompatibilidade com o fundamento do poder punitivo do Estado e por isso

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Aula 5
podemos dizer que todas estas conceções sobre os fins das penas estão sempre em colisão com o
fundamento do poder punitivo do Estado. As conceções retributivas na medida em que assentam
numa certa ideia de livre-arbítrio que está por demonstrar e em que é difícil assentar sem mais a
responsabilidade penal, independentemente de a responsabilidade penal supor a liberdade
individual, ser uma responsabilidade que se atribui aos agentes dos crimes enquanto indivíduos
individualmente responsáveis, mas o facto de o agentes de crime deverem ser tratados como
livres e responsáveis e nunca poderem ser considerados meios ou serviços de um qualquer outro
interesse ou finalidade coletiva, p.e., não significa que a consequência que se procura com a
responsabilidade penal venha justificar plenamente o fundamento da mesma, respeitar o seu
direito à liberdade não pode ser transposto para a fundamentação da responsabilidade sem mais,
o facto da pena dever ser dirigida ao autores dos crimes como pessoas responsáveis e livre e que
têm direito à liberdade não se pode extrapolar da consequência, no fundo, para a causa de que
isso se dá por força de que as pessoas são fundamentalmente livres e de que poderiam optar por
outro tipo de comportamento, apenas se pode retirar a iglação de que as pessoa têm direito à
liberdade e que devem ser responsáveis na medida do exercício que tiveram, da oportunidade
que tiveram para exercer a sua liberdade e que por outro lado devem ser julgadas, condenadas
na perspetiva de potenciar a sua subjetividade e a sua liberdade, as condições para virem a ser
mais desenvolvidos e profundamente responsáveis (crítica às teorias retributivas). Um outro
argumento é que as conceções retributivas têm muita associação, uma associação muito intensa
com uma culpa ética e não cabe ao Estado, não é dos desígnios do Estado restringir a liberdade
das pessoas em função desse tal pressuposto, mas sim da necessidade da pena, para a proteção
de bens constitucionalmente protegidos e assegurar os direitos de outros cidadãos e portanto
esta associação intrínseca entre uma conceção retributiva da pena e a culpa ética coloca
dificuldades no plano de fundamentação constitucional às conceções retributivas das penas. As
conceções retributivas das penas mais tradicionais são até em rigor incompatíveis com o
fundamento do poder punitivo do Estado de Direito democrático.

Quanto às conceções preventivas também estas têm dificuldades de se compatibilizar


com o Estado de Direito democrático sobretudo pela sua ilimitação, com efeito a prevenção
geral negativa no radicalizar do seu pensamento ou procurando atingir a essência do seu
pensamento admitirá uma espécie de ilimitação da própria pena para atingir as suas finalidades e
instrumentalização total de todos os destinatários das próprias normas, nomeadamente os
autores dos crimes poderão ser instrumentalizados aos exemplo da comunidade e portanto a
falta de limites desta lógica instrumentalista e de dissuasão da criminalidade que não existe
realmente, que não impõe limites nenhuns intrinsecamente, racionalmente dentro dela mesma
confronta-se com os limites de dignidade da pessoa humana de não instrumentalidade da pessoa
humana característicos do Estado de Direito democrático que são uma herança kantiana. A

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Aula 5
prevenção geral positiva sofre do mesmo vício, porque é por natureza instrumental também na
medida em que a punição não serve para beneficiar, produzir um bem no delinquente mas sim
nos outros, uma espécie de aconchego psicanalítico na generalidade dos cidadãos ao reforçar a
confiança no direito da generalidade dos cidadãos, há uma instrumentalização do criminoso
contrária à essencial dignidade da pessoa humana e também não há limites, há aqui uma questão
de na lógica nesta conceção o único limite é o que resulta do efeito desejado pretendido ou do
ótimo efeito da prevenção geral positiva.

Quanto à prevenção especial ela chega a admitir a incapacitação, a pena de morte sem
dúvida, aliás nenhuma destas conceções tem algum limite intrínseco contrário a essas penas tão
radicais, quer a pena de prisão perpétua quer a pena de morte. Pois bem a prevenção especial se
por um lado na sua formulação nuclear tem uma perspetiva humanista e de uma racionalidade
de compensação de mal com o bem, neste caso de reparação do dano do criminoso de
reajustamento do criminoso à sociedade, de controlo da sua própria perigosidade mas também
no sentido positivo da sua reaproximação da sociedade, se tem efetivamente essa natureza que
eu diria intrinsecamente humanista na sua lógica mais profunda não contém nenhum critério de
limitação e por isso a incapacitação não está excluída das conceções de prevenção especial. Em
suma, sobre esta primeira abordagem dos fins das penas, que é uma matéria muito complexa,
nós devemos concluir 2 coisas, primeiro elas são antagónicas, mesmo que nós queiramos
articular a retribuição e a prevenção ou as prevenções uma com a outra nós podemos fazê-lo
mas haverá sempre casos ou situações em que não conseguimos fazer a articulação, em que
pode haver incompatibilidade entre a solução da prevenção especial e a prevenção geral e a
retribuição, a ideia de que podemos articular ou somar as diversas conceções é uma ideia que já
tem sido até proposta, mas esta perspetiva não é muito do meu agrado na medida em que logo
legislador quando prevê as normas incriminadoras e as penas ele tem que estabelecer em função
também de critérios, não diria de retribuição mas de culpa e censurabilidade pessoal que são
mais próximos da retribuição e de prevenção especial e portanto não se pode dizer que haja uma
total autonomia de critérios em qualquer uma destas fases e também o julgador quando
determina a medida da pena e decide o caso determinando a medida da pena é porta-voz das
perspetivas de prevenção geral do legislador e a própria prevenção especial que prevalece na
fase da execução da pena também tem uma medida pela censurabilidade pessoal do agente e
portanto por uma lógica mais próxima da retribuição. A ideia de uma articulação do tipo soma
ou com patamares de predominância dos fins das penas conjugando todos não me parece
aceitável e temos que admitir que em certos casos é possível chegar aos mesmos resultados
através da confluência de todas as perspetivas dos fins das penas, mas há casos em que há uma
contradição manifesta entre uma solução preventiva e uma solução retributiva, ou entre uma
solução preventivo geral ou preventivo especial, p.e. na questão da prevenção especial o

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Aula 5
fundamento é a perigosidade do agente e a solução através da pena para a perigosidade do
agente poderá justificar que um agente praticou um crime grave mas que é um criminoso
ocasional e não seja punido e já a prevenção geral em nome da confiança da comunidade e da
dissuasão dos outros agentes não pode deixar de exigir ou reclamar a punição. Também na
questão da retribuição haverá situações em que a gravidade do facto justificará sempre a pena e,
no entanto, o agente não revela a devida perigosidade que justificaria na perspetiva preventiva
quer geral, quer especial (mas sobretudo na especial) a aplicação da pena, há situações sempre
irredutíveis. Em segundo lugar, e isto é talvez o mais importante e resulta de tudo o que foi dito
parece existir uma incompatibilidade manifesta entre o pensamento dos fins da pena, que
desenha a pena, as finalidades do para quê ou do porquê das penas, até fora de um contexto
histórico, até como uma discussão filosófica meramente abstrata e pura, e o fundamento do
poder punitivo do Estado. A discussão à cerca dos fins das penas está desligada da discussão da
natureza estatal da pena e quando nós fazemos esta articulação aí vemos que todas as conceções
à cerca dos fins das penas têm o seu quid de incompatibilidade com os limites e o sentido da
pena estatal. A pena é uma pena estatal, está ligada aos fundamentos do Estado e ao poder
punitivo do Estado, é uma expressão bastante grave, pesada do próprio Estado.

Fins das penas, artigo 40º do Código Penal, o CP vem falar das finalidades da punição
articulando várias perspetivas, não é exatamente a prevenção geral tradicional, nem a prevenção
geral positiva porque fala da proteção de bens jurídicos, mas também quando à reintegração do
agente na sociedade, parece tentar articular uma situação de proteção e defesa da sociedade mais
própria da prevenção geral positiva, mas não no sentido psicanalítico, antes no sentido de efeito
efetivo de proteção da sociedade e a prevenção especial, portanto o ponto de partida do CP não
é uma conceção retributiva como se vê mas sim uma conceção de conjugação da prevenção
geral na dimensão proteção dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade que é
a prevenção especial. No número 2 também é uma referência à retribuição, mas uma ideia
importante que é desenvolvido pelo pensamento da retribuição, e não essencial ao princípio da
prevenção, é o de que a pena é uma pena de culpa, portanto a pena tem como critério a
responsabilidade ética jurídica, a responsabilidade individual e o reconhecimento do binómio
liberdade vs. responsabilidade.

Há realmente na conceção retributiva das penas uma ligação às emoções do crime e que
a pena estatal tem que de alguma forma compensar e superar, é difícil nós separarmos
totalmente a pena enquanto instituição histórica desse de papel de contenção das emoções do
crime e o sentimento de vingança é alguma coisa que tem de ser superado pela pena, não no
sentido da pena ser completamente desfasada ou da pena não cumprir o papel de não civilizar de
alguma formas estas situações ou de as transpor para um plano racional, mas que as compense
ou que as atenue e estas emoções no caso do crime todas elas vêm à tona.

16
Aula 6 (19/10/2020)

Na ultima aula saímos da criminologia e entramos na discussão do fim das penas.


Esta discussão do fim das penas é uma discussão tradicional que nos serve como ponto de
apoio para a justificação das mesmas. Nas sociedades contemporâneas as penas são apenas
privativas da liberdade, embora ainda hajam sociedades com penas muito cruéis para o
indivíduo, crueldade essa que já era criticada por Platão numa fase inicial desta temática. A
ideia será partir da compreensão da natureza histórica da pena e compreender o que, na
perspetiva da racionalidade, pode justificar essa pena.
Quando fizemos, em aulas anteriores, o apelo à discussão filosófica tradicional
acerca dos fim das penas, falando nas concessões retributivas e nas concessões preventivas
gerais e especiais, a preocupação foi mostrar como é que alguns autores entendiam a
racionalidade da pena e questionar até que ponto é que essas várias visões seriam
admissíveis, sendo que esta última questão teria de ser respondida tendo sempre por base
os princípios do Estado de Direito Democrático. Estes princípios serão sempre os
legitimadores da incriminação e da pena no Estado de Direito Democrático, sendo que
assim, a retribuição pura na sua racionalidade, tem muitas dificuldades em se articular com
a pena estatal do Estado de Direito Democrático. É verdade que a retribuição se pode
ancorar numa decorrência de um certo desvalor ético-social do crime, e nesse sentido o
fundamento da retribuição não tem uma dificuldade absoluta de se articular com os
princípios constitucionais, passando apenas a ter essa dificuldade quando apenas são essas
características negativas que justificam a pena, porque o poder punitivo do Estado não se
ancora em nenhum objetivo de fazer valer normas éticas ou normas morais. A retribuição
tem ainda outros problemas, pois nas suas concessões puras vem dizer que não há
nenhuma finalidade prática da pena, a pena é vista como uma decorrência racional do
crime, há um “porquê” mas não há uma resposta a um “para quê”, existindo apenas uma
necessidade absoluta de aplicar uma pena aquando da ocorrência de um crime. No entanto
há situações no nosso Estado de Direito Democrático em que pode haver crime mas não
há a necessidade absoluta de punir, quer por razões de prevenção, que por razões de
justiça, e que encontram a sua previsão, por exemplo, no artigo 74.º do código de penal,
que é um exemplo onde a culpa é desprezível.
Se quisermos fazer o mesmo exercício que fizemos agora para as concessões
retributivas e aplicar nas lógicas preventivas gerais e especiais, também não iremos retirar
consequências muito diversas, pois a lógica da prevenção especial entra em choque
absoluto com os princípios do Estado de Direito de Democrático por ser ilimitada. Esta
concessão preventiva procura sobretudo o “para quê” das penas, tendo como “porquê” a
perigosidade, e sendo o “para quê” a procura da reparação e melhoramento dessa mesma
perigosidade, evitando que o agente volte a praticar crimes e que possa ser reintroduzido na
sociedade. Portanto, nesse sentido a prevenção especial está também em colisão absoluta
com o principio da dignidade da pessoa humana, instrumentalizando o agente e sendo
também ela uma concessão ilimitada.
Quanto à prevenção geral, podemos fazer observações semelhantes, pois também
esta concessão instrumentaliza o agente ao serviço da defesa da sociedade. Sendo que na
prevenção geral negativa essa instrumentalização é feita através da intimidação e coação
psicológica do potenciais criminosos; e na prevenção geral positiva essa instrumentalização
é feita ao serviço de uma promoção de uma coesão social e crença na validade do direito.
Quer uma, quer outra, tendencialmente têm aspetos contrários à essência da dignidade da
pessoa humana.
Aula 6 (19/10/2020)

Sendo este um desfecho da discussão sobre os fins das penas, que nenhuma da
soluções se coloca corretamente perante o problema histórico e contemporâneo desse fim ,
porque nenhuma dessas concessões parte do ponto essencial que é a natureza estatal da
penal, nós não podemos ficar no território da discussão tradicional dos fins das penas. Não
irei abordar mais ao pormenor esta matéria pois ela encontra-se mais desenvolvida no meu
livro e também no livro do professor Figueiredo Dias e, portanto, recomendo a sua leitura.
Mas como eu tinha prometido na última aula, nós deveríamos ver agora como é que
se retrata no CP português esta matéria. Antes disso, e fazendo uma contextualização do
que vimos até agora, recordo que esta discussão dos fins das penas procura atingir na
justificação da pena, e através do Estado de Direito Democrático, o retirar de conclusões
dos limites de validade das normas incriminadoras. A discussão sobre os fins das penas
parece ter uma expressão no direito penal português logo no artigo 40.º do nosso CP. Esta
norma está na parte geral do CP, parte essa que serve de orientação para a interpretação das
normas penais e que permitem concluir ou não pela responsabilidade criminal. Este artigo é
uma norma que parece, em termos legislativos, exprimir uma posição do legislador do
código penal acerca dos fins das penas, mesmo que não utilize a expressão “fins das
penas”, mas sim a expressão “finalidade das penas e das medidas de segurança”. O número
1 deste artigo, não faz referência a uma ideia retributiva, mas parece na sua parte final fazer
um referência a uma prevenção especial positiva. Já na primeira parte do número 1 desse
artigo, há uma apelo à proteção dos bens jurídico, que tem no fundo uma ideia da
concessão preventiva geral na sua dimensão positiva. Depois, no número 2 desse artigo,
utiliza, não conceito de retribuição de retribuição, mas sim o conceito da culpa que se falará
mais à frente, e que aparentemente surge como papel secundário e restritivo, que também
será mais abordado mais à frente.
Olhando para este artigo 40.º, e em face do que disse anteriormente sobre as varias
teorias dos fins das penas, o que aqui surge é uma solução por parte do legislador de dar
aos tribunais e a todos os interpretes uma orientação especifica sobre o fundamento da
pena. Este artigo não fazia parte da versão original do CP e esta introdução, levada a cabo
pelo professor Figueiredo Dias, tinha como fundamento o interesse prático da altura e
também uma convicção muito forte do mesmo professor, que tinha como fundamento da
pena a prevenção geral positiva mais a prevenção especial positiva e que a culpa, enquanto
reminiscência de um princípio retributivo, tinha apenas um papel restritivo/limitador. O
professor Figueiredo Dias vê a culpa, fundamentalmente, como um problema de
hostilidade do direito, no caso da sua verificação, ou um problema de não hostilidade do
direito, no caso do seu afastamento. Portanto, a ideia de culpa de Figueiredo Dias não
coincide com a de Roxin. No nosso artigo 40.º, a culpa é retirada ao fundamento da pena,
sendo o próprio Figueiredo Dias que assume uma ideia de culpa que não é relacionada com
a liberdade verificada em concreto no momento da prática do facto de se motivar ou não
pela norma, pressupondo o autor que esta liberdade existe sempre e que a culpa é uma
questão de atitude. A ideia do professor, no fundo, é a de que não vamos poder invocar
razões de culpa em certos casos, embora a culpa seja mínima, para não punir quando há
ainda uma necessidade de promover a validade das normas e confiança no direito. Este
sistema assim pensado tem coerência mas tem dificuldades de compatibilização com a
constituição (Opinião MFP), desde logo o próprio conceito de culpa, como culpa pela
atitude e que menospreza uma espécie de direito de cada um de nós em que a nossa
capacidade de motivação pela norma possa em concreto ser considerada, não sendo a via
do professor Figueiredo Dias a de considerar que há um ponto central de demonstração de
Aula 6 (19/10/2020)

prova no processo penal que é realmente a da capacidade de motivação pela norma. Como
o professor não vê o problema da culpa neste modo, por razoes a estudar no 2.º semestre,
então resolve deste modo o problemas. No entanto, eu diria que ao admitir que em
situações em que a culpa, no sentido que eu estou a referir, em que as oportunidades do
agente se motivar pela norma estão muito restritas, eu diria que o principio da dignidade da
pessoa humana levaria a ter de mitigar ou excluir a pena, ao contrário do professor
Figueiredo Dias que diz que as necessidades de prevenção têm de ser satisfeitas. Em alguns
casos, a meu ver, a concessão do professor Figueiredo Dias irá colidir com o princípio da
igualdade, com o princípio da liberdade, com o princípio da igualdade da pessoa humana e
com o princípio da justiça. Para além desta colisão que eu aqui refiro, há também razões do
ponto de vista sistemático que demonstram que a norma assim interpretada, de acordo
com a interpretação histórica deste artigo 40.º, irá estar em contradição sistemática com
outras normas do código penal, como serão exemplos os artigos 70.º e seguintes do CP,
mais concretamente o artigo 71.º. Neste artigo a culpa funciona como um critério decisivo,
sendo claro que também neste artigo estão referidas as exigências de prevenção, mas a
ordem deve ser vista como primeiro a culpa e depois a medida de prevenção. Na
determinação da medida da pena, o Juiz tem de compreender e aplicar as finalidades da
punição definidas pelo legislador, tem que desenvolver a lei penal em função do facto da
norma incriminadora de modo a que a articulação entre o facto e a pena, no caso concreto,
venha a ser determinada como uma espécie de desenvolvimento de uma norma mais
abstrata. Para além do artigo 71.º, importa também não esquecer os artigos 72.º, 73.º, 74.º e
seguintes que dão um papel importante à culpa e não um papel secundário. Aquilo que é
decisivo para a medida da pena, também tem de estar previamente presente na decisão de
punir.
Mesmo não usando estes argumentos há uma outra razão de fundo, é que até ao
artigo 39.º do código de penal, em artigos como o 17.º, 35.º, 37.º (entre outros), revelam
uma coisa que será estudada no 2.º semestre e que prendem-se com a conclusão de que não
há crime sem culpa, sendo o crime definido como um facto típico, ilícito e culposo. Se não
pode haver crime sem culpabilidade, então a culpabilidade tem de ser fundamentadora da
responsabilidade, sendo que não poder haver uma técnica de orientação dos tribunais na
interpretação dos factos para decidir punir ou não punir, que não esteja em articulação com
esta exigência não ultrapassável (apoiada constitucionalmente, segundo MFP) que é o
princípio da culpa, que no fundo é a ideia de que não pode haver crime sem culpa.
Portanto, o artigo 40.º do CP das duas uma, ou realmente ele é apenas uma
orientação pragmática no sentido de se evitar penas retributivas e não tem mais significado
do que isto ou se ele procura ser uma orientação rígida da culpa da finalidade da punição,
desvinculando a finalidade da punição dos fundamentos da responsabilidade criminal e
pondo em causa a articulação entre a definição de crime e a questão das finalidades da
punição, sendo que neste último sentido, e para mim, haveria colisão com princípios
constitucionais. Eu não diria que o artigo 40.º é inconstitucional, mas numa interpretação
rígida que subtraia totalmente o critério da culpa ao fundamento da pena, isso parece-me
ser claramente incompatível com a Constituição. Só mesmo numa interpretação rígida
desta norma, que curiosamente revejo em algumas passagens no pensamento do professor
Figueiredo Dias, é que, na minha perspetiva, poderíamos ter aqui problemas de
incompatibilidade para com a CRP. Realço ainda que em muitas situações os tribunais
portugueses aplicam essa interpretação mais rígida, sendo que aí pode estar em causa essas
tais incompatibilidades. Diria ainda outra coisa que digo nas lições e para a qual chamo a
Aula 6 (19/10/2020)

atenção, a própria configuração da norma incriminadora, ou seja, os comportamento que se


podem legitimamente incriminar, têm um limite subtil que muitas vezes não surge em
primeiro plano e que tem por base selecionar comportamentos que pela sua formulação só
podem suscitar responsabilidade objetiva ou então que pela sua formulação vão colocar no
mesmo plano, sem distinção, comportamentos sem grande (????) social e outros de grande
(????) social. Já este tipo de configuração de normas incriminadores põe em causa o próprio
princípio da culpa, a ideia de culpa como uma justificação da responsabilidade pela
censurabilidade da pessoa nas condições de exercício do seu direito à liberdade também há
de reclamar que a configuração dos comportamentos proibidos seja apta a fazer essa
diferenciações e a não confundir a responsabilidade subjetiva com responsabilidade
objetiva, ou colocar no mesmo plano comportamento relativamente insignificantes com
comportamentos bastante graves. Eu, no meu livro, dou alguns exemplos, como é o caso
do pequeno tráfico, que aconselho a lerem.
Termino então esta minha análise aos fins das penas, com a certeza de que irão
analisar um dois acórdãos sobre este tema em aulas práticas, bem como um texto meu, que
acho de leitura importante, onde falo das alterações reformadoras do Código Penal
exatamente no contexto desta reforma de 95 e que foi apresentado por mim numas
jornadas realizadas na nossa Faculdade.
Ficamos então por aqui nesta primeira parte da aula, sendo que na segunda parte
vamos abordar e analisar os conceitos de bem jurídico.
Vamos então sistematizar antes de entramos na segunda parte da nossa aula
número 6. Primeiro, as normas incriminadoras, por estarem associadas as sanções
criminais, com a brevidade e natureza que têm, têm de se fundamentar no poder do
Estado. Segundo, a criminologia permite conhecer que o crime não é uma qualidade dos
comportamento humanos em si mesmo, mas sim um produto de processo sociais de
definição e seleção, havendo assim efeitos estigmatizantes do crime que requerem análise
crítica. Terceiro, a discussão sobre os fins das penas que temos vindo a fazer, permite-nos
compreender que o porquê e o para quê das penas não procura uma racionalidade absoluta
assente em ideologias, procurando antes se articular com princípios constitucionais, como
o princípio da necessidade das penas 18.2.º CP, princípio da culpa, princípio da dignidade
da pessoa humana e princípio da igualdade. Essa articulação das penas com os princípios
condiciona o seu próprio fundamento, sendo que para que as penas cumpram os desígnios
do estado de Direito, que são as penas estatais, os comportamentos que se referem têm de
ter uma certa importância e gravidade que justifique a proteção penal. Quarto, a discussão
tradicional do pensamento jurídico sobre o chamado bem jurídico, como critério
fundamental das normas incriminadoras, questão essa que divide a doutrina.
Este último será o objeto desta segunda parte da nossa aula. Chegou à discussão
dos tribunais constitucionais esta discussão acerca do bem jurídico, que na sua essência é
uma discussão germânica e que não tem manifestação no ordenamento anglo saxónico nos
mesmos moldes. Quanto ao bem jurídico, num ponto de vista histórico, este conceito
surge no pensamento germânico em associação com o interesse protegido pelas normas do
direito positivo. Birbaum apresenta uma ideia fundamentalmente tradicionalista e algo
jusnaturalista, onde ele não consegue delimitar o bem jurídico de acordo com qualquer
critério que não seja uma espécie de pensamento dominante na sociedade ou ideias morais
Aula 6 (19/10/2020)

da sociedade, sendo que elas integram os bens jurídicos e são também condição da
interpretação do que seja bem jurídico.
Outro autores alemães vieram alterar um pouco esta lógica de Birnbaum, falando
nos interesses vitais que teriam de ser protegidos numa determinada sociedade e que o
legislador positivo não poderia menosprezar, havendo aqui a ideia da vinculação do
legislador penal a estas situações. Outros vêm ainda estabelecer uma conotação dos bens
jurídicos com os direitos individuais, portanto a justificação do direito penal estaria na
proteção dos direitos individuais.
Mas, a evolução do conceito de bem jurídico ao longo do séc XX faz-se por duas
vias. Por uma via liberal e individualista que associa o bem jurídico a interesses individuais
como a vida, a propriedade e a bens dessa natureza. E outra via que desliga totalmente a
ideia de bem jurídico desses interesses subjetivos, para a associar a interesses supra
individuais e comunitários. Realmente, quando se fala da divisão destas duas vias, é curioso
que eles se vão desenvolver, não de forma a não se encontrarem, mas sim de forma a se
encontrarem e até de forma um pouco conflituante.
Uma perspetiva supra individualista vai retirar a natureza de interesse subjetivo do
cerne de bem jurídico, sendo que o que interessa proteger nem sequer é o direito à vida
enquanto direito subjetivo, mas sim a vida enquanto valor comunitariamente relevante, no
fundo a vida é protegida enquanto valor objetivo. Nesta perspetiva, quem determina o
conteúdo dos diversos bens jurídicos é a coletividade, sendo esta uma via
descaracterizadora de toda a ideia liberal.
Quanto à outra via, a via liberal/individualista, vai também ter um desenvolvimento
que eu chamaria personalista. É obvio que esta visão liberal/individualista levaria a que
fossem chumbados os crimes contra o Estado, contra a religião, contra a comunidade em
geral, contra a justiça, etc… Pois bem, esta perspetiva do direito penal, seria uma perspetiva
meramente ideológica desfasada da natureza das sociedades contemporâneas , das suas
necessidades e também das próprias necessidades individuais, sendo este último que faz
com que esta via seja também personalista. É que, para que se desenvolvam plenamente e
potenciem as capacidade dos indivíduos, é necessário que existam condições comuns para
o desenvolvimento. Este é um desfecho que permite algum encontro entre a via que eu
referi em primeiro lugar, a supra individualista, e esta via que tem os seus primórdios no
pensamento individualista. Mas é óbvio que uma compreensão dos bens essenciais da
sociedade de tipo personalista, como eu a apresentei, vai estabelecer limites à configuração
de normas incriminadoras quando não existir a referência personalista, quando realmente
os valores comunitários, ou estiverem muito para alem das necessidade individuais do
desenvolvimento de cada pessoa ou não forem de todo concretizáveis no igual
desenvolvimento de cada pessoa. A conotação personalista tem que se referir a
comportamentos em que haja um certo antropocentrismo nesta base, que possamos dizer
que a própria dignidade da pessoa de hoje, nela está implicada uma responsabilidade pelos
outros, pelo mundo e pelo futuro, sendo que essa responsabilidade é um ponto essencial
no desenvolvimento moral, espiritual e da plenitude da autonomia de cada pessoa. Não é
tão fácil chegar a uma justificação como seria por uma via supra individualista. Mas por
exemplo, no que diz respeito à identidade cultural dos povos, esta via personalista tem
muita dificuldade em admitir a legitimidade de incriminações, assim também como os
Aula 6 (19/10/2020)

meros símbolos e os meros sentimentos que têm dificuldade em integrar o conceito de


bem jurídico.
Portanto, tendo eu dito as vias pelas quais se tem desenvolvido o conceito de bem
jurídico, ainda não se conseguiu desenhar verdadeiramente um conteúdo exato do que seja
bem jurídico. Mas, o que é que resulta então desta análise? Resulta que não deveremos
insistir no conceito de bem jurídico que tem sobretudo ,a partir de autores como Roxin,
um papel critico e orientador da retificação constitucional do direito penal. Eu acho que
esse papel retificador, sobretudo na vertente personalista que me parece a mais adequada
aos fundamentos do Estado de Direito, à tal dignidade da pessoa humana como
fundamento da sociedade política, continua a existir. Eu não uma adversária do conceito de
bem jurídico. Em conclusão, eu diria que realmente o conceito de bem jurídico não é um
conceito fechado, como eu sublinhei é um conceito que tem muitas conotações e que
portanto eu diria que é um conceito aberto que está condicionado por uma discussão
política em volta da democracia e pelos novos valores da democracia. Neste sentido, é um
conceito aberto que vai integrar realidades que numa dimensão mais fechada e rígida não
conseguiria integrar, como será o exemplo dos direitos e dos deveres para com a natureza e
para com os animais
Nesta aula, queria ainda concluir que o conceito de bem jurídico é um conceito
relativamente instável. Tinha um amigo que o apelidava como sendo um conceito nervoso
e, que o sendo, também é um conceito instável e sobretudo um conceito aberto. No fundo,
é um conceito orientador que serve para abrir uma porta critica para a validação das
normas incriminadoras.
Na próxima aula iremos analisar um acórdão de 3 de Março de 2020 do TC, mas
adianto já uma perspetiva metodológica de que não gosto e acho discutível esse acórdão,
que primeiro diz não haver bem jurídico, sendo que eu até acho que há mas na próxima
semana analisaremos melhor esta parte, e que portanto a norma incriminadora seria
inconstitucional. Depois, diz que ainda poderia ser considerado um crime de perigo
abstrato. Bom, eu acho que esta análise ao acórdão veremos na próxima aula ao pormenor.
Mas adianto já que a forma como se deve utilizar a ideia de um direito penal de bem
jurídico, não pode ser utilizar bem jurídico sem o definir, até porque ele é difícil de definir e
têm de ser traçados limites, algo que também é de difícil execução. O TC por vezes não
reconhece aquilo que é obvio, que há uma grande instabilidade doutrinária e há grandes
opções políticas que têm de ser consideradas. Depois faz outra coisa, que é aqueles casos
que embora não caibam no conceito de bem jurídico por consenso geral, relativamente a
esses casos ou são excecionais ou permitem uma reformulação do conceito de em jurídico
de forma ainda caberem no conceito de bem jurídico. Considero que dessa forma não
temos muito a ganhar com o conceito de bem jurídico. O conceito de bem jurídico é
realmente um critério de argumentação crítica e orientadora da constitucionalidade das
normas, sendo basicamente isso que deve ser pedido a esse conceito, tendo sempre noção
do que é uma função crítica e orientadora do conceito de bem jurídico e perceber quando é
que essa função é posta em causa. É também importante perceber que não é nenhum
talismã, não bastando a existência de bem jurídico para que haja constitucionalidade, sendo
que a força do conceito de bem jurídico depende da articulação com princípios
constitucionais, como o princípio da necessidade da pena e o princípio da culpa.
Aula 6 (19/10/2020)

Portanto, é com uma certa relativização do conceito de bem jurídico que eu


termino a aula, não dizendo que este conceito de bem jurídico deve ser dispensado, mas
dizer sim que ele tem de ser uma forma de argumentação relativamente às normas
incriminadoras
Na próxima aula continuarei ainda a falar do conceito de bem jurídico, mas
concentrando-me sobretudo na análise de casos concretos, mais concretamente, na análise
de dois acórdãos sobre o crime de lenocínio que distam 16 anos entre si.
Aula 7 (26/10/2020)
Raquel Nunes

▪ Primeira Parte
Nesta aula vamos continuar as conclusões do desenvolvimento da matéria que até
aqui foi feito. Como devem recordar na última aula falamos do bem jurídico e da
importância do bem jurídico como um critério de avaliação da validade (constitucional
até) das normas incriminadoras.

Mas, nesta aula, gostaria de abordar as etapas conclusivas de que eu falo nas
lições; como não segui exatamente a ordem das lições parece-me mais adequado mostrar-
vos essa síntese através de um pequeno esquema. Vejamos:

Como podem ver, o tema é o conceito material de crime, sempre, desde a primeira
aula; e todas as etapas que fomos desenvolvendo foram sempre na perspetiva/sentido de
trazer contributos argumentativos para os tais critérios de delimitação negativa do
conceito material de crime.

Na imagem da esquerda temos uma imagem d’O Processo, de Orson Welles,


baseado no livro homónimo de Kafka. A personagem principal aqui, numa espécie de
tribunal, não sabe exatamente qual a razão que o leva ao tribunal. Ele nunca descobre essa
razão bem como os seus intervenientes no processo. Esta é uma das frases do fim do livro:
“Onde estava o juiz que ele nunca vira? Onde estava o alto tribunal ao qual nunca
acedera?”. Ou seja, nem sabe a razão pela qual é acusada nem nunca chegou a ver o juiz
e o tribunal ao qual ele nunca acedera.

1
Aula 7 (26/10/2020)
Raquel Nunes

Pois bem, o conceito material de crime tem esta função que aqui foi identificada
– é um critério limitador das normas penais incriminadoras – de facto, procura-se
realmente saber qual é a substância do crime que permite limiar os seus limites de
validade constitucional. E, realmente, para esse fim, o bem jurídico também tem um papel
de critério limitador das normas penais embora, na minha perspetiva é sobretudo um papel
de orientação. Mas aqui (PowerPoint), faz-se uma recordação ao que foi dito, aos bens
jurídicos, aos princípios – os princípios ainda não foram uma matéria tratada na
especialidade – mas sobretudo, ao argumento criminológico, à criminologia e à
interpretação do art. 40.º CP.

Estas são as etapas conclusivas, não cumprimos esta ordem (PowerPoint). Na


exposição oral, começamos por estudar até talvez uma 5ª etapa – os fundamentos do
Estado e das relações do Estado, pela filosofia política com o direito penal e com a
formulação de normas incriminadoras; depois falamos da criminologia e do argumento
criminológico; dos fins das penas e fizemos a interpretação do art. 40.º CP; do bem
jurídico e ainda vamos falar dos princípios.

Gostaria de fazer uma síntese sistematizadora, das etapas, seguindo agora a ordem
do livro (e não a ordem da exposição oral), e fazendo então todas as relações que nessas
tais etapas conclusivas estão feitas:

2
Aula 7 (26/10/2020)
Raquel Nunes

Etapa 1 – Conceito material de crime e em jurídico – demos, como se recordam,


o critério do bem jurídico (que eu até o coloquei em causa, questionando se este deve ser
tão decisivo, tão determinante da validade constitucional das normas incriminadoras);
mas seguindo o que foi dito tanto na aula como na matéria exposta no livro, esta primeira
etapa tem realmente alguma relevância, e parte desta pregunta – a referência ao bem
jurídico é mesmo um critério de validação constitucional das normas incriminadoras? –
para dar resposta, foi sublinhado que não é um critério fechado, conceptual, mas antes
uma metodologia argumentativa, de orientação crítica e extra sistemática. Portanto, não
vamos procurar um critério definidor de bem jurídico; vimos até que o conceito de bem
jurídico tem sido apropriado por diversas orientações: desde de orientações
individualistas, super individualistas, por exemplo, que são totalmente contraditórias, e
de alguma maneira permite a chamada curva de etiquetas, ou seja, podemos utilizar uma
argumentação e fazer analogias que nos levam a considerar o bem jurídico como qualquer
interesse protegido pelas normas.

O bem jurídico, permite realmente essa apropriação, essa manipulação mas,


também é verdade que aqueles autores que querem utilizar o bem jurídico como um
critério crítico procuram dar-lhe um certo conteúdo (estabilizar-lhe um certo conteúdo).
Realmente, esses autores, como ROXIN (também se pode dizer que FIGUEIREDO DIAS
se enquadra neste pensamento), dão muita importância ao critério do bem jurídico, o
tribunal vem falar mesmo de um direito penal do bem jurídico. Citando FIGUEIREDO
DIAS, de facto quando se aposta, como critério limitador da validade constitucional das

3
Aula 7 (26/10/2020)
Raquel Nunes

normas incriminadoras, é porque estamos a querer utilizar o critério do bem jurídico como
um critério extra sistemático; apostamos na extra sistematicidade, isto é, um critério que
permite impedir manipulações legislativas. Este critério é desenvolvido pela doutrina e
por argumentos baseados em princípios, em argumentos que não são valorativos, não são
meramente sistemático-positivos e que exatamente por isso permite ter uma caraterística
e uma qualidade de estra sistematicidade que é um crivo crítico das normas de direito
positivo.

Realmente, quando se utiliza o critério do bem jurídico neste sentido, eu penso


que estamos a acentuar o bem jurídico como um conceito revestido de um referendo
pessoal – um conceito personalista de bem jurídico, i.e., um interesse da pessoa, das suas
condições de existência pessoal, das suas capacidades, do seu desenvolvimento e, isto,
pela positiva. Pela negativa, significa afastar o conceito material de crime de puros
interesses simbólicos de moralidade social resultantes de tradições, de convenções sociais
etc., mas que não se consiga demonstrar que correspondam a capacidades (até aqui apelo
à capability approach e portanto à potencialidade das capacidades das pessoas serem
desenvolvidas para uma plena dignidade e como diz Martha Nussbaum, uma vida digna
de ser vivida).

Portanto, o conceito de bem jurídico na sua função crítica, orientadora, extra


sistemática, é um conceito que pretende ter um referente pessoal. Depois, esta mesma
função apela a algo mais, algo de substancial, pretende ser um conceito baseado em
necessidades pessoais inter relacionalmente definidas por um processo comunicativo em

4
Aula 7 (26/10/2020)
Raquel Nunes

que cada pessoa é representada como sujeito. Aqui, obviamente, já estou a introduzir uma
linguagem própria da teoria da ação comunicativa de HABERMAS e da ideia de um
processo democrático substancial (embora com uma componente processual), em que a
definição dos conteúdo normativas é feita através da possibilidade de argumentar e contra
argumentar a todos conferida com igual oportunidade e, em que cada um dos participantes
desse tal discurso (a chamada ética do discurso) é considerado um sujeito e não um objeto.

Acrescentaria que, esta extra sistematicidade crítica, implica um conceito de bem


jurídico que tem como referente um dano do outro, ou da sociedade ou do mundo,
extrínseco ao agente, excluindo o mero dano do agente. Portanto, como reparam a minha
tentativa de sistematização foi pela indicação neste pressuposto da extra sistematicidade
crítica, caraterística do bem jurídico, de aspetos positivos como o interesse da pessoa, as
suas condições de existência, e na versão negativa, a exclusão dos interesses simbólicos
ou de moralidade social; depois a ideia de necessidade social (necessidade objetiva, mas
sem desconsiderar que ela será inter relacionista ou interacionisticamente definida como
dizem os sociólogos mas, tem de ser através de um processo que não seja meramente
inconsciente, ou pelo menos tem de ser um processo consciencializável, um processo
comunicativo e argumentativo em que cada pessoa é caraterizada como sujeito o que
exclui critérios de pura tradição cultural, simbólica que sejam expressão de poder de
grupos sociais ou de tendências políticas – estas realidades estariam excluídas do conceito
de bem jurídico ou desta função de extra sistematicidade crítica do bem jurídico.

Finalmente, a ideia de bem jurídico também apela para a ideia de dano do outro,
da sociedade, do mundo, extrínseco ao agente, excluindo, desde logo, o conceito de bem
jurídico do mero dano do agente, como aconteceria por exemplo no caso de consumo de
estupefacientes ou na hipótese de, por exemplo, criminalizar a prostituição em função do
dano feito à própria pessoa1.

1
Em alguns países ainda se mantêm a criminalização destes modos de vida. A sistematicidade crítica do
bem jurídico afastaria estas realidades.

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Raquel Nunes

O referente pessoal, que é um aspeto crucial desta tal inter sistematicidade critica
do conceito de bem jurídico, implica a tal relação entre indivíduos e o dano de outrem,
também em alternativa (porque não se assumirá um conceito individualista liberal de bem
jurídico) a relação do individuo-comunidade e, aqui implicará que o conceito de bem
jurídico também nos permita divisar que o comportamento em causa tem de revelar um
dano do compromisso do agente para com uma comunidade estruturada
democraticamente e orientada para o desenvolvimento da pessoa; no fundo, tem que
existir uma rutura desse mesmo compromisso. O referente pessoal pode ainda envolver a
relação do individuo com o mundo, nesse sentido o dano do outro é mais abrangente, não
relevando apenas o dano do outro ou de outra pessoa(s) em concreto mas também o dano
do não-humano (caso dos animais) ou do ambiente integrante duma
universalidade/subjetividade de manter o mundo com humanidade responsável. Na
página 84, procuro não contradizer a linha de pensamento de ROXIN, mas dou uma outra
fundamentação ao que este autor diz quando afirma que apesar da sua defesa um
bocadinho mais conceptualista do bem jurídico e apesar de dar uma função embora critica
ao bem jurídico (mais fechada), tem algumas dificuldades em considerar não-
inconstitucionais as normas incriminadoras dos crimes contra os animais ou dos crimes
contra a natureza/ambientais. Realmente vai admitir aqui umas especialidades culturais
que põem em causa, a meu ver, a coerência da sua construção. No fundo, o fechamento
do conceito de bem jurídico que faz antes, acaba por entrar num certo choque com a
aceitação de outras realidades que lhe custa a negar que sejam normas inconstitucionais

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Raquel Nunes

dado o peso cultural e a aceitação generalizada da justificação dos crimes contra os


animais, por exemplo, ou da proteção das gerações futuras (dos crimes que têm a ver com
comportamentos que podem afetar o ambiente mas na perspetiva das gerações futuras).
ROXIN nestes casos vai ceder mantendo portanto uma certa tensão entre o seu conceito
inicial de bem jurídico e o não conseguir concluir, e bem, que nestes casos haveria
inconstitucionalidade; mas eu aqui em vez de abrir exceções ou fazer referência a
realidades culturais muito pressionantes e ideias politicas difíceis de contestar num
determinado momento que têm a ver com construções da sociedade que se tornaram
dominantes, eu preferia apelar à filosofia e apelar ao pensamento do filósofo LÉVINAS,
quando ele diz que a essência de um ser razoável não designa apenas o acontecimento
nas coisas de um psiquismo, à maneira de um saber, à maneira de uma consciência que
recusa a contradição que englobaria as outras coisas sob os conceitos ao desaliená-los
na identidade do universal; é um designo também à aptidão do individuo a situar-se como
único no seu género, assim como absolutamente diferente de todos os outros mas nesta
diferença ser não indiferente ao outro; o outro torna-se assim uma dimensão que diz
respeito a cada pessoa e nesse sentido a um outro integrante da subjetividade. A ideia
que eu quis sublinhar para justificar ainda a não inconstitucionalidade de normas em que
o referente não é pessoal no sentido tradicional, ou seja, onde é difícil encontrar uma
“arrumação” com condições de existência de carater pessoal-individual ou com uma certa
base ontológica ou de necessidades sociais com uma certa materialidade quando isso é
realmente difícil reconhecer, em certas condições, como nestas, ainda se poderá (tudo
depende da configuração das normas incriminadoras/do seu âmbito – que não pode ser
simbólico e/ou fundamentalista), desde que o que esteja em causa seja uma certa conceção
duma certa universalidade da subjetividade, uma certa conceção do sujeito/pessoa como
ser no mundo que adquire sentido no mundo ao ser titular de direitos, ao poder
desenvolver as suas capacidades, e poder ser responsável pelo os outros (mesmo os não
humanos) e, na medida do possível, pelo próprio ambiente. Esta dimensão de
responsabilidade que é o outro, que é constitutiva de si mesmo, tem a ver com um certo
sentido de ser-se humano, ou seja, não apenas de individuo mas de uma subjetividade
universal, quando estiverem em causa comportamentos que possam ainda afetar este
referente, ou ter na base da incriminação alguma leitura deste tipo, nós provavelmente
temos argumentos deste tipo no sentido da não- inconstitucionalidade.

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Raquel Nunes

Concluindo, nesta 1ª etapa, eu diria que o critério do bem jurídico é um critério


que não é subsuntivo, não é um conceito em que cabem ou não determinadas realidades
como se se pudesse determinar concretamente os casos num conceito fechado. O critério
do bem jurídico é um critério critico orientador e portanto não conceptual, é aberto. Para
ter uma validade critica e uma certa extra sistematicidade este não pode ser manipulável
por isso deve assentar uma base estável, deve haver um mínimo de estabilidade no seu
conteúdo.

O critério do bem jurídico depende então do método argumentativo, do


conhecimento da subjetividade – daquele que é sujeito, depende, no fundo, do resultado
da argumentação. Temos de poder justificar a norma incriminadora relativamente aquele
cujo comportamento se trata, que vai ser objeto/destinatário da norma incriminadora, de
modo que, a norma incriminadora não ponha em causa a própria subjetividade do mesmo.
Por isso, o critério do bem jurídico precisa ser articulado com os princípios de necessidade
da pena e da culpa. Assim, eu posso estender ou admitir que as normas constitucionais
são validades em função de uma interpretação das mesmas que toma em consideração a
existência ou não de bem jurídico ou qual é o tipo de bem jurídico que as normas protegem
mas não num sentido subsuntivo/conceptual mas antes num sentido argumentativo. Nos
casos mais complicados, encontrar uma certo interesse com uma base ontológica ou uma
síntese de um interesse ontologicamente constatável e de um valor, é difícil, por exemplo,
nos casos onde estamos já numa fronteira de moralidade ou determinados símbolos
apenas relevantes para a coesão social, ainda aí eu acho que a defesa possível dessas

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normas incriminadoras (crimes contra a natureza, crimes contra os animais,


comportamentos incriminados por afetarem gerações futuras, etc.), quando estivermos
nesses domínios eu penso que o que esta em causa é uma referencia argumentativa,
possível ainda, em função da configuração dos comportamento, à preservação de um certo
sentido da proteção da subjetividade universal, de comportamentos que afetem essa
dimensão de responsabilidade pelo mundo, pelos outros, constitutivos da ideia de ser
humano.

Passando para a 2ª etapa conclusiva, é de referir que ela corresponde à resposta a


esta pergunta: os princípios do Direito Penal condicionam o conceito material de crime?

O princípio da necessidade da pena realmente condiciona o conceito material de


crime porque exclui comportamentos que correspondam ao exercícios de direito e
interesses constitucionalmente protegidos mais relevantes dos que sejam afetados por
exemplo, não haverá necessidade da pena quando realmente esteja em causa o núcleo da
liberdade de expressão de pensamento ou o núcleo da liberdade religiosa, ou direitos
como o direito à vida. Mais uma vez, comportamentos que correspondam ao exercício de
direitos e/ou interesses constitucionalmente protegidos mais relevantes dos que possam
ser afetados. Nesse sentido, o conceito material de crime é de facto recortado/delimitado
pelo princípio da necessidade da pena. Mais se acrescenta que este princípio leva a que
se exclua do conceito de crime comportamentos insuficientemente graves para justificar
uma pena ou ainda comportamentos a que a aplicação de uma pena não seja adequada por
existirem soluções sancionatórias ou políticas sociais alternativas (v.g. consumo de
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estupefacientes ou até mesmo a matéria a IVG e outros casos em que até aceitamos
alguma dignidade punitiva de certos comportamentos mas que perante argumentos fortes
e válidos de alternativa às sanções penais ou outras, obrigam-nos a fazer um recorte dessas
normas incriminadoras no plano da constitucionalidade).

O princípio da culpa também tem implicações no conceito material de crime por


exigirem modalidades de comportamento que desde logo não representam
comportamentos suficientemente controláveis pelos agentes em função da oportunidade
social ou critérios de censurabilidade ético-social prévios, por exemplo, o consumo de
estupefacientes, o pequeno trafico dos consumidores, a própria prostituição, certos casos
de aborto, etc. Refiro-me fundamentalmente ao perigo para a saúde psíquica, na medida
em que se possa entender que, é a própria dificuldade de censurar pessoalmente esses
comportamentos ao agente em função de considerações prévias sobre uma certa
dificuldade de formular, quanto a esses comportamentos, uma censurabilidade ético-
social que justificará que o legislador se iniba de os criminalizar; portanto a ideia de que
o princípio da culpa nada tem a ver com o as questões do conceito material de crime ou
com uma decisão sobre a validade constitucional das normas não é, de todo, a minha
opinião. Confesso que não me inspirei em nenhum autor, mas a minha ideia é a de que,
efetivamente, o princípio da culpa enquanto expressão de que a responsabilidade penal
pressupõe uma censurabilidade pessoal que tem algum conteúdo ético, que pressupõe o
controle das consequências do comportamento do agente e que pressupõe que o agente

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Aula 7 (26/10/2020)
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tenha a devida oportunidade para se motivar pela norma (temos aqui também uma
igualdade subjacente), o princípio da culpa assim entendido pode funcionar para discutir
a constitucionalidade de normas incriminadoras.

-(a Professora remeteu o estudo aprofundado dos princípios para o seu manual)-

Na 3ª etapa, responderemos à seguinte questão: a análise do crime pela


Criminologia interfere com os critérios de validação constitucional das normas
incriminadoras? Aquilo que no fundo, eu respondo afirmativamente, podemos realmente
invocar, por vezes, um argumento criminológico. Por isso logo no início do semestre e
nas lições de Direito Penal faço uma relação entre Direito Penal e Criminologia. Entendo
que apesar de o discurso do Direito Penal e o Discurso da Criminologia terem uma
metodologia/objeto diverso – a sociologia está mais próxima das ciências da natureza
enquanto que o direito enquanto forma de pensamento científico, está muito mais
vocacionado para questões de validade/ética e análise política fundamentada – a análise
dos comportamentos criminológicos tem muita importância, desde logo por razões de
justiça, por razões próprias do Direito. A criminologia revela-nos que há realmente
situações em que a qualificação dos comportamentos como crimes não é alguma coisa
controlável pelas pessoas, diferentemente a uma certa ideia mítica da tradição jurídica,
nomeadamente a associação que se faz da responsabilidade e da responsabilidade pela
culpa com a liberdade e livre arbítrio. A criminologia desde LOMBROSO até à sociologia
criminal e psicologia criminal põe em causa essa perspetiva. A criminologia diz-nos que
o crime se define por exemplo em processos socias, labeling approach, interacionistas

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(até simbólicos), ou que representam défices de socialização ou controle de si mesmo,


portanto, a sociologia expõe a natureza de crime como de comportamentos que não são
a expressão pura da liberdade de agir de outra maneira, logo, a incriminação de certos
comportamentos tem de ser configurada, diferenciando comportamentos mais
controláveis e menos dependentes da interação, menos atreitos a fenómenos de déviance
secundária e desenvolver critérios de responsabilidade (culpa) que contemplem estas
dimensões.

Portanto, a criminologia, interfere não só na legitimação dos comportamentos


criminalizáveis como depois nos critérios de atribuição de responsabilidade como se verá
sobretudo no segundo semestre2.

As finalidades constitucionais da punição condicionam o conceito material de


crime? A resposta é sim, porque desde logo a retribuição pura não é compatível com a
constituição, com a estrita fundamentação da pena na proteção de bens jurídicos (que é o
que está previsto no CP e que resulta da necessidade da pena nos termos do art. 18.º/2
CRP), da reinserção social (art. 40.º CP) e com a culpabilidade do agente (censura pessoal
por comportamentos controláveis e evitáveis em face da oportunidade social de
motivação pelas normas); é de excluir, a retribuição de facto, da formulação de normas
incriminadoras e de critérios de atribuição de responsabilidade na base da retribuição. Isto
seria incompatível com o princípio da necessidade da pena, com as finalidades da

2
Sobre o argumento criminológico tenho um artigo na revista Julgar.

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Aula 7 (26/10/2020)
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apreensão do CP e com a própria culpabilidade do agente. A retribuição, embora se possa


associar culpa e retribuição, a culpabilidade deve ser lida como uma censura pessoal por
comportamentos controláveis e evitáveis, em face à oportunidade social de motivação
pelas normas, o que impede uma lógica estritamente retributiva. A lógica estritamente
retributiva diz que não há crime sem pena – não há crime que não tenha como
consequência uma pena automática e necessária (ilha de Kant). Também isso estaria em
contradição com o próprio princípio da culpa entendido como a tal censura pessoal.

O estudo dos fins das penas, também pode ser importante para o conceito material
de crime porque também a configuração dos comportamentos e os critérios de atribuição
de responsabilidade violariam a CRP enquanto se estabelecesse uma delimitação dos tais
comportamentos (conteúdo das normas incriminadoras) a partir de uma logica meramente
retributiva, não diferenciando suficientemente, por exemplo, o dolo da negligência. Esta
questão interfere com o conceito material de crime, isto porque, se realmente houvesse
uma punição generalizada da negligência nós estaríamos em contradição com os
princípios constitucionais e teríamos ali um critério de limitação dos comportamentos
criminosos, eventualmente em contradição com as finalidades constitucionais das penas.
Temos ainda de considerar que as penas têm de se justificar por comportamentos graves
na lesão de bens, crentes de defesa, justificativos de uma censura de culpa por serem
controláveis, evitáveis e reconhecíveis como desvaliosos. Por isso, estas ideias abstratas
são ideias que podem ser trabalhadas em concreto, por exemplo, uma reforma penal nos
termos da qual os crimes seriam todos punidos a título de negligência e não apenas em
casos especiais conteria um critério criminalizador que colocaria em causa o conceito
material de crime por violar princípios constitucionais.

▪ Segunda Parte

Neste segunda parte, iremos iniciar o estudo da teoria da lei penal. Mas antes, gostaria
de fazer uma proposta de exercício para as aulas práticas, no qual pretendia que se
entendesse a importância da questão do bem jurídico, na delimitação constitucional, e na
validação constitucional de normas incriminadoras. Há uma norma na parte especial do
CP, art. 371.º CP, que se refere à violação do segredo de justiça, e está sistematizado
como um crime contra o Estado, onde se diz que “quem tomar contacto com o processo
e der conhecimento, do todo ou em parte, do teor de processo penal que se encontre (…)
é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 (…)”. Uma
conceção eminentemente personalista do bem jurídico se for tomada como meramente
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Aula 7 (26/10/2020)
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subsuntiva e não como um princípio orientador crítico extra sistemático vai colocar este
problema: estes crimes como a violação do segredo de justiça, são crimes que apenas
atingem bem jurídicos supra individuais, que estão para além das condições diretas de
existência de pessoas concretas ou de um conjunto de pessoas concretas e parece atingir
um valor da justiça, o estado de direito democrático que para mim é uma dimensão
fundamental da nossa existência (dimensão existencial da justiça).

Estamos a avaliar se, ainda neste campo (segredo de justiça), é necessário que exista
um referente pessoal, uma base onto-existêncial, ou um conjunto de valores da pessoa do
bem jurídico – eu diria fundamentalmente que sim. Se abrirmos o Código de Processo
Penal, no art. 68.º, a propósito da chamada figura do assistente, um sujeito processual, o
qual só pode ser constituído em relação a determinados crimes. Este art. diz-nos que -
“Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem
leis especiais conferirem esse direito :a) Os ofendidos, considerando-se como tais os
titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde
que maiores de 16 anos;”. Qual é o problema que pode surgir nestes casos? – O problema
do crime da violação do segredo de justiça, que é um crime contra o Estado em que o bem
diretamente atingido não é um bem de natureza individual ou que não tem diretamente
um referente/interesse pessoal – a questão que eu coloco é se também à luz do conceito
de bem jurídico que ROXIN e também em parte FIGUEIREDO DIAS e ainda o próprio
tribunal constitucional em alguns acórdãos, uma interpretação de um tribunal que
impeça a constituição como assistente de pessoas concretas que, cuja honra, por
exemplo, ou que as possibilidades de defesa sejam afetadas por não se poderem
constituir assistentes, já que o crime é um crime contra o Estado e nesse sentido o
tribunal pode decidir que possam não ser considerados ofendidos (não podem caber no
conceito de ofendido desta norma), saber se este tipo de interpretação conduziria a uma
norma inconstitucional? A articulação entre a interpretação da norma penal, que veja
nos crimes de violação do segredo de justiça, crimes contra o Estado, apenas numa
dimensão supra individual do bem jurídico e entre a norma do processo penal que define
o ofendido daquela forma não cria, no fundo, uma norma penal inconstitucional?

É curioso confrontar o pensamento de ROXIN, de FIGUEIREDO DIAS, que aliás


esteve na origem, quer da existência quer do CP quer do CPP, e o pensamento do tribunal
constitucional que já se pronunciou sobre esta questão há vários anos. É uma matéria de
grandes dúvidas porque o problema de saber se realmente uma interpretação do tal art.

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Aula 7 (26/10/2020)
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371.º do CP em termos de que o bem jurídico protegido pela mesma ser expurgado de
qualquer dimensão pessoal (embora a norma seja concebida para prosseguir a justiça) é
inconstitucional. Este é um problema mais complexo porque não se pretende averiguar se
um determinado comportamento jurídico deve ser incriminado, trata-se de uma questão
mais técnica, que nos põe em confronto exatamente com o conceito de bem jurídico no
CP e no CPP que nos permite perceber qual é a coerência da linha jurisprudencial do
tribunal constitucional quanto ao conceito de bem jurídico. Devo dizer-vos que o TC não
considerou inconstitucional que seja excluído os crimes de violação de segredo de justiça
da qualidade de ofendido o particular cuja honra tenha sido afetada, porque utilizou um
argumento sistemático no sentido de que nos crimes contra o Estado, o bem jurídico não
um bem jurídico com referencia pessoal e não é em função do interesses pessoais que é
formulada a norma incriminadora. Em suma, o que se pretende saber é se uma total
coerência do entendimento do bem jurídico enquanto referente pessoal levaria à
inconstitucionalidade das normas incriminadoras quando este referente pessoal não
estivesse verificado.

Posto isto, iremos estudar o Direito Penal a partir daquelas normas e daqueles
princípios que constituem uma espécie de bloco ou de enquadramento de toda a
interpretação e aplicação da lei penal aos casos concretos. Iremos estudar as meta-normas,
estas são precisamente aquelas que estabelecem os critérios de validade de interpretação
das normas incriminadoras (ou que aplicam as penas). Vamos estudar um conjunto de
normas, previstas na parte geral do CP, que estabelecem os critérios a que deve presidir
a interpretação das normas incriminadoras. Mas antes disso vamos estudar também meta-
normas que estabelecem orientações para o próprio legislador na formulação das normas
penais, orientações essas que depois o próprio intérprete tem de compreender, interpretar
e eventualmente discutir e argumentar criticamente quanto ao cumprimento pelo
legislador destas orientações.

Desde logo, o art. 1.º CP, define exatamente as repercussões do princípio da


legalidade: “Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de
pena por lei anterior ao momento da sua prática.” – a própria CRP, no art. 29.º formula
o princípio da legalidade de uma forma mais parecida às declarações internacionais
(Declaração dos Direitos do Homem de 48; Convenção Europeia do Direitos Humanos):
“Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que

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Aula 7 (26/10/2020)
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declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos
não estejam fixados em lei anterior”.

Este é o princípio que estabelece com mais rigidez os quadros da formulação e da


interpretação do Direito Penal. É um princípio que nenhuma Constituição dispensa.

O que nos diz o princípio da legalidade? Diz-nos que não pode existir nenhuma
norma incriminadora que não esteja prevista em lei anterior – este é o núcleo do princípio
da legalidade – tem que existir uma lei para que validamente um certo comportamento
seja considerado crime e para que possa existe uma pena; não podem existir penas criadas
pelos tribunais ou por qualquer agente do poder político que não estejam previstas na lei.
1. Nullum crimen, nulla poena sine lege (scripta) – não crime, não há pena, sem
lei escrita, a chamada reserva de lei em sentido formal. No caso português, temos um
reserva moderada, porque se admite que essa lei que define os crimes e as penas possa
ser uma lei emana do governo mas, com autorização legislativa da Assembleia da
República. Há uma reserva relativa de lei quanto ao Direito Penal – art. 165.º/1/c) da
CRP.

Temos dois aspetos: o aspeto de excluir o costume, doutrina e jurisprudência como


fonte de Direito Penal, e por outro lado, o aspeto de exigir que a lei por força da separação
de poderes, a lei tenha de ser lei em sentido formal (reserva de lei em sentido formal).

2. Nullum crimen, nulla poena sine lege (stricta) – a lei para além de o dever ser
em sentido formal, emanada dos órgãos representativos do poder democrático com a
devida atribuição de competências, tem de ser uma lei determinada, uma lei que não é
vaga, tem de ser uma lei precisa que diga exatamente ao intérprete, ao tribunal e aos
destinatários quais são os aspetos comportamentais que são incriminados, de modo que
haja um entendimento comum entre o tribunal e os destinatários. Isto significa uma coisa
muito importante, a proibição da analogia quanto às chamadas normas penais positivas,
normas incriminadoras e aquelas que agravam a posição do agente do Direito Penal.

Tudo isto só tem sentido se nós articularmos o nullum crimen com o nulla poena, isto
é, para que a proibição da analogia e para que a reserva de lei seja garantida, com o sentido
de segurança democrática que justifica o princípio da legalidade, é necessário que nos
possamos associar o crime à pena, no sentido de que não haja pena sem crime – 2.1. nulla
poena sine crimen – princípio da conexão. O cerne do princípio da legalidade seria posto
em causa, se o legislador numa lei, ainda que em sentido formal, viesse a criar um crime

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Aula 7 (26/10/2020)
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e depois em várias outras leis, nomeadamente do CP, tivesse um elenco de penas para que
depois quem fizesse a articulação entre o crime e a pena fosse o julgador livremente e a
seu gosto. Ora, neste caso, a garantia, previsibilidade, segurança e objetividade da
aplicação do DP estaria a ser posta em causa por não haver conexão. A conexão entre o
crime e a pena não pode ser feita pelo tribunal, tem de ser feita pelo próprio legislador.

Existirá assim uma clara e manifesta inconstitucionalidade quando não seja associada
à previsão do crime a pena e seja dada a possibilidade de o julgador/intérprete vir,
criativamente, a construir a norma penal, no sentido completo da mesma, uma articulação
entre uma previsão e uma estatuição. Esta articulação tem de ser feita pelo legislador e
isto corresponde ao princípio da conexão.

3. Nullum crimen, nulla poena sine lege (certa) – corresponde ao princípio da


tipicidade. Enquanto que o nullum crimen, nulla poena sine lege (stricta) se dirige
sobretudo ao intérprete que está proibido de fazer analogia, este comando dirige-se ao
legislador para evitar a possibilidade ou necessidade de recurso a forma criativas de
interpretação. Este tem de construir as normas penais como normas não vagas, normas
determinadas (princípio da determinação; princípio da tipicidade) em que todos os
momentos concretos do comportamento ou da conduta incriminada sejam retratados de
modo compreensível por todos numa linguagem comunicativa e objetiva em que tanto o
intérprete como o destinatário possam entender qual é o comportamento proibido.

4. Nullum crimen, nulla poena sine lege (praevia) – proibição da retroatividade no


Direito Penal. Esta é uma proibição fundamental para assegurar não só a separação de
poderes como também para criar a previsibilidade e a segurança que caraterizam o DP.

Há uma relação prévia que deve ser feita, a do fundamento do próprio princípio da
legalidade. Não basta uma relação do princípio da legalidade com o princípio da culpa,
com a ideia de um direito penal de culpa para justificar o princípio da legalidade – não
basta a perspetiva da previsibilidade dos destinatários e da perspetiva da aplicação de uma
pena em função de um comportamento previsível que as pessoas teriam a possibilidade
de evitar. Isto justifica em parte o princípio da legalidade mas não é suficiente porque o
princípio da legalidade vai mais longe. Este não pode ser apenas uma garantia de
expetativas dos destinatários das normas porque quando entramos no âmbito das medidas
de segurança, se continuarmos com este tipo de raciocínio vamos ter muita facilidade em
retirar ou subtrair as medidas de segurança ao princípio da legalidade. As medidas de

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Raquel Nunes

segurança são sanções criminais tal como as penas mas têm um fundamento diverso (este
fundamento é a perigosidade do agente) e aplicam-se a agentes incapazes de culpa,
portanto aqui é preciso assegurar a defesa da sociedade quanto à sua perigosidade criminal
e não há que assegurar nenhuma previsibilidade relativamente a esses agentes das
medidas que lhes são aplicáveis até porque eles não têm capacidade de culpa e
consequentemente não tem capacidade de se motivar livremente pelas normas e
compreender até o sentido das normas. Assim sendo, na matérias das medidas de
segurança, a relação dos fundamentos do princípio da legalidade com a ideia de segurança
associada à previsibilidade para os destinatários das normas permitiria facilmente subtraí-
las ao princípio da legalidade e como se vê a CRP não subtrai as medidas de segurança a
este princípio. O art. 29.º da CRP diz- nos claramente que ninguém pode sofrer medida
de segurança cujos pressupostos não sejam fixados em lei anterior e o n.3 diste art. diz-
nos que não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam
expressamente culminadas em lei anterior.

Podemos então questionar: se o princípio da legalidade abarca as medidas de


segurança então que espécie de previsibilidade, que espécie de garantia dos destinatários
é que nós estamos a justificar, numa perspetiva racional, se esses agentes são incapazes
de culpa? É exatamente aqui que se demonstra bem o fundamento do princípio da
legalidade, porque é aqui que percebemos que este fundamento vai para além das
garantias, das expetativas e da previsibilidade dos destinatários, do reconhecimento do
que é proibido e do que não é proibida e das sanções a que a pessoa pode ser sujeita. Para
além desse aspeto o fundamento do princípio da legalidade é um fundamento mais amplo,
mais profundo – é um verdadeiro fundamento do estado de Direito no sentido de que tem
de ser através do DP respeitada a separação de poderes e o cerne do Estado de Direito
Democrático. As normas penais têm que ser representativas da vontade democrática, por
isso estão sujeitas à exigência da reserva de lei em sentido formal, e elas têm de vincular
o Estado ao direito que cria, impedir que o Estado arbitrariamente persiga penalmente
certos gentes, que o Estado, para agentes cujas expetativas não têm de ser asseguradas
(ou nem podem ser), não trato os agentes senão através de critérios pré-definidos porque
é assim que os trata como pessoas. A essência do princípio da legalidade é uma auto-
vinculação do Estado ao direito que cria, é uma objetividade do seu direito e é um
controle dos poderes de interpretação/aplicação das normas por parte das entidades que
estão incumbidas de o fazer.

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Aula 8 (02/11/2020)

Princípio da Legalidade

Continuação da análise dos corolários do princípio da legalidade, nomeadamente:

→ Nulum crimen, nulla poena sine lege scripta (reserva de lei em sentido formal);

→ Nulum crimen, nulla poena sine lege stricta (proibição de analogia)

Em relação ao primeiro corolário – nulum crimen, nulla poena sine lege scripta – este
significa exigência de lei, ou seja, reserva de lei em sentido formal.

Em alguns países, a reserva de lei penal é absoluta (caso de Itália). No caso português,
existe uma reserva relativa da competência legislativa, artigo 165.º, número 1, alínea c)
da Constituição da República Portuguesa. Quer isto dizer que a fonte do Direito Penal no
nosso ordenamento são as leis da Assembleia da República e do Governo quando tenha
autorização legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, nº 2 CRP).

Este corolário é uma emanação da separação de poderes e permite ao Direito Penal


exprimir segurança democrática. O Direito Penal é um direito válido porque respeita a
previsibilidade e a expectativa dos seus destinatários. Os conteúdos normativos penais
são representativos da vontade democrática e, por isso, estamos perante uma emanação
profunda da vontade democrática.

São apontados três problemas/ questões em relação a este corolário, nomeadamente


quanto à questão da conexão; quanto ao âmbito da reserva e quanto ao tipo de normas; e
o terceiro problema tem a ver com os casos de normas que violarão o princípio da reserva
e normas penais em branco.

Sabendo nós que corolário está ligado ao princípio da conexão, sabemos que não basta
que exista uma lei que preveja um crime ou um elenco de penas para que se respeite o
princípio da legalidade. A conexão entre o crime e a pena tem de ser articulada pelo
próprio legislador. Neste sentido, a norma incriminadora pode prever uma remissão para
outra legislação que contenha a pena. No entanto, seria inconstitucional uma norma que
determinasse a obrigatoriedade do uso de máscara e que remetesse as sanções para as
sanções do Código Penal, porque as normas penais não permitem este tipo de criatividade.

Exemplo de um problema de norma remissiva (onde tem de existir no seu conteúdo uma
substância controlada pelo princípio de legalidade): caso da norma do artigo 3.º relativa
ao crime de desobediência que constava no Decreto-Lei 2-A 2020 de 20 de março que
Aula 8 (02/11/2020)

decretava o Estado de Emergência. Esta não continha uma remissão redundante para a
norma do Código Penal relativa ao crime de desobediência. E, portanto, existia aqui uma
dúvida na interpretação deste diploma. A Professora Maria Fernanda Palma concorda
com o prof. António Neves na perspetiva de que a norma que consta no diploma do
Governo é redundante relativamente ao crime de desobediência do Código Penal e, por
isso, pode ser considerada inconstitucional.

O artigo 3.º criava um crime de desobediência por violação do dever de confinamento.


Este decreto não tem autorização legislativa e o problema que se coloca é: será que esta
norma cria um novo crime de desobediência? Não pode tratar-se do crime de
desobediência de crime de Direito Penal porque este obedece a crimes previstos na lei,
ou seja, obrigações legais que estão previstas como normas incriminadoras no número 1,
alíneas a) e b) do artigo 348.º e o número 2 que prevê a desobediência qualificada que
tem de ser sempre verificada na lei em sentido formal. Neste sentido, o artigo 3.º cria uma
previsão autónoma do artigo 348.º, logo há violação da reserva de competência legislativa
porque o Governo não tem nenhuma autorização legislativa. Significa que a única forma
de aceitarmos esta norma como uma norma válida é realizarmos uma interpretação de
acordo com o 348.º CP, que neste caso não parece ser possível (segundo a interpretação
dos Professores António Neves e Maria Fernanda Palma).

Outra situação que serve de exemplo a este problema é a Lei de Bases de Proteção Civil,
Lei 27/2006, 3 de julho que tem uma norma que prevê um crime de desobediência que
não é redundante em relação ao 348.º do CP, pois prevê os limites máximos e mínimos
do crime.

Por fim, outro caso ainda relativo ao problema de conexão é relativo à criação de uma
norma incriminadora associada à proteção de espécies ibéricas (prof. considera que foi
criada sem grande preocupação de rigor técnico). A Assembleia da República deliberou
a incriminação dos comportamentos que expunham o lobo ibérico em casos de captura,
como proteção de espécie. Todavia, não foi criada uma sanção correspondente e esta foi
remetida para uma norma qualquer. Este é um caso em que se cria uma norma
incriminadora e remete-se para uma sanção e a conexão não acompanha a subsunção do
caso concreto das normas legais. Se existe uma norma criativa da sanção então há
violação do princípio da legalidade, porque o interprete não pode fazer essa interpretação
criativa.
Aula 8 (02/11/2020)

O artigo 29.º, números 1 e 3 CRP refere as normas incriminadoras e penas e devemos


incluir ainda, as medidas de segurança. Estas requerem como pressuposto a verificação
de crimes e portanto, tem de existir uma articulação. Tanto o preceito primário como o
secundário estão no âmbito de reserva de lei. A reserva de lei abrange tanto as normas
incriminadoras como as normas que preveem as penas ou as medidas de segurança como
as normas que estabelecem os critérios de interpretação e aplicação das normas
incriminadoras. Isto significa que a noção de princípio da legalidade deve ser bastante
alargada contemplando as normas de direito penal relativas a penas, crimes e medidas de
segurança (aqui os crimes são pressupostos e algo mais tem de estar articulado).

As normas que estão sujeitas ao princípio da legalidade, nomeadamente, ao corolário


nulum crimen, nulla poena sine lege scripta, são as normas penais num sentido bastante
amplo, ou seja, são as normas incriminadoras e sancionatórias em articulação, como
também outro tipo de normas como as meta-normas (parte geral do Código Penal)–
normas que estabelecem as condições de interpretação e aplicação de outras normas. A
parte especial prevê as normas penais explicitas e diretas, articula os crimes com as penas
e a parte geral é constituída por normas que preveem critérios de determinação ou de
exclusão da responsabilidade. E, podemos, nesse sentido, concluir que essas meta-
normas (normas sobre a interpretação de outras normas) afetam a segurança democrática
e o controlo do legislador dos casos penais. A sua função é fazer esse acompanhamento
do modo de interpretação e de decisão dos casos penais e esse modo tem de ser controlado
pela lei. Nesse sentido, essas normas da parte geral estão sujeitas ao princípio da reserva
de lei.

Artigo 165.º/1, c) CRP apenas fala em crimes, logo, dá a entender que só está abrangida
a parte geral, mas temos de concluir de acordo com a lógica fundamentadora do principio
democrático (separação de poderes) que também as normas da parte geral que se destinam
a assegurar o modo de interpretação dos casos são normas que tem de estar sujeitas ao
principio da legalidade.

Este problema coloca-se em relação às normas penais positivas (as que determinam a
agravação da responsabilidade), no caso do artigo 132.º, vejamos um exemplo de crime
de furto qualificado em que em certas circunstâncias agravantes alteram a medida da
pena. Tem de existir no crime qualificado circunstâncias que justifiquem uma moldura
penal superior à do crime simples. São circunstâncias qualificativas criadas pelo
Aula 8 (02/11/2020)

legislador, tal como as circunstâncias agravantes gerais (aquelas que alteram a gravidade
da pena aumentando-a dentro dos limites legais) também tem de ser.

Exemplo: artigo 71.º - o legislador optou por uma fórmula que não é taxativa nem para
as agravantes nem para as atenuantes. Este artigo coloca um problema quanto às
agravantes porque quando diz “nomeadamente” no número 2 parece admitir que o
interprete (o tribunal) considera para além destes fatores/ critérios que aqui não caibam.
Não há nenhum motivo de agravação que possa relevante para a censura da pessoa do
agente que não caiba nestes critérios porque estes são muito exaustivos e estão muito bem
construídos. Mas podemos discutir do ponto de vista de coisa análoga ao conceito de
material de crime, em relação à alínea c) para que se abra a porta para critérios associados
à relevância de desvalor moral. Mas pode existir uma circunstância agravante que não
possa caber aqui? Por exemplo: o ódio político ou o ódio religioso – é agravante geral
(determinar a culpa entre o mínimo e o máximo da pena). Na medida em que se possa
referir o ódio religioso à intensidade do dolo (premeditação do crime) ou se pudermos
dizer que certos fins que determinaram o crime podem abranger esse tipo de finalidade?
O problema é que pode dar-se um pretexto a quem tivesse poder de perseguir os seus
adversários e fosse uma forma de, através do direito penal e da perspetiva do odio político,
se controlar a controversa política e o debate ideológico. Por isso, não é 100% claro quais
são os motivos que determinam o crime que o tornam especialmente censurável. Tudo
porque é uma clausula excessiva aberta e atribui-se ao intérprete de introduzir critérios de
agravação que possa estar em contradição com valores democráticos.

Sentimentos de discriminação que são sentidos por algumas pessoas em aspetos da sua
religioso são casos de agravação? Cabem na alínea c), do número 2? É que esta norma é
tao ampla que se subtrai ao princípio da legalidade. Há aqui uma certa imprecisão e um
caracter vago desta clausula que permite alguma criatividade excessiva do interpretação.

Enquanto em matéria de agravação da responsabilidade podemos estar numa contradição


da reserva – porque o critério legal não permite que seja o legislador a definir a gravidade
da licitude do facto (é o 165/1, c) que é colocado em causa), em casos de atenuação: por
exemplo em vitimas de adultério – estas situações a questões é saber se podemos dar o
sentimento de cidadania? O juiz só pode fazer essas conceções articulando o facto com
critérios de culpa relevantes, referindo a defesa da honra (mas isto não tem cidadania
constitucional). Atenuação só será inconstitucional quando contrarie princípios
constitucionais sobre a igualdade, sobre a dignidade da pessoa humanas, entre outros.
Aula 8 (02/11/2020)

O artigo 71.º é uma meta-norma, logo os critérios de interpretação tem de estar


submetidos ao princípio da legalidade.

Em relação ao âmbito da reserva da lei, de acordo com a jurisprudência do tribunal


constitucional, esta tem sido unanime no sentido de que as normas que descriminalizam
comportamentos também estão sujeitas à reserva. Esta interpretação não resulta tao
claramente do artigo 165.º/1, alínea c), mas há razoes do ponto de visto da segurança
democrática e da separação de poderes que justificam esta reserva. Porque a
descriminalizam vai alertar as relações entre o espaço do incriminado e o espaço da
liberdade e essa decisão não pode ser tomada pelo tribunal, ela compete ao legislador. O
professor Figueiredo Dias também concorda com esta posição.

Ainda no âmbito da reserva de lei, uma pergunta a fazer é se as causas de exclusão de


ilicitude previstas nos artigos 30.º e seguintes do Código Penal (causas de justificação do
facto ou causas de exclusão da ilicitude) também estão submetidas à reserva de lei? Ou
podem ser criadas e concebidas pelo legislador não autorizado ou pelo próprio interprete
(tribunal)? Quando falamos de causas de justificação de ilicitude estamos a falar de
comportamentos que vem compensar, através do valor que vinculam, o desvalor do
comportamento incriminado (exemplo: legitima defesa). Para responder à questão, a prof.
Maria Fernanda Palma considera que deve ser feita uma distinção entre causas de
exclusão da ilicitude chamadas de direito geral e causas de exclusão de ilicitude de direito
excecional.

No das causas de exclusão ilicitude chamadas de direito geral, de legitima defesa ou de


necessidade, estas são figuras em que a exclusão da responsabilidade resulta de princípios
associados ao exercício das liberdades gerais. A legitima defesa é a liberdade de defesa
(claro que não pode ser alargada por analogia porque isso viria a comprimir o direito de
terceiros). Estas podem conceber outras causas de licitude que não estejam catalogadas
no direito penal. Aqui, segundo a professora, não há que invocar uma rígida reserva de
lei.

Mas quando falamos em causas de exclusão de ilicitude de direito excecional pode não
existir essa facilidade em não exigir reserva. Por exemplo: na matéria de interseções
telefónicas o código penal prevê que seja possível (escutas telefónicas). Trata-se de um
catálogo fixo. A professora é muito rígida neste aspeto, ou seja, o tribunal não pode
invocar outras causas sem ser as do catálogo. Nem sequer se pode considerar analogia. É
Aula 8 (02/11/2020)

sempre necessário lei da assembleia da república ou lei com devida autorização


legislativa.

Por fim, em relação às normas penais em branco (3ª problema da reserva de lei), estas são
normas remissivas para outras normas e podem remeter para normas que também sejam
emanadas pela AR ou pelo Gov com autorização legislativa e, nesse sentido, não há
nenhum problema de inconstitucionalidade. Num sentido restrito, as normas penais em
branco são inconstitucionais porque remetem para normas que não tem o mesmo estatuto
que são, segundo a teoria de Kelson (na hierarquia das normas que tem no topo a
Constituição), normas emanadas por entidades que não tem a competencia exigida pela
Constituição, de acordo com a reserva de lei. São normas penais em branco aquelas que
remetem para regulamentos, decisões de autoridade/ ordens administrativa, por exemplo.
Estas normas são normas emitidas pela AR ou pelo GOV com autorização legislativo,
mas o seu conteúdo só é inferido para uma norma de conteúdo inferior. Por isso, são
obviamente inconstitucionais.

Como fazemos para perceber se estamos perante uma norma branca inconstitucional?
Exemplo: legislação sobre a droga. A partir de 2001 há uma descriminalização do
consumo, mas o elenco das substâncias proibidas consta da própria lei emitida pela
própria AR ou pelo GOV com autorização legislativa. Alguns acórdãos do Tribunal
Constitucional (Acs. Nºs 427/95; 534/98; 115/2008) ,manifestam alguma expressão a
normas remissivas (que remetem até para regulamentos) sobre a sua
inconstitucionalidade, e se são de facto normas penais brancas.

Em relação ao acórdão do Tribunal Constitucional nº 115/2008, este pronuncia-se sobre


o artigo 277.º de Código Penal relativo ao crime de violação de regras de construção. Este
tipo de norma aparece completamente vazia, porque remete para normas técnicas, por
exemplo, normas de engenharia (preceitos que tem de ser seguidos numa obra ou
relativamente aos trabalhadores). Já foi suscitada a inconstitucionalidade desta norma
várias vezes, e o Tribunal Constitucional bem entendeu que não existia
inconstitucionalidade. O núcleo proibido é que quem realiza uma determinada atividade
que só admitida se observar preceitos técnicos ou científicos, tem que realizar essa
atividade de acordo com esses preceitos. O conteúdo do que é proibido de que quem
realiza uma atividade deste tipo sem obedecer às regras técnicas que vigora, comete um
crime. As regras técnicas derivam da informação científica nessa área (os peritos dirão
qual é). Portanto, aquilo que é uma indefinição a priori, mas não há nenhuma
Aula 8 (02/11/2020)

inconstitucionalidade porque a desobediência é relativa às condições necessárias aquela


atividade. Aqui o crime consiste num comportamento que não respeita o dever de
observância dessas regras pressupondo o dever de conhecimento das mesmas, ou seja, o
conhecimento dessas regras é condição da própria atividade. No fundo há uma
previsibilidade do comportamento incriminado, porque a condição daquele
comportamento é o conhecimento daquelas regras. Aqui não uma norma penal em branco
no sentido restrito.

Relativamente ao acórdão do TC nº 427/95, em que a prof. Maria Fernanda Palma foi


relatora, este tratava-se de um crime de natureza económica em que existia uma norma
incriminadora a qual proíbe em função da pureza e da genuinidade do produto alimentar
a adição de produtos alimentos – é proibido que seja apresentado ao publico um produto
com produtos que alteram a sua natureza (independentemente de serem perigosos para a
saúde, porque a importância aqui é a autenticidade). O que acontecia é que existia um
regulamento que certos aditivos fossem incorporados e o arguido vem alegar que esta
norma é uma norma em branco porque admitia esses admitidos e afinal não admitidos.
De facto, não era no regulamento que encontrávamos o conteúdo proibido – proibição de
produtos alimentares, neste estavam apenas as exceções – os produtos que podiam ser
adicionados. Podemos dizer que a norma descriminalizada não tornava aquela norma
penal em branco.

Por fim, o acórdão do TC nº 534/98 tem a ver com uma situação em que a lei incriminava
uma certa quantidade de estupefacientes (estabelecia uma fronteira entre a quantidade que
podia ser possuída e a que não podia ser possuída) que remetia para uma portaria. A
portaria substituía-se com mais objetividade a uma análise pericial. A perspetiva deste
acórdão é de que devemos criar mais segurança, mais previsibilidade e substituir uma
visão técnica por um padrão mais pormenorizado de uma portaria. Nestes casos estamos
perante normas remissivas e aparentemente normas penais em branco, mas não são
porque o conteúdo central do conteúdo previsível é determinado e definido pelo legislador
autorizado e a intervenção das portarias é uma intervenção técnica.

Em relação ao corolário - nulum crimen, nulla poena sine lege stricta (proibição de
analogia). O ponto de partida para percebermos esta proibição é que as garantias
oferecidas pela separação de poderes seriam colocadas em causa se fosse permitida a
Aula 8 (02/11/2020)

analogia. Estamos a falar da previsibilidade e segurança jurídica. A proibição da analogia


visa impedir que uma criação normativa através do intérprete afete a previsibilidade e o
carácter comunicativo do próprio direito penal que tem a ver com a segurança
democrática.

Então, isto significa que também se proíbe a interpretação extensiva? Esta questão foi
muito bem superada pelo prof. Castanheira de Neves. Havia duas fações: uma visão mais
flexível – a visão que diz que o que está proibido é a analogia e não a interpretação
extensiva (artigo 1.º do CP); outra interpretação é a de Sousa de Brito que considera a
interpretação extensiva difícil de distinguir da analogia, porque a interpretação extensiva
utiliza requisitos da analogia e cria uma insegurança jurídica no destinatário da norma
porque o valor comunicativo da lei penal não é suficientemente esclarecedor.

Nesta discussão tradicional, o importante é sabermos o que é a interpretação extensiva e


a analogia. A interpretação extensiva é uma interpretação do resultado, serve para
compreender um pensamento mal expresso pelo legislador, ou seja, o fundamento do
trabalho interpretativo é esclarecer o pensamento do legislador. Na analogia temos um
caso que nem foi pensado pelo legislador e, por isso, devemos através dos casos previstos
na lei e através de comparação aplicar a um caso novo e nesse sentido, há uma certa
criatividade porque tem de ser criada a regra intermédia.

A professora Maria Fernanda Palma considera que há duas vias de respostas para esta
questão, a primeira:

→ esta distinção é artificial, porque toda a interpretação é analogia “não podemos fazer
interpretação sem fazer analogia” – então se é assim e nós, enquanto juristas, precisamos
de interpretar as leis para aplicar os casos, qual é o sentido de proibir a interpretação?
Nenhum, segundo a professora isto é absurdo, porque impedir a interpretação é impedir
a realização do Direito. Muitos autores como Castanheira Neves colocam esta questão;

→ quanto à segunda via de resposta - posição da professora:

Autor Arthur Kauderfen refere-se a um caso Sentença do Tribunal alemão relativamente


ao crime de ofensas corporais agravadas pela utilização de armas de fogo. E o caso
concreto foi o caso de uma ofensa corporal com ácido em que o tribunal decidiu que era
uma pena agravada porque o ácido não seria, do ponto de vista técnico, uma arma, mas
funcionalmente, poderia ser e, por isso, justificar-se-ia uma agravação. Este exemplo
Aula 8 (02/11/2020)

demonstra que o tribunal escolheu o argumento funcional, mas não é fácil saber se isto é
uma analogia ou uma interpretação extensiva. Podemos fazer raciocínios semelhantes
relativamente ao artigo 208.º do nosso Código Penal em relação aos veículos mas neste
caso, para aplicarmos às bicicletas ou até às trotinetes e cadeiras de roda (resta saber se é
monitorizado ou não). O problema que se coloca é o tertium comparationis – estaremos
a levantar uma regra hipotética de que a razão de ser desta norma é uma deslocação
autónoma e mais rápida de uma pessoa?

Como se forma a tertium comparationis? É em termos funcionais? Só podemos usar os


casos que o legislador escolheu? Ou temos uma perspetiva mais atualista e uma perspetiva
mais associada a objetos que permitem uma deslocação autónoma? Neste caso, temos
uma certa dificuldade em escolher o tertium comparationis por isso, o interprete não pode
fazer mais do que renunciar de um tertium comparationis – verificar se o que está em
causa é ter motor ou não, por exemplo.

A professora Maria Fernanda Palma não coloca o problema nos mesmos termos que a
discussão tradicional, mas coloca a questão se estamos perante uma interpretação
extensiva ou analogia, tal com vimos. A questão que agora a professora desenvolve é
relativa à interpretação extensiva. A interpretação está bastante associada a uma
inferência por dedução, mais concretamente a subsunção.
Aula 8 (02/11/2020)

A dedução é bastante fácil porque é uma premissa intermedia – uma afirmação que
pressupõe outras interferências que estão implícitas e não são explicitadas.

Na analogia o caso, não é uma regra geral (porque a regra está na dedução). Na analogia
parte-se dos elementos/ objetos que fazem parte de um determinado grupo. Neste exemplo
apresentado, há um tercio comparationes.
Aula 8 (02/11/2020)

A analogia é sempre algo frágil porque permite sempre o comportamento a contrario


sensu, neste caso, este exemplo (tal como outro exemplo) pode ser contestável e por isso,
não pode ser levado a serio pelo interprete.

Quanto à interpretação e a analogia:

Este exemplo foi feito através de um estudo que a professora fez em relação à legislação
do lobo ibérico. Foi utilizado o tertium comparationis, quer isto dizer que este é
Aula 8 (02/11/2020)

absolutamente necessário em qualquer raciocínio. O interprete, de uma forma não


violadora, pode realizar essa analogia.

A professora refere este exemplo no seu manual. Trata-se de um exemplo que aconteceu
no nosso sistema, tem a ver com as alterações verificadas no Código de Processo Penal
que não forma acompanhadas pelo Código Penal relativamente aos prazos processuais.
Como a reforma do processo penal foi posterior à do código penal criaram-se algumas
confusões no procedimento da responsabilidade criminal no decurso do tempo, quanto
aos critérios de determinação do tempo do prazo.

O Código Penal era de 1982 e referia-se a um momento – juízo de instrução preparatória.


Em 1987 é substituído este sistema pelo sistema de inquérito pelo MP, ora, o que teria
sentido era introduzir uma alteração legislativa no sentido de, por exemplo, referir-se
inquérito em vez de instrução criminatória. Neste caso, há um grande desfasamento. Os
tribunais pensaram que a instrução criminatória passasse a ser um inquérito, foi portanto
feita uma interpretação proibida.
Aula 8 (02/11/2020)
Aula 9 – 1.º Parte

Na última aula analisamos dois corolários do princípio da legalidade: (1) nullum crime se
sine lege escrita e (2) nullum crime sina lege estrita. Na aula de hoje, vamos analisar o nullum
crime sina lege praevia: proibição da retroatividade – uma marga emblemática do principio da
legalidade presente na CRP, na Convenção dos Direitos Humanos e que faz parte de quase todas
as constituições.
O grande fundamento da proibição da retroatividade quanto às normas penais positivas
(as incriminadoras e as que prevêm a agravação da responsabildiade e as medidas de segurança)
está prevista 29.º/1 e 3 da CRP e o próprio penal no artigo 1.º/3 é muito expressivo quando prevê
a proibição da analogia e no artigo 2.º da retroatividade. O fundamento é a segurança jurídica na
sua expressão democrática: a confiança nos cidadãos da imparcialidade do Estado através das
suas próprias leis.
Poderia parecer uma ideia redundante, mas não é tão redundante quanto isso porque,
embora tenhamos facilidade no que tange às normas incriminadoras, tal já não é assim quando
entramos no capítulo das “penas e das medidas de segurança”, aqui já enfrentamos algumas
dificuldades. Se realmente, a probição da retroatividade estiver relacionada com a preservação da
previsibildiade dos comportamentos proibidos e do modo como são sancionados (na perspetiva
que os cidadãos têm que saber previamente se se motivam pelas normas ou para se motivarem ou
não pelas normas), então poderíamos pensar que o fundamento da proibição da
retroatividade está associado ao princípio da culpa (liberdade e principio da culpa), e se assim
fosse, exclusivamente, não teríamos um fundamento claro e inequívoco, a não ser pela analogia,
para estender a proibição da retroatividade às medidas de segurança.
Como se devem recordar, as medidas de segurança distinguem-se das penas (são também
sanções criminais: a sanção é o meio de evitar a lesão de uma norma – mais do que um caráter
preventivo deve ter assente a racionalidade de assegurar o cumprimento das normas). Muitas
vezes fala-se da responsabildiade cívica em que é óbvio que certas medidas são tomadas sem
retomar a via de prevenir e assegurar o cumprimento de recomendações normativas – ai não
estamos perante normas jurídicas porque há “direito soft” em que a parte da coercibilidade,
caraterística do direito, não está inserida.
Nesse sentido, tanto as penas tanto as medidas de segurança são sanções. No caso das
medidas de segurança são sanções diferentes das penas porque as penas são um meio para
assegurar o cumprimento das normas que se fundamenta na realização da crime e na culpabilidade
do agente. Já quanto às medidas de segurança, que se destinam essencialmente aos inumptáveis,
têm sempre como fundamento a perigosamente, embora, sobretudo as que se referem aos
inumptaveis e que são privativas de liberdade, não deixam de ter, num sistema de estado de direito
democrático, como pressuposto o facto/omissão. Enquanto o seu fundamento é a perigosidade,
são um meio de assegurar as normas ou, pelo menos, os valores protegidos pelas normas. Elas
não tem como fundamento a culpa, embora sejam uma forma de levar ao cumprimento das normas
mas com o objetivo de modelação do comportamento dos infratores ou de defesa dos bens
jurídicos pelo que são um meio mais associado à prevenção geral positiva e especial, mas não no
sentido da motivação dos seus destinatários.
As medidas de segurança, em especial aquelas que se assemelham as penas e aplicam-se
aos inimputáveis, não se fundamentam na culpabilidade dos agentes e, por isso, poder-se-ia pensar
que elas não teriam de estar subordinadas ao principio da legalidade, em concreto, ao corolário
da retroatividade porque não faria sentido assegurar expectativas e previsibildidade dos
destinatários. No entanto, apesar desta ideia ter vincado no século XX, a CRP, ao contrário da
alemã, é absolutamente explícito que as medidas de segurança estão sujeitas ao mesmo regime
das penas (29.º/3 da CRP). Se a razão não é motivar o agente, então qual é o fundamento desta
subordinação ao princípio da legalidade? Analogia com as penas no sentido em que não teria
cabimento tratar os inumptáveis de uma forma diferente, dada a sua parença com as penas, com
os outros agentes destinatários das penas. A verdadeira comparação é estabelecida com a garantia
que existe entre ambas: garantia de imparcialidade do Estado, de sujeição do Estado e de
confiança da sociedade no sentido que o estado não cria um direito no qual não se vincula – não
pode tratar aqueles que são sujeitos a medidas de segurança, não podem ser sujeitos a uma medida
de segurança após a prática dos factos que revelam essa mesma perigosamente ou até mesmo na
fase de execução das penas.
Há na doutrina portuguesa, sobre as medidas de segurança, uma posição da Professora
Maria João Antunes (pág. 166 a 168) que defende uma interpretação do artigo 2.º em que as
medidas de segurança estão sujeitas à proibição de retroatividade e defende que o que está
submetido ao principio da legalidade é a proibição das medidas de seguranças que anteriormente
não estivessem previstas, mas a a articulação que a professora regente considera inconstitucional.
A solução que a Professora Maria João Antunes propõe é a seguinte:
Em primeiro lugar, reconhece, como não poderia deixar de reconhecer porque estás
literalmente previsto no CP e na CRP que as medidas de segurança estão sujeitas ao princípio da
retroatividade e têm que estar previstas (princípio da legalidade). A solução que MJA proprõe:
que está submetido ao princípio da legalidade e, portanto, sujeito ao princípio da retroatividade é
realmente a proibição das medidas de segurança. Portanto, o legislador pode aplicar medidas de
segurança que anteriormente não estivessem previstas. No entanto, a articulação das medidas de
segurança com os factos que são, não o seu fundamento mas o seu pressuposto, são a manifestação
da perigosidade em que assenta a articulação/compreensão não subjetiva por parte do tribunal que
perigosidade. O facto nas medidas de segurança é pressuposto, mas é pressuposto na medida em
que é um meio de revelação objetiva da perigosidade, não é a perigosidade mas sim o meio de
revelação objetiva da perigosidade.
A interpretação da Professora Regente (solução imposta pelo princípio da legalidade e
pela proibição da analogia no direito penal) é a de que o facto pressuposto medida de segurança
indicador da perigosidade, terá de ser, em conexão com a própria medida de segurança, anterior
à prática do mesmo por parte do agente.
Ao agente só poderá ser aplicada a medida de segurança que é prevista numa lei que
conecta com o facto revelador da perigosidade. Só realmente as normas que são anteriores aos
factos reveladores da perigosidade é que se podem aplicar sem violação do princípio da
retroatividade.
A ideia da Professora Maria João Antunes, e a partir de certa altura do Professor
Figueiredo Dias, é a que de tendo em conta que o fundamento das medidas de segurança é a
perigosidade, as normas podem ser alteradas e aplicadas imediatamente. Podem ser alteradas
posteriormente à prática dos factos que justificariam a aplicação de uma primeira lei (L1) - no
sentido agravante até -, precisamente até ao momento do julgalmento.
Portanto, no quadro equacionado por Maria João Antunes o que se passaé que é possível
que haja uma L1 que prevê as medidas de segurança e os critérios de determinação da
perigosidade( de uma forma menos gravosa e anterior a pratica desses mesmos factos) e uma L2
que passa a vigorar entre esse primeiro momento e momento do julgamento. É no momento do
julgamento que é averiguada a perigosidade do agente para que a medida de segurança seja
adequada ao problema de perigosidade revelada pelo agente, a L2 pode ser uma lei que
estabeleceu novo critérios da definição de perigosidade e que até definiu novos
factos/pressupostos que não estavam previstos antes do agente os ter praticado e que passaram a
ser e que aplicar-se-ão ao agente imediatamente (é esta a posição da Professora Maria João
Antunes). Portanto, não se exige que essas leis sejam prévias à prática dos factos/pressupostos
nem que os os critérios de perigosidade sejam prévios à prática dos factos que iniciam essa
perigosidade, mas que seja apenas considerados no um momento do julgamento.
A Professora Regente entende que a única limitação que existe a esta aplicação imediata
das novas leis mais graves sobre as medidas de segurança é elas terem que ser as leis vigentes no
momento do julgamento e não posteriormente no momento da execução das penas.
Já no caso alemão (analisado no acordão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos),
até se ia mais longe, porque se pode dizer que uma medida de segurança posterior à própria
execução de uma pena pelo agente, este já estava a cumprir uma pena pelo que se trata de alargar
a execução das penas. MFP diz que, neste caso alemão, é um caso ainda mais gravoso na medida
em que não é o princípio da aplicação imediata da medida de seguramça, mas sem nenhuma
limitação ao momento do julgamento. MFP diz que a lógica de Maria João Antunes, justifica que
seja eleito o momento do julgamento porque realmente o que está em causa é analisar a
perigosidade do agente na medida em que é manifestada pelo que a questão do julgamento é uma
questão que pega na sua pertinência e o que é fundamental é a sua adaptação da medida de
segurança à gravidade da perigosidade e à possibilidade ser uma solução paa a perigosidade do
agente.Isso tanto se pode dar no momento do julgamento como será cabimento que,durante a
execução da medida de segurança, a nova compreensão pelo julgador (a resposta à perigosidade
e a nova forma de avaliar o risco do agente) venha a justificar a aplicação imediata da pena
segurança.
A Professora Maria Fernanda Palma pensa que o critério da Professora Maria João
Antunes, que também é referido pelo Professor Figueiredo Dias, prova demais porque, na
realidade, se limitamos ou se seguimos o princípio da aplicação imediata das medidas de
segurança no momento em o facto ainda é pressuposto e o fundamento é a perigosidade, então
não há nenhuma razão para não se aplicar imediatamente a extensão/agravamento da medida de
segurança. Claro que essa possibilidade ainda mais chocaria com a letra da lei e seria
manifestamente uma analogia proibida como também é a solução proposta por MJA e FD (que
para MFP é uma solução violadora da CRP). Esta discussão está explanada na página 177 do
Manual e do FD.
Este era o primeiro aspecto que vos queria referir quanto ao âmbito da proibição da
retroatividade. Esta é um tema que levantar muitos problemas práticos como veremos nas
hipóteses práticas.
Em suma, há que fazer muito cuidadosamente uma articulação entre a proibição da
analogia (art 1.º/3 do CP + 29.º/1 e 3 da CRP) e 2.º/1 do CP. Em toda esta analise, há aqui um
primeiro pressuposto, que eu ainda não referi, é que estamos a falar de retroativdade e proibição
de retroatividade relativo a um momento – alguma coisa é retroativa ou não, ou é imediata ou é
não retroativa em função da fixação de um momento. No que diz respeito aos crimes e as penas,
tal como as medidas de segurana e os seus pressupostos, temos que ter um critério de
determinação no momento da pratica do facto (art. 3.º do CP) - com o fundamento da
vinculação do legislador ao direito que cria e o principio da culpa.
No caso sos crimes omissivos, o momento em que se deveria praticar a ação que evitaria
o resultado típico. Portanto, é o momento em que se pratica o facto/ação que levaria o agente a se
motivar pela norma e, por isso, se a lei posterior não tem essas condições (princípio da culpa
ficaria em causa). O momento que determina a retroatividade não é o momento que determina a
aplicação da pena nem é o momento da aplicação da medida de segurança,mas sim o momento
da prática do facto, ou no caso, dos crimes omissivos, no momento em que o agente deveria
ter praticado a ação.
Há situações que são mais problemáticas (p. 164 do manual) como no dos crimes de
omissão pura em que o legislador prevê independentemente do resultado uma omissão ou os
crimes de omissão impura (crimes de resultado como todos aqueles a que se refere o artigo 10.º
do CP) – a razão de ser desta solução é a tal garantia dos destinatários das normas, mas
também a segurança jurídica no que diz respeito às penas e às medidas de segurança.
Alguns problemas se colocam quanto ao tempus deliti naqueles crimes que a ação não se
esgota instantaneamente em que a ação perdura no tempo. Esses crimes podem ser, por exemplo,
os crimes permantentes. Estes distinguem-se dos crimes de efeitos permanentes (v.g furto – o
agente subtrai e a consumação dá-se instantaneamente, mas o efeito da privação perdura no tempo
pelo que embora os efeitos sejam permanentes o crime não é permanente). Assim, num crime
permanente, se houvesse depois da subtração, um agravamento do furto essa nova lei não se
poderia aplicar aos furtos aplicados anteriormente.
Quanto aos crimes permanentes, a ação perdura no tempo como o rapto de sequestro em
a conservação do crime dá-se logo quando a liberdade do agente é subtraída, iniciando-se aí a
consumação e para feitos de punição, nem que seja por um segundo, a partir do momento que a
vítima é privada da sua liberdade o agente cometeu consumadamente um crime. No entanto, na
perspetiva que nos interessa da aplicação da lei penal, dir-se-á que este crime que se consuma
logo no momento que se lesou o bem jurídico, este crime mantém a sua consumação (que perdura
no tempo daí ser permanente) até que se libertada a vitima. Nos casos de sequestro, enquanto a
vítima está sob o domínio do agressor/raptor , a vítima está a ser alvo da privação do seu bem
jurídico (liberdade individual) e a consumação do crime que se iniciou no primeiro momento do
rapto perdura ate o fim deste. Nestes casos, se existir alguma alteração da lei penal, no sentido de
agravação do rapto, enquanto a vítima estiver sob domínio do agente, o crime está a consumar-se
porque a ação está a realizar-se e, portanto, não há nenhuma retroatividade se se aplicar a nova
lei mais grave porque é uma lei que entrou em vigor antes de se ter cessado a privação do bem
jurídico. Esta é uma solução que não merece dúvidas porque na perspetiva da culpa ou na
perspetiva da previsibildiade do agente se quisermos invocar esse tópico, o agente tem a
posiblidade prévia de se orientar /motivar pela nova norma que agravou a sua responsabilidade.
É verdade que antes iniciou a consumação do crime quando era menos grave, se libertou a vitrina
até a essa altura, será punido apenas pela lei antiga, mas se não libertou a vítima e só o fez sob a
nova lei, então deve ser deve ser punido por esta.
Um caso semelhante a este (que não se escreveu no manual) é o caso dos crimes
continuados previsto no artigo 10.º/2 e 79.º do CP. Esta é uma figura tratada essencialmente na
doutrina italiana e na jurisprudência.
Existem determinadas situações que o agente praticada sucessivamente vários factos da
mesma espécie (vários furtos por exemplo). O crime continuado foi concebido como uma figura
construída para razões processuais de modo a evitar uma multiplicação da prova.
Há um exemplo clássico em que o agente descobre uma porta aberta para um
supermercado e vai lá todas as noites e realiza sucessivamente várias furtos– são factos autónomos
uns dos outros porque há, de certa forma, uma alteração na decisão criminosa (dias diferentes
com furtos de objetos diferentes). Os factos são repetidos várias vezes pelo que que a prova de
cada crime considerado individualmente seria difícil. Daí que a ideia da jurisprudência foi fazer
uma espécie de modificação da ideia de continuação criminosa e toda esta repetição dever-se-á
tratar como uma único facto.
A ideia primitiva do crime continuado, invés de se ter provado um a um dos factos, pune-
se a continuidade de infrações como se fosse uma única, atribuindo-lhe a pena mais grave da
continuação criminosa. Temos um exemplo da escola alemães em as pessoas deixam os sapatos
à porta e alguém levava os sapatos todos – vários furtos, semelhança na mesma natureza, há um
dom continuado e facilitação porque há uma única oportunidade de manter a prática criminosa.
Quando existe uma certa semelhança do caráter homogéneo (porque existe uma parecença
entre todos e tem uma única decisão que e renovada pela facilidade que o crime se pratica), o
agente é punido pela pena mais grave da continuação, acaba por ter uma pena menos grave do
que seria a da soma de todos aqueles crimes individualmente considerados – pune-se aquela
continuidade de infrações como se fosse uma única, atribuindo-lhe a pena mais grave da atuação
criminosa.
Portanto, nestes casos a ideia é, porque houve uma facilitação e o agente não teve uma
necessidade de renovar a sua energia criminosa porque houve uma única situação propícia ao
crime. O crime continuado foi sempre pensado, por influência alemã, terá de existir sempre uma
menor exigibilidade da renovação da vontade criminosa (é o caso do armazém porque há
facilidade da execução do facto o que torna difícil o agente resistir à prática do facto e, portanto,
ele próprio fraciona a atividade criminosa). Conclui-se, portanto, que o agente tem uma opção
facilitadora externa que torna o crime mais tentar e a sua repitação sem uma renovação intensa
da sua vontade criminosa e num contexto favorável.
Nestes casos de crime continuado, como se diz na lei, a pena que se aplica é a da mais
grave da continuação. Se, por exemplo, os furtos tiverem valores diferentes – v.g o furto que tenha
o valor mais elevado. A questão par ao tempus deliti é que durante o tempo há uma agravação da
responsabilidade até uma alteração da norma incriminadora que qualifique ou agrave. Portanto, a
questão que se coloca é saber se podemos aplicar a nova, já que há uma unificação do facto, se
podemos aplicar a norma posterior que abrange o crime mais grave.
A questão que se coloca é se podemos aplicar a lei nova já que há unificação do facto – a
lei posterior que abrange o crime mais grave – norma que se aplica não só ao crime mais grave
como a todos os crimes da continuação, mas é o crime mais grave que determina a pena.
Segundo doutrina italiana, em principio, não há grandes razões para nos opormos a esta solução
porque se realmente há uma continuação criminosa e é o crime mais grave é aquele que determina
a pena aplicada a toda a continuação e se a norma que agrava a responsabildiade é anterior ao
crime mais grave, então podemos regular todos os factos da continuação pela norma que
abrange o crime mais grave – esta solução é aceitável para MFP porque se assim não fosse
teríamos que desfazer a continuação e, provavelmente, aplicar só ao último crime mais
grave a nova norma e punir todos os outros como se não houvesse continuação criminosa o
que levaria a punir, até, mais gravemente o agente. Para além disso, é uma solução
contraproducente porque a prova processual também estaria colocada em causa. MFP defende
nas lições que o levantamento da continuação ficaria no caso de uma LN incriminadora que não
se pudesse aplicar retroativamente nos casos em que, por exemplo, o crime mais grave fosse
anterior. O crime que marcaria a punibilidade de todos os outros é anterior à nova lei que agrava
esse crime e esse furto em geral e o furto mais grave é anterior a essa lei, logo, neste caso justificar-
se-ia o levantamento da continuação. A aplicação da LA menos grave justificar-se-ia porque o
crime que determina a pena é um crime anterior à nova lei – mas só neste caso. Já o levantamento
da continuação só se justificaria no caso de uma lei nova incriminadora que não se pudesse aplicar
retroativamente. Fora destes casos, o facto de os crimes anteriores não estarem abarcados pela lei
nova, mas o crime que determina à continuação estar, já se justifica a continuação sem violação
a retroatividade. Este tema esta muito explícito na página 166 do Manual.
Muito brevemente vamos enunciar a questão da aplicação retroativa da lei penal mais
favorável – veremos, melhor, na 2º parte da aula.
É o inverso da proibição da retroatividade, pois se o princípio geral é a proibição da
retroatividade em matéria penal, o que é certo é que o artigo 29.º/4 da CRP nos diz é que, quando
se trata de uma lei penal posterior mais favorável ela aplica-se retroativa – os fundamentos que
podemos enunciar são (1) princípio da igualdade, (2) necessidade da pena, (3) segurança jurídica.
Este princípio não está enunciado de forma clara, mas já começa a ser introduzido e é
pacífico em todos os estados de direito democrático. Quando é proibida a retroativa, esta passa a
ser imposta quando há uma Lei penal de conteúdo mais favorável que se formula posteriormente
à prática do facto tanto antes do julgamento como durante o julgamento e após o julgamento (art.
29/4) – pelo que é um princípio constitucional. O seu fundamento está associado ao bloco de
criminalidade junto à teia de regras associadas ao princípio da legalidade, mas o grande
fundamento é a igualdade e a necessidade da pena. Se alguém pratica um facto, que é um crime,
e entretanto surge uma lei que descriminaliza (2/2 CP) não teria qualquer cabimento que a pessoa
viesse a ser punida por um facto que, naquele momento posteiror à lei, já não é crime. Haveria
uma desigualdade porque pelo mesmo facto, vamos supor, alguém praticou o aborto e que estava
a ser julgado ou a cumprir uma pena, entretanto há uma descriminalização e, portanto, as pessoas
que praticaram o facto após a descriminalização não são punidas. Podemos pensar, também, no
aborto ético, nas situações em que a pessoa aborta porque foi violada que é realmente um dos
casos em que há descriminalização do aborto e que não existiu sempre na formulação originária
do CP de 1982. Portanto, numa situação destas, a pessoa que abortou foi violada e foi constituída
arguida/ou já está a cumprir a pena e, entretanto, surge a descriminalização – então aí temos que
arquivar o processo ou permitir que o agente seja libertado da prisão por uma questão de igualdade
e de necessidade da pena porque, com a lei nova, conclui-se que para aqueles factos não se
justifica, do ponto de vista, da necessidade da pena e da intervenção penal, uma grave violação
da igualdade que, pelo mesmo facto, alguns agentes fossem condenados e outros, só porque
praticaram o facto com a LN, não merecessem qualquer punição.
Na segunda parte da aula vamos continuar com a análise do artigo 2.º/4 do CP e de
algumas questões associadas a esse tema. Além disso, vamos falar da questão do processo penal,
embora apenas com uma referencia breve e remeter, fundamentalmente, para as lições. E, claro,
fazer uma referência às temporárias e de emergência.
Aula 9 – 09.11.2020
Henrique Mendes

Segunda parte

Continuemos o estudo da aplicação da lei no tempo. Como tinhamos visto na primeira


parte da aula, é o artigo 1º do CP que mais explicitamente proíbe a retroatividade da lei penal,
logo no seu nº 1 quando diz que ‘’só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado
passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática’’. Depois, o 2º, nº 1 concretiza,
relativamente às penas quando diz que ‘’as penas e as medidas de segurança são determinadas
pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que
dependem’’. Aqui, a expressão do CP permite, de alguma maneira literalmente, embora do
ponto de vista dos elementos de interpretação da lei e da Constituição, a Professora refere que
não pode de forma alguma permitir a solução de Maria João Antunes relativamente às medidas
de segurança. Quanto à expressão ‘’lei vigente no momento da prática do facto’’ e utilizando o
argumento de Maria João Antunes, diriamos que após a prática do facto, as penas poderiam ser
alteradas e que penas preventivas e baseadas na prevenção especial e na perigosidade fossem
determinadas pela lei vigente no momento do julgamento. É muito discutível que a prática do
facto se possa considerar da relação da perigosidade do agente, mesmo que em função de um
facto passado, mas avaliada pelos critérios de perigosidade no momento de julgamento, é essa
a questão que opõe MFP a Maria João Antunes.

Na última aula falámos de várias questões sobre a aplicação da lei no tempo, tendo
chegado a mencionar o princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, e é
relativamente a esse princípio que nos vamos debruçar nesta aula. O artigo 2º, nº2 e nº4
concretizam o princípio constituciona, o nº2 quando realmente refere que uma nova lei que
elimine o comportamento incriminado do conjunto ou do número de infrações, ainda que
transitado em julgado, faz cessar a execução da pena e os seus efeitos penais, mesmo que o
agente esteja já a cumprir a pena. Havia uma discussão antes da revisão do CP de 2007, uma
discussão que já tinha sido ultrapassada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, relativa
ao nº 4, ao qual foi acrescentada toda esta parte posterior ao ‘’ponto e vírgula’’. Antes da revisão
de 2007 e apesar dos Acórdãos do tribunal constitucional, o artigo terminava onde hoje se
encontra o ponto e vírgula, isto levava a que houvesse uma posição jurisprudencial e também
doutrinal no sentido de que, nestes casos, o transito em julgado seria o limite da aplicação da
lei penal mais favorável. Em 2007 acrescenta-se toda esta parte posterior ao ponto e vírgula.
Isto acabou com toda a discussão que havia com o limite do caso julgado, sendo uma discussão
que alguns autores ultrapassavam (incluindo MFP), argumentando que a constituição ao referir-
se ao arguido acabaria por se estender ao condenado, havendo uma analogia constitucional em
favor do réu ou do agente e já se dizia que o nº4, sem esta última parte, era inconstitucional. O

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Tribunal Constitucional reconheceu em alguns acórdãos e em 2007 foi introduzida esta parte
para não deixar dúvidas que o princípio da prevalência do caso julgado, enquanto manifestação
de alguma estabilidade jurídica, não ultrapassava a grande importância do princípio, assente na
igualdade e necessidade da pena, que é o da aplicação da lei retroativa mais favorável ao agente
ou arguido. Quanto a este nº4, há também uma questão (referida nas lições) que se prende com
a questão de saber se, em caso algum, esta cessação carece de intervenção do tribunal (ao
contrário do nº2): de facto com uma nova lei, que limitou a duração da pena, mas já tiver
cessado o período da pena, não se terá que instaurar nenhum processo ou requerer intervenção
do tribunal. No entanto, pode não ser assim, podem ter ocorridos duas coisas:

i) que não tenha sido ainda exaurido o período de cumprimento da pena

ii) que seja difícil ou não seja de imediata compreensão, por força dos regimes da lei que
justificava cumprimento da pena e da lei nova, pode ser um regime que detém variações contra
a pena ou contra as condições do cumprimento da pena e que tem que ser averiguada qual a lei
mais favorável, ora nesses casos o artigo 371º-A do Código do Processo Penal prevê, a abertura
da audiência para aplicação da retroativa da lei penal mais favorável, dizendo que ‘’se após
transito em julgado da condenação, mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em
vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a abertura da audiência para que lhe
seja aplicado um novo regime’’. Este pode, na realidade, quando há realmente manifestos
indícios de que o regime é mais favorável, é uma incumbência do tribunal de execução das penas
(de acordo com MFP), mas de facto, está previsto como regime facultativo para os casos em que
a nova lei não leva uma imediata cessação da execução da pena e dos seus efeitos, quando
realmente tenham que determinar por avaliação judicial (tribunal de execução das penas) qual
é o regime mais favorável, em concreto, ao condenado, prevê-se então esta faculdade que, em
certas circunstâncias pode ser mais do que uma faculdade, poderá ser uma obrigação do tribunal
por força do 29º, nº4 da CRP (defende MFP).

Outra questão associada a este artigo 2º relaciona-se com a conversão de uma infração
que é crime, num certo momento, numa contraordenação1. Havia uma discussão inspirada por
um certo conceptualismo germânico a partir do século XX que é a questão de saber se haveria
uma diferença qualitativa entre o direito penal e o direito de mera ordenação social, de modo
que, não sendo de todo, este último, direito penal, então haveria uma descriminalização quando

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Um tema que a Professora remeteu para as lições (diferenciação do Direito Penal com outros ramos
etc).

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uma infração deixa de ser crime e passa a ser meramente contraordenação. Nesse caso, houve
quem defendesse, na doutrina portuguesa, que essa conversão dos crimes em
contraordenações correspondesse a uma verdadeira descriminalização, aplicando-se imediata
e exclusivamente o nº2 do artigo 2º, o que levaria a que houvesse uma espécie de amnistia ope
leges de todas as infrações. Esses casos, por exemplo no caso da condução sob efeito do álcool,
em vez de ser 1,2g/l o limite (a partir do qual há crime), esse aumente, o que não é normal,
passando o limite a ser de 1,2g/l a ser uma contraordenação. Essa lógica seria amnistiada, a
descriminalização corresponderia a um vazio, portanto nenhuma intervenção possível do
legislador até porque o direito de mera ordenação social, ele próprio proíbe a retroatividade,
pelo que seria uma aplicação retroativa de uma contraordenação, proíbida segundo o regime
geral das contraordenações.

Solução de Maria Fernanda Palma: A melhor solução, defendida por MFP (inclusive no
Tribunal Constitucional) e também por Figueiredo Dias ou Rui Pereira, é que quando existe uma
conversão de infrações criminais em contraordenação não deixa de existir uma sucessão de leis
penais (num sentido amplo), porque embora as contraordenações sejam de uma natureza
qualitativamente diferente, correspondem ainda direito sancionatório público, são uma
degradação efetiva da natureza penal do comportamento, que conduzem a um processo
simplificado e uma certa transposição para o plano administrativo, embora as
contraordenações, no caso português, sejam passíveis de recurso para os tribunais judiciais e
portanto correspondem a uma total cobertura pelos sistemas dos tribunais administrativos, os
quais não são tribunais de recurso, pelo que não deixa de existir uma certa judicialização
segundo os tribunais comuns. O facto de, em primeira linha, serem consideradas direito
administrativo, não significa que elas não tenham natureza coadjuvante da política criminal e
que estes processos de discriminalização na perspetiva da conversão em contraordenações, não
correspondam a uma sucessão de leis com uma função penal, embora contraordenacionais. A
propósito do nº 4 (1ª parte), poder-se-ia dizer que não temos leis penais mas sim
contraordenacionais e portanto não é literalmente possível sem violar a probição da analogia, a
aplicação das novas contraordenações. A Professora entende que esta interpretação das novas
leis, ainda como disposições penais, não corresponde a uma analogia proíbida na medida em
que elas, as novas contraordenações, fazem parte do sistema penal e sobretudo no caso do
direito português em que realmente não há uma passagem absoluta para o furo administrativo
devido ao recurso aos tribunais comuns das contraordenações e das respetivas coimas e, como
há esta relação do direito penal de relação social no sistema da política penal e criminal global,
não há uma analogia proíbida, uma interpretação que vá para além do pensamento do

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legislador, no sentido de manifestar uma opção nova que caberia ao julgador e isto, pela razão
de que não ha outra solução possível ou credível do ponto de vista racional ou do ponto de vista
das alternativas para o próprio legislador. Se este tivesse que fixar o regime transitório, terá que
o fazer e a questão é que se se entende que o nº 4 é inconstitucional quando abrange, nas
disposições penais, também as contraordenacionais, mesmo que numa lei transitória se venha
dizer que se deve aplicar, àquelas infrações que eram crime, o regime das contraordenações, o
problema continuaria sem ser solúvel porque também seria inconstitucional, a norma
transitória. Nestes termos não há opções, o legislador pode nada dizer ou pode criar regime
deste tipo ou poderá fazer uma amnistia mas quanto a isso, terá que o declarar, mas realmente
a ideia de uma amnistia implícita é profundamente incoerente do ponto de vista do
funcionamento do sistema, não parece ser uma opção que o legislador possa ter em mente, e
ele não nada a ver com a segurança porque o que realmente está em causa nestas situações
(apicar coimas a factos que eram anteriomente crimes e agora passam a ser
contraordenações) é uma violação da segurança e da previsibilidade. É verdade que a lei das
contraordenações também proíbe a retroatividade sendo discutível se a probição da
retroatividade, neste âmbito, está mesmo inserida no princípio da legalidade da CRP. Refere a
Professora que não há um patamar constitucional que tenha que ser respeitado, embora haja
um patamar legal (regime geral das contraordenações), mas havendo uma lei penal (2º, nº4),
ela deve ser articulada com este regime geral das contraordenações no sentido de se entender
que aqui não há violação da proibição da retroatividade das contraordenações porque há uma
sucessão de disposições penais entre as normas incriminadoras e respetivas penas e as
contraordenacionais e respetivas coimas. É uma matéria com alguma discussão pelo que o
próprio CP deveria ser mais explícito. De qualquer modo, o fundamento da proibição da
retroatividade é a previsibilidade e segurança, ora se alguém pratica uma conduta que é crime,
esperando ser punido com uma pena, vendo depois a ser punido com uma contraordenação
que será remetida para o processo contraordenacional e o agente sofrerá aplicação da
contraordenação pelas autoridades administrativas, não há nenhum dos fundamentos
constitucionais da permissão da retroatividade, nem sequer um dos fundamentos da proibição
da retroatividade que vigora na lei geral das contraordenações.

Não se pode deixar de fazer referência a uma norma muito interessante e adequada ao
momento que estamos a viver que é o artigo 2º, nº 3 do CP – Leis temporárias ou de
emergência. Esta doutrina é muito antiga e muito vincada na doutrina italiana antiga e
corresponde à ideia de que são leis excecionais que vigoram em caso de catástrofe, cataclismo,
emergência (nesta situação de pandemia poder-se-ia ter tido leis penais de emergência,

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podemos dizer que tivemos crime de desobediência mas este vigorou no âmbito de um Decreto
do Governo, o qual padece de um problema de reserva. Estas leis de emergência são leis que se
referem a situações especiais, que durante um certo período, justificam um regime específico.
Também há outras leis que se comparam as estas, que são as temporárias, em que o legislador,
propositadamente quer, para um determinado tempo, estabelecer um regime que não irá ter
continuidade (a priori já se saberá que não tem), que irá caducar. Estas leis, quer as temporárias,
quer as de emergência caducam quando a circunstância desapareça. A questão que se coloca é
se os agentes podem vir a ser punidos se forem julgados posteriomente à caducidade da lei:
quando a lei caducou aplica-se o regime que vigora nessa altura, que é mais favorável,
comportamentos que eram crimes deixaram de ser, então o problema que se coloca seria o de
saber (se não tivessemos o artigo 2º, nº3), se teríamos de aplicar o 2º, n2 ou nº4 conforme as
situações. O nº3 o que nos vem dizer é que se as leis forem de emergência ou temporárias, não
vigora, para os factos realizados durante esse período, o regime do 2º/2 ou 2º/4, há uma ultra-
atividade da lei de emergência, na medida em não se justifica que o fundamento da aplicação
retroativa da lei penal mais favorável se aplique nestes casos e a Professora entende que se há
uma situação de emergência com uma valorização excecional da importância de certos bens
jurídicos ou uma necessidade excecional ou especial de proteger determinados bens e de
agravar a responsabilidade, não há um desaparecimento dessas perspetivas valorativas, do
ponto de vista da necessidade da pena, no período anterior. Neste período, deixou de ser
necessário de punir aqueles comportamentes, mas isso não significa que tenha havido alteração
das perspetivas de valor ou da avaliação da necessidade da incriminação ou punição mais
agravada no período anterior, significa sim que a situação desapareceu, mas o legislador não se
compromete a não voltar a reeditar aqueles critérios, aquelas leis, se as situações se vierem a
repetir e é exatamente em função dessa persistência da necessidade que não há uma violação
da igualdade se os agentes que praticaram os factos durante a excecionalidade da emergência,
vierem a ser julgados posteriormente o que significa que, acabada a pandemia, vamos supor
que há crimes novos, e só nessa altura os tribunais vão julgar essas infrações, o facto de as leis
haverem caducado não significa que não haja qualquer violação da igualdade em punir esses
agentes ou que, na perspetiva da necessidade da pena não seja totalmente justificável a punição
desses agentes.

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Terceira parte

Iremos abordar agora uma questão, próxima da primeira (das situações de conversão
dos crimes em contraordenações) , é uma situação, por sucessão de leis no tempo, em que há
uma conversão do crime de perigo abstrato em crime de perigo concreto, ou vice-versa.

Efetivamente, o que se passa nestes situações é que existe uma lei 1, por exemplo a do
crime de condução sob efeito do álcool, presente no 292º do CP. Este é um crime de perigo
abstrato na medida em que o comportamento é definido sem nenhuma correspondência entre
o próprio comportamento e a colocação em perigo efetivo de pessoas ou bens, perigo surge
como uma motivação da incriminação, não se requer, no processo penal, a prova de um crime
efetivo.

Exemplo: há uma primeira lei com um crime abstrato e o agente pratica o crime nesta
fase, conduz com uma taxa de álcool que indicie a prática de crimes, entretanto vai-se alterar a
configuração da lei e o crime passar a ser concreto em que se exige, para que a pena seja
cominada, a condução sob o efeito de álcool mas com o crime efetivo para bens jurídicos:

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Houve então um movimento de um crime abstrato para um crime concreto, pelo que se
pode inferir que há uma descriminalização parcial porque o crime passou a crime concreto, pelo
que para se preencher a norma incriminadora exige-se mais, é necessário que haja crime efetivo
para alguém. A Professora entende que se aplica retroativamente a lei mais favorável se as
penas forem mais favoráveis aos crimes de perigo concreto que tenham sido cometidos – o
agente conduziu sob efeito do álcool, criou um perigo efetivo para outras pessoas e acontece
que a lei posterior (que prevê crime concreto) estreitou a incriminação é, ainda assim, mais
favorável. Numa situação destas podemos dizer que o agente continua a ser punido porque o
seu comportamento, que era abrangido pelo crime abstrato, continua a ser abrangido pelo
crime concreto, mas como a lei nova é a mais favorável é esta que se aplica por ser mais
favorável. Diferentemente se a lei antiga for mais favorável é ela a aplicável. Porém, se houve
descrmininalização parcial como vamos aplicar uma lei que previa um crime de perigo abstrato?
O que é certo é que entre o crime abstrato e concreto, para comportamentos em que foi criado
um crime para o bem jurídico, há uma continuidade do comportamento abrangido, há uma
parte da norma que se manteve, porque os crimes de perigo abstrato dispensam o perigo
concreto mas não deixam de abranger, por maioria de razão, as situações que criam perigo
efetivo para os bens jurídicos, isto é, os crimes de perigo concreto estão abrangidos crimes de
perigo abstrato, pelo que, nesses termos, pode aplicar-se a lei antiga mais favorável na medida
em que já incriminava os comportamentos de crime concreto e se tenha feito prova que foram
colocados em perigo bens jurídicos.

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A questão inversa é a conversão de um crime de perigo concreto em abstrato. Iriamos


equiparar o 292º com o 291º do CP. A lei 1 é um crime concreto, não corresponde exatamente
ao artigo 292º mas apresenta uma estrutura semelhante ao 291º, a condução sob o efeito do
álcool com efeitos efetivos (perigo) sobre bens jurídicos e a Lei 2 vai amplicar a incriminação
abrangendo agora a condução sob o efeito do álcool desprezando os efeitos efetivos sobre bens
jurídicos. Há um alargamento da incriminação ou antecipação da tutela penal.

Antes, havia um crime de perigo concreto, esses comportamentos passam a ser


abrangidos pelo perigo abstrato, mas não há discriminalização. São admitidas duas soluções, A
e B:

A – são condutas que correspondem à antecipação da incriminação, a tal conduta de


condução com taxa de 1,2g/l, independentemente do efeito perigo e, essas novas condutas, que

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já se tinham verificado, não podem a vir a ser incriminadas para o passado, visto que nesse
período importavam apenas as condutas de perigo concreto, pelo que só podem ser
incriminadas para o futuro.

B – as condutas de crime concreto continuam a ser abrangidas pelo novo crime de perigo
abstrato, já eram abrangidas pela lei antiga e continuam a ser. Aqui, o problema que se coloca
sempre é qual a lei mais favorável e essa é a lei que se terá que aplicar no tempo (regra geral a
lei antiga é menos grave que a nova, se for idêntica aplica-se igualmente a lei antiga). Se não
existir crime de perigo concreto e o perigo abstrato for mais grave, não se pode aplicar
retroativamente ; se for menos grave, então é aplicado como lei penal mais favorável.

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AULA 10 – DIREITO PENAL
PRIMEIRA PARTE
Aplicação da Lei Penal no Tempo
Questão da lei penal inconstitucional

Uma lei penal pode ser declarada inconstitucional, e essa lei penal até pode ser uma lei descriminalizadora, ou uma lei que é mais
favorável ao arguido e sucede a uma menos favorável. Neste âmbito surgem várias questões:

1. Saber se o princípio da retroatividade a lei penal com conteúdo mais favorável ao arguido se aplica nos termos do artigo 29º
CRP e nos termos do artigo 2º/2 ou 4 CP
Há duas respostas fundamentais:
Primeira perspetiva (RUI PEREIRA): Considera que não há uma verdadeira sucessão entre uma lei anterior constitucional e
uma lei posterior que, mesmo que mais favorável, mesmo que descriminalizadora, é inconstitucional. Sendo inconstitucional
– art. 282º CRP – a conclusão a retirar é que, tendo havido declaração de inconstitucionalidade, e, similarmente de ilegalidade
com força obrigatória geral, estas reproduzirão efeitos desde a entrada em vigor desta norma inconstitucional e ilegal e
determina a repristinação das normas que esta haja revogado. A lei posterior inconstitucional deixa de produzir efeitos desde
a sua entrada em vigor – a CRP prevê que entre em vigor a norma revogada, de modo a que não haja um vazio legislativo.
O nº3 do artigo 282º CRP tem o cuidado de indicar que ficam ressalvados os casos julgados, quando a norma respeitar a
matéria penal, (…), e for conteúdo menos favorável ao arguido.
A regra geral é que a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos desde a entrada em vigor da norma, no entanto, não
perturbando o caso julgado – se for de conteúdo menos favorável abre-se o caso julgado porque o princípio da aplicação da
lei mais favorável prevalece (articulação do 282º/1 e 3). A validade constitucional das normas é fundamental e a leis
inconstitucionais não têm validade e os seus efeitos devem ser anulados – tirando a questão do caso julgado, por uma questão
de segurança jurídica e não reabertura de situações já resolvidas.
Este limite todavia, num certo campo da matéria de penal, não prevalece, e será nos casos em que a norma declarada
inconstitucional for de conteúdo menos favorável – tem todo o sentido repristinar por razões de igualdade e necessidade da
pena, e até pela prevalência da lei de conteúdo mais favorável – reabre-se o caso julgado para aplicar a lei de conteúdo mais
favorável.
Esta perspetiva invoca a não prevalência do 29/4 nestas situações.
O problema não é para quando há caso julgado, mas sim quando não há. Esta perspetiva sustenta que não há uma sucessão
de leis, porque a lei mais favorável é inconstitucional logo n produz efeitos. Esta posição é um pouco rígida (FERNANDA
PALMA), porque podem ter sido criadas expectativas nos agentes quando praticaram o facto ao abrigo da lei mais favorável
antes de ser declarada inconstitucional, e a afetação das suas expectativas cria um problema de segurança jurídica.
O Prof Rui Pereira, com esta perspetiva, considerando as expectativas dos destinatários, vem permitir uma solução de erro
sobre o ilícito – art. 17º CP – que poderá afastar a culpa dos agentes.
FP faz crítica a esta posição – haverá sempre casos em que não é possível – do ponto de vista do caso concreto – sustentar
uma espécie de investimento da confiança ou não previsibilidade dos agentes, a não ser que se entendesse que havia sempre
erro – esta solução duvidosamente pode ser universal.
Segunda perspetiva: considera-se que o 29/4 não faz uma distinção entre leis validas e invalidas, é um princípio q tem a ver
com a igualdade e necessidade da pena, e portanto radica numa logica substancial q pode prevalecer sobre a própria validade
das leis, sobretudo quando os factos são praticados antes da declaração de inconstitucionalidade e que numa constituição há
sempre uma espécie de tenção entre princípios em que por vezes, há normas de primeira grandeza ou q tem pressupostos
mais fundantes que devem prevalecer. Nestas situações a posição e que mesmo a leis inconstitucionais de conteúdo mais
favorável ao abrigo do 29 4 deveriam prevalecer. FP: solução mais adequada nem é somente invocar o 29/4 (ou fazer o
“jogo” de uma interpretação do contexto do 29º/4 e da ratio legis e dos elementos diversos de interpretação do 29º/4 –
embora seja importante – a ratio legis está no princípio da igualdade, esta que é um argumento que se fragiliza porque a lei –
só no sentido de que os casos julgados estão protegidos portanto haveria uma certa desigualdade em relação ao caso julgado –
tornando-se um argumento não decisivo); (ainda FP) o que é decisivo é a perspetiva de uma vinculação do Estado ao Direito
que cria (?) – aquilo que é invocado como o princípio da objetividade (no fundo como uma emanação do art. 2º CRP do
princípio do Estado de Direito). Nestas situações, podemos sempre invocar o argumento da analogia ou da igualdade nas
situações em que há preservação do caso julgado – mas dizemos que aqui não há caso julgado, e então aí apenas o que pode
ainda sustentar a analogia é o principio da confiança, que vai mais longe e tem uma generalidade mais abrangente do que a
mera invocação do art. 17º CRP. Nas lições, FP cita a evolução do pensamento do JM – nota 257. O pensamento de JM
começou por estar mais perto da posição que fazia prevalecer o 29/4; depois do acórdão do TC, que veio considerar a
primeira tese e não a segunda, mas com uma certa nuance – esse acórdão é um acórdão em que o TC, perante uma situação
de lei penal de conteúdo mais favorável, veio considerar que efetivamente não se tratava da aplicação do 29/4, admitindo a
repristinação da lei anterior menos favorável, mas veio punir os agentes dentro dos limites da nova lei. JM também inclinou-
se mais para essa posição, mas numa das ultimas edições do seu manual, veio sustentar uma posição criticada pela regente:
diferenciação entre dois tipos de casos – os casos em que a lei posterior mais favorável é descriminalizadora, e que por o ser
entende que se deve aplicar porque deixou de ser incriminado o comportamento – não se poderá aplicar a lei inconstitucional,
mas também não se poderá aplicar a lei antiga – há um impasse – porque a declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral implicaria a repristinação da lei antiga – ou seja, dar-se-ia retroatividade incriminadora pois não estava em
vigor à data. A outra situação: nestes casos, JM, pelo 29º/1 não concede que se venha a repristinar a lei menos favorável, na
medida em que isso iria dar uma eficácia retroativa incriminadora à declaração de inconstitucionalidade. Na segunda situação
– há uma sucessão de leis em que a lei posterior mais favorável é inconstitucional mas n é descriminalizadora, é apenas de
atenuação da responsabilidade – a lei posterior é de conteúdo mais favorável (por exemplo, quanto às penas) – repristinar-
se-ia a lei anterior dentro dos limites da lei inconstitucional (solução do TC) – esta lei inconstitucional não seria aplicada
positivamente (no fundo não é em nenhuma destas situações sugeridas pelo JM) mas seria limite negativo à repristinação da
lei antiga.
FP critica: admite-se, desde logo, que a repristinação da lei incriminadora menos favorável gere retroatividade, no
caso de inconstitucionalidade da lei descriminalizadora – há uma retroatividade que se entende que não pode vigorar pelo
29/1, mas depois não se mantém o mesmo juízo quando a lei atenuante se vá aplicar, embora dentro dos limites da lei
anterior – no fundo admitindo uma certa retroatividade em termos substanciais – aqui se no primeiro caso (a ideia de JM é
que tem que prevalecer a descriminalização, mesmo ela sendo inconstitucional porque senão a declaração de
inconstitucionalidade seria retroativa – caberia, ao repristinar, criar uma norma incriminadora e portanto isto violaria o
princípio da legalidade); a situação não e muito diferente se a lei posterior atenuar a responsabilidade – JM: n precisamos de
estar a aplicar retroativamente a declaração de inconstitucionalidade - aqui já não sugere que estejamos a aplicar
retroativamente a declaração de inconstitucionalidade mas temos a possibilidade de aplicar, talvez por analogia (uma que não
tem substância argumentativa mas sim a partir dos princípios). (peço desculpa pela confusão, mas foi o melhor que
consegui retirar do discurso desta mulher). FP diz INCONSISTENTE - próprio conceito de repristinar pelo JM não é
muito bem interpretado (FP) – não interpreta de acordo com o texto constitucional este conceito pois resulta do 282/1 que,
sendo inválida a revogação da lei menos favorável pela lei inconstitucional, a lei menos favorável sempre se manteria em
vigor, e portanto, nesse sentido para seguir esta linha de pensamento, tem que se chegar às conclusões que tem que chegar (?)
não parece que havendo uma revogação inválida, a lei menos favorável teria de ser repristinada a menos que houvesse a
reserva do caso julgado (desculpem, a sério, isto tá muito mau).
FP chama à atenção: âmbito da discussão limitado pela reserva do caso julgado 282/3 CRP

Retroatividade e Processo Penal – páginas 168 – 182

CPP – o problema surge no art.5º/1, o qual defende o princípio tradicional no processo penal é que as leis processuais penais,
diferentemente das leis penais são de aplicação imediata – elas são em geral instrumentais, servem para disciplinar a cessão de atos e
performances que constituem o próprio processo penal (no entanto há exceções – como por exemplo, a coerência, que o código prevê
– as leis serão de aplicação imediata se implicarem uma desagregação do próprio processo, se se aplicarem a processos anteriores à sua
entrada em vigor porque isso pode criar uma perturbação na própria organização processual, e casos de agravamento sensível da
situação processual do arguido, etc).

2 tipos de situações:

Questão das leis prescricionais

Instituto da prescrição – tem a ver com os efeitos jurídicos e legais do decurso do tempo. No Direito Penal, é tratado no CP – tem
duas espécies: a prescrição do procedimento criminal e a prescrição da pena. Em suma, a prescrição é sempre a produção de efeitos
extintivos até de direitos ou deveres pelo decurso do tempo (no que diz respeito ao procedimento criminal, é o poder do Estado de
prosseguir penalmente os agentes, quanto à pena, de promover a realização dos efeitos da própria condenação)

Coloca-se a questão – mas porque que há prescrição? Associa-se a prescrição à necessidade da pena, entendendo-se que a partir de uma
determinada duração do procedimento criminal, ou duração para o início do procedimento criminal, começa a haver dificuldade em
sustentar a prova, e pode também já ter havido um certo esquecimento ou integração do agente na sociedade, que torna duvidosa a
indescritibilidade relativamente a crimes menos graves, e se calhar mesmo a crimes mais graves. Há quem sustente que, do princípio da
necessidade da pena, decorre uma espécie de imposição constitucional de que haja prescrição – hoje em dia não podemos fazer essa
afirmação (FP) e que pelo menos certos crimes pela sua natureza podem ser imprescritíveis (ex: crimes contra a Humanidade).

A imprescritibilidade não é uma questão fácil relativamente ao jogo dessa ideia com o princípio da necessidade da pena, mas tem
justificação: ex. L 31/2004 22 de julho – lei penal relativa as violações do Direito Humanitário – art. 7º - vem considerar que para
alguns destes crimes, poder-se-ia colocar o problema de saber se estaríamos perante uma aplicação imediata, que tornaria esses prazos
– que poderiam já estar extintos/decorridos, ou estavam prestes a chegar ao seu termo, tornado os prazos imprescritíveis; aplica-se
imediatamente? Estas leis não devem ser aplicadas retroativamente a não ser que sejam mais favoráveis – FP diz que não há consenso
na doutrina jurídica, não há uma posição unânime mesmo ao nível da jurisprudência do TEDH: este tende a distinguir 2 situações: a
primeira, em que já está extinta a responsabilidade criminal – prescrição consolidada – e surge uma nova lei que diz que aqueles crimes
são imprescritíveis – o TEDH diz que isto é uma matéria penal e aplicam-se os princípios da proibição da retroatividade do Direito
Penal; a segunda engloba situações de prolongamento dos prazos – a tendência do TEDH era a de se considerar que isto se tratava de
matéria processual, portanto deve ser de aplicação imediata, e aplicar-se-ia a nova lei imediatamente – FP critica esta ultima posição por
ser muito conceptualista, e diz que este raciocínio levanta dificuldades (mesmo que a premissa seja verdadeira, o que é muito
questionável porque as leis sobre a prescrição referem-se à extinção da responsabilidade criminal, e não meramente à organização do
processo, não parece que seja bem resolvido o problema). Aceitando que sejam de natureza processual, o problema é sempre mais
radical – estas leis, sejam elas processuais ou não, são leis que realmente disciplinam o Estado relativamente ao Direito que cria e
permitem, no caso de serem emitidas e eventualmente logo aplicadas, uma certa manipulação (mesmo que o legislador não tenha esse
objetivo)– ao permitir que o Estado continue a perseguir criminalmente, por exemplo – bem como a responsabilidade da não
perseguição criminal, ao permitirem uma situação de que os processos sejam adormecidos e reativados conforme interesses políticos.
Esta opção deve ser afastada em termos de Estado de Direito democrático, e por isso há muitas razões para que leis deste tipo estejam
subordinadas ao princípio da confiança, da imparcialidade do Estado, da objetividade, subordinação do Estado ao Direito que cria. FP
acredita que as leis prescricionais devem estar submetidas ao princípio da legalidade, proibição da retroatividade, e retroatividade da lei
penal de conteúdo mais favorável (29/4) – sentido amplo.

Situações de crimes que têm um estatuto de crimes particulares ou semipúblicos, e devido a uma alteração da lei, passam a
ter o estatuto de crimes públicos (ex: crime de violência doméstica)

Existem, portanto, duas situações: um crime de natureza semipública ou particular e passa a ser publica, e a situação inversa

Os crimes, em rigor, deviam ser todos públicos (FP). Por razões político-criminais, em função da natureza dos bens jurídicos, em
alguns casos os crimes têm natureza semipública, isto é, estão dependentes de queixa, tem de haver uma entidade que tem dever de
denúncia – como funcionários públicos que têm dever de denúncia relativamente a crimes que se passam no âmbito do seu
conhecimento e competências; também pode haver queixa de particulares ou das próprias vítimas – por exemplo crimes de natureza
sexual (ex caso da violação, nota-se que há uma mitigação neste âmbito, visto que se entende que, mesmo sendo um crime
semipúblico, o Ministério Público (MP) pode, em nome do interesse da vítima, não estar dependente da queixa da própria). A ideia é
que realmente certos crimes estão dependentes dum direito de queixa ou dever de denúncia de determinadas entidades e por isso não
há uma automática iniciativa de ação penal por parte do MP nesses casos.

Nota: O caso dos crimes particulares dependerem de acusação particular do ofendido e para que o procedimento criminal se inicie,
(art. 50) é necessário que essas pessoas se queixem (casos mínimos – crime quanto à honra por exemplo). Há uma atribuição aos
particulares da iniciativa da acusação particular.

Questão: quando um crime semipúblico passa a ser público, aplica-se imediatamente a nova lei?

Levanta o problema de que, por exemplo, não houve antes nenhuma queixa, e a partir de determinado momento, o crime já
foi praticado numa fase em que a lei não exigia a queixa e essa não se verificou. Mais tarde a lei prescinde da mesma. Pode dar-se
imediatamente início à ação penal? O Estado tem de se vincular ao Direito que cria, e aplicar imediatamente implicaria uma certa
violação do princípio da confiança – FP: proibição da retroatividade é a solução mais adequada.

Crime de natureza pública passa para natureza semipública – imagine-se que os titulares de direito de queixa nada fizeram, não
deram iniciativa, não foi exercida a queixa – aplica-se a nova lei que exige queixa? Solução FP: tendo o crime sido convertido em
semipúblico ou particular, se a lei não estabelecer uma regra transitória, entende-se que violará a CRP não permitir ao titular de direitos
de queixa um prazo novo/nova contagem de prazo a partir da entrada em vigor da lei. Estão aqui em causa os direitos da vítima, dos
ofendidos, além dos direitos processuais penais e penais.

FP acrescenta que não avançou muito em relação ao livro, considera que neste momento o essencial da matéria está apresentado nas
aulas teóricas

AULA 10 – SEGUNDA PARTE

APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO

Vamos tratar de uma decorrência do princípio da legalidade – trata-se de o facto de a lei penal do Estado português não se
poder aplicar em certas circunstâncias, a factos que são praticados fora do seu alcance, da competência que ela própria internamente –
através do chamado Direito Penal Internacional – estabelece os limites da sua competência (limites que estão associados à soberania do
Estado português em contexto internacional; ao facto de o Estado português ser uma Estado que coopera internacionalmente com os
outros e que defende a sua soberania – e nomeadamente a soberania punitiva, que contemporaneamente se pode associar a uma
soberania para a cooperação internacional na defesa dos direitos humanos e da colaboração pacifica com os outros Estados – não é
uma soberania autoritária, isso nunca esteve presente no espírito da Constituição portuguesa que nos rege, e as conceções
contemporâneas que fundamentam a soberania – não tanto nos nacionalismos mas sim numa certa justificação internacional do Estado
português que é o de ser uma entidade conjuntamente com as outras que contribui para a concretização dos princípios comumente
aceites no direito internacional e para a colaboração pacifica dos estados). (peço desculpa novamente pela confusão)
Para verificarmos quais são esses limites e critérios que estabelecem os limites a competência internacional da lei penal portuguesa:

Imagem 1

Imagem 2

A questão que estamos a tratar é a da aplicação da lei penal portuguesa no plano global do seu espaço interno e internacional.

Art.7º CP – tem o mesmo papel que o art. 3º tem para a aplicação da lei no tempo. Este artigo define o lugar da prática do
facto, que e importante para saber se há algum elemento de conexão com a lei penal portuguesa que o local da prática de facto nos dá,
e talvez, até antes disso, permite determinar quando é que o facto foi praticado em Portugal porque o critério fundamental da aplicação
da lei penal portuguesa é o principio da territorialidade (art. 4º CP).

Imagem 3
O art. 3º diz-nos que o momento da prática de facto é o momento em que o agente atuou ou, no caso da omissão, devia ter atuado –
independentemente em que o resultado típico se tenha produzido. É completamente diferente do critério da aplicação da lei penal no
espaço.

Costuma falar-se no princípio da ubiquidade – é tanto local da prática do facto o local da ação, como o local da omissão,
como qualquer forma de comparticipação, por exemplo o local onde um cúmplice realizou a sua atividade, como o local da produção
do resultado, e ainda o local onde se deveria reproduzir o resultado segundo a representação do agente, por exemplo numa situação de
tentativa realizada num Estado estrangeiro, mas cujo resultado desse mesmo crime se deveria reproduzir no território português. O
princípio é de qualquer elemento de conexão (ou prática do facto, ou produção do resultado, ou mesmo qualquer forma de
comparticipação) é suficiente para que a competência da lei penal portuguesa se possa verificar de acordo com o princípio da
territorialidade. Este artigo é também o critério que nos informa se o facto foi praticado num outro país, que pode ser muito
importante.

Imagem 4

Imagem 5

A lei penal portuguesa aplica-se a todos os factos praticados por portugueses ou estrangeiros no território português (este é definido na
Constituição). Nos termos do art. 4º há uma certa extensão para os factos praticados a bordo de navios ou aeronaves portuguesas
(principio do pavilhão) e ainda a aeronaves estrangeiras (referência ao DL 208/2004 19 de agosto).

Imagem 6
O art. 4º diz nos que a lei penal portuguesa se aplica aos factos praticados a bordo de aeronave alugada, com ou sem tripulação, um
operador que tenha sede em território português, e ainda em aeronave civil registada noutro estado, em voo comercial fora do espaço
aéreo português se o local de aterragem seguinte for em território nacional, e o comandante da aeronave entregar o agente às entidades
portuguesas competentes. Claro que esta extensão não é bem da territorialidade, mas é aqui pensada na perspetiva da soberania
territorial portuguesa, e de que não haja lacunas de punibilidade e que se realmente houver um comportamento de entrega do
presumível infrator as autoridades portuguesas têm que iniciar os procedimentos devidos para a aplicabilidade da lei penal portuguesa.

Imagem 7

Como é que o artigo 4º e o artigo 7º se combinam? (EM RELAÇÃO AO POWERPOINT ACIMA )

Imagem 8

Este é o que diz o art. 4º - pode haver conveniência pela cooperação internacional do Estado português, e que apesar de o crime ter
sido praticado em território português os agentes sejam entregues a outros Estados.

Imagem 9
Imagem 10

Art. 5º/ e) CP – prevê o princípio da nacionalidade na perspetiva de que a lei penal portuguesa se aplica aos cidadãos portugueses
enquanto agentes de crimes porque mantêm um vínculo com o Estado português e os deveres inerentes à nacionalidade portuguesa,
nomeadamente não desrespeitar as leis penais, e também numa perspetiva protetiva relativamente aos crimes praticados contra
portugueses, no sentido em que o Estado português assegura proteção se esta não for conferida de outra forma pelo Estado em que a
vítima portuguesa se encontra, assegurando essa proteção através do seu Direito Penal dos ofendidos ou vítimas portuguesas.

Imagem 11

O art. 5º/e) estabelece várias condições objetivas de punibilidade – o facto de em principio a lei penal portuguesa se aplicar não
significa que se aplique ilimitadamente ou sem alguma condição (CONDIÇÕES REFERIDAS NO POWERPOINT ACIMA).

1. Os agentes têm que se encontrar em Portugal – Portugal não vai perseguir os portugueses que vivam no estrangeiro, nem
aplicar a lei penal portuguesa aos estrangeiros que cometam crimes contra portugueses se estes agentes não se encontrarem
em Portugal (quer os portugueses quer os que praticaram os crimes contra estes)
2. Factos também puníveis pela legislação do lugar onde forem praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer o poder
punitivo – é necessário que haja dupla incriminação – se nesse outro território os factos não sejam puníveis não é expectável
para as pessoas q pratiquem esses factos que venham a ser punidos penalmente.
há uma exceção: se nesse lugar não se exercer o poder punitivo – onde não haja Estado ou haja um Estado pária, por
exemplo – se houver uma lacuna total absoluta de intervenção de um poder punitivo legitimo, então a lei penal portuguesa
mantém a sua competência
3. Lei da cooperação judiciária internacional (L 144/99) – têm que se tratar de crimes em que haja possibilidade de extradição e
esta não possa ser concedida – em princípio a extradição não é concedida quando os factos são praticados por portugueses,
porque a CRP através do 83/3 estabelece o principio geral da não extradição de cidadãos nacionais – com exceções como
terrorismo e criminalidade altamente organizada. Se puder ser concedida a extradição, não tem cabimento que o princípio da
nacionalidade prevaleça. “Aut dedere Aut judicare” – se não se pode entregar então tem que se julgar / ou entrega, ou julga-
se.
4. Realidade diferente da extradição. Não seja decidida a entrega em execução de mandato de detenção europeu ou de outro
instrumento de cooperação, há dupla incriminação, o agente é encontrado em Portugal – ter-se-á de aplicar a lei penal
portuguesa.

Imagem 12
Ainda no art. 5º/e) – “dupla incriminação” – quando é que se entende que este facto acontece?

Pode haver uma diferente denominação, mas o facto e a natureza da punição têm que coincidir na sua essência.

Se o facto é previsto na lei portuguesa e na lei estrangeira, mas existe uma justificação na lei estrangeira que não existe na lei
portuguesa, para a prática do facto, pode haver aqui uma falta de coincidência, estaríamos a estender por analogia o alcance da lei penal
portuguesa.

Também acontece que possa ter prescrito quanto à responsabilidade criminal e esteja prescrita na lei penal estrangeira (por
exemplo) – já não há fundamento para a respo criminal estrangeira e por isso não se mantém a dupla incriminação.

É preciso ter sempre atenção que nestas situações estamos sempre condicionados pela proibição da analogia.

Imagem 13

Problemas de interpretação em associação com a extradição e com a lei de mandato de detenção europeu (próxima aula)

Imagem 14

Está previsto no art. 5º/a) CP (princípio da defesa dos interesses nacionais) – estas normas referem-se a interesses do Estado
português.

Ex: crimes de falsificação da moeda – proteção da confiança dos cidadãos no seu território, isto é, à partida trata-se de um
crime que não tem interesse para os outros Estados, logo não pode ficar dependente da vontade dos outros Estados relativamente a
estes crimes.

Imagem 15
IMAGEM 15: podia ter sido abordado logo a seguir ao princípio da nacionalidade, mas sabe-se la porquê a prof quis saltar

Diferentemente do que se passa na alínea e), em que sendo o crime praticado por portugueses ou contra portugueses, exigem-
se algumas condições, já vistas. Na alínea b) prevê-se uma situação especifica: crimes praticados por portugueses e contra portugueses
que vivam habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui foram encontrados – as condições das alíneas e) i., ii., e iii. não
têm de se verificar, porque é como se estes agentes fossem de propósito ao estrangeiro para praticar os factos que aqui por exemplo
possam não ser incriminados, quer por serem portugueses e quiserem subtrair (?) os seus deveres para com o Estado Português, quer
por serem estrangeiros e queiram utilizar também essa possibilidade contra cidadãos portugueses. Proteção estendida a estes casos sem
as condições previstas na alínea e).

Caso do crime do aborto cabe nesta alínea b) os casos em que alguém se desloca ao estrangeiro para praticar o aborto que
seria permitido de acordo com o método dos prazos no país estrangeiro e não é permitido em Portugal. Se a pessoa vive habitualmente
no território português estaria abrangida por esta alínea. Podemos dizer, sem analogia proibida, que estamos perante um caso da alínea
b)? é muito difícil sem uma duvidosa analogia. (volto a pedir desculpa)

Imagem 16 – FP: “outras situações”

Nota: prof esclarece que no art.5º/b) tratam-se de crimes praticados por portugueses, contra portugueses

Princípio da Universalidade

Artigo 5º/ c) e d)

Crimes contra as pessoas numa dimensão universal

Há valores que fazem parte dos princípios gerais de Direito Internacional, na perspetiva de estarem associados à proteção de Direitos
Humanos, e que toda a comunidade internacional se deve convergir na sua proteção, e deve evitar-se qualquer lacuna relativamente a
esses factos. Portugal, como Estado soberano, na medida em que colabora pacificamente na comunidade internacional para realização
desses objetivos comuns, vem aceitar o dever fundamental de proteger essa dimensão fundamental das pessoas e ter um papel
construtivo da comunidade internacional. Portugal é apenas colaborador da comunidade internacional. Há condições de
punibilidade:

condições e razão de punibilidade


condições – alínea d)

Alínea d) – mantém as condiçoes relativamente a um certo de crime (sexual, por exemplo) – há uma extensão numa primeira
abordagem ao princípio da universalidade que exprime uma cooperação da comunidade internacional com as vítimas e com a sua
proteção.

Lei Antiterrorismo – L 52/2003

Art. 8º - falta de exceção da presença em território nacional e da não possibilidade ou decisão de não entrega

Artigos 3º, 5º e 5º-A (art. 8º/c) – condiçoes objetivas de punibilidade idênticas ao art. 5º/c) CP

Prevê a possibilidade de Portugal estender a competência desta lei a factos praticados por estrangeiros no estrageiro - combate ao
terrorismo de tal forma intenso que relativo aos crimes mais graves não há condição de punibilidade.

Mencionando agora o art. 6º

Art. 6º/ 1 – expressão na lei penal do princípio mencionado na imagem (29/6 CRP). Além da condição nesta alínea, a aplicação da lei
penal portuguesa é condicionada quando a lei penal estrangeira seja mais favorável (art. 6º/2) – é claro que depois s se diz que a penal
aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema português.

Este princípio do favor do agente pela aplicabilidade da lei penal do território em que foi praticado o crime é radicalmente
excluído nos casos da alínea a) – crimes contra interesses nacionais (art. 6º/3) e quanto aos casos de pessoas que vivendo
habitualmente em território português se desloquem ao estrangeiro para praticar o crime.
Art. 6º/ 3 – acrescentar estas exceções no CP

Art. 5º/2 subtrai ao princípio do 6º/2

Apresentação muito genérica da aplicação da lei penal no espaço – é completado na aula seguinte
DIREITO PENAL I – PROFESSORA MARIA FERNANDA PALMA

AULA 11 – 1ª PARTE (23.11.2020)

A EXTRADIÇÃO

Esta aula é a última antes da frequência e na primeira parte vamos falar da extradição e na
segunda do mandato de detenção europeu. Quando estivemos a falar da aplicação da lei penal
no espaço, nomeadamente no artigo 5º mas também nas leis especiais que foram referidas,
existe por vezes uma ressalva de que a lei penal portuguesa só se aplica a crimes praticados fora
do território nacional, quer a portugueses, quer a estrangeiros (nos casos em que também se
pode aplicar a estrangeiros) quando o agente não possa ser extraditado (para além de ser
encontrado em Portugal -quando essa condição de oponibilidade é referida) ou entregue em
resultado de execução do mandato europeu– acontece no artigo 5º, nº1, alínea c), na alínea d)
e também na alínea e), como já tinha referido na última aula.

Portanto, estes instrumentos da cooperação judiciária internacional, e nós começaremos pelo


mais tradicional, o elemento da extradição, são condições impeditivas da aplicação da lei penal
no espaço ou condições de que se possa aplicar a lei penal portuguesa a crimes praticados fora
do seu território, quer por portugueses, quer por estrangeiros. Como estes artigos preveem, há
impedimentos de extraditar certos agentes, por razões legais e outras vezes constitucionais.
Quando isso acontece prevalece o tal princípio tradicional aut dedere aut judicare, há portanto
uma obrigação do Estado Português exercer o seu poder judicativo.

A lei da cooperação judiciária internacional é a Lei nº 144/99 de 31 de agosto e o domínio da


interpretação desta é muito importante para quem trabalha com estes processos. O que nós
vamos aqui abordar corresponde ao que está no manual, sobretudo os impedimentos à
extradição, como alguns elementos decisivos da aplicabilidade da lei de cooperação judiciária.
Neste capitulo da extradição é particularmente importante a própria Constituição (até mais do
que no mandato de detenção europeu).

A extradição depende geralmente de acordos internacionais entre os próprios países, pelo que
é como que uma fonte de Direito Internacional, mas uma fonte convencional, em que os Estados
se obrigam a cooperarem, entregando em certas condições e de acordo com as suas leis os
agentes estrangeiros que se encontrem nos seus territórios - extradição passiva. A extradição
ativa decorre quando o Estado requisitante, neste caso o português, vem procurar exercer o seu
poder punitivo sobre alguém que tenha interesse em perseguir, como por motivos de crimes
contra os interesses nacionais ou por motivos jurídico-criminais. Isto permite que o Estado possa
exercer os seus poderes fora das suas fronteiras, exercendo a sua soberania, quando os seus
interesses estão em causa ou quando haja outra justificação para exercer o poder punitivo. Hoje
em dia a soberania justifica-se enquanto defesa dos Direitos Humanos, não apenas pela
afirmação do poder do Estado soberano no sentido tradicional.

A extradição é um instrumento muito antigo da cooperação internacional e tem impedimentos


que estão desde logo previstos na própria Constituição da República Portuguesa no artigo 32º
e 33º, nº3, nº4 e nº6. Nestes artigos algumas ideias fundamentais afirmam-se:

1) Princípio da não extradição de nacionais

Em princípio os Estados não extraditam os seus nacionais (era mais importante no passado e
reafirma a ideia de soberania sobre o seu território e poder sobre os seus súbditos) – mas
atualmente o artigo 33º, nº3 não é ilimitado, uma vez que é admitida em condições de
reciprocidade estabelecidas em convenção internacional nos casos de terrorismo e de
criminalidade internacional organizada e desde que ordem jurídica do Estado requisitante
garante um processo justo e equitativo (portanto, agora é um princípio muito relativizado e
cujas condições têm sido estabelecidas por convenções internacionais, como a Convenção de
Nova Iorque relativamente ao antiterrorismo). Quem é que define a garantia de um processo
justo e equitativo? As garantias não têm de ser as mesmas que as do Estado Português mas pelo
menos o cerne – as garantias fundamentais – como a imparcialidade dos tribunais, o essencial
dos direitos de defesa e recurso, todas as consagradas no artigo 32º da CRP e outras que se
considerem fundamentais têm de estar respeitadas.

Para além do que nos dá artigo 32º da CRP , há que ter em conta os instrumentos internacionais
como a Convenção Europeia de Direitos Humanos, nos artigos 5º, 6º e 7º e a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, como por exemplo o artigo 8º ou 11º. A ideia do processo
justo e equitativo tem sido desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Europeu do Tribunal
dos Direitos Humanos e dos Tribunais Constitucionais.

Para além dos nº3 do artigo 33º da CRP, o nº5 do mesmo artigo esclarece que o princípio da não
extradição de nacionais não prevalece sobre possibilidade de entrega de nacionais no âmbito da
União Europeia.

2) Princípio da não extradição por motivos políticos

O segundo princípio é o da não entrega de nacionais a título político, consagrado no nº 6 do


artigo 33º da CRP e, aqui têm de fazer a anotação no código, o artigo 7º, nº1 , alínea a) da Lei
144/99, que é a Lei da Cooperação Judiciária Internacional. Ambos preveem impedimentos de
extradição relacionados com o chamado crime político mas enquanto que no nº6 diz-se que não
é permitida a extradição nem entrega a qualquer título, a lei da cooperação judiciária tem uma
redação diferente e utiliza o conceito de crimes de natureza política ou infrações conexas como
o critério limitativo (mencionado na página 206 do manual).

Portanto, não há uma total coincidência (pelo menos literal) entre o critério constitucional e o
da lei da cooperação. O critério constitucional é mais amplamente restritivo pois não apela tanto
para a natureza objetiva do crime como crime político mas para as motivações, o que significa
que as perseguições por crimes comuns que tenham uma motivação política também estão
cobertos pelo impedimento previsto na CRP. Há uma discussão histórica sobre o que é o crime
político – mais objetivas, mais subjetivistas, pelo que temos de encontrar crimes característicos
aos crimes associados à natureza do poder político.

Como é dito no livro das lições a natureza política estaria relacionada com a atividade política,
com crimes no exercício das funções mas também conexas, como diz a lei. Ou seja, apesar de
não ser explicitamente política podem ser tidas como instrumentais para o exercício das
funções, como os crimes de corrupção, que apesar de serem crimes da responsabilidade de
titulares de cargos políticos nos termos da lei nº 34/87 de 16 de julho também podem ser
praticados por funcionários públicos. Poder-se-ia perguntar se seria uma infração conexa…É
uma discussão a ter se, por exemplo, o abuso de poder não seria crime político?…Uma vez que
a CRP não dá tanta importância à natureza objetiva do crime mas o facto da perseguição pelo
crime não visar a realização da justiça penal mas sim uma perseguição de natureza política. Esta
ideia é mais concretizável, por exemplo, no caso de crimes de atentado ao Estado de Direito ou
à Constituição (crimes associados ao exercício das funções) do que a corrupção e participação
económica em negócios, que pode ou não estar associado ao exercício de funções mas podem
ser objeto de um pedido de extradição por razões de concretização da justiça.
A perspetiva da lei apela a critérios de normalidade e infrações de natureza conexa quando
muitas vezes a perseguição é exigência da democracia e do Estado de Direito. E também é
verdade que procurar-se um critério mais objetivo é mais normal e previsível que seja no tipo
de crime pelo qual se pode promover a própria extradição, pelo que a melhor interpretação da
lei da cooperação e articulação com a CRP é por um lado restritiva, porque mesmo alguns crimes
associados às funções não têm motivação política no sentido que a CRP procure impedir a
extradição e, por outro lado, pode ser ampliativa, no sentido de que por vezes pode promover-
se a extradição por motivos políticos para crimes que não estão associados ao normal exercício
de funções públicas ou políticas. Nesse sentido a restrição dos crimes de natureza política feita
pela lei da extradição deve ser interpretada como um ponto de referência objetivo para se
concluir que há ou não uma motivação política.

Mas, por exemplo, pode haver até um caso de homicídio, que não é um crime político ou de
infração conexa e em que haja uma motivação política. A verdade é que a lei aparentemente
não confere uma proteção tão intensa porque exige que haja uma natureza política. A única
conclusão a retirar e o que aqui está em causa (e modifico um pouco o que está nas lições) é
termos aspetos subjetivos e objetivos que conjugadamente nos permitem concluir que há uma
natureza política do crime. Portanto, a natureza política não tem de ser só objetivamente, pode
realmente ser na perspetiva subjetiva quando no contexto em que o caso ocorre tem as
características de um crime político porque está a ser utilizado apenas como pretexto para a
perseguição política, luta política ou para a concretização de ódio político.

Eu digo aqui nas lições que a melhor interpretação do artigo 7º, nº1, alínea a) da Lei nº144/99
é no sentido da natureza política ser considerada como um indício objetivo impeditivo numa
excessiva subjetivação da qualificação da motivação política mas não se restringindo o critério
a um certo tipo de crimes. E acrescento ainda que mesmo quando concluímos que há uma
motivação de ordem política temos de partir para essa conclusão por critérios objetivos de
alguma normalidade de associação daqueles factos de perseguição política mas também no caso
concreto. Portanto, diria que esta norma da lei da extradição dá-nos uma orientação no sentido
de natureza política se articular com a motivação política e se dar um pouco mais de fundamento
objetivo à expressão da CRP, mas também não restritiva da CRP. Não pode ser restritiva, como
também não pode ser ampliativa. Tem de haver a articulação entre estas duas normas.

Este artigo 7º da Lei nº 144/99 exclui expressamente (há uma subtração específica) crimes
contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra e tortura do conceito de crimes de natureza
política. Embora a CRP não faça alusão a tais crimes, a lei ordinária ajuda a interpretar a
Constituição, pois é óbvio que a dimensão de proteção de direitos humanos afastará a natureza
política. No que refere à alínea d) do nº7, aqui prevê-se que seja retirada a natureza política de
certos crimes por convenção internacional, o que pode contender com a CRP. Isto não vai no
sentido de, por exemplo, ser subtraído o genocídio ou crimes de guerra, pois isso seria uma
contradição sistemática e interna insustentável. Portugal não está autorizado por convenção a
permitir que haja perseguições políticas através do Direito Penal, do ponto de vista da CRP, pelo
que tem de existir uma justificação do contexto de cooperação e de natureza objetiva dos crimes
que possa justificar a subtração.

3) Princípio da não extradição por crimes a que corresponda, segundo o Direito Estado
requisitante, pena de morte ou outro que resulte lesão irreversível da integridade
física
Este princípio encontra-se previsto no artigo 33º, nº6 da CRP, seguidamente ao da extradição
por motivos de natureza política, como também na lei da cooperação, no seu artigo 6º, alínea
e). Este princípio é absoluto e não permite interpretações relativizadoras pois Portugal tem um
compromisso na comunidade internacional como um dos primeiros países a abolir a pena de
morte, tem uma posição histórica a defender e própria identidade.

Há um acórdão do TC acerca do artigo 6º, nº2 da lei 144/99 porque a letra da lei ordinária pode
parecer permitir alguma flexibilidade, como nos casos de um eventual compromisso de que
essas penas não seriam aplicadas pelo Estado requerente. Já houve acórdãos que negaram a
constitucionalidade de uma interpretação desta lei no sentido em que permitisse essa
flexibilização. Mas o que está aqui escrito é de que esta garantia corresponde a uma espécie de
alteração da ordem jurídica do Estado requerente, em concreto vinculativa mesmo em termos
jurídicos para os tribunais. Podemos cooperar, por exemplo, com o EUA, mas apenas se o Estado
se comprometer de forma irrevogável de que não será executada a pena, mas não apenas como
expressão da garantia política pois a CRP exige que o Direito do Estado requisitante de forma
concreta e jurídica deixe de poder aplicar a pena de morte para o caso.

No que refere à pena de prisão ou medida de segurança de caráter perpétuo ou de duração


indefinida, a extradição não pode ser concedida, nos termos do artigo 6º, nº1, f) da Lei nº
144/99 e do artigo 33º, nº4 da CRP. O princípio é este e as exceções vêm previstas no nº2, na
alínea a) se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus
tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente
comutado a pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da
pessoa ou tiver retirado carácter perpétuo ou duração indefinida à pena ou medida de
segurança e na alínea b) se, com respeito a extradição por crimes a que corresponda, segundo
o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade
com carácter perpétuo ou de duração indefinida, o Estado requerente oferecer garantias de que
tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada.

É diferenciada quanto à pena de morte porque aí assenta numa alteração da ordem interna e
não apenas de uma garantia diplomática, quanto à pena de morte quis-se dar essa possibilidade,
pois o Estado Português tem de cooperar com outros países europeus com prisão perpétua.
Aliás, antes das revisões da Constituição de 1997 e 2004 a CRP nem sequer estava prevista uma
limitação da extradição quanto à prisão perpétua, na altura o TC fazia uma analogia entre a
proibição de extradição a um país onde para o caso se aplicava a pena de morte e estendia à
pena de prisão perpétua, e isto levantava muito celeuma, pois havia cidadãos da EU que se
recolhiam em Portugal. O TC teve, inclusivamente, de explicar a posição na Assembleia da
República e o Presidente, o Conselheiro Cardoso da Costa, explicou sempre muito bem a
perspetiva feita nos acórdãos. Fez-se então as alterações na revisão constitucional de 1997 em
que se veio prever explicitamente a questão da pena de prisão perpétua (art. 33º, nº4),
diferenciando relativamente à pena de morte. Na redação de 1997 continha a questão da
reciprocidade:

“Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado
requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter
perpétuo ou de duração indefinida, em condições de reciprocidade estabelecidas em
convenção internacional e desde que o Estado requisitante ofereça garantias de que tal pena
ou medida de segurança não será aplicada ou executada.”, o que não tinha qualquer vantagem
para Portugal e não fazia sentido, pelo que foi retirada na revisão de 2004.
Daí que a nova redação, que corresponde ao artigo atual, diga que só é admitida a extradição
por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de
segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida,
se, nesse domínio, o Estado requisitante for parte de convenção internacional a que Portugal
esteja vinculado e oferecer garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada
ou executada. Portanto, aqui o que está previsto é que para Portugal poder cooperar tem de
haver uma vinculação jurídica internacional através de uma convenção internacional, de
preferência multilateral, que estabelece condições para a extradição em geral mas também
prevê as garantias na própria convenção de não aplicação da pena de prisão perpétua. Há a
discussão de saber se esta nova redação é uma interpretação autêntica de alguma expressão
deficitária da lei anterior ou se esta nova redação até é mais garantista do que a anterior. Esta
discussão foi feita num acórdão do TC em que se concluiu um problema da aplicação no tempo
de normas penais mais favoráveis quanto à extradição para países em cujo Estado prevê a prisão
perpétua.

O que quero realçar é que estas duas revisões vieram tornar claro, em especial a meu ver a de
2004, que as garantias previstas na própria CRP estão associadas a uma fonte jurídica. Não são
meras garantias diplomáticas ou políticas mas são garantias jurídicas, embora apenas no plano
do Direito Internacional e, portanto, devem vincular o Direito Interno enquanto este se
subordinar ao Direito Internacional. Presume-se que se um Estado negoceia com outro uma
convenção essa fonte de Direito vigora no plano internacional e nos próprios tribunais. Este
ponto não é uniforme no artigo 33º, nº4 da CRP, pois nós rejeitamos de tal forma a prisão
perpétua que permitir lá fora está fora de causa. Também é verdade que Portugal não quis
colocar no mesmo patamar a pena de morte e a prisão perpétua, pelo que de algum modo ficam
satisfeitas a pretensões de boa cooperação com outros Estados, apesar de ser sempre exigido
convenções internacionais. Nesse domínio concreto Portugal e o outro país ficam vinculados
através de objeto da própria convenção. Deste modo, será fonte de Direito Internacional e
vinculará os Tribunais através da atividade política ou diplomática.

Só para terminar relativamente à extradição quero fazer referência a outros critérios


(mencionados na pg, 210 a 212 do manual) :

a) Critério da reciprocidade

Está previsto no artigo 33º, nº4 da CRP como princípio geral que, embora não obste no caso de
não existir uma convenção que preveja a cooperação e não obste no caso de haver razões de
natureza criminal a aconselharem a extradição, em princípio a reciprocidade é um requisito da
extradição. Claro que aqui podemos perceber como Portugal já integrou no espírito da sua
legislação sobre extradição a perspetiva não tanto da defesa do interesse absoluto da soberania
punitiva do Estado Português mas sobrepôs a essa perspetiva as tais razões de política criminal,
que possam aconselhar mesmo sem reciprocidade.

b) Critério da Especialidade

Está previsto no artigo 16º da Lei nº 144/99 de 31 de agosto e é também uma condição de
validade da extradição. Atente-se pelo nº1 , nº2 e 3º que este princípio procura que não possa
ser manipulado. Ora, os países não podem punir alguém depois de promovida e extradição. A
perspetiva é a de que se deve respeitar estritamente o objeto.

c) Outros critérios
Para além dos requisitos, o artigo 32º, nº1, alínea a) da Lei da nº 144/99 de 31 de agosto prevê
ainda outros como o facto de ter sido em território português, assim como o artigo 31º , nº2,
que prevê o facto do crime ser da competência do tribunal requisitante e ser punível pela lei
portuguesa e pela lei do Estado requisitante com pena não inferior a um ano de prisão (ambos
os Estados, o instituto da extradição não existe para crimes de dimensão reduzida), assim como
crimes de natureza política (já referido) e de natureza militar (artigo 7º, nº1, alínea b) ). Aqui a
lei ordinária vai mais longe do que a CRP.

Faço ainda referência nas lições a um acórdão muito importante do TC, o Acórdão n.º 1/2001/T.
Const. - Processo n.º 742/99 que se referia à constitucionalidade do artigo 6º, nº2, alínea b) da
Lei nº 144/99 de 31 de agosto, mas analisando também a questão da pena de morte. Devo dizer
que aqui o TC não foi muito claro porque veio dizer:

“Resta, então, saber se outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, e


nomeadamente o interesse na cooperação internacional na repressão e prevenção da
criminalidade mais grave, para defesa dos bens jurídicos por ela ameaçados, podem justificar
os limites à garantia de não ser sujeito a pena ou medida de segurança privativa ou restritiva
da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indeterminada, que resultam da permissão
constitucional de extradição por crimes assim sancionados, com base em meras garantias de
inexecução não juridicamente vinculantes do ponto de vista do direito interno do Estado
requisitante. Trata-se aqui de um género de limites que existem qualquer seja o modo de
definição de um direito na Constituição, porque resultam simplesmente da existência de
outros direitos ou bases, igualmente reconhecidos na Constituição e que em certas
circunstâncias com eles conflituam (cf. o Acórdão n.º 254/99, Diário da República, 2.ª série, de
25 de Junho de 1999, p. 8590). Tudo depende da necessidade e da proporcionalidade do limite
ou restrição.”

Portanto, o TC veio admitir que diferentemente da questão da pena de morte em que não há
ponderações a fazer, no caso da prisão perpétua a nova formulação após a revisão de 2004
permite fazer uma ponderação de ordem constitucional entre a importância e o valor para o
Estado português da cooperação judiciária internacional e o valor associado à não extradição
quando o Direito do Estado requisitante preveja a pena de prisão perpétua. O TC veio entender
que é tão importante a cooperação judiciária internacional que mesmo que não se consiga que
no Direito Interno o Estado requisitante passe a ficar vinculado, desde que haja uma garantia
substancial isto basta.

Eu participei no acórdão mas entendo que apenas se consegue assegurar esse aspeto essencial
do bem jurídico que se visa proteger, o da liberdade e os aspetos da dignidade da pessoa
humana, se realmente num dos pratos da balança estiver a cooperação judiciária mas no outro
estiver uma vinculação jurídico-internacional, não terá de ser a alteração do direito interno
imediatamente vinculativo dos Tribunais mas os Tribunais internos têm de poder estar
vinculados pelo Direito Internacional. Na minha visão aquilo que impede que haja na CRP uma
profunda contradição sistemática com a proibição da pena de prisão perpétua é esta
flexibilização muito mitigada da garantia, no sentido de não ser uma mera garantia política, ser
no entanto uma garantia no foro jurídico. O Estado fica responsável no plano do Direito
Internacional com as respetivas sanções, pelo que este fica responsável pelo cumprimento da
não aplicação da pena de prisão perpétua, desde que essa vinculação tenha algum significado
no plano também do Direito Interno. Apenas com esta interpretação é que eu também entendo
que não estão violados pela revisão constitucional que introduziu esta alteração do artigo 33º,
nº4, só assim é que se deve entender que não estão a ser ofendidos os limites materiais da
revisão constitucional, o artigo 288º, alínea d).
Para terminar esta aula, outra causa de inadmissibilidade da extradição é a extinção da
responsabilidade penal do extraditado por extinção do procedimento criminal em Portugal ou
noutro Estado em que tenha sido instaurado o procedimento criminal pelo mesmo facto. Isto é
uma manifestação clara do princípio non bis in idem, previsto no nº5 do artigo 29º da CRP, e
trata-se de uma ausência de fundamento para a extradição.

A Lei nº 144/99 prevê ainda a recusa facultativa da extradição, como a reduzida importância da
infração (artigo 10º) ou por outros critérios atinentes de política criminal (artigo 18º), e ainda os
casos de cidadãos nacionais em que, sendo possível a extradição, nos termos de convenção
internacional, de certos crimes de terrorismo ou de criminalidade organizada, o Estado
Português decida não o fazer por qualquer conveniência (até política), nos termos do artigo 32º,
nº2, da Lei nº 144/99.
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

A EXTRADIÇÃO E O MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU


1 – EXTRADIÇÃO (CONTINUAÇÃO)
Continuando a aula, ainda sobre a matéria da extradição, antes de falarmos
também brevemente sobre o mandado de detenção europeu, recomendo a
leitura suplementar de algumas páginas (que vou pedir que sejam digitalizadas
e vos sejam enviadas) de um livro que escrevi, já antigo, mas que neste ponto,
sobre os limites constitucionais à extradição e à cooperação internacional
em matéria penal tem atualidade: MARIA FERNANDA PALMA, Direito
Constitucional Penal, 2005, Coimbra: Almedina, pp. 140-162, onde dou
alguma informação suplementar e cito acórdãos do Tribunal Constitucional.
Como prometido na primeira parte da aula, gostaria de vos referir um acórdão
importante: o Ac. n.º 384/051 do Tribunal Constitucional, de 20/09/2005
(Processo n.º 245/2005), que se refere a um caso em que eu fiz uma declaração
de voto de vencida e que acho que poderiam consultar no site do Tribunal
Constitucional e ver o problema que lá está tratado e a declaração de voto que
eu fiz. A importância desse acórdão deve-se a ele equacionar o problema de
uma sucessão de normas constitucionais em matéria de extradição, portanto, em
matéria penal, no tempo e uma eventual aplicação do princípio retroativo da lei
constitucional penal mais favorável, que pode não ser a última. Até não é tanto
a aplicação retroativa, curiosamente, mas é um aspeto – que eu não sublinhei
quando dei o problema da aplicação retroativa da lei penal (e aqui não estou a
falar da lei penal inconstitucional, mas sim da lei penal mais favorável nos termos
do art. 29.º/4 CRP e do art. 2.º/4 CP), mas que resulta das lições e resulta dos
fundamentos do princípio – que é a igualdade e a necessidade da pena, e é o
seguinte. Quando há uma sucessão de três leis, suponhamos, e supondo que
todas elas são aplicáveis e não existe um problema de retroatividade, podemos
admitir a aplicabilidade retroativa da lei intermédia, se ela for a mais favorável
das três leis penais sucessivas, apesar de ter sido já revogada entretanto pela
última lei. A aplicabilidade retroativa de uma lei mais favorável não pressupõe
necessariamente que seja a última das leis, pode ser uma lei intermédia. Mas
também haverá situações em que, numa sucessão de leis, a lei mais favorável
não é a última em vigor – e vamos supor para certas situações que a última se
poderia aplicar –, pode ser até enfim uma lei não retroativa (obviamente, porque
é anterior à prática dos factos) e essa lei é mais favorável. Quando há uma
sucessão de leis nesses termos, não tem cabimento qualquer aplicação
retroativa da lei penal, porque não é mais favorável, é menos favorável e portanto
é a primeira lei que se aplica. Mas não só em situações em que o problema da
retroatividade pode não estar em causa o problema da retroatividade, como
neste caso do acórdão do Tribunal Constitucional e, portanto, é a lei mais
favorável que se deve aplicar. Portanto, não há aqui que apelar a qualquer ideia
de retroatividade, mas de aplicação da lei mais favorável.

1 A Professora refere repetidamente o Ac. n.º 348/2005/T. Const. (em que nem foi relatora) por
lapso, quando na verdade se quer referir ao Ac. n.º 384/2005/T. Const., como comprova a
passagem que abaixo é citada.
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

Podemos dizer que para além do princípio consagrado no 29.º/4 CRP, o da


aplicação retroativa da leis mais favorável, que abrange tanto a última das leis
como qualquer lei intermédia numa sucessão de leis, também existe um princípio
mais amplo – no bloco inerente ao princípio da legalidade da Constituição e ao
fundamento da necessidade da igualdade – que é o de que numa sucessão de
leis se aplica a lei mais favorável, mesmo que essa lei tenha já sido revogada e
a lei posterior se possa aplicar. Nessas situações persiste a primeira lei. E
portanto, enfim, por força até de alguma reserva de caso julgado, que aqui acaba
também por ser considerado. Mas eu estou a frisar que, para além do princípio
da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, que, obviamente, a contrariu
sensu, vai implicar um princípio da não aplicação retroativa da lei penal menos
favorável, há também um princípio mais amplo para situações em que não se
coloque sequer o problema de retroatividade. Numa sucessão de leis, todas elas
aplicáveis, vamos supor, sem problemas de retroatividade, vai-se aplicar a lei
mais favorável – mesmo que ela já esteja revogada e mesmo que se pudesse
aplicar a outra lei, independentemente de não haver retroatividade, que pode
nem se colocar, nomeadamente quando se trate daqueles casos em que é
justificada a aplicação imediata –, há um principio geral de que entre várias leis
aplicáveis (sucessão de leis) a um determinado facto ou processo, conforme a
matéria de que se trate, desde que seja matéria associada ao Direito Penal (ao
fundamento ou à agravação da responsabilização na matéria das penas), há de
ser aplicada a lei mais favorável, mesmo que já tenha sido revogada.
E esta ideia, que é no fundo uma certa extensão ou uma certa ampliação ou
potenciação do princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, pode
ver-se bastante bem na discussão travada à volta do caso tratado neste acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 384/2005. O caso é um caso em que foi requerido
ao Estado português a extradição de um cidadão da União Indiana pela prática
de factos graves de terrorismo com consequências graves para os seus
concidadãos. Houve um processo complexo, com pareceres, nomeadamente até
um do Professor FIGUEIREDO DIAS, e o caso chegou ao Trib. Constitucional
porque o problema que se colocava era o de saber se, após a revisão
constitucional de 2004, os critérios considerados para a extradição na última
versão da Constituição eram critérios mais generosos e, portanto, contrários ao
arguido, e nesse sentido se se deveria aplicar, já que os factos tinham ocorrido
antes da revisão constitucional (os factos que justificavam o pedido de extradição
e penso que até o próprio pedido teriam sido anteriores à versão da Constituição
resultante da revisão de 2004). A defesa sustentava que se deveria aplicar a
versão da Constituição de 1997, que se manteve com a revisão de 2001, e não
se deveria aplicar a última versão da Constituição, a de 2004, que estabeleceria
maior possibilidade de extradição, nos termos do art. 33.º/4 CRP.
Não vai haver muito tempo para trabalhar nesta questão, costumo dizer e direi
sempre que a discussão deste acórdão é matéria, mas claro que não vai haver
muita insistência nem muito tempo nas aulas práticas para se tirar dúvidas
quanto a esta questão.
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

Portanto, devem recordar-se que na última aula eu tinha dito que entre 1997 e
2004 tinha havido uma mudança do texto da Constituição relativamente às
possibilidades/às condições que admitiriam a extradição nos casos em que se
aplicasse a pena ou a medida de segurança restritiva da liberdade com caráter
perpétuo, de duração indefinida. A minha ideia é de que houve realmente uma
mudança de redação no sentido eventualmente esclarecedor de que aqui a
restrição que a Constituição impõe é diferente da da pena de morte, prevista
agora no n.º 6, na medida em que, embora exija uma vinculação jurídica do
Estado, é uma vinculação jurídica no plano do Direito Internacional – a qual terá
que ter, é claro, para ser admissível em termos de revisão constitucional, uma
possível vinculatividade no plano interno dos tribunais, portanto, não é uma mera
garantia diplomática. Nesse sentido, acho que desde 1997, passando por 2001
e 2004, se manteve sempre o mesmo sentido, mas é verdade que em 1997 se
exigia, como se recordam, as tais condições de reciprocidade, que não tinham
muito sentido, e, adicionalmente, a garantia pelo Estado requisitante de que não
seria aplicada a prisão perpétua, que eu já interpretava no sentido de ser uma
vinculação jurídica – é claro, no plano do Direito Internacional, também. E,
portanto, vincularia o Estado. Mas é verdade que, em 1997, a perspetiva
retratada é a perspetiva do acordo bilateral, de uma vinculação recíproca dos
Estados, em que, para além de uma vinculação quanto aos deveres de
extradição, haveria uma vinculação quanto à questão do compremetimento ou
da garantia de que não se iria aplicar a pena de prisão perpétua.
Nas atas da revisão constitucional vê-se perfeitamente que isto foi bastante
discutido, e, realmente, o sentido do n.º 4 atual (que em 1997 era o n.º 5, houve
uma alteração da numeração da Constituição) é o de haver uma conveção a que
Portugal esteja vinculado, não tem de ser uma convenção bilateral, e resultar
dessa convenção tais garantias, o que implica um comprometimento um pouco
indireto do Estado requisitante com o Estado português – um compromisso de
não violar uma convenção, que normalmente até é multilateral. O n.º 4 está
sobretudo pensado para este tipo de convenções/tratados multilaterais, e por
isso não é tão garantística – o oferecer garantias de que a pena ou a medida de
segurança não será aplicada e executada é uma espécie de vinculação em bloco
que consta da própria convenção internacional. Isto pode parecer a mesma
coisa. Eu diria que talvez a melhor interpretação é de que o que se diz no n.º 4
não é substancialmente diferente do que se dizia no n.º 5 em 1997 e que a
revisão constitucional apenas veio esclarecer/iluminar a tal garantia de
reciprocidade, que não tinha qualquer cabimento quanto à aplicação da pena de
prisão perpétua e apenas se poderia referir a um dever recíproco de extraditar.
Portanto, a melhor interpretação será a de que houve uma clarificação,
mantendo-se no essencial um dever jurídico no plano internacional, mas que, a
meu ver, já em 1997 como em 2004, tinha expressão no plano interno, não tendo
a exigência do n.º 6 do art. 33.º.
Todavia, quando o caso do Ac. 384/2005 foi colocado ao Trib. Constitucional em
2005, o que foi sustentado pela defesa é que, estando a realizar-se a extradição
desse cidadão da União Indiana ao abrigo da Convenção de Nova Iorque (em
que tanto Portugal como a União Indiana participaram, portanto, uma convenção
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

multilateral, e em que está consagrada a garantia de não aplicação da pena de


prisão perpétua em certos casos, quando fosse exigida por certos Estados que
tivessem assinado a convenção), não havia nenhum acordo de extradição entre
Portugal e a União Indiana nem nenhum compromisso forte por parte da Índia
face a Portugal de não ser aplicada a pena de prisão perpétua e que apenas o
facto de ambos os Estados serem signatários da convenção não era garantia
suficientemente vinculativa para os tribunais da União Indiana quanto à não
aplicação da pena perpétua. E, realmente, nos termos em que foi colocado o
problema, tinha algum sentido, porque esta interpretação não se pode excluir,
portanto, o que poderíamos pensar é que, embora a revisão constitucional se
aplicasse imediatamente em matéria de extradição (que é uma matéria que não
tem natureza penal direta, embora tenha repercussões penais, podendo admitir-
se que fosse imediatamente vinculativa nesta matéria), das duas uma: i) ou o art.
33.º, n.º 4, concede as mesmas garantias e a mesma vinculatividade aos
tribunais da União Indiana em função da tal Convenção de Nova Iorque, tal como
se fosse uma convenção bilateral, caso em que é indiferente aplicar a versão de
1997 (que se manteve em 2001) ou a de 2004, ii) ou houve uma flexibilização
das garantias e, assim interpretada a Constituição, tínhamos então um problema
de sucessão de leis constitucionais no tempo em matéria penal, em que a própria
Constituição permite apelar a um princípio de aplicação da lei constitucional mais
favorável no tempo. E é neste ponto que se coloca a minha posição de voto. Reli-
a e apercebi-me que ela talvez não seja assim tão clara; hoje para mim é mais
claro do que naquele tempo. Naquele tempo e em função do caso concreto,
admiti que a formulação de 2004 fosse mais flexível face à anterior, porque
também me pareceu ser essa uma interpretação possivel para os tribunais
portugueses e a nossa ordem jurídica e, sendo essa uma interpretação possivel,
havia que salvaguardar, in dubio pro libertatem, no fundo, a aplicabilidade da lei
constitucional mais restritiva/garantística neste caso da extradição e que melhor
garantisse que não se pudesse aplicar no direito interno do Estado requisitante
a pena de prisão perpétua.
Tenho aqui a minha declaração de voto de vencida no Ac. n.º 384/2005/T. Const.
e vou ler-vos um excerto [transcrevi a declaração de voto na íntegra; a parte lida
pela Professora encontra-se a negrito e os comentários feitos durante a leitura
encontram-se entre parênteses retos]:
«Declaração de voto. - Perante as dúvidas sobre a
constitucionalidade [em face do art. 33.º/4 CRP] do artigo 9.º, n.º
3, da Convenção de Nova Iorque - na interpretação segundo a
qual Portugal estaria obrigado a extraditar uma pessoa por factos
a que corresponda, abstractamente, a pena de prisão perpétua,
sem que exista compromisso convencionado entre Portugal e a
União Indiana de proceder a tal extradição mediante a prestação
de garantias de não aplicação ou execução de tal pena - decidi
não contribuir para a maioria que se formou. As minhas dúvidas
radicam nos seguintes pontos:
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

1.º Só tem verdadeiramente sentido considerar que o artigo 33.º,


n.º 4, da Constituição, na versão vigente à data do pedido de
extradição, é a norma constitucional aplicável, mesmo após a
nova redacção conferida pela revisão constitucional de 2004, se
se entender que existe uma verdadeira sucessão de normas
constitucionais no tempo, sendo a norma actualmente vigente
menos favorável. Se o conteúdo normativo for idêntico, o
parâmetro é sempre o mesmo, ou seja, o estabelecido pela
versão vigente à data da decisão recorrida (a actual versão);
2.º A consideração de elementos literais e históricos na interpretação
do artigo 33.º, n.º 4, na versão da revisão constitucional de 2001, leva-
me a concluir que eram suportadas pela norma constitucional, então
vigente, interpretações segundo as quais a possibilidade de
extradição por crimes a que correspondesse no direito do Estado
requisitante a prisão perpétua dependia de convenção internacional,
em que o Estado Português e o Estado requisitante fossem partes,
pela qual se estabelecessem efectivas condições de reciprocidade
relativamente ao dever de extradição por tais crimes;
3.º Ora, as relações de reciprocidade relativamente ao dever de
extraditar por crimes punidos dessa forma pelo Estado requisitante só
poderiam ser concebíveis, num contexto lógico-jurídico, se fossem
conexionadas com garantias de que tal pena ou medida de segurança
não viesse a ser aplicável;
4.º O facto de o artigo 33.º, n.º 4, na versão agora considerada,
acrescentar à exigência de reciprocidade a exigência de que o Estado
requisitante ofereça garantias de que tal pena não será aplicada ou
executada não permite por si concluir que a reciprocidade
estabelecida em convenção internacional prescindiria desse tipo de
garantias;
5.º No contexto histórico que suscitou a revisão constitucional, aliás,
apenas se justificava eliminar a exigência, decorrente de interpretação
da versão anterior da Constituição pelo Tribunal Constitucional, de
uma vinculação de fonte jurídica interna do Estado requisitante,
recolocando o problema ao nível dos mecanismos da cooperação
penal internacional;
6.º Foi essa a perspectiva que me levou a subscrever o Acórdão n.º
1/2001, que interpretou o artigo 33.º, n.º 4, após a revisão
constitucional de 2001, e é esse o sentido que, a meu ver, justificou o
consenso formado à volta da ideia de que bastariam as garantias
juridicamente vinculantes no plano do direito internacional público;
7.º A passagem do plano da vinculatividade das garantias na
dimensão jurídica interna para o plano da vinculatividade conferida
pelo direito internacional público não significa senão o
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

reconhecimento do valor da cooperação jurídica internacional penal e


não um retrocesso, a esse nível, para a mera lógica político-
diplomática ancestral do direito internacional público. Só, aliás, o
entendimento de que não teria sido suficiente essa alteração de
planos justifica a nova redacção da Constituição, como resulta claro
da discussão parlamentar;
8.º Negar que a revisão constitucional de 2004 se orientou num
sentido menos garantista no plano jurídico, sendo meramente
clarificadora [que é aquilo que eu acabo por admitir, mas como
não era essa a questão em discussão…], é negar a evidência do
contexto da revisão. Mesmo que a nova versão apenas viesse
impedir interpretações como a que defendi [portanto, a mais
garantista], isso sempre significaria que essas interpretações
eram sustentáveis e que, in dubio pro libertate, deveriam ser
admitidas.
Todas estas razões de dúvida profunda quanto à argumentação do
acórdão levam-me a não poder, em consciência, e sem prejuízo de
ulterior estudo do problema, fazer parte da maioria que decidiu não
julgar inconstitucional a norma agora considerada. - Maria Fernanda
Palma.»
Portanto, a minha perspetiva só avança um bocadinho relativamente à
declaração de voto na medida em que, como não estou no contexto da discussão
de um caso, posso dizer que entendo que, mesmo assim, a nova versão, mais
porosa, mais flexível, não deixa de exigir garantias no plano do Direito
Internacional vinculativas do Estado e com repercussão no direito interno. E,
portanto, em certo sentido, eu diria que ela tentou sobretudo ser clarificadora no
sentido amplificativo, de permitir outras situações que não as de convenções
bilaterais – nesse sentido há de facto uma alteração, pois em 1997 está-se a
pensar sobretudo num plano bilateral e aqui está-se a pensar num plano mais
amplo, nomeadamente de convenções como a de Nova Iorque, que são de
natureza multilateral, sem haver nenhum compromisso direto entre dois Estados,
em que a vinculação é mais explicitamente internacional e menos
contratual/convencional perante o outro Estado. Apesar disso, entendo que
estaríamos a ultrapassar os limites da interpretação da revisão constitucional de
2004 se considerássemos que esta revisão de 2004 veio flexibilizar a tal ponto
que a garantia de Direito Internacional ou a vinculatividade no plano do Direito
Internacional nao teria de ter nenhuma repercussão no plano do direito interno –
isso não subscrevo. No entanto acho que é interessante acompanharem o
estudo desta matéria com a leitura deste acórdão, incluindo a minha declaração
de voto.
2 – MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Pois bem, neste momento vamos então continuar com a matéria agora do
mandado de detenção europeu, saindo da extradição. Não fazendo grande
desenvolvimento, a lei que veio consagrar em Portugal o mandado de detenção
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11.A AULA, 2.A PARTE

europeu foi a Lei n.º 65/2003. O mandado de detenção europeu é o principal


instrumento da cooperação judiciária na UE. É claro que, posteriormente, se veio
a consagrar o mandado europeu de obtenção de provas, que é o correspondente
processual ao mandado de detenção europeu, mas este instrumento de
cooperação judiciária internacional é importantíssimo. É o culminar de uma
evolução da própria UE que desenvolve o chamado terceiro pilar da construção
europeia, o da justiça e dos assuntos internos. Isto, como vocês verão, tem uma
história. Muito sucintamente, como eu retrato e todos os manuais de DUE
referem, vem do Acordo de Schengen, que cria o espaço europeu de liberdade,
de segurança e de justiça, depois desenvolve-se com o Tratado de Maastricht,
em 1992, em que começa a desenhar-se o segundo pilar da política europeia de
segurança comum e este terceiro, respeitante à justiça e aos assuntos internos.
E o Tratado de Lisboa, que foi o auge de toda esta evolução.
A grande ideia que preside ao funcionamento deste tercerio pilar é uma ideia que
podemos dizer que está institucionalizada numa ideia de reconhecimento
mútuo de decisões judiciais. A construção deste espaço referente à justiça e
aos assuntos internos – neste caso à justiça –, não é a ideia de uma total
harmonização de direitos ou de um Direito Penal europeu, que, enfim, em alguns
aspectos se pode dizer que na prática já vai existindo, mas não existe assumida
ou fundamentadamente. Claro que já existe uma reforma de geração de Direito
Penal através de decisões-quadro que têm de ser cumpridas e há, depois do
Tratado de Lisboa, uma certa vinculação em matéria de Direito Penal às
decisões da UE – também recomendo a leitura do meu Direito Constitucional
Penal neste ponto –, mas o mandado de detenção europeu, associado ao grande
princípio ou grande ideia que é o reconhecimento mútuo de sentenças está
ligado a um modo, não diria processual, mas democrático-consensual de se
produzir cooperação jurídica no seio da UE. A perspetiva é a de que, colocando
como condição fundamental que todos os Estados que pertencem à UE
comunguem de todos os princípios fundamentais em matéria de garantias, de
Estado de Direito e de Justiça (neste caso, justiça penal), estando vinculados ao
Estado de Direito democrático e aos grandes princípios constitucionais
garantistas do Direito Penal e do Processo Penal, não há razão para que não se
reconheçam as decisões judiciais dos outros países. Necessitando, contudo, de
fazer um aferimento caso a caso de que essas garantias são respeitadas, como
acontece em matéria de extradição. Há uma ideia-base de que a adesão dos
Estados à UE e aos tratados que culminaram no Tratado de Lisboa não pode
deixar de ter o significado de o controlo das decisões judiciais dos outros Estados
ser minimizado, pelo menos em matérias muito importantes. Pois bem, é isso
mesmo que está totalmente consagrado no Tratado de Lisboa e nos acordos que
levaram ao mandado de detenção europeu e, na lei portuguesa, a Lei n.º
65/2003.
Relativamente a um vasto catálogo de crimes – crimes muito graves e com
muita internacionalidade também, ou crimes em que há um acordo de princípio
fundamental sobre a importância dos bens juridicos em causa e sobre a
necessidade de se reforçar a tutela penal dos diferentes Estados – este
instrumento de cooperação que é o mandado de detenção europeu dispensa
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

a dupla incriminação pelo Estado de emissão e pelo Estado de execução


do mandado. Coisa que não acontece com a extradição, como podem
confirmar lendo o art. 31.º, n.º 2, da Lei n.º 144/1999 (Lei da Extradição), que
claramente a requer para que a extradição se possa verificar e associa-a ao
próprio fim e fundamento da extradição (a epígrafe do artigo).
A dupla incriminação é um aspeto característico dos fundamentos da própria
extradição e que justifica a própria extradição. É exatamente essa dupla
incriminação (tanto pelo Estado que emite o mandado como pelo Estado que o
executa) que o mandado de detenção europeu dispensa para um catálogo de
crimes, não para todo e qualquer crime, crimes sobre os quais houve um acordo
fundamental entre os Estados. Esse elenco inclui vários, é o art. 2.º, n.º 2, da
Lei n.º 65/2003 (Lei do Mandado de Detenção Europeu), os crimes
internacionais, ou com internacionalidade associada, a organização criminosa, o
terrorismo, também crimes comuns que todos os Estados perseguem e prevêem,
como o homicídio, os tráficos de pessoas, de drogas, de armas e de viaturas, a
exploração sexual de crianças, a corrupção, o branqueamento, o fogo posto, o
desvio de avião ou navio, a cibercriminalidade, etc.
Portanto, aqui, é óbvio que isto resulta de um acordo fundamental mas a ideia
básica é do princípio do reconhecimento mútuo de sentenças que é uma espécie
de grande princípio constitucional do DUE e é um modo – eu não diria processual
de definição do direito, no sentido do Processo Penal, mas é um certo modo
político – de se definir o direito, neste caso o Direito Penal, através do
reconhecimento mútuo da validade do direito alheio em determinadas matérias,
em que se dispensa uma verificação à luz dos princípios constitucionais de cada
Estado, porque se pressupõe que todos os Estados partilham o rule of law, o
Estado de Direito democrático, e que aqueles crimes são crimes que não podem
deixar de ser perseguidos criminalmente e que tem de haver um certo
entendimento e uma certa celeridade na perseguição criminal desses crimes.
Eu também tenho um artigo sobre o reconhecimento mútuo de decisões judiciais
que vou ver se consigo que seja colocado no Moodle, juntamente com parte do
Direito Constitucional Penal, e que explica de forma mais desenvolvida a ideia
da formação de uma espécia de Direito Penal da UE, mas que não é um direito
substancial, no sentido de ter as mesmas regras, mas é um direito do
reconhecimento do direito alheio. É basicamente essa a ideia, na medida em que
todos partilhem dos mesmos princípios de Estado de Direito democrático e das
mesmas garantias de Direito Penal e de Direito Processual Penal.
O mandado de detenção europeu é um instrumento de cooperação judiciária
internacional muito mais intenso do que a extradição. Como disse, dispensa
dessde logo o requisito da dupla incriminação quanto a um vasto conjunto de
crimes tipificados no art. 2.º, n.º 2, da Lei do Mandado de Detenção Europeu
– é uma das grandes diferenças face à extradição. E resulta ainda do art. 2.º, n.º
3, da Lei do Mandado de Detenção Europeu, quando estejamos fora dos
crimes deste catálogo/elenco, só é admissível a entrega da pessoa reclamada
se os factos invocados pelo mandado de detenção europeu constituírem
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

infranção segundo a lei criminal portuguesa – i.e., há o requisito de dupla


incriminação. Ou seja, fora do catálogo de crimes do art. 2.º, n .º 2, o mandado
de detenção europeu com a sua entrega muito mais expedita/célere é possível,
mas tem de pressupor a dupla incriminação.
Havia até recentemente uma certa contradição axiológica dentro da Lei n.º
65/2003 (Lei do Mandado de Detenção Europeu), no seu art. 12.º, n.º 1, al. a).
Quem tiver edições do manual anteriores à reimpressão da 4.ª edição, de 2019
vai encontrar ainda a discussão do problema como se punha até 2019 (quem
tem edições mais recentes vai encontrar atualizada a referência na pág. 214 a
essa contradição sistemática). Essa contradição sistemática existia na medida
em que se considerava no art. 12.º, n.º 2, que os casos em que não houvesse
dupla incriminação poderiam ser de recusa facultativa, enquanto o 12.º, n.º 3,
conforme está redigido e também a contrariu sensu do n.º 2, rejeita a
possibilidade de entrega (recusa obrigatória). Essa contradição nunca poderia
ser resolvida no sentido de prevalecer a mera recusa facultativa, porque isso
seria uma espécie de analogia proibida contra o arguido, no sentido em que se
iria facilitar a sua entrega, o que poderia ser contrário à proteção dos próprios
direitos do arguido e portanto seria uma analogia in malam partem.
O que é certo é que a Lei n.º 115/2019 veio revogar, e fez muito bem, o art. 12.º,
n.º 1, al. a). E, portanto, essa possibilidade de recusa facultativa deixou de existir
e temos de interpretar o art. 2.º, n.º 3, como uma recusa obrigatória, não havendo
qualquer interpretação flexibilizadora possível que não seja também proibida por
redução teleológica incriminadora ou analogia, dependendo da perspetiva como
quisermos ver o problema. Portanto, os que tiverem a edição antiga do manual,
tenham atenção à discussão desatualizada do problema na pág. 214. A versão
que está correta é ume reimpressão de 2019 que, penso eu, é também
correspondente à reimpressão deste ano, que já faz referência, na pág. 214, à
Lei n.º 115/2019.
Depois, para além desta primeira diferença importante entre o regime do
mandado de detenção europeu e a extradição, claro que há também do ponto
de vista constitucional uma importante diferença, porque enquanto o princípio da
não entrega de nacionais, previsto no art. 33.º, n.º 3, CRP, só com aquelas
exceções, prevalece para a extradição, o que regula do ponto de vista
constitucional o mandado de detenção europeu é o que está previsto no art. 33.º,
n.º 5, CRP. O n.º 3 do art. 33.º CRP não se aplica verdadeiramente ao
mandado de detenção europeu, portanto não se aplica o princípio geral da
não extradição de cidadãos portugueses do território nacional, com as
exceções do terrorismo e da criminalidade internacional organizada e desde que
a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo
e equitativo. Pois na matéria do mandado de detenção europeu esta norma está
superada porque o n.º 5 do art. 33.º CRP diz que o disposto nos n.ºs anteriores
não prejudica a aplicação de normas de cooperação judiciária penal
estabelecidas no âmbito da UE e, portanto, pode dizer-se que o princípio da não
extradição de nacionais não vigora na matéria do mandado de detenção
europeu, porque senão não conseguiríamos cooperar com base no princípio do
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

reconhecimento mútuo de decisões judiciais. O que está previsto no art. 12.º, al.
g), da Lei do Mandado de Detenção Europeu é que o mandado de detenção
tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o
Estado português se comprometa a executar aquela pena ou medida de
segurança de acordo com a lei portuguesa. Portanto, o que está previsto é uma
recusa facultativa, não obrigatória. Isto é uma grande flexibilização porque
realmente o que regula diretamente a Lei do Mandado de Detenção Europeu é
o art. 33.º, n.º 5, CRP, enfim, na relação com o art. 7.º CRP, do empenhamento
de Portugal na construção de uma UE. O art. 7.º, n.º 6, CRP diz-nos claramente
que «Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da
subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e
territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e
execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns,
convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da
União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da união
europeia».
Portanto, o art. 7.º, n.º 6, CRP, em conjugação com o art. 33.º, n.º 5, CRP, é
a legitimação constitucional da mera recusa facultativa da entrega de
cidadãos nacionais. Isto é uma grande diferença relativamente ao princípio
da não entrega de cidadãos nacionais aplicável à extradição.
Uma terceira diferença é o afastamento do princípio da territorialidade
como causa impeditiva da entrega, diferentemente do que acontece com a
extradição, tornando-se aqui apenas uma causa de recusa facultativa, nos
arts. 12.º, n.º 1, als. h) e i), Lei n.º 65/2003. Portanto, também a ideia de
soberania punitiva no território português está afastada no âmbito desta
cooperação. Claro que pode ser mantida, porque ainda assim é possível uma
recusa facultativa.
O último ponto a que gostaria de chamar a atenção, e que corresponde ao que
está escrito nas pp. 215 e 216 do manual, é realmente uma questão com
bastante importância. Porque o facto de o art. 33.º, n.º 3, CRP, que se refere à
não extradição de nacionais, ser afastado, é algo que tem cabimento, que não
corresponde a uma violação dos limites materiais da revisão constitucional, não
há uma alteração da CRP que se possa questionar. Mas já quanto às garantias
do art. 33.º, n.º 4, CRP, as garantias de que temos andado a falar acerca
exatamente da prisão perpétua, o modo como o tema está tratado na Lei do
Mandado de Detenção Europeu, o art. 13.º, n.º 1, al. a), torna-se um pouco
problemático, porque o art. 33.º, n.º 5, não está subordinado ao 33.º, n.º 4, é
exatamente o que pretendo dizer, é que o 33.º, n.º 4 não prejudica os
fundamentos, os objetivos e os critérios da cooperação na construção da UE.
E em quase tudo eu diria que não há nenhuma incompatibilidade com os limites
materiais de revisão constitucional, mas eu tenho uma dúvida quanto à questão
da pena de prisão perpétua. Com efeito, a decisão de entrega basta-se agora
pelo art. 13.º, n.º 1, al. a), Lei n.º 65/2003, com a garantia de estar previsto no
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

sistema jurídico do Estado de emissão uma revisão da pena a pedido, ou o mais


tardar ao fim de 20 anos, ou medidas de clemência, com vista a que tal pena não
venha a ser executada. Mas “possa não vir a ser executada” não é igual a “tenha
de não vir a ser executada”. É esta pequena nuance que é problemática.
Portanto, o art. 33.º, n.º 5, CRP aparentemente daria também cobertura a uma
alteração dos critérios irredutíveis do art. 33.º, n.º 4, também, para além do art.
33.º, n.º 3.
Embora noutros países se tenha já discutido a questão, nomeadamente a
Alemanha, em que o Tribunal Constitucional Alemão foi confrontado com
questão semelhante quanto à possibilidade de entrega de nacionais. Mas,
quanto a essa perspetiva da proteção dos nacionais, eu penso que a conceção
mais contemporânea de soberania, que é uma fundamentação da soberania
para o respeito dos direitos humanos, não coloca o acento tónico nas relações
de nacionalidade. O que justifica um Estado soberano não são os nacionalismos,
mas a proteção dos Direitos Fundamentais no seu território e na cooperação
internacional. E, portanto, não penso que resulte do conjunto dos princípios da
Constituição Portuguesa, que são princípios com uma certa universalidade, que
haja que dar prevalência à proteção dos nacionais relativamente à cooperação
internacional na matéria de defesa de bens jurídicos essenciais, quer da
humanidade, quer bens jurídicos internacionais, e também da construção da UE.
Mas já aqui quanto à questão da pena de prisão perpétua, há objeções possiveis
no plano da constitucionalidade deste art. 13.º, n.º 1, al. a), porque se basta com
uma possibilidade de revisão da pena. Basta-se talvez com a perspetiva quase
estatística de que, nos países em que está prevista a pena de prisão perpétua,
como a Alemanha e a França e também a Espanha, para certos crimes,
geralmente não se chegar a efetivar a perpetuidade da pena. O que é certo é
que, como existe uma obrigatoriedade de revisão e possibilidades de clemência,
na maioria dos casos não se chega a efetivar a prisão pela vida, sobretudo no
caso da Alemanha. Mas isto é uma possibilidade apenas. Claro que seria
totalmente insustentável a ausência de possibilidade de revisão, aí realmente
seria absolutamente clara a ultrapassagem dos limites materiais de revisão
constitucional. Mas os limites previstos no art. 288.º, al. d), CRP podem estar em
causa quando é apenas uma possibilidade a revisão, na medida em que se
entenda que o núcleo fundamental do direito à liberdade (consagrado no art.
27.º, n.º 1, CRP) possa estar essencialmente fragilizado, e também os limites
das penas e das medidas de segurança (previstos no art. 30.º, n.º 1, CRP).
Eu digo nas lições – e aqui mantenho, fundamentalmente, talvez até acentuando
mais a dúvida – que a única resposta possível a esta argumentação no plano
constitucional (à argumentação de que os limites da revisão constitucional
possam estar em causa) será o entendimento de que os objetivos da cooperação
internacional na construção de uma UE seriam mais importantes do que uma
conceção de tipo absoluto maximalista dos Direitos, Liberdades e Garantias. E,
portanto, para Portugal poder cooperar internacionalmente, teria de fazer uma
ponderação entre a importância dessa cooperação internacional, que é uma
cooperação para o desenvolvimento e também para a proteção dos direitos a
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

todos os níveis, desde o nível económico até os Direitos Fundamentais


primários, que essa finalidade acabaria por tombar o prato da balança em seu
favor, em detrimento de uma defesa absoluta de que não seja aplicável a pena
de prisão perpétua. Seria uma espécie de condescendência, de ponderação de
objetivos constitucionais, em que há um objetivo que acabaria por justificar a
mitigação do outro – do modo que o outro objetivo, que é o de ser protegido no
máximo possível no seu direito à liberdade e ser respeitada universalmente a
proibição da pena de prisão perpétua seria objeto de uma proteção mais fraca.
Mas eu diria que é difícil fazer esse raciocínio, porque uma vez aberta a porta a
esse raciocínio também teríamos de abrir à questão da pena de morte – não no
âmbito da UE, como é óbvio, onde está excluída a pena de morte –, mas começa
a ser o mesmo princípio, não é? Eu chamo a atenção para uma grande discussão
que houve quando Portugal ratificou o Estatuto de Roma, que, aliás, nos termos
do art. 7.º, n.º 7, CRP (houve uma revisão constitucional para permitir a
ratificação do Estatuto de Roma), permite a entrega de Portugal ao Tribunal
Penal Internacional, a cujos crimes são aplicáveis penas perpétuas – não a pena
de morte, essa está excluída, mas penas de prisão perpétua. A perspetiva,
quando se fez a discussão, é de que havia também aqui a previsão da revisão
da pena, mas a resposta portuguesa e o modo como fundamentou a ratificação
é de que Portugal apenas ratificou e aceitou a cooperação em termos «de
complementaridade». Isto significa que Portugal não aceita introduzir uma
fragilidade relativamente à proibição da pena de prisão perpétua na sua
Constituição, na medida em que entende ter condições para – quando esse
problema de aplicação da pena de prisão perpétua ao agente se colocar, se for
entregue ao TPI – Portugal julgar por si próprio o agente, nos termos da sua lei
e da sua organização do poder punitivo do Estado. Portanto, o TPI é apenas uma
instituição complementar e, quando haja cabimento para recorrer ou se entregar
alguém a essa jurisdição complementar, Portugal não entrega e julga nos termos
da sua lei e dos seus princípios constitucionais.
Também sobre esta matéria, do TPI, tenho alguns artigos, pelo menos um
relacionado exatamente com esta questão da necessidade de uma revisão
constitucional à data da ratificação do Estatuto de Roma – era claríssimo que era
preciso, mas havia autores que defendiam que não, enfim, há sempre
pensamento para tudo e há sempre argumentos diversos e conflituantes –, mas
em boa hora foi feita essa revisão constitucional e esclareceu-se que realmente
não se estava a ultrapassar os limites materiais de revisão constitucional, porque
a hipótese de Portugal entregar ao TPI agentes que tivessem praticados factos
que segundo o Estatuto de Roma fossem passíveis de aplicação da prisão
perpétua, era alguma coisa que poderia não ser feita e até deveria não ser feita,
na medida em que, sendo o TPI complementar, Portugal não teria necessidade,
nessas situações, de recorrer a essa jurisdição e teria antes o dever de o julgar
através da sua lei e jurisdição.
Portanto este art. 13.º, n.º 1, da Lei do Mandado de Detenção Europeu tem
alguns problemas. Enfim, eu diria que nestes casos a recusa da entrega deveria
ser obrigatória, para não haver o problema de inconstitucionalidade manifesto.
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11.A AULA, 2.A PARTE

Eu diria que só uma interpretação no sentido de que nestes casos é obrigatório


o tribunal recusar a entrega do agente é conforme à Constituição, porque não há
uma garantia de não aplicação da prisão perpétua por parte do outro Estado,
apenas uma garantia de revisão da pena por parte do sistema legal e judicial. A
melhor interpretação de acordo com a Constituição, senão a única, é a de que,
para não estar a violar os limites materiais de revisão constitucional nesta
matéria, teria de haver uma recusa de entrega obrigatória. Tenho muita
dificuldade em não chegar a esta conclusão. Enfim, compreendo que é contra a
letra do 33.º, n.º 5, CRP, é contra a orientação geral do art. 7.º CRP, há aqui uma
problemática de limites materiais de revisão constitucional, mas i) não vejo como
a proibição da prisão perpétua não faça parte dos limites materiais da revisão
material ii) nem vejo como a proibição da pena de prisão perpétua seja só uma
questão a ser encarada só no plano interno, no plano nacional, sendo Portugal
tão exigente em matéria de extradição, e realmente terá de ser também encarada
em matéria de UE, por questão de coerência axiológica, porque um princípio
como o princípio da proibição da pena de prisão perpétua é um princípio que tem
necessariamente universalidade.
Portugal é um país pequeno com muitas dificuldades, maiores do que muitos
outros países, maiores mais ricos, mais poderes, que têm maior ciência se
calhar, melhor tecnologia, melhor organização, mas Portugal também tem
aspetos muito positivos no meio de tudo isto, com as suas próprias forças. Mas
há um ponto em que eu acho que Portugal contribui para o património jurídico
da humanidade, que é a defesa acérrima da proibição da pena de morte e da
proibição da pena de prisão perpétua. E, ao fazê-lo, Portugal demonstra a sua
vocação universalista. Não é uma coisa que defenda apenas para os seus
nacionais, ou para aqueles que estão sob o domínio da sua jurisdição penal, mas
defende para todos os outros que se relacionem com as nossas instituições
penais. Princípios como estes que são o núcleo de Direitos Fundamentais, a
base da igual e essencial dignidade da pessoa humana, são princípios que têm
uma dimensão universal. Portugal não os defende apenas para o seu cantinho,
não é? É um pequeno país, mas tem coisas muito grandes que tem feito, e vai
fazendo, mas sobretudo no seu passado histórico, em termos de desbravar os
caminhos do conhecimento do mundo, e neste ponto do Direito a insistência e
não cedência nesta questão – apesar de ter havido alguma cedência, porque é
difícil a cooperação judiciária internacional e difícil que a voz de Portugal se oiça.
A vocação universalista nesta matéria é uma das características essenciais da
Ciência Jurídica portuguesa, da Cultura Jurídica portuguesa e do
Constitucionalismo português.
Pois bem, caros alunos, sei que agora já não há muitos alunos que me ouvem,
mas vão ter teste mais proximamente e esta é a matéria que vem para o teste,
a matéria até esta aula. Isto para os alunos da FDUL, pois provavelmente há
alunos de outras escolas que também me estão a ouvir. Esta última parte da aula
é a última matéria sobre a qual incide o teste.
Continuaremos a ter aulas, porque este é um teste de avaliação contínua, e nas
próximas aulas analisaremos o problema do âmbito pessoal do Direito Penal – a
DIREITO PENAL I – PROFESSORA M.A FERNANDA PALMA
11.A AULA, 2.A PARTE

última parte do livro, as últimas paginazinhas –, mas como não haveria tempo de
trabalhar a matéria das imunidades nas aulas práticas, é uma matéria que não
vem para a frequência, apenas para o exame escrito. Como ainda nos faltam
aulas e iniciaremos o estudo do concurso de normas em relação com a
interpretação da lei penal e eventualmente, como está previsto aliás no
programa, ainda o estudo da Teoria Geral da Infração, das escolas ou sistemas
de análise e definição do crime. Mas isto será em aulas posteriores que já não
serão consideradas para estes testes de dia 4 de dezembro, mas apenas para
os exames finais.
Eu fico à espera das vossas dúvidas, através dos vossos assistentes ou
mesmo diretamente, antes do teste. Teremos uma aula antes do teste, mas
se me forem colocadas questões, aproveitarei a aula para responder às dúvidas
mais pertinentes, também vou tentar informar-me os aspetos em que há mais
necessidade de esclarecimento, relativamente às minhas aulas ou ao meu
manual, para poder dedicar parte dessa aula, que tratará da matéria das
imunidades e outras que virão só para o exame, ao esclarecimento de dúvidas
que tenham. Espero que estejam todos bem, sobretudo de saúde, e com
entusiasmo, apesar destas circunstâncias. Mas eu penso que, como a maioria
dos alunos é bastante jovem, e quem não é tão jovem, por ser aluno se torna
mais jovem, como se diz no hino da universidade (Gaudeamus igitur) «juvenes
dum sumus» («enquanto somos jovens»), e, efetivamente, os próprios
professores acabam por se sentir mais jovens mesmo quando não o são, porque
a universidade é realmente o reino da juventude de espírito, da procura
incessante pelo conhecimento e pela perfeição das coisas, como está escrito
nos painéis da Cidade Universitária numa citação de CESÁRIO VERDE. Portanto
vamos continuando a persistir na procura do conhecimento, do fundamento das
coisas, do fundamento dos critérios jurídicos como o modo de procurarmos mais
um pouco nosso sentido, o sentido da vida e o sentido do Direito na vida. É
sempre essa a questão. Desde a primeira aula procurei chamar a atenção para
o sentido do direito na vida, quer para a nossa vida profissional, quer para a
nossa vida coletiva, a vida de todos nós. Então, até à próxima aula.

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