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JÚLIA, CONFISSÕES DE UMA DROGADA

Título original: JULIE, CONFESSION D'UNE DROGUÉE DE QUINZE ANS

Capítulo 1

Tu disseste-me, meu amor, para nunca temer a verdade e que poderia, daqui em diante, confessar-te tudo, pois só
as minhas mentiras te magoariam. No entanto, no momento de me confessar, tenho medo.
Vou perder-te. A verdade, a minha verdade, não a suportarás. Julgas conhecê-la. Aceitaste aquela que julgas que eu
sou: uma rapariguinha ferida que esteve prestes a morrer e que conheceu o medo e a vergonha. É grande a
tentação de me calar, de aceitar a felicidade que me ofereces. Foste tu que me prometeste: "De futuro, o pesadelo
acabou, repousa sobre mim. Farei de ti, com o tempo, a mulher mais feliz do mundo. Precisas primeiro de te curar.
Ajudar-te-ei com todas as forças da minha vontade, da minha ternura e do meu desejo também."
Eu respondi: "Sim... salva-me, obedecer-te-ei, mas tenho receio. E se tu fracassares, se já nada puder salvar-me?
Eu não vivi um simples pesadelo, eu desci aos infernos. Achas que se volta de lá impune, inocente, sem cicatrizes
repugnantes?"
E pronto. Como quiseste, cheguei a casa da tua avó, à casinha do Cotentin onde passaste todas as tuas férias da
infância, da adolescência. Aqui, preveniste-me, aprenderei enfim o que é a verdadeira vida, com os seus gestos
simples, as suas felicidades aprazíveis, as suas obrigações alegres. Regressar demasiado cedo para junto da minha
família parecia-te perigoso. Convenceste o meu pai da necessidade desta estada. Agradeço-te. É certo que me
enganei a respeito dele e da mulher. De qualquer modo, ainda não estou preparada para voltar a viver de novo com
eles.
As poucas horas que aqui passámos juntos, antes de voltares para Paris, foram talvez das mais felizes da minha
curta vida. O acolhimento, as lágrimas que vieram aos olhos dessa velha senhora que me recebia porque tu lho
tinhas pedido... Há alguns meses, eu teria desatado a rir maldosamente por causa de tanto sentimentalismo. Esta
noite, ao começar a escrever este caderno, desesperada, tenho de me conter para não soluçar.
Sou indigna do que tu me ofereces, do que ela me oferece!
Logo que o teu carro desapareceu na curva da estrada de Cherbourg, ela perguntou-me se podia tratar-me por tu e
pediu-me para eu fazer o mesmo, porque hoje em dia toda a gente se tratava por tu e ela achava muito bem. Em
seguida, avisou-me:
- Júlia, em minha casa serás livre, só não poderás recusar os bons pratos que pretendo preparar para ti e ensinar-te
a cozinhar. Tu precisas de recuperar o teu aprumo. Mas eu tenho bons discos e bons livros: adoro música e
literatura. E, além disso, hei-de confiar-te algumas receitas... para se ser feliz: sou um pouco feiticeira, conheço-as.
Infelizmente, Etienne, meu querido, eu sei que, para mim, para nós, é demasiado tarde. As receitas são ineficazes.
Eu falava-te de inferno. Nesse inferno, não houve apenas a queimadura das chamas, as torturas inimagináveis para
quem as não suportou, houve também a lama, lama na qual eu me atolei, por vezes para satisfazer prazeres
inomináveis.

Tu julgas saber tudo de mim, porque, como médico, estudaste linha a linha o meu dossier de doente, de drogada.
Visto que entre nós a verdade é uma obrigação, pois qualquer mentira mataria irremediavelmente o amor, devo
confessar-te que nós, os drogados, curados ou não, somos os mentirosos mais astutos que se possa imaginar, o
nosso poder de dissimulação é demoníaco. Gostamos de dissimular porque isso nos dá a ilusão de sermos, assim,
mais fortes que os nossos juízes, os nossos censores, os nossos inimigos e em geral aqueles que pretendem proibir-
nos de viver num mundo diferente do deles - em nome da moral, da nossa saúde e das leis sacrossantas de uma
sociedade que nós desprezamos incondicionalmente.
Eu divago, meu amor. O meu objectivo não é defender-me de ti, mas sim confessar-me sem nada deixar na sombra.
Ao princípio, também a ti eu mentia, porque tu eras médico, pior, um analista, e cada uma das tuas perguntas me
parecia uma armadilha, apesar de noutros momentos te considerar como o meu único amigo. Mais tarde, quando
comecei a estar apaixonada por ti, menti-te por medo, medo que me desprezasses, que quisesses livrar-te do meu
"caso", que te provocasse horror! A partir daí, confessei-te apenas o que me era impossível esconder-te: o meu
dossier médico testemunhava as drogas tomadas, os delitos cometidos, as duas tentativas de suicídio, os tráficos de
que era culpada, as minhas condenações. Fui mesmo ao ponto de reconhecer o prazer que me tinham dado certas
experiências sob o efeito dos estupefacientes, incluindo experiências sexuais. Tu ouvias-me com uma tal paciência!
Ora quem é que, antes de ti, alguma vez me tinha escutado, ouvido? Quando te fiz a descrição dos terríveis
sofrimentos que nos são causados pela dependência de certas drogas duras, como a heroína ou a morfina, apercebi-
me de que tu já não me consideravas apenas como tua doente. A alegria e a esperança invadiram-me! Agora, estou
aterrorizada e sinto vontade de morrer. A verdadeira Júlia não te irá causar problemas? Mas terei eu coragem de me
matar? Se tu me abandonasses, certamente tornaria a ficar vulnerável, fatalista, voltaria para junto dos meus antigos
companheiros, para perto desses que foram longe de mais num mundo de loucura para poderem ter a possibilidade
de se reinserir numa vida normal. Até ao dia em que, como tantos outros, eu seria vítima de uma overdose,
voluntária ou inconsciente. Há muitas mais do que aquelas que as estatísticas apontam. Mas as famílias,
envergonhadas, fingem tratar-se de um suicídio, murmuram... "foi um desgosto de amor... um insucesso escolar...
um traumatismo ignorado...". Alguns médicos, apiedados, querendo honrar a respeitabilidade dos amigos, a memória
das vítimas, passam uma certidão de
óbito ocultando a palavra "estupefaciente".
Deves perguntar a ti próprio onde é que eu quero chegar, meu bom Etienne.
A parte alguma! Quero apenas expor-me perante ti sem armas nem armadura. Quero deixar de mentir, de te mentir.

Um só dia passado junto da tua avó abriu-me os olhos. Se a tivesse conhecido mais cedo, ela poderia talvez ter-me
servido de modelo. Embora mais velha do que eu mais de meio século, como me parece mais nova, mais dinâmica e
mais corajosa do que eu! Como esta noite de Março está muito fresca, ela perguntou-me se eu seria capaz de
preparar uma grande fogueira na chaminé. No meio das cinzas, algumas brasas brilhavam ainda. Sim, isso eu sabia
fazer. Enquanto eu escolhia e depois colocava cuidadosamente os ramos secos e depois as achas, ajoelhada em
frente da chaminé, ela disse-me:
- Não te voltes. Ouve-me, mas não me respondas. Sou tão velha aos teus olhos que não consegues imaginar-me a
fazer disparates, a ser criticada pelos meus pais, a zangar-me com eles por não me compreenderem, por me
imporem obrigações idiotas! E no entanto isso sucedeu. E só Deus sabe como eu me revoltei, mais tarde hei-de
contar-te em detalhe. Tive também uma grande desilusão amorosa, aos dezassete anos, de modo a ficar desgostosa
para sempre dos homens, das suas traições... Quem não sonhou com uma bela morte romântica entre os quinze e
os vinte anos? Mas isso é idiota, e mais idiota é uma pessoa suicidar-se lentamente, dia após dia. Olha, não te irrites,
Júlia, não te estou a pregar moral, falo-te assim porque levo aqui uma vida muito solitária, e então as coisas do
passado voltam por vagas. Digo-te isto apenas para que saibas que entre ti e mim existem menos diferenças do que
julgas.
As chamas elevaram-se, e ela trouxe-me uma chávena de leite quente perfumado com canela. Tranquiliza-te,
Etienne, serei ajuizada. Não decidi escrever esta confissão à laia de testamento. Estou quase certa, apesar daquilo
que escrevi mais acima, de que me curarei completamente, de que não haverá uma recaída. à falta de "branca", não
roubarei as anfetaminas da farmácia, não inalarei qualquer frasco de acetona nem a garrafa de tira-nódoas que vi na
casinha do tanque. O teu amor "desintoxicou-me" completamente, mais do que os cuidados que recebi no hospital.
Mas...
Oh, meu amor, amando-te como te amo, como aceitar a ideia de que um dia, mesmo quando deixar de ser uma
rapariguinha irresponsável, possa vir a ser tua mulher, ter filhos teus?
Já não sou irresponsável! Já não sou também uma rapariguinha! Não tenho quinze anos, quase dezasseis. Tenho
cem, mil! Demasiados anos para poder fazer um homem feliz.
É para que tu compreendas e não me tornes as coisas mais difíceis que é preciso deixar-me contar-te a minha
história mesmo nos seus mais pequenos detalhes, correndo o risco de me repetir, de te cansar. Não sou escritora,
mas aliviar-me-á reviver contigo o que foi o calvário banal que fez de mim, com a idade em que as nossas mães
ainda certamente brincavam com bonecas, uma drogada, uma doente, e bem pior ainda.
Devo começar pelo princípio. Peço-te que me leias até ao fim! Sim, sei que muitas vezes terás a tentação de atirar
para longe de ti esta acumulação de horrores, de degradações, de humilhações e de loucuras suicidas. Mas eu
preciso de me libertar destas recordações que me minam mais seguramente que um cancro. Prefiro perder-te por me
ter exposto perante ti do que usar o teu nome pelo facto de tu amares aquela que julgavas que eu era. Não poderia
suportar muito tempo esta mentira, voltaria a cair nos meus erros. Voltaria aos meus demónios. Tu acabarias por me
odiar. Mais vale perder-te agora do que vir a ser rejeitada por ti mais tarde.

Estamos hoje a 21 de Março de 1984, primeiro dia da Primavera. Ladeando a pequena casa situada na estrada de
Diguleville, a dez minutos do canal da Mancha, duas enormes mimosas em flor perfumam o campo circundante.
Estas árvores de sol, nesta região! Há também uma palmeira, mas o vento de oeste trará chuva. Gosto deste
contraste. Ouço a tua avó. Parece que, na sua juventude, lhe chamavam a bela Hélène; ela ainda é bela, com os
seus cabelos brancos manchados de grandes madeixas de um louro metálico, o perfil afilado do seu rosto magro
com olhos de um azul-acinzentado, muito meigos. Depois de termos jantado por volta das sete horas, deixei-a a
fazer uma paciência. Ela estava instalada em frente da chaminé, com o calor da fogueira a corar-lhe a cara. Ela
afirma que as suas mãos mexem maquinalmente nas cartas, permitindo ao seu espírito organizar o que tem a fazer
no dia seguinte. Prometi-lhe não apagar a luz muito tarde. Ela não ousou dizer-me que viria aconchegar-me a roupa
e dar-me um beijo. Sou velha de mais, não é verdade, para esse género de gestos? Eu também não ousei reclamá-
los!
Amanhã de manhã iremos fazer compras a Cherbourg no seu pequeno automóvel e, se o tempo estiver bom, levar-
me-á ao Nez de Jobourg. Mostrar-me-á atalhos por onde eu poderei regressar a pé. Ela acrescentou a rir que
conduzia com prudência, não como tu, que muitas vezes és tomado, por um piloto de fórmula um.
É verdade, meu querido, que a tua mãe se parece com a tua avó Hélène, e que o teu pai, médico, como tu, é um
homem extraordinário, e que os pais dele... não, não quero evocar tanta felicidade. O contraste com a minha própria
juventude é demasiado penoso. Apercebeste-te da sorte que tiveste?
Não desejo acusar ninguém. No entanto, as coisas foram bem mais difíceis para mim. É talvez uma questão de
destino ou de época... Tu nasceste em 52... eu, em Junho de 68. Tu és Sagitário, vais a direito para a frente como a
flecha do archeiro celeste, eu sou Gémeos, sou inevitavelmente dúplice.
O pior, talvez, é que durante os primeiros treze anos da minha existência julguei ser a criança mais feliz do mundo,
com uns pais que adorava e dois irmãozinhos dos quais eu era o ídolo. A vida era fácil em nossa casa. O meu pai,
industrial de electrónica, não tinha, creio eu, qualquer problema de dinheiro. Muitos amigos frequentavam a nossa
bela casa na região da Touraine...
Para quê mostrar-me inutilmente modesta? Eu era muito bonita nessa época, parecia que já tinha quinze anos. Os
rapazes não se cansavam de me repetir que estavam loucamente apaixonados por mim... e isso, é claro, agradava-
me. Depois havia o jovem colaborador do meu pai, filho, de um dos seus velhos amigos. O meu pai casou tarde, aos
trinta e nove anos, com uma rapariga vinte anos mais nova do que ele.
Tenho de explicar-te quem é Frédéric Langlet. Em 1982, ele tinha vinte e sete anos, era alto, inteligente, muito
sedutor, um pouco misterioso. Diziam que tinha uma ligação amorosa com uma mulher casada. Eu também
acreditava nisso, e, inconscientemente, sem dúvida, andava ciumenta, pois tinha por ele uma dessas paixões não
formuladas como outras têm por um actor de cinema.
Todo o mal partiu sem dúvida daí. E que mal! Como vês, não foram precisos mais do que dois anos para me fazer
mergulhar no mais profundo dos infernos. E saí de lá graças a ti, ao teu amor? Sem o risco de uma recaída pior?
Creio que esta confissão, mesmo que me faça perder-te, me ajudará a reencontrar-me.

Mas, mais do que a qualquer rapaz, eu adorava o meu pai. Admirava-o. Colocava-o acima de qualquer outro homem.
Não estava longe de pensar que ele devia seguir uma carreira política, atingir os mais altos destinos! Desejava,
evidentemente, que ele se orgulhasse de mim, o que de facto acontecia, pois eu ia muito bem nos meus estudos:
estava já no terceiro ano moderno, e queria entrar mais tarde para Ciências Económicas. O meu pai chama-se, tu
sabes, Robert Pelletier, e Brigitte é aquela a quem eu chamava mamã...
Perdoa-me, já é tarde, estou muito cansada. As minhas recordações de um certo dia meteram-me subitamente
medo. Vou tentar adormecer rapidamente, pois tenho receio de, apesar das minhas boas intenções, ir mexer na
farmácia da tua avó.
Como sabes, ainda estou vulnerável, terrivelmente vulnerável. Não posso permitir que a tentação de esquecer seja,
uma vez mais, demasiado grande. E, como também sabes, qualquer medicamento pode, rapidamente, servir de
droga. Uma recaída, no meu caso, seria incurável.
Isso eu não quero, não, não quero!

Capítulo 2

Dormi com a janela toda aberta, bem agasalhada sob as mantas. Um Sol vermelho acaba de aparecer por entre os
ramos nus de um freixo, tapando um pedaço de céu. O aroma das mimosas perfuma o meu quarto, misturado com a
frescura da manhã. Tudo é cor-de-rosa e azul à minha volta. Ouço mexer na cozinha, no andar de baixo. Mas tenho
tempo. No mostrador luminoso do despertador que tu me ofereceste, sobre fundo preto, os números luminosos
marcam 6e 5. Os pequenos dois pontos que assinalam os segundos são como pulsações de um coração: do teu
coração, do qual devo lembrar-me a cada instante, como me disseste antes de me deixares. Como fico surpreendida
com a alegria que me causam, palavras que outrora teria considerado tolas! Ser feliz com uma pequenina coisa
quando algumas passas de haxe, um xuto de heroa ou um snifo de coca nos arrastam para volúpias incomparáveis,
inimagináveis para aqueles que as não conheceram, esses burgueses moralistas, essa gente para quem só
interessa a sua conta bancária, o seu carro e o seu televisor!
Oh, eis que recomeço! Nós, drogados incorrigíveis, temos uma linguagem e um discurso monótonos, sempre com os
mesmos argumentos estereotipados. Perdoa-me. Não quero que tu julgues que lamento os êxtases, indiscutíveis, é
certo, que os estupefacientes e os alucinogéneos de diversos géneros nos proporcionam. Pois os sofrimentos,
corolários inevitáveis dessas sensações paradisíacas, ultrapassam em horror todos os prazeres, mesmo os mais
fortes e mais surpreendentes, que antes se sentiram.
A minha confissão tem dois objectivos: contar como eu me desmoronei tão depressa e por que razão me sinto
indigna de ti, indelevelmente suja, para sempre marginal, expulsa desse jardim do Paraíso que descobri demasiado
tarde que existia, numa vida infinitamente menos banal e menos aborrecida do que eu supunha. A vida que conhece,
estou certa, a tua avó.
Parei de escrever para ir tomar com ela um copioso e maravilhoso pequeno-almoço. Em seguida, descemos até ao
mar. A praia de pedras da enseada de Saint-Martin orlava um mar calmo, de um verde-pálido atravessado por
claridades turquesas. Grandes nuvens cobriram momentaneamente o Sol, e um pouco de vento encrespou a
superfície da água.
- Tu andas a escrever o teu diário, Júlia?
- É mais uma confissão, mamie.
- Não, chama-me antes Hélène. Falaremos mais à vontade, como velhas amigas. - E acrescentou: - Tens razão. É
preciso, por vezes, fazer o ponto da situação para aqueles que amamos e para nós mesmos. É a melhor maneira de
evitar os mal-entendidos. Vou dar-te um pequeno cofre onde poderás guardar o teu caderno. Tem uma chave. Assim
não precisarás de ter receio da curiosidade dos outros. Era onde eu fechava as cartas do meu namorado, mais tarde
meu marido, o avô de Etienne.
Agora, como o tempo está bom, estou instalada no jardim, debaixo de uma das mimosas. O seu perfume é tão
intenso que me mete medo. E se eu passasse a ter necessidade desse perfume? Vês como agora desconfio de
qualquer prazer? Ontem, tinha começado a falar-te da Brigitte!

Evidentemente, tu conheces o essencial da história. E a ela, já a viste. Trinta e cinco anos, encantadora, parecendo
ter apenas trinta, extremamente bem feita, elegante. Finalmente, os seus soberbos cabelos louros venezianos,
parecidos com os meus, o que fazia com que toda a gente falasse na semelhança entre nós. Eu devia ter
desconfiado, pois, certamente, outros sabiam, mas o segredo fora bem guardado até então. Ao mesmo tempo,
Brigitte sorria com um pequeno sorriso de aquiescência. Eu devia ter reparado nisso. Mas o meu pai parecia alegrar-
se tanto com essas semelhanças... Uma família feliz! Não o disse já? Certamente! Não são sempre as mesmas
imagens de alegria, e de pesar que desfilam perante os nossos olhos quando nós recordamos?
Nessa época, com os meus amigos, raparigas e rapazes, eu refazia diariamente o mundo, mal feito pelos nossos
pais, avós e antepassados, mesmo sendo eles gentis. Habitávamos então perto de Tours, depois de termos saído de
Cannes quando eu tinha um ano. O que explica sem dúvida, em parte que os novos conhecimentos do meu pai
ignorassem um drama que eu ignorava ainda mais do que eles. Ninguém fizera coisa alguma para acender a minha
lanterna.
Em 1982, já a marijuana e o haxixe circulavam quase livremente nos liceus, mesmo na província. Mas o seu
consumo, era reservado apenas aos "grandes". Como eu estava adiantada nos meus estudos, alguns dos meus
colegas tinham já quinze anos ou mais. Eu tinha fumado com eles uma ou duas vezes um charro no decorrer de
certas festas bastante inocentes. Isso não me fizera rigorosamente nada, a não ser provocar-me tosse quando
tentara engolir o fumo! Não me sentia tentada. A minha vida era divertida e apaixonante mesmo sem isso. Jogava
ténis, ia à piscina, sonhava com grandes viagens... e um pouco com a chegada do Príncipe Encantado. Ainda por
cima, a droga metia-me medo. Houvera, durante o Inverno, uma sinistra história de overdose que terminou com a
morte de um aluno de Matemática Superior. Apesar dos esforços da família para camuflar o drama, atribuindo-o a um
acidente devido à fadiga, e à ingestão em excesso de excitantes, do género de Maxiton, tendo em vista a preparação
para o ensino superior, fora aberto um inquérito, o qual revelou que o rapaz se injectava desde há vários meses com
heroína, que chegara mesmo a cometer alguns roubos para arranjar a droga e que nessa noite, estando deprimido,
injectara uma dose demasiado forte. Outros alunos, interrogados, tinham reconhecido entregarem-se a
estupefacientes. Retiraram-nos do liceu para os confiar a diversos estabelecimentos de desintoxicação. O caso
acabou por ser abafado. Mas duas famílias pelo menos foram profundamente feridas por essa terrível tragédia. A
mãe do rapaz que morreu deu entrada numa casa de saúde, pois a sua mente não suportou o choque. O pai de uma
rapariga implicada na história, criticado no seu meio profissional, viu periclitar os negócios...
Tu tiveste razão, Etienne, em me dizer um dia que nós não nos destruímos apenas a nós próprios, quando seguimos
por esse caminho, mas que ferimos também, por vezes gravemente, aqueles que mais amamos. Eles nem sempre
são responsáveis. E muitas vezes são sem o saberem.

Volto portanto a esse famoso sábado do mês de Junho, oito dias antes de completar catorze anos. O tempo estava
magnífico, um desses dias esplêndidos em que parece impossível existir a infelicidade.
Tinha ido à piscina, e a mãe de uma amiga minha trouxera-me de carro.
Encontrei Frédéric Langlet na sala. Ele corou ao ver-me e acendeu nervosamente um cigarro. O meu pai disputava
um torneio de brídege no clube de golfe. Os meus irmãos Eric e Emmanuel tinham ido, passear com os seus amigos.
- A mamã não está? - perguntei eu. - Estás sozinho?
- Brigitte disse-me que ia ao cabeleireiro a Tours, deve estar a chegar. Eu pensei que...
Não terminou a frase. Eu tinha ainda os cabelos molhados; sacudi-os e arranjei-os vagamente, aproximando-me do
espelho antigo existente por cima da chaminé. Frédéric aproximou-se por trás de mim. Era muito alto. Inclinou-se
sobre o meu pescoço, aflorou-o como por brincadeira com a ponta dos lábios e murmurou:
- Estás a tornar-te verdadeiramente uma rapariga crescida, uma rapariga sedutora.
Voltei-me. O seu olhar, de um castanho aveludado, desceu sobre os meus seios, ainda pequenos mas que
despontavam por baixo da Tee-shirt, depois fixou-se na minha boca. Tenho uns lábios muito sensuais. Até tu, meu
querido, mo costumas dizer...
- E já tens algum apaixonado?
- Vários, o que é que tu pensas?
- Nenhum preferido? - Não ia contar-lhe que pensava muitas vezes nele, que não estava com certeza apaixonado
por mim! Apenas um pouco curioso! O som da voz dele tornou-se mais rouco.
- Eles beijaram-te?
- Evidentemente!
Eu gabava-me, mas ele começava a irritar-me. Por fim, afastou-se para dizer:
- E acariciaram-te! Parece que as raparigas hoje em dia são precoces.
Não o bastante, pois se assim fosse eu tê-lo-ia compreendido. Aproximei-me dele até quase lhe tocar, provocante e
inconsciente. Ele estremeceu e suspirou:
- Ah, estas pequenas Lolitas!
Só mais tarde compreendi, porque um amigo me emprestou o livro de Nabokov. Mas Frédéric era ainda um homem
muito novo. Em teoria, eu sabia evidentemente o que era o desejo, o amor físico. Entre a educação sexual, a
liberdade de linguagem que reinava lá em casa e aquilo que contavam as que eram um pouco mais velhas do que eu
e que já tinham tido alguma aventura amorosa, eu nada podia ignorar da prática amorosa, excepto essa prática.
Encolhi os ombros e afastei-me, fazendo uma pirueta sobre as minhas sandálias brancas.
- Oh, não vais com certeza pregar-me moral, pois não? Perguntar-me se sou ainda virgem, avisar-me de todos os
géneros de perigos, sobretudo se não tomar a pílula! Afinal, és um pouco antiquado.

Evidentemente que eu era ainda virgem e no fundo não sabia nada de nada, a não ser a mecânica da procriação,
que não ensina grande coisa sobre o prazer. Ele atraiu-me bruscamente, brutalmente mesmo, contra si. O que eu
ignorava, sobretudo, era a violência do desejo masculino, de como ele podia mostrar-se exigente, longe de qualquer
sentimentalismo. Frédéric colava-se contra mim. Eu não podia ter dúvidas do estado em que ele se encontrava. O
sexo dele estava tão duro que me magoava através do tecido leve do meu vestido. A sua boca apoderou-se da
minha, abrindo-me os lábios, metendo-me a língua entre os dentes. Eu estava assustada, pensava que ele tinha
endoidecido. Os beijos dos meus namoros do liceu eram muito tímidos ao lado daquele... As mãos dele apertavam-
me os seios com força e a sua respiração era ofegante. Balbuciou:
- Como tu me agradas, meu Deus, desejo-te, entrega-te a mim, verás, ensinar-te-ei, será divino, minha queridinha,
não tenhas medo...
Como não havia de ficar perturbada? Já não somos cisnes brancos! O meu corpo era o de uma mulher, com as suas
exigências. Não serás tu. Etienne, como médico, que me poderás contradizer. De resto...
Ah, meu querido, não sabia que seria tão difícil de contar! Teria sido melhor se eu tivesse cedido? Afinal, talvez me
tivesse amado, me tivesse pedido mais tarde em casamento. Mas eu descobri de repente que não o amava. Não
amei senão a ti, isso pelo menos deverás sabê-lo. Com verdadeiro amor, só te amei a ti, e amar-te-ei mesmo que,
como eu receio, seja preciso afastar-me de ti.
- Frédéric!
O grito de Brigitte separou-nos. Exprimia uma tal surpresa, uma tal cólera, tive a sensação de uns tais ciúmes que
me libertei do meu companheiro, repelindo-o com as duas mãos apoiadas no peito dele. Depois voltei-me e encarei-
a. Com lábios trémulos, a "mamã" ficara imóvel à entrada da porta. Os seus olhos verdes faiscavam, sombrios, indo
do rosto de Frédéric para o meu. No mesmo instante, tive a impressão de que ela nem sequer me via. Nesse dia
descobri pela primeira vez a cobardia masculina. É sem dúvida por tu seres diferente, Etienne, pelo menos assim o
espero, que tenho confiança em ti. Peço-te que não traias nunca essa confiança. Isso seria mais forte do que eu.
Nunca te perdoaria a minha decepção.
Frédéric recompôs-se. Com ar despreocupado, com voz irónica, suspirou:
- Ah, estas garotas. Pretendia mostrar-me um passo de dança, uma nova dança onde se representa o amor.
Pergunto a mim próprio o que serão capazes de inventar e até que ponto isto poderá chegar!
Ele avançou rapidamente para ela, beijou-lhe a mão, e eu tive a impressão de que os seus lábios se demoravam
exageradamente, subiam para o pulso. Esse gesto chocou-me? Ou seria por causa da sua mentira? Tive a certeza
de que eles os dois eram amantes, e uma imensa revolta me submergiu. A minha mãe, que eu respeitava
incondicionalmente, apesar da sua juventude, que fazia com que as pessoas exclamassem: "Julgava-a irmã de Julie.
Mãe dela é impossível!", a minha mamã, tão meiga, tão atenta aos meus pequenos desgostos, sempre pronta a
defender a minha causa quando o meu pai queria mostrar-se mais severo - a nossa geração de raparigas
extraordinariamente livres irritava por vezes esse homem de mais de cinquenta anos -,não passava de uma esposa
infiel!
É engraçado como nós, que queremos libertar-nos dos velhos tabus, que estamos sempre prontas para todas as
manifestações "pela liberdade sexual da mulher", permanecemos reaccionárias quando se trata dos nossos pais...

No entanto, as coisas teriam podido ficar por aí. Eu teria ficado profundamente magoada, mas não diria nada. A vida,
em casa, continuaria como dantes. Aquele tipo, compreendi-o, era-me totalmente indiferente, ou melhor, era-me
terrivelmente antipático. O pior seria o facto de ele ser associado do meu pai, que sentia por ele uma espécie de
simpatia quase paternal, protectora.
Brigitte falou por fim, e fez mal em interpelar aquele homem num tom que eu considerei de conivência. Dessa vez,
senti-me ferida por causa do meu pai. Ele estava a ser vítima de uma mulher que poderia ser sua filha e que troçava
dele, ao mesmo tempo que aquele a quem ele considerava o seu melhor amigo o traía também.
Aos treze anos, não se aceita tal género de coisas. Brigitte ordenou a Frédéric:
- Deixa-nos. Mais tarde falaremos. Agora preciso de conversar com ela.
Essa frase apenas serviu para confirmar as minhas suspeitas. Sim, tinha na minha frente dois amantes, culpados.
Ele ficou com certeza satisfeito por sair da situação tão facilmente. Devia calcular que quanto mais demorasse a
explicação mais tempo teria para arranjar um álibi para lançar as culpas sobre mim. Quis afastar-me. Brigitte disse-
me para ficar. Sugeri:
- Queria ir tomar duche, mamã.
Parecia-me que se evitasse aquela conversa seria como se nada se tivesse passado. Trataria de fazer com que esse
Fréderic Langlet não se cruzasse mais no meu caminho. O resto não me dizia respeito. O importante era que o papá
não desconfiasse de coisa alguma, que não sofresse! Eu não queria saber de nada!
Foi então que um raio me atingiu! Sim, não vejo outra imagem, pois fui fulminada! Brigitte, com uma voz gelada,
irreconhecível, declarou:
- Eu não sou tua mãe.

Capítulo 3

... Eu não sou tua mãe...


Tinha ouvido mal, compreendido mal, aquelas palavras não podiam ter sido pronunciadas.
Mas a voz prosseguia, impiedosa, cruel:
- E tu, infelizmente, pareces-te com ela! Começas cedo! Só que eu não te deixarei estragar a minha vida, nem a de
Jacques, nem a dos meus filhos, pois eles são realmente meus filhos. Tu...
Teria ela pensado que eu ia começar a gritar, que me lançaria sobre ela com as unhas de fora? Contudo, nesse
momento, a verdade não chegara ainda ao meu cérebro. Eu julgava apenas que a minha mãe me ralhava, e
revoltava-me. Afinal, a culpada era ela! Mas as palavras jorraram da sua boca, e foi como se ela mas cuspisse na
cara.
- A tua mãe abandonou-te quando tinhas quinze dias. Fugiu com o amante, o melhor amigo do teu pai, claro, o que é
clássico. O que é menos vulgar é ter coragem de abandonar a sua própria filha recém-nascida. Que sejas filha de
Jacques ou desse indivíduo pouco importa. A única verdade é que nunca quiseram sequer ter notícias tuas. De resto,
mais tarde separaram-se. Ela vive em Paris. Voltou a casar, creio eu.
O telefone tocou nesse instante, quebrando o silêncio aterrorizado que se seguiu a esta declaração. Brigitte atendeu.
Era o meu pai. Ela falou-lhe ternamente, como de costume. Não eram eles considerados "os eternos pombinhos"?
Para mim, isso foi de mais.
Fugi para o meu quarto e fechei a porta à chave. Tinha vontade de vomitar. A minha mãe abandonara-me, Brigitte
não era minha mãe, os meus irmãos eram apenas meios-irmãos. E o meu pai... Meu Deus, iria tudo recomeçar de
novo para o meu pai? Mais uma vez traído, ridicularizado, e de novo pelo seu melhor amigo? Não, isso não podia
ser! Ele devia ser prevenido, castigar, afastar o traidor, expulsar a intrigante. Eu odiava Brigitte com a mesma
intensidade com que a tinha amado. Mas não ousava enfrentar imediatamente o meu pai, desferir-lhe o golpe fatal.
Queria dormir primeiro. Ao acordar, o meu espírito estaria mais fresco.
Procurei um sedativo na farmácia da casa de banho. Não havia nenhum. Apenas um frasco com éter. Eu sabia que
dantes anestesiavam os operados com éter e depreendi que se o cheirasse ficaria sonolenta. Molhei o meu lenço no
éter, depois de me estender sobre a cama, com as janelas fechadas e os cortinados corridos. Aspirei profundamente,
aplicando o lenço sobre a minha boca entreaberta. Adormeci. Ninguém me incomodou, nem nessa tarde nem à noite.
Acordei ao romper do dia com a boca pastosa e uma dor de cabeça terrível. Prezisava de agir. Desci para a casa de
jantar, onde, ao domingo, tomávamos o pequeno-almoço todos juntos, antes de nos dirigirmos à igreja de uma aldeia
próxima para assistirmos à missa.
- Atrasada, como de costume - murmurou, sorrindo, o meu pai.

Que rosto despreocupado! O facto de Brigitte nada lhe ter dito ainda mais me convenceu da sua culpabilidade:
preferia calar-se e não falar no caso ao seu marido. Essa dissimulação era bem própria dela. Não se tinha ela
mostrado capaz de desempenhar na perfeição o papel de "verdadeira" mãe e ao mesmo tempo enganar o meu pai
sem que ele tivesse a mínima desconfiança?
- Saiste ontem à noite. A que horas te deitaste? Aproveitaste a nossa ausência para saíres. Com a tua idade, é talvez
um pouco cedo de mais para andares a correr os boums. E além disso ninguém sabe o que vocês andam a fazer.
Todas essas histórias de droga me preocupam. Nós, com a tua idade, escondíamo-nos para fumar um cigarro, mas
agora o haxixe...
- Não te enerves, Jacques. Está tudo bem, não
é verdade, querida?
A hipócrita! Elegante, serena, sorria-me quase ternamente.
- Não! Está tudo mal.
Levantei-me, afastando a minha chávena de chá e sem ter tocado nas torradas. A minha cadeira, caiu.
- Não tenho fome, não irei à missa, estou doente, doente de desgosto, e Brigitte sabe perfeitamente porquê.
As tréguas estavam quebradas. Brigitte corou. Os maxilares do meu pai crisparam-se. Eric e Emmanuel ergueram as
cabeças.
- Brigitte?
Ela tentou recompor-se, salvar a situação.
- Não prestes atenção. É uma idade má para as raparigas, está nervosa, mostra-te paciente. Eu vou falar com ela.
Cheio de admiração, embevecido, o meu pobre pai suspirou:
- Tu és boa de mais para ela! Ah, se eu não te tivesse!
Era preciso abrir-lhe os olhos. Lancei pela segunda vez:
- Não! - E acrescentei, dirigindo-me unicamente ao meu pai: - Eu é que preciso de falar contigo. Vou para o meu
quarto e espero-te lá. Deixa-os irem sozinhos à missa!
Quando ele foi ter comigo, o carro, conduzido por Brigitte afastara-se há já bastante tempo. Teria ela tido tempo de o
avisar do que se passara, entre nós? E que mentiras teria proferido para conservar o seu belo papel? Antes de me
deixar abrir a boca, o meu pai estendeu os braços para mim, mas eu não me atirei para eles. De cabeça baixa, ele
murmurou:
- Devíamos ter-te confessado a verdade muito mais cedo. Eu queria, mas Brigitte impediu-me, alegando que tratava
de ti desde o teu nascimento, que não tinhas conhecido outro rosto debruçado sobre o teu berço, que eras a
pequenita dela, o seu primeiro bebé, que te tinha amado a ti... mesmo antes de me amar a mim. - Não tomando em
consideração a minha expressão de troça, prosseguiu: - Sem ela, que teria sido de nós, de ti e de mim? Já não estou
zangado com a tua mãe. Ela era tão nova! Da mesma idade que Brigitte. Brigitte cuidou de ti e não era tua mãe, mas
apenas uma rapariga que ganhava a vida a cuidar de crianças...
- E seduziu o pobre abandonado! Uma sorte ele ser rico e... ter casado com ela.
De que baixezas somos capazes, meu querido, quando sofremos! Eu sentia-me terrivelmente infeliz. O meu pai teve
um sobressalto.

- Pequena imbecil! Não sei o que é que fizeste ontem, pois Brigitte recusou-se a contar-me o que a obrigou a revelar-
te que não era tua mãe... mas se soubesses de que abnegação deu provas! Era uma rapariga muito bonita. O mais
estranho é que, fisicamente, ela se parecia com Nadine, a minha mulher. Os mesmos cabelos quase ruivos, os
mesmos olhos verde-acinzentados. A tua mãe tinha apenas mais três anos que ela. Eu é que era muito mais velho.
O mal partiu sem dúvida daí.
O quê? Ele saberia que também Brigitte o enganava? Admitiria isso? Aos treze anos, mesmo hoje em dia, não
podemos admitir um compromisso desses. O meu pai recapitulava as suas recordações sem me prestar atenção.
- Eu estava muito apaixonado por Nadine. Incondicionalmente confiante, orgulhoso por ter uma filhinha tão linda.
Nesse dia, tive uma reunião com enviados do Ministério da Indústria e depois um jantar, que se prolongou. Em
Cannes, onde nós morávamos então, a tua mãe tinha dispensado Brigitte, dizendo que a mãe dela iria fazer-lhe
companhia. De resto, já se levantava há uma semana e podia muito bem dar-te os biberões. Recusara-se a
amamentar-te. Não tinhamos criada interna, apenas uma mulher-a-dias que saía às seis da tarde. Quando voltei,
muito depois da meia-noite, Brigitte esperava-me na sala, chorosa. Receei primeiro a mais terrível das desgraças...
que tu tivesses morrido... ou ela, a minha mulher. Brigitte não ousou olhar-me de frente. Entregou-me uma carta,
murmurando: "Também tenho uma." Eis tudo! A tua mãe partira com o seu amante. Pedia-me perdão e deixava-te
aos meus cuidados, porque não se sentia com fibra maternal... e, sendo eu mais rico que Pierre-Jean, sim, o meu
melhor amigo, era preferível para todos que fosse eu a ficar contigo.
Qualquer outra pessoa teria pena deste homem, não é verdade? Mas eu, a sua filha, gritei:
- Esta também te deixará, a menos que prefira contentar-se em enganar-te. Decididamente, és cego!
As duas bofetadas atingiram-me em cheio antes de eu ter terminado a frase.
- Como te atreves? Mas tu és uma víbora. Decididamente, pareces-te com a tua mãe. No entanto, contigo, as coisas
não se passarão como com ela. Tenho ainda qualquer coisa a dizer sobre o assunto. Vou tirar-te do liceu. Tanto pior
para os teus exames. Vou meter-te num colégio interno, onde te ensinarão.
Não era evidentemente a linguagem adequada para falar comigo. Mas ele estava muito ferido e tinha absoluta
confiança em Brigitte! O poder dela sobre ele era então invencível? Fiquei furiosa, gritei, ameacei, inventei sem
sequer me aperceber disso, contando que, tendo surpreendido Frédéric Langlet a tentar beijar-me, ela lhe fizera uma
cena como uma mulher só pode fazer ao seu amante, e que depois me injuriara, louca de ciúmes, não receando
confessar que casara com ele apenas por piedade... e interesse...
Que terei dito mais? O meu pai recuava, olhava-me com desgosto, com ódio. Por fim, vencido, gemeu:
- É horrível!
Eu triunfava, repetia:
- Sim, ela é horrível, meu pobre papá.
E tentei abraçá-lo. Ele repeliu-me, sem cólera, sem censuras, mas com uma grande expressão de desprezo:
- Tu é que és horrível! Tão nova e já de tal modo desprezível!

A porta fechou-se, e eu não compreendi imediatamente o que me sucedia. Ele não acreditava em mim, renegava-
me! Também ele! Então, já não tinha nem pai nem mãe. Brigitte devia agora detestar-me. Nesse instante, lamentei
todos os beijos que ela me dera até então, mesmo quando eu estava desgostosa. Por isso, visto que toda a gente
me renegava, resolvi fugir.
Uma hora mais tarde, tendo levado comigo apenas a minha escova de dentes, duas Tee-shirts, uns jeans, alguns
slips e um minúsculo cão de pelúcia que eu considerava como a minha mascote, fui ter com Jean-Marie Mesurat, o
meu melhor amigo. Ele tinha uma grande moto, uma Yamaha.
Nessa noite estávamos em Paris. Ele foi-me levar a casa duns amigos dele. Tinha de regressar a Tours para ir
buscar dinheiro. Voltaria, no dia seguinte, o mais tardar dois dias depois. Eu devia saber, afinal, que ele gostava de
mim. Ele guardaria o meu segredo. Ficaríamos juntos. Jean-Marie não sabia a minha idade. Julgava que eu me
aproximava dos dezasseis anos. Não o desenganei. Entreguei-lhe uma carta para o meu pai. Não emendava nada
do que lhe dissera, pelo contrário. Cada uma das palavras dessa missiva está gravada na minha memória.
Estaria eu já louca? Antes de regressar, Jean-Marie planeava, repetia que íamos ser felizes, mas eu sentia-me muito
perturbada para partilhar essa alegria. O que eu sentia ferver em mim era o ódio. Sabes que o haxixe acentua os
nossos humores. Eu rejubilava ao pensar na minha vingança. E escrevi:
"Papá.
Acusaste-me de representar uma comédia, de denegrir, a meu belo-prazer, uma mulher que me criara, que me
amara e que cuidara de mim como a minha mãe recusara fazer. Não quero discutir mais isso. Não menti. És livre de
acreditar mais nela do que em mim. Parti porque nunca aceitaria ser metida num colégio interno. Estou em casa de
amigos. Os pais dele escrever-te-ão se o desejares. Quero prosseguir os meus estudos em Paris. Até aqui tenho
sido boa aluna. Porque iria mudar? Indica-me um "correspondente". Visitá-lo-ei regularmente. Mas preciso de uma
pensão para viver decentemente e pagar a minha alimentação àqueles que aceitam receber-me. Não merece a pena
vires ou enviares Brigitte. Não vos falarei. Detesto-vos, detesto o vosso género de vida, a vossa hipocrisia. Se me
mandares procurar pela polícia, se tentares levar-me à força, se conseguires até fazer-me internar num colégio
interno, provocarei um escândalo tal que os deixará por terra. Eu já nada tenho a perder. A minha liberdade... contra
o meu silêncio!"

Oh, Etienne, hoje envergonho-me. Parece-me que devia ler livros bem ridículos para escrever este género de carta.
Mas escrevi-a sob o efeito da erva e do haxe que fumei, sem contar com os biscoitos com doce de haxe que comera
para ficar a par com os outros. Teria bastado, apesar das ameaças que eu certamente não teria coragem de pôr em
execução, que meu pai me viesse buscar e me falasse ternamente para eu ter voltado docilmente para casa? E se,
nesse momento, Brigitte me tivesse tomado nos braços... explicado tudo?

Quarenta e oito horas mais tarde recebi um cheque confortável e o endereço de um casal em casa do qual eu teria
obrigação de almoçar, a partir daí, todos os domingos. Além disso, devia transmitir regularmente as minhas notas a
um advogado cujo nome e morada se encontravam juntos. O meu pai não tencionava ceder às minhas chantagens:
agiria segundo os meus resultados e o meu comportamento. O Dr. Ferran entregar-me-ia todos os princípios do mês,
em mão própria, uma quantia que me permitiria viver decentemente. Eu dar-lhe-ia conta das minhas despesas. E,
logo que atingisse a idade legal para a minha emancipação, as diligências necessárias seriam empreendidas.
O meu pai assinava essa resposta sem uma palavra afectuosa. Em P. S. dava-me a morada e o novo nome da
minha mãe. Habitava em Neuilly, na Rue du Bois-de-Boulogne...
Quando comecei a chorar, os meus novos amigos rodearam-me e anunciaram-me que iam dar uma grande festa em
minha honra. Eu devia pôr-me bonita e não pensar mais em coisas tristes. Abraçavam-me, beijavam-me,
consolavam-me, falando docemente e dizendo: "O amor... só o amor importa! E nós amar-te-emos, tu és a nossa
irmãzinha. Verás, aqui serás feliz. Nada mais tem importância."
Secaram-me as lágrimas, ofereceram-me pequenos presentes absurdos, arranjaram-me a minha "cabana" pessoal.
Dessa vez, quando voltei a chorar, foi de alegria: amavam-me, amavam-me finalmente!
Adormeci apertando a minha mascote contra mim.

Capítulo 4

Ah, essa festa! - O loft onde estavam instalados os meus novos amigos servira anteriormente de armazém de
tapetes. Os antigos locatários tinham abandonado amostras de tecidos que agora formavam uma espécie de traje de
arlequim no pavimento. Nas paredes viam-se tecidos indianos e africanos, de cores violentas, máscaras vindas do
Extremo Oriente, instrumentos de música exóticos trazidos das suas viagens pelos membros da "comuna" ou pelos
seus amigos de passagem. Biombos protegiam o espaço que cada um arranjara como domínio reservado, com o
bricabraque das suas recordações, dos seus objectos pessoais. Estavam na sua maior parte cobertos por posters
psicadélicos ou representando vedetas de jazz. Finalmente, o imenso aposento estava perpetuamente envolto em
nuvens de incenso, de aromas de pachuli e de almíscar.
Nessa noite, além disso, havia flores por toda a parte, já um pouco murchas, que as vendedoras do mercado de
flores tinham deixado. As garrafas de coca, de limonada, e também de vodca estavam alinhadas atrás do bufete,
sobre o qual se amontoavam as vitualhas mais variadas trazidas pelos nossos convidados.
Deslumbrada por esse cenário e pelos trajes extravagantes da assembleia - onde nem faltava um punk -, esqueci as
ameaças que enviara ao meu pai na carta que lhe escrevera depois da minha chegada a Paris.
Jean-Marie apresentara-me aos seus amigos, anunciando que eu ia fazer dezasseis anos. Ninguém pareceu supor
que eu tinha menos dois. Todas as raparigas da comunidade, embora mais velhas, eram tão delgadas que os seus
corpos andróginos eram de adolescentes. Nessa época, eu tinha mais seios e ancas do que elas. A droga ia
encarregar-se da minha cura de emagrecimento! Eu tinha levado oitocentos francos de casa, todas as minhas
economias. O bastante para a minha participação, durante quinze dias, nas despesas da alimentação. Entretanto, o
meu pai enviar-me-ia com certeza os seus cheques. Tinha a certeza de que ele não me mandaria procurar. Com
efeito, deviam estar todos encantados por se verem livres de mim. Pelo menos, era o que eu pensava.
Em dois dias apercebera-me de que os meus novos amigos se drogavam. Alguns contentavam-se em fumar haxixe,
mas continuamente, desde manhã à noite. Nesses primeiros dias, quando eles me passavam um joint, eu
contentava-me em aspirar pequenas baforadas, que lançava fora como o fumo de um cigarro vulgar. Só o cheiro,
misturado com o do incenso, bastava para me fazer mergulhar numa sonolência feliz, e deixei-me prender nos
braços de um rapaz muito meigo, muito perdido nos seus sonhos, e que me acariciava os cabelos e os ombros, sem
exigir mais, recitando poemas em inglês que eu não compreendia. Esquecia. Nessa idade, rapidamente voltamos a
ser felizes. Nessa noite, descobri bruscamente, porque eles não se escondiam, que, dos onze que nós éramos, duas
raparigas e três rapazes se injectavam. Eu sabia que esse pó branco, diluído num pouco de água que eles aqueciam
numa colher, era heroína. Jean-Marie voltara a partir para Tours. Sentia-me um pouco assustada e jurava a mim
mesma que não chegaria nunca àquilo. Justamente nesse momento, uma rapariga que devia ter uns vinte e cinco
anos e que era bastante assustadora, duma magreza esquelética, com uns olhos de um azul-acinzentado,
hipnóticos, que me subjugaram, estendeu-me a palma da mão. No côncavo vi um pó branco. Eu era totalmente
incapaz de discernir a diferença entre o aspecto da farinha, da heroína, do sal fino ou da cocaína.
- Snifa, vá, bebé. Verás como depois te sentirás como os grandes.
Os grandes! Eu não sentia desejos de me parecer com eles. Eram pessoas como o meu pai e os seus amigos, como
Brigitte e sem dúvida todas as mulheres casadas, burguesas!
- O que é?
- Eh, snifa, tu verás...
Aspirei com todas as minhas forças, como se me tivesse deitado à água antes de nadar. Depois disso nada mais foi
claro. Ter-se-ão passado minutos ou horas? O rapaz que continuava a ter-me nos seus braços disse para a rapariga
de compridos cabelos negros e encaracolados:
- Deixa-nos em paz!
- Ah, bom, tu és pela exclusividade, english, portanto se ainda não saltaste para cima dela poderás agora aproveitar.
As tuas passas tornam-te débil, não?
- Já disse para nos deixares em paz, percebeste?
Jef - lembrei-me de repente do nome dele - tinha na mão uma navalha, era um verdadeiro filme. Comecei a rir.
- Vai para o Inferno!
O meu terno inglês tomava ares de duro. Eu estava terrivelmente excitada. A rapariga em frente de nós gritava.
Foram precisos três ou quatro para a impedirem de se lançar com as unhas espetadas, visando os olhos, sobre o
meu companheiro.
- Vem, vamo-nos embora.
- Para onde?
- Tu fazes muitas perguntas, tenho outros amigos, ficaremos bem, dar-nos-ão um quarto; rapazes ricos, muito ricos;
os pais não querem saber, estão quase sempre nos seus barcos. Será bom, repara como estou excitado.
Pôs a minha mão sobre o seu sexo endurecido, de uma dureza de ferro. Ao ver o meu sobressalto, adivinhou.
- Não é verdade! Virgem ainda? Com a tua figura? Essa agora... É a primeira vez que isso me sucede, tu
impressionas-me. Não tenhas receio, eu sou meigo, isto vai ser... isto vai ser...

E foi! No dia seguinte, eu já não era virgem. Mas daquilo que se passara tinha apenas uma recordação imprecisa,
muito terna, um pouco cómica, porque Jef se agitava, gemia e gritava muito. Sim, Jef era meigo, sonhador, via a sua
vida como uma longa viagem através do mundo para aí encontrar aqueles que não queriam nem guerras nem
revoluções, a não ser pacíficas. Estava já condenado, mas nem ele nem eu, evidentemente, desconfiávamos disso.
Tinha vinte anos e recebia uns pequenos cheques de um tutor rico que vivia no Sussex; os seus pais tinham morrido
num acidente de aviação, no decorrer duma viagem aos Estados Unidos, não sei sequer em que ano; Jef ficava
nervoso quando evocava a sua infância. Quem poderia compreendê-lo melhor do que eu? Mas há dois anos que se
injectava com heroína, como de cocaína, custa 1.000 F... Era um pouco menos caro há dois anos, mas de qualquer
maneira o dinheiro que ele tinha chegava-lhe apenas para comer, para ir ao cinema, ao Palace, e para dois dias de
injecções... o que, no total, ultrapassava de longe o smig... mas obrigava-o a procurar constantemente expedientes.
Não compreendi imediatamente quais eram nem onde o iriam conduzir. Antes de fazermos amor, ele perguntou-me
se as minhas amigas me tinham dado a pílula. Eu não podia ficar grávida, pois era menor. Teria ele fugido se tivesse
sabido a minha verdadeira idade? Não o creio! Estávamos os dois de tal modo drogados... Jurei-lhe que não
corríamos riscos. Dessa vez tive sorte. Três dias mais tarde tinha o período!
De certo modo... Etienne, esses dias da minha primeira semana de vida com Jef foram felizes, tranquilizadores. Aqui,
embora não saiba se já to disse, sou obrigada a contar-te a maravilhosa viagem que me proporcionaram as primeiras
verdadeiras experiências de consumo daquilo a que tu não gostas de chamar droga e preferes apelidar de
estupefacientes... Mas que importam as palavras... francês, inglês, o nosso calão altera-se de dia para dia, diferindo
por vezes conforme o bairro, a cidade, o meio. Estudantes ou pequenos vadios vindos dos subúrbios mais pobres,
jovens snobs dos bairros ricos, emigrantes árabes ou portugueses, cada um tem o seu snobismo e a linguagem
correspondente. O "cavalo" não é o brown sugar, a coca também se chama "branca", e o termo chnouff só se usa na
província, embora por vezes se empregue a palavra "Charley" para se ter o ar de estar actualizado. Bom, tu sabes
isto tudo tão bem como eu, o que não te falta são confidências de drogados...
Volto a essa primeira noite. Certamente, além das numerosas passas que eu tinha fumado, houvera também essa
pequena pitada de pó branco, primeiro recusada mas que mais tarde o próprio Jef me propusera. Nesse momento,
ele já "partira" e sentia necessidade de ser acompanhado na sua viagem. Tive sorte?, ou a minha infelicidade terá
sido o facto de tudo se ter passado duma maneira tão formidável dessa primeira vez para mim? Não creio que
pudesse ter sido de outra maneira, pois mesmo antes de ter fumado e snifado... já me sentia drogada! E feliz: por fim
era livre, finalmente amavam-me, compreendiam-me! Ora, sobretudo relativamente ao haxixe, sabes como agudiza
cada uma das nossas sensações. Se eu nesse momento estivesse assustada pela minha audácia, desesperada por
ter deixado a casa, angustiada com o meu futuro, a minha viagem teria sem dúvida sido de tal modo aterrorizadora
que no dia seguinte eu teria regressado, arrependida, para casa; teria pedido perdão ao meu pai, a Brigitte, e,
quando muito rancorosa e manhosa, voltaria ao liceu, fazendo de conta, como os adultos, vergando-me aos
costumes da nossa sociedade...

Mas eu, ao despertar, mais do que as recordações amorosas, encontrei as de um extraordinário périplo num
universo onde tudo era luminoso, doce e exaltante ao mesmo tempo, também alegre, dançante, sorridente, amigável,
sem problemas! Uma sensação de felicidade como eu nunca conhecera. Eis como foi, meu amor, e de resto tu sabe-
lo, mesmo que te recuses a reconhecê-lo, com receio de que, ouvindo-te, alguns ainda não drogados se deixem
tentar: o grande, o único perigo da maior parte das drogas, das mais duras às mais fracas, passando por todos os
medicamentos, sejam eles quais forem, é que de início dão sempre um apaziguamento à angústia, à infelicidade, e
muitas vezes nos transportam para um mundo de onde a fealdade, a maldade, a agressividade, a mediocridade
estão excluídas. Acabam também com a incompreensão de que os outros nos rodeiam e com o julgamento e a
condenação que fazem contra nós!
É como se de repente fôssemos transportados ao paraíso e que, ai, um deus, uma presença, algo de irradiante, de
exaltante, nos tornasse belos, leves, bons, apaixonados por este mundo maravilhoso e por aqueles que o povoam.
Imagina o que foi isso para uma garota como eu!
Como é que não havia de sentir desejos de recomeçar o mais depressa possível? Tanto mais que Jef me anunciava:
- Agora já não nos deixaremos. Tu verás, não nos amaremos como esses outros tipos que se casam e que decidem
ter filhos por causa do apartamento que os pais lhes oferecerão, dos abonos de família, das férias de parto e sei lá
que mais. Por pouco não calculam antecipadamente o montante da reforma, as heranças possíveis, que carro
comprarão, em que escola irão meter os filhos, o que é que eles virão a ser, etc. Nós...
Recordo-me daquilo que tu me disseste um dia, quase maldosamente: que eu e os meus amigos éramos apenas
burgueses, que talvez tivéssemos sido mal-amados, mas que fôramos exageradamente mimados, e que o pior era o
nosso exemplo ser nefasto, criminoso, muitas vezes, pois havia milhares de outros adolescentes, verdadeiramente
infelizes esses, cuja infância fora miserável, por vezes degradante, e que, com o nosso exemplo, eram
indirectamente incitados a esses "paraísos artificiais", tornando-se depois as mais lamentáveis vítimas dos
traficantes, dos grandes mas também dos pequenos dealers, que para conseguirem o veneno para si mesmos o
vendiam adulterado - esses que não podiam comprar a droga aos porteiros dos bares chiques, onde, pelo menos, a
mercadoria era boa, pura!
Eu sei! De início não me apercebi disso. Nos primeiros tempos, vogava sobre uma nuvem. Mas mais tarde... eu
própria me injectei muitas vezes com branca em que a proporção de farinha, de lactose, era infinitamente maior que
a de heroína. Mas em certas ocasiões a mistura era pior, então... Espera, Etienne, não quero confessar-te tudo ao
mesmo tempo. Tento contar-te os meus deslizes cronologicamente. Não é fácil. As recordações submergem-me,
acumulam-se. No entanto, preciso de te contar. Perdoar-me-ás se me repetir? Se por momentos me perder?

A casa em que Jef e eu nos instalámos, numa rua para os lados de Passy, era, como tu adivinhaste, de gente rica.
Quadros, tapetes, móveis e objectos de valor. Apesar de teres de guardar segredo profissional, perdoar-me-ás que
não diga o nome daqueles que lá habitavam, embora eles estivessem a maior parte do tempo ausentes de Paris. O
pai do rapaz e da rapariga que nos deram abrigo tinha sido amigo do pai de Jef, embora este tivesse nascido em
Londres e eles em Paris. Penso que o pai de Caroline e de Antoine S. era um fotógrafo internacional. A mãe fora
modelo e continuava a ser um dos pilares da jet society. Mais tarde, vim a saber que eles próprios se drogavam há
vinte anos, mas "inteligentemente"... isto é, com boa mercadoria, sabendo calcular os riscos. Não importa! Ele
matou-se no ano passado ao volante do seu carro... numa linha recta... ao esbarrar contra um muro! E ela, a mãe,
anda de casa de saúde em casa de saúde para se desintoxicar. Nunca mais os encontrei. Antoine teve sorte:
apaixonou-se por uma dessas raparigas como ainda existem algumas: dinâmica sem ter necessidade de excitantes,
sensata sem se mostrar beata falsa e aceitando casar-se desde que pudesse prosseguir a sua carreira de
decoradora floral, querendo ter três filhos, mas desejando fazer um planeamento familiar... e achando ridículo fazer
como toda a gente e drogar-se! Ele apaixonou-se loucamente por ela: é o melhor antídoto, mais eficaz do que
qualquer cura de desintoxicação.
Para minha infelicidade, perdoa-me reconhecê-lo, eu apaixonara-me por um drogado. Enfim, julgava-me
apaixonada...
Não tenho nada contra Jef: ele amou-me. Mostrou-se extraordinariamente gentil quando soube por que motivo eu
desertara da casa paterna e ajudou-me na medida do possível.
O meu pai, magoado pelas minhas insinuações a respeito da minha madrasta, assinou todos os papéis que me
permitiam inscrever-me para o exame de entrada num liceu parisiense no terceiro ano. Eu não receava chumbar. Foi
a minha única sorte durante esses dois anos terríveis... a minha memória de elefante permitiu-me acumular
conhecimentos bastantes para poder enfrentar qualquer examinador. Além disso, sempre me apaixonou estudar no
meio de todas as loucuras. De qualquer modo, tu deves sabê-lo, há muitos professores que se drogam tanto como
os seus alunos. As outras pessoas não se apercebem de nada se não houver um mal-estar na aula... ou se o estado
de drogado não for evidente...
Para a admissão, bastou um pequeno empenho.
É certo que eu tinha ido cair no meio de um grupo de drogados mas que pertenciam à burguesia, a uma burguesia
bastante rica. Com receio do escândalo e, também, para os deixarem em paz, a maior parte dos pais dos meus
amigos cediam a muitos dos seus pedidos, e não só de dinheiro. Podiam quase sempre contactar alguma pessoa
influente, em qualquer meio. Inscrevi-me no Liceu Fénelon. Mas, primeiro, houve as férias.
Por Jean-Marie, de passagem por Paris, soube que o meu pai e Brigitte, com os seus dois filhos, tinham partido para
a Grécia. Eu recebera um cheque do meu correspondente oficial em Paris. Sem uma palavra, sem me avisarem
dessa partida. Ninguém se poderá admirar que durante esse primeiro Verão de solidão eu me tenha lançado num
empreendimento de destruição: a minha própria.
No mês de Junho festejara, sozinha, os meus catorze anos.
Jef tinha de regressar a Inglaterra. Chorámos os dois quando nos separámos. Sabíamos que não voltaríamos a ver-
nos. Ele partia em seguida para as Índias. Não tencionava voltar a Paris antes de um ano ou dois.
- Talvez nunca mais - disse ele. Jef sabia que a droga o mataria. Morreu na Tailândia, com uma overdose. Não
pesava mais que trinta e sete quilos. Fazia mais impressão do que os cadáveres vivos saídos dos campos de
concentração, disseram-me... Isto foi há uns oito meses, quando eu própria estava também a chegar ao fim. Quando
me contaram, não me pareceu importante.

Nós morríamos todos, um dia ou outro, desse modo. Não era pior do que viver! Pelo menos, era o que eu pensava. E
depois, meu querido, tantos rapazes, depois de Jef, tinham passado pelos meus braços, sobre o meu ventre, que eu
mal me lembrava dele, o "primeiro".
Suplico-te que não tenhas ciúmes desses rapazes de passagem. Digo-te isto e ao mesmo tempo pergunto a mim
própria se algum homem apaixonado aceitaria... ah, tu julgas poder esquecer o que eu fiz? Eu receio que não.

Capítulo 5

Depois de Jef partir, Jean-Marie, de regresso a Paris, tomou o lugar dele. Isto sucedeu naturalmente, numa noite em
que tínhamos fumado muito. Não fumávamos já simplesmente "charros", mas sim cachimbos de água. Um
americano que fora acolhido durante alguns dias na nossa comunidade tinha um haxixe afegã fantástico, e nós
nadávamos todos na euforia, bebendo, dançando. Estava muito calor, e quase todas as raparigas usavam vestidos
de musselina indianos, de cores variadas e transparentes. Por baixo estavam nuas, algumas apenas com um slip. Os
rapazes, de tronco nu, com umas calças tão justas que não se podia ignorar se estavam excitados ou não. E, além
disso, o mais velho de entre nós, se era essa de facto a sua idade, porque muitos mentiam a esse respeito, tinha
apenas vinte e dois anos!
Alguém, com um ar misterioso, avançou com uma bandeja cheia de copos de limonada. Foi apupado, porque até
então só tínhamos bebido vinho, vodca, uísque, enfim, aquilo que cada um conseguia roubar ao merceeiro da
esquina. O roubo daquilo que nos dava prazer, alimentos ou bebidas, era aprovado; era uma maneira de nos
distanciarmos das "boas pessoas", de mostrar a nossa revolta contra uma sociedade onde o mais insignificante
comerciante nos parecia mais desonesto que nós. Não falemos já dos nossos pais, a quem todos nós
considerávamos abomináveis hipócritas. Tu bem sabes como os estupefacientes alteram a escala de valores: nós
tomávamo-nos por anjos, por justiceiros, por vítimas obrigadas a transformar-se em carrascos!
Quando me entregaram um copo de limonada, hesitei. Sabia que, às vezes, os rapazes dissolviam pastilhas de LSD
nessas bebidas aparentemente inofensivas para fazer ceder as mais rebeldes de entre nós. Mas Jean-Marie
observou:
- Não preciso de te enganar... tu pertences-me... sim, é ácido... vais ver, é a melhor viagem que há. Eu estou aqui ao
pé de ti. Não tenhas medo de nada.
Como toda a gente, eu lembrava-me de histórias horríveis. A rapariga que arranhara a cara toda, lacerando-se como
se arrancasse uma máscara e gritando que uma nuvem nuclear a poluíra, tentando em seguida arrancar a pele ao
amigo dela, que também estaria contaminado! Fora preciso levá-la metida numa camisa de forças antes que ela lhe
arrancasse os olhos! E outra que, imaginando ser uma andorinha, se atirara contra as paredes até sangrar e depois
se lançara pela janela, indo cair cinco andares abaixo, no pátio do prédio! Os pais dela, depois dessa desgraça,
tinham-se suicidado, ambos.
- Tu és doida! Essas histórias dos jornalistas são para nos meter medo. Verás, entraremos no paraíso, e não causa
habituação. Pararemos depois desta experiência se ela te meter medo, mas vais ver como te libertará do teu
passado, das tuas inibições.
Se Jean-Marie, mais velho do que eu quase cinco anos, soubesse a minha verdadeira idade, teria hesitado? Era um
rapaz inteligente e muito lúcido, decidido a todas as experiências, mas convencido de que tiraria delas um
enriquecimento que o ajudaria, mais tarde, a afirmar-se no mundo intelectual. Confessou-me que desejava escrever
e que tinha um deus, um modelo: o escritor Henri Michaux! Não sei se ele terá tido êxito. Os primeiros poemas dele
foram publicados... mas de momento encontra-se preso por tráfico de droga... A propósito de tráfico: todos nós
acabamos por o fazer, um dia ou outro.
Volto a essa noite de Agosto em que, pela primeira vez, tomei ácido. Perguntei a mim própria, Etienne, meu querido,
como é que tu parecias conhecer tão bem o que eu sentira no decorrer das minhas "viagens" e o que se passou em
mim mais tarde, depois de já ter experimentado tudo, as anfetaminas, o ópio, a cocaína, e, nos dias de penúria, a
cola, o verniz e mesmo porcarias cuja composição ignoro, quando eu suplicava, a gritar, que me dessem fosse o que
fosse, porque o meu corpo se dilacerava interiormente e porque não havia outro meio de apaziguar esses
sofrimentos indescritíveis que me faziam rolar por terra, não ser mais que um animal a desejar chegar ao fim! Oh, tu
viste-me nesse estado. Como pudeste começar a amar-me quando eu era uma louca, repugnante, pois não era já
muito bela, com os dentes estragados, os cabelos a caírem em grandes madeixas.
No pequeno espelho que a tua avó pendurou no meu quarto sou obrigada a sorrir, de lábios cerrados, pois
infelizmente os meus dentes já não são muito bonitos, e o dentista vai ter muito trabalho para salvar o que puder.
Mas os meus cabelos, graças a Deus, reencontraram o seu brilho. Encaracolam como antigamente e são tão
abundantes que o meu rosto fica um pouco perdido nesta cabeleira louca. - Tu gostas deles, e a tua avó afirma que
eu me assemelho assim a certos desenhos de Leonardo da Vinci...
É verdade, como é que tu sabias que, quando não são aterrorizadoras, as "viagens" provocadas pelo ácido são,
frequentemente, feéricas, mágicas, paradisíacas? É o seu maior perigo, pois, mesmo vários anos depois, elas
deixam, disseste tu, sequelas no nosso cérebro, que ninguém descobriu exactamente e que podem influir no nosso
comportamento de uma maneira ainda mal definida. É também um dos meus receios. Não por mim, mas porque tu
me disseste: "Nós teremos filhos."
O efeito da limonada que bebi foi muito rápido, talvez por eu estar já drogada, por o estar desde há várias semanas e
a toda a hora!
Deixei de ver a sala em que nos encontrávamos. Os pares que dançavam transformaram-se em ervas muito altas,
ligeiramente agitadas por uma brisa tépida, ervas multicolores, cintilantes e que se tornavam cada vez mais
brilhantes sob um céu cada vez mais quente. De tal maneira quente que eu despi bruscamente o meu vestido,
descalcei as sandálias, tirei o slip e comecei a correr por entre essas ervas a cantar. Eu não era já uma adolescente
com corpo de mulher, voltara a ser uma pequenita de três ou quatro anos, num imenso jardim murado, e a minha
mãe não era Brigitte, mas sim uma jovem mulher muito bonita, com os cabelos como os meus, mas que lhe
chegavam até aos rins. Também ela se encontrava nua, tinha seios muito pesados, cintura fina, e gritava: "Cuidado,
cuidado, não vás por aí. São flores que crescem no vácuo, e se dás um passo nesse campo mergulhas num grande
buraco e nunca mais me tornas a ver. No fundo desse buraco, espera-te o Diabo, que te assará como a um
porquinho!"

Mas eu, correndo cada vez mais depressa, ria e fugia dos braços que queriam agarrar-me. Jean-Marie contou-me no
dia seguinte que eu começara a gritar: "Onde está o Diabo? Quero ver o Diabo!" E como estávamos todos
completamente "carregados", como a temperatura era sufocante, como o cheiro do incenso e do haxixe se tornava
também um excitante, os rapazes gritavam "Olha, o Diabo está aqui!", pondo-se nus, orgulhosos do seu sexo erecto.
Para mim, todos esses corpos que se acariciavam, que caíam por terra, misturados, eram
apenas um imenso canteiro, um campo de ervas loucas que me impediam de alcançar a imensa extensão de flores
para a qual eu corria apesar dos avisos da jovem mulher...
Quando descobri que estava coberta de sangue e que na minha frente se estendia um imenso deserto com
esqueletos esbranquiçados de animais pré-históricos, o medo apoderou-se de mim...
Parece que comecei a rodopiar tão loucamente sobre mim mesma que os outros, fascinados, me aplaudiram,
julgando que eu dançava para eles. Mas estaria Jean-Marie mais lúcido que os outros? Estaria ainda capaz de se
sentir responsável por aquilo que me sucedia? O que sei é que ele compreendeu que as coisas não estavam a correr
lá muito bem para mim e que tentou levar-me para o pequeno quarto do apartamento para onde costumavam retirar-
se aqueles que se sentiam mal por lhes faltar a sua droga habitual. Nem mesmo para fazer amor, ninguém pensava
nesse retiro reservado. Eu já não conhecia os outros. Debatia-me como uma louca. Tornara-me estérica e chamava
a minha mãe para me socorrer, insultando-a por ela me ter abandonado e dizendo que ia morrer de sede no deserto.
As minhas pragas eram obscenas, parecia que tinha sido criada no meio de prostitutas da pior espécie. Quando
Jean-Marie tentou voltar a vestir-me, eu disse que o meu vestido estava envenenado e me faria morrer... Depois, ao
que parece, adormeci instantaneamente. Hoje lembro-me apenas de uma queda vertiginosa no vácuo. Durante muito
tempo não tomei mais LSD e não quis experimentar a mescalina com que Jean-Marie se drogava, sempre para imitar
o escritor e pintor Henri Michaux que ele tanto admirava.
Fiz pior, sem dúvida, muitas vezes sem mesmo me aperceber disso, "para experimentar", tomando tal ou tal droga
mais ou menos rara que nos propunham amigos vindos dos quatro cantos do mundo: afrodisíacos, alucinogéneos
utilizados por tribos primitivas, qualquer coisa... enfim! Às vezes bastava o nome para ficarmos "altos", e sucedia-
nos, quando um amigo perguntava se queríamos "caçar o dragão", ficar stoned fumando qualquer mistura que se
assemelhasse, mesmo de longe, ao brown sugar.
A maior parte desses que nos ofereciam drogas raras afirmavam que elas permitiam penetrar nos segredos do
destino humano, morrer e depois ressuscitar como os xamãs, encontrar Deus... Nessa lenda nunca acreditei muito,
evidentemente, mas...
Eis que volto a não terminar as minhas frases. No entanto, quando decidi fazer esta confissão, os acontecimentos
que escalonaram o meu calvário pareciam fáceis de contar. à medida que vou fazendo a minha narrativa, eles
confundem-se na minha cabeça e perturba-me evocá-los. Não que eu lamente esse tempo de loucura, pois essa
experiência permite-me falar hoje da "droga" com todo o conhecimento de causa.

Mas pergunto a mim mesma se estou verdadeiramente curada, pior... se alguma vez é possível uma cura completa
dessa descida aos infernos e se não teria sido melhor, pelo menos para ti, não teres tentado salvar-me... não teres
começado a amar-me?
Eu estava há dois meses em Paris, em Agosto de
1982, portanto, quando aconteceu uma coisa de que não te falei, nem a ti nem a ninguém. Eu tinha sido
desvirginada... sem ficar grávida, por sorte. Depois aparecera Jean-Marie. Mas, contrariamente ao que lhe dissera,
eu não ousara ir a um médico para ele me passar uma receita de pílulas contraceptivas. Com efeito, eu julgava que
era nova de mais para ficar grávida! De certa maneira, eu era espantosamente inocente, ou antes, ignorante.
O período não me aparecia. Comprei o "teste de gravidez". Não restavam dúvidas: estava grávida! Anunciei isso a
Jean-Marie, acrescentando que nem se punha a questão, evidentemente, de ter essa criança.
- Com certeza que não, mas tu podias ter tido cuidado. Eu julgava que tomavas a pílula. És doida ou quê?
Após algumas réplicas, o tom subiu e recriminámos um ao outro aquilo que anteriormente nos unira: as nossas
revoltas contra a família, a minha fuga, o facto de ele me ter levado para Paris na sua moto, de me ter conduzido
para casa dos amigos que me tinham drogado, de ter feito com que eu conhecesse Jef. Ele atirou-me à cara o
dinheiro que me tinha emprestado, porque eu gastava muito a comprar erva, etc. Uma verdadeira zanga, como se
fôssemos um velho casal.
Foi nessa época, nos dias seguintes, que tive de me render à evidência: Jean-Marie não só não me amava como
estava loucamente apaixonado por outra rapariga, por causa da qual ele fora para Paris. Se fizera amor comigo fora
porque, nessa época, ela estava em Itália. De resto, qualquer rapaz e rapariga que se conhecessem tinham relações
íntimas sem que isso significasse coisa alguma, nem sequer que se desejassem. Era apenas uma maneira de se
conhecerem um pouco melhor. E, além disso, nas nossas idades a natureza fala, não é verdade?
Patrícia de A. tinha vinte e dois anos. Era uma verdadeira mulher, ela, não uma garota como eu. Além disso era rica,
tendo atrás de si toda uma família. Não exactamente uma família como aquela para cujo apartamento Jef me levara.
Não tinha pais indiferentes, sempre em viagem, fingindo não saber o que faziam os filhos, nem pais como os meus,
repelindo-os, por uma razão ou outra.
Falo muitas vezes dos nossos pais, dos pais dos drogados. Não será a ti que isso possa surpreender. Sendo
psicanalista, és impelido a ver em todas as nevroses, em todos os comportamentos marginais dos seres humanos,
especialmente dos adolescentes, uma responsabilidade paternal. Lembra-te... eu não sou da tua opinião. Sei que
muitos pais bem piores do que os meus, alguns por ressentimento, outros por cansaço, outros ainda por um excesso
de severidade mal compreendida, têm por vezes filhos que, se não totalmente equilibrados, em todo o caso não se
drogam, nem se tornam delinquentes, nem marginais.

Mas, de qualquer modo, sou obrigada a repetir que não conheço um único pai ou uma única mãe que não sejam, em
parte, responsáveis por problemas de que sofriam os meus amigos drogados - aqueles que não se limitavam a fumar
um pouco de marijuana ou de haxixe, a engolir por curiosidade uma pastilha de LSD, a cheirar um tubo de cola ou a
aspirar umas baforadas de éter ou uma pitada de cocaína, mas que, sistemática e voluntariamente, se envenenavam
com heroína, com morfina.... esses, dos quais muitos estão mortos!
A moda, o arrastamento não explicam estes dramas. No que me diz respeito, se eu não fosse uma rapariguinha
desesperada, não me teria certamente injectado. E, se o tivesse feito, a primeira impressão teria sido suficientemente
desagradável para me impedir de recomeçar. Sem contar que, desde o início, assisti ao martírio desesperado que
vive um heroinómano quando está em carência... Esse martírio presenciei-o sozinha, pois era Jean-Marie quem o
sofria!
Na mesma manhã em que lhe anunciara que estava grávida e que precisava de dinheiro para ir a um médico que me
fizesse um aborto - o método mais simples, pois se recorresse a um hospital, como era menor, os meus pais seriam
prevenidos -, Jean-Marie deu-mo. O que eu não sabia era que ele me dera o que devia ao seu fornecedor de "neve".
Esperaria ele que esse pequeno traficante da Place Clichy lhe continuasse a dar crédito ou que algum amigo lhe
emprestasse os dois ou três mil francos de que necessitava diariamente?... Sim... tu sabes... chegam a precisar
dessas quantias que ninguém pode ganhar honestamente! E como é que as arranjavam, visto não trabalharem? De
resto, se trabalhassem, não disporiam, evidentemente, de tais somas! É por isso que todos os verdadeiros junkies
traficam, que as raparigas, e também os rapazes, se prostituem, se lançam em "golpes" em que são cúmplices de
verdadeiros gangsters que sabem bem o que fazem, pois esses nunca se drogam!
Já te disse que Jean-Marie amava apaixonadamente uma outra rapariga. Não mo ocultara. Era mais uma razão para
eu me livrar duma criança para a qual eu não poderia nunca ser uma boa mãe e ele um pai responsável. Era mais
uma razão, pelo menos segundo, o modo de ver de Jean-Marie, para ele me ajudar materialmente. Fui ao médico.
Tudo se passou muito simplesmente, mas, certamente por se ter apercebido da minha extrema juventude, ele deu-
me uma palmadinha no ombro e declarou:
- Farias melhor se voltasses para casa dos teus pais e deixasses de fumar essas porcarias.
Encolhi os ombros. Não lhe tinha pago para ele me dar lições de moral. Voltei ao apartamento. Um grupo de
holandeses, amigos de uma rapariga que fora para a Grécia, tinha chegado. às onze da manhã estavam já todos
completamente pedrados. Foram incapazes de me dizer onde estava Jean-Marie, mas pelas explicações que me
deram em mau inglês percebi que o meu amigo devia estar com problemas, que não se encontrava muito bem. Eu
sentia-me esgotada e sangrava. Há vinte e quatro horas que não comia. Bebi um café antes de partir à procura de
Jean-Marie através de Paris. Conhecia algumas moradas onde ele poderia estar. Bares de Clichy ou de Belleville,
casas de amigos. Se não o encontrasse em parte alguma, iria a casa dessa rapariga, Patrícia, que vivia em Neuilly.
Eu sabia que ela deveria ir no dia seguinte, ou no outro, para a propriedade dos seus pais em Saint-Tropez.
Possuíam outra nos arredores de Deauville. Eram pessoas da melhor sociedade... e da pior.

A tua avó veio chamar-me. Ralhou-me por eu ficar muito tempo fechada no quarto enquanto lá fora o Sol brilha.
Creio que ela desconfia do que eu escrevo. Ontem à noite disse-me:
- Confessar-se a uma folha de papel é o mesmo que confessar-se a um padre. Mas quem se confessa hoje em dia?
Enfim, isso permite ao meu neto ganhar a vida, não é verdade?
Creio que ela troçava um pouco de ti e de todos os psicanalistas. E de mim também, é claro, embora com muita
simpatia. Porque é que eu não encontrei mais cedo uma mulher como ela?

Capítulo 6

Voltando da longa caminhada que nos conduziu pelo campo até ao Nez de Jobourg, depois pelo caminho aduaneiro
até à baía de Ecalgrain, a tua avó parecia menos cansada do que eu!
- É porque não estás habituada, ao vento, aos ares daqui, mas vais ver, dormirás sem sonhos. Com estes ares,
nunca precisei de calmantes nem de excitantes. - Como se tivesse ficado incomodada com o que me dissera, a tua
avó beijou-me nas duas faces antes de acrescentar: - Minha pequena Júlia, não tentarei forçar-te a contares-me os
teus segredos. Não está na minha natureza fazê-lo, e além disso Etienne ameaçou-me com as piores represálias se
eu te... importunasse. A palavra era mais forte. - É espantoso como toda a gente fala mal hoje em dia... enfim, eu sou
de uma outra geração! Sei apenas que quando fores um pouco mais velha te tornarás mulher dele, e sei também que
estiveste muito doente, e foste muito infeliz e que, de momento, é preferível que não vivas em casa dos teus pais.
Porquê? Isso sempre me pareceu um mistério, que certos pais não queiram acolher os filhos que fizeram qualquer
disparate. Eu, mesmo que os meus filhos tivessem cometido um crime...
Ri, dizendo-lhe que os filhos dela deviam, por definição, ser incapazes de cometer crimes. Isso seria impossível com
uma mãe como ela. Nessa altura, meu amor, podes acreditar ou não, tive de tal modo vergonha da minha vida que
comecei a soluçar. Ardia-me o peito, era como se umas garras me dilacerassem os pulmões, sufocava, oh,
exactamente essa terrível sensação de carência... mas dessa vez não se tratava de carência de droga... mas sim
dessa carência de afeição que me ferira tão cruelmente aquando da minha fuga de casa. Dir-me-ás que fui em
grande parte responsável por isso? Sem dúvida! Mas recordas-te do choque que eu senti? Soluçando, supliquei:
- Peço-te, mamie, se tens um soporífero dá-mo. Juro que não me fará mal; tenho necessidade de dormir. A fadiga, o
vento não serão suficientes... preciso de dormir profundamente. Amanhã de manhã estarei melhor, mas esta noite
preciso de dormir, de dormir!
Terei gritado estas palavras com tanta força que ela tivesse sentido medo? Apertou-me estreitamente contra o seu
peito, de tal modo que eu ouvia as pulsações do seu coração, e começou a chorar também, murmurando:
- Pobre pequena, minha pobre pequena, o que é que te fizeram?
Eu confessei:
- Isto foi mais forte que eu!... A minha mãe abandonou-me quando eu tinha quinze dias, e a outra, aquela que me
criou, aquela a quem eu chamava mamã, que eu amava...

- Chiu, minha pequenita, não digas nada. Tenho a certeza de que houve algo que tu não entendeste, um mal-
entendido, sim, foi isso, um terrível mal-entendido que fez sofrer toda a gente. De qualquer modo, não era razão para
te deixares destruir. - E, sem te trair, Etienne confessou-me que te tinham deixado destruir. Encarregou-me de colar
os pedacinhos, mas preciso que me ajudes, senão não conseguirei fazê-lo, pois sou apenas uma velhota que vive
afastada do mundo, sabendo muito pouco da vida moderna... a não ser através dos jornais, da rádio e da televisão,
que por vezes deformam a verdade... tanto mais que a verdade não é muito fácil de conhecer, pois não?
A tua avó andava de um lado para o outro na sala enquanto falava comigo, punha numa taça um ramo de primaveras
amarelas colhidas junto de um talude.
Eu continuava a chorar.
- Tu estás cansada, por isso vamos fazer uma coisa. Sobe ao teu quarto, despe-te, veste o teu pijama mais quente e
mete-te na cama.
- São apenas seis da tarde!
- Perfeito. Fecha os olhos e será como se fosse noite. Respira a plenos pulmões o perfume da mimosa, pois é
melhor que deixes ainda a janela aberta. Eu vou acender a lareira no teu quarto e depois preparar um bom jantar
para nós as duas comermos lá. Vamos fazer um festim, numa bandeja. Só coisas boas, e abrirei até uma garrafa de
vinho. Depois poderás contar-me o que quiseres, se achas que isso te aliviará. Verás que nunca nada é tão grave
como imaginamos, eu sei-o bem, pois já vivi um pouco mais do que tu, passei pela guerra, por muitas outras coisas...
Como eu me preocupava com o trabalho que lhe estava a dar, ela riu-se.
- É bom ocuparmo-nos daqueles que amamos, não conheço mesmo melhor maneira para esquecer desgostos...
- Mas o horror, mamie... a morte antes do tempo?
- Chiu! Fecha os olhos, deixa-te levar como um nadador pela corrente, não estejas sempre a repisar no que se
passou. Vai. Já vou ter contigo.
Tenho a certeza, meu amor, de que a tua avó te telefonou ontem à tarde depois de eu ter ido para o meu quarto. Ao
princípio falava muito baixo, e eu não ouvia nada, mas de repente ergueu a voz, exclamando: "Não, sobretudo não
venhas! Deixa-me com ela. Farei melhor do que todos vocês, psicanalistas, que a encheram de perguntas. Não me
tomes por uma velha tonta, conheço bem os psicanalistas, leio revistas, livros, ouço-os falar na rádio... não te
zangues, fazem um bom trabalho, é certo, mas Júlia agora só precisa de uma "boa" cozinha, de um "bom" sono e de
ternura. De ternura, compreendes? Agora, meu rapaz, deixa-me em paz, que esta conversa vai-me custar uma
fortuna. Quando precisarmos de ti, aviso."
O programa de mamie foi seguido ponto por ponto. Colocou duas grandes almofadas nas minhas costas para eu
poder sentar-me e instalou sobre a cama uma pequena mesa, como aquelas que se usam para os doentes. Eu via
as chamas na chaminé e a luz das pequenas velas, porque, como a tua avó observou, a sua luz é mais bonita do
que a da electricidade e dá um ambiente de festa. A tua avó colocara também vários ramos de mimosas numa jarra.
Eu recomecei a chorar quando ela ergueu a tampa da terrina antiga. Cheirava bem, a creme de alhos franceses e a
pão torrado.
- Mamie, eu não sou digna de Etienne, não sou digna de entrar numa família como a vossa. Que vai ser de mim?

- Minha querida, parece que estamos numa história da Veillée des chaumières. Tentemos ser um pouco mais
modernas, sim? Isso não nos fará mal nenhum. E mais realistas, também. Primeiro, come a sopa enquanto está
quente. Em seguida, vais-me dizer o que pensas desta salada à minha moda. Os lagostins são frescos, vêm de St-
Vaast, e o queijo sou eu que o faço. O pão também, porque agora na região só se encontra pão industrial. Tenho um
truque para o fazer parecer sempre fresco e fofo. Hei-de ensinar-to.
Eu desconfiava que ela soubesse, mas precisava de ser eu a dizer-lho.
- Droguei-me até quase morrer, mamie. Fui transportada para Marmottan em coma, há seis meses. Fiquei muito
tempo na reanimação e depois fiz uma cura de desintoxicação. Ao princípio, Etienne era apenas um médico como
qualquer outro, esperou que eu saisse do hospital para confessar que me amava. Quanto a mim, começara a amá-lo
desde um certo dia em que ele me pegara na mão e me dissera: "Tu já não estás doente, Júlia. Tens necessidade de
um amigo, de alguém seguro e sólido."
- Continua!
Enquanto me ouvia, a tua avó não parava de se ocupar de mim, servindo-me, fazendo-me pequenos sinais para que
eu apreciasse o que ia comendo, deitando vinho no meu copo. Havia calor no quarto, mas lá fora levantava-se um
temporal.
O tempo muda de hora para hora nesta região. Mas eu sentia-me extraordinariamente abrigada. O quarto estava
fracamente iluminado. Mamie tirara a mesa de cima da cama. Ela mal comera. Tirou o seu tricô da enorme algibeira
do avental, murmurou que fazia aquilo por instinto e que não precisava de ver, mas que o toque das agulhas a
baterem uma na outra a ajudava a ouvir melhor e que não gostava de ter as mãos desocupadas. Era um hábito,
afirmou, devido a tantas coisas que tinha sempre para fazer em casa.
- Estende-te. Conta.
- Mamie, estás a fazer de psicanalista!
- Não estou a fazer de coisa alguma. Conta-me o que te fizeram, o que fizeste aos outros, isso também é importante,
são às vezes essas cicatrizes que mais custam a sarar.
E eu comecei a falar, embora não desejasse fazê-lo.
- Vivia com Jean-Marie, enfim, mais como amigos do que como amantes, embora fizéssemos amor de vez em
quando. Isso tem tão pouca importância entre nós, os jovens. Foi Jean-Marie que me levou para Paris na sua moto
quando fugi de casa. Sem me fazer perguntas, simplesmente por eu lho ter pedido. Tinha mais cinco anos do que eu,
estava a acabar o seu curso secundário. Tinha intenção de continuar a estudar para mais tarde tomar conta do
escritório de importações e exportações do pai. Um bom negócio, cuja sede ele pensava transferir para a capital
quando fosse sócio do pai. Evidentemente, fumava e experimentara também as anfetaminas, as peps pills, para
aguentar sem dormir e trabalhar ao máximo apesar das noites brancas e...
- Ser um super Don Juan! Houve um programa na televisão sobre as love pills, sabes, e eu estou ao corrente. No
meu tempo, contudo, os rapazes de vinte anos não tinham necessidade de pílulas... e nós também não... é verdade.
Acreditava-se ainda no casamento, no vestido branco e na flor de laranjeira. E então, esse Jean-Marie?

Eu julgava ter coragem para lhe contar tudo. Não lhe falei de Jef. De resto, ele parecia-me já muito distante. E
depois, Jef, Jean-Marie, os outros, meu querido, todos esses outros que tu não poderás perdoar-me, tenho a certeza,
e que no entanto não contaram, cujas feições eu esqueci... Ah, quando te imagino, a ler estas linhas. Mas estarei
longe. Sozinha e longe!
- Andávamos juntos porque nos conhecíamos de Tours. Foi ele que me ensinou a fumar, primeiro marijuana, depois
shit, haxixe, se preferir.
Pelo meu silêncio, a tua avó percebeu que eu não queria contar mais, que me enervava falar da escalada que me
fizera passar das drogas mais fracas para as drogas mais duras.
- A maior parte dos nossos amigos da comunidade tinha partido de férias, sendo substituídos por estrangeiros que
não falavam francês. Eram mais drogados do que nós, do que eu, pelo menos. Não me apercebera ainda de que
Jean-Marie era um junkie, compreende, completamente intoxicado pela heroína e pela morfina. Nesse fim de tarde...
eu própria passara um mau bocado e, para me ajudar, Jean-Marie dera-me uma grande soma em dinheiro, embora
para ele o que representavam dois mil francos? Apenas dois gramas de "cavalo"!
O ruído das agulhas de tricotar parou. Eu não ousava erguer os olhos para a tua avó. Percebi que ela estava
chocada. Vi-a remexer as achas da lareira. Senti desejo de me calar. Com uma voz um pouco mais seca, mamie
constatou:
- Julguei que conheciam a pílula há muitos anos! Mas tu eras tão nova! Como tudo isso é lamentável! Mas continua,
o passado é o passado. Etienne sabe? Suponho que ele queira ter filhos.
- Mas eu ainda posso ter filhos, mamie. Fui a uma ginecologista, que me observou e foi categórica. Mas vê, mesmo
tu começas a perceber que está tudo acabado para mim, que não mereço Etienne.
Eu já não chorava. Lembrava-me de um tipo taoísta que repetia muitas vezes a frase de um filósofo chinês: "Se
temes o Inferno, salta para onde as chamas forem mais fortes." Continuei:
- Tínhamo-nos instalado no apartamento dos pais de Patrícia, a rapariga que Jean-Marie amava. Eu acabara por
saber que tinha sido apenas uma distração para ele. Ele não me enganara. Nunca me dissera que me amava.
Quando voltei a casa após o desmancho, como não o tinha encontrado em parte alguma, dirigi-me para o quarto
onde habitualmente dormíamos. Um quarto com uma mobília lacada preta e vermelha, misteriosa, extravagante
como o resto da casa, excepto o grande salão de recepções. Os A. eram pessoas extravagantes, gente blasé que
gostava de corromper, mas isso não o sabia eu ainda. Nunca mais suportarei o vermelho. O espectáculo que se
ofereceu aos meus olhos... meu Deus... meu Deus... só de pensar nisso...
Isto nunca te contei, Etienne, porque tu me fazias perguntas a meu respeito e não a respeito dos outros. De resto,
que te poderia dizer de novo? Provavelmente assististe a cenas ainda mais horríveis, viste mais drogados em
carência de droga. Mas para mim era a primeira vez. Eu amava Jean-Marie e algumas horas antes acabara de viver
momentos que, por mais que se diga e que se pense, são dolorosos para uma rapariga. Sem querer romancear, o
que é facto é que eu tinha feito desaparecer o que poderia ter sido o meu primeiro bebé. Sim, sou
incondicionalmente a favor do direito das mulheres à contracepção... mas o aborto, mesmo que seja feito nas
primeiras semanas, deixa sequelas... na cabeça!

Ao princípio, julguei que estava perante um animal: gritei!


- Cala-te ou ainda acabas por fazer com que os vizinhos chamem a polícia. É melhor que me ajudes, ou acabo por
enlouquecer, se o meu coração não rebentar antes disso. Procura qualquer coisa, procura, por amor de Deus, é
impossível que não haja nada nesta pocilga. Telefonei ao Alex e à Patrícia...
Jean-Marie resfolegava, andava de gatas pelo chão, procurava debaixo da cama, levantava a alcatifa com a faca,
batia no chão como se este fosse um inimigo pessoal. Lançava obscenidades, injúrias a Patrícia e aos pais num
palavreado delirante. Vi-o de repente assoar-se com os dedos e atirar o ranho contra as paredes, dizendo que se
aquilo continuasse cobriria todo o apartamento de dejectos, que aqueles patifes não mereciam outra coisa, que
tinham até esvaziado a farmácia antes de partirem para o Midi! E no bar havia apenas meia garrafa de gin, com o
qual ele tentara injectar-se, mas tinha deixado cair a garrafa.
- Se não me arranjas qualquer coisa, mijo e injecto-me com isso. Talvez me acalme.
Eu permanecia diante dele, petrificada. Bruscamente, pôs-se de joelhos, arrastou-me e abraçou-me os pés,
suplicando-me que o salvasse, que sofria demasiado, que tinha um ferro quente no ventre, que tenazes lhe torciam
as articulações e que se isso continuasse...
Eu já não sabia que estava a falar com a tua avó. Revia essa cena de Grand-Guignol e de como Jean-Marie e eu
chorávamos e eu tentava levantá-lo, repetindo-lhe que devia deitar-se, que faria o que ele queria.
- Dinheiro, é preciso dinheiro. Alex é um porco. Sabe bem que Patrícia pagará, mas não quer cá vir, diz que eu já lhe
devo muito, mas é mentira. E ele engana-me, da última vez havia mais lactose do que pura, e por isso fui obrigado a
injectar-me mais vezes, e a minha provisão voou...
Bruscamente, vomitou para cima dos meus pés, incapaz de conter os vómitos que o faziam gemer duma maneira
atroz. De repente, começou a girar sobre si mesmo, dando punhaladas no ar e gemendo:
- Já não vejo nada, oh, Patrícia, porque me abandonaste? Agora estou cego. Onde estás tu, quero beijar-te, peço-te,
peço-te. Quero injectar-me com o teu sangue, assim seremos apenas um... deitar-me-ei a teu lado...
Delirava. Comecei a gritar com ele, a girar para fugir à faca que ele agitava no ar. Estava a ficar tão louca como ele.
O telefone tocou e eu precipitei-me para ele. Jean-Marie, caído no chão, gemia como um bebé recém-nascido,
repetindo:
- Estou mal... mal... mamã... salva-me... vou morrer... tenho medo... medo.
Levantei o auscultador. Jean-Marie calara-se de súbito, como se tivesse perdido os sentidos. Eu pensei: "Está morto,
preciso de fugir, de nunca mais aqui voltar!"
- Está?
- Daqui fala Pat. Ele está sem droga, não é? Vocês estão sem dinheiro, hem?
Uma voz mundana, quase indiferente, irónica. Não queria sequer saber que eu estivesse ali, que dormisse com
Jean-Marie.

- Parece que está a morrer! O que é que eu faço? É terrível!


- São coisas que nos sucedem a todos. Espera, o pior já passou. Telefonei a Alex. O teu amiguinho tem sorte em eu
ser boa rapariga e o meu papá ser vulnerável; assinou-me um belo cheque. Ainda haverá bons tempos, mas desde
já te previno que não pagarei a "tua" mercadoria. Tens de te arranjar como as outras. Para as raparigas não é difícil!
Oh, Etienne, nesse momento senti-me tão enojada que foi preciso ver aquele farrapo humano, que era Jean-Marie,
caído sobre aquela cama suja, naquele quarto devastado, para não fugir e deixar o meu pobre amigo naquele
estado.
Eu já não sentia as dores no meu baixo-ventre, olhava para aquele corpo imóvel e rezava a Deus, sim, rezava. Todo
o meu fervor dos anos da infância me veio aos lábios: "Meu Deus, faz com que ele não morra, meu Deus, eu farei
qualquer coisa para que ele não morra."
A voz de mamie fez-me sobressaltar. Já não me lembrava de que ela ali estava, que fora a ela que eu contara esta
cena degradante. A penumbra ocultou a vermelhidão que me invadia. Mordi os lábios até fazer sangue para me
impedir de contar o que se seguiu.
- Farias melhor em rezar para que Deus te curasse para sempre da tentação de fumares mesmo o mais anódino dos
cigarros.
Como eu não respondesse, ela levantou-se, remexeu as brasas e declarou:
- Não ponhas aqui mais lenha. Terias muito calor durante a noite. Estás bem coberta.
Tentei cruzar o meu olhar com o dela. Mas ele fugia-me. Iria perdê-la também a ela, como perdera o meu pai,
Brigitte, e como te perderei a ti quando acabares de ler a minha confissão?
Os happy-end são para os romances que as nossas avós liam quando eram novas. Na época das bombas atómicas,
poderá haver ainda um fim feliz para as nossas histórias?
- Vou trazer-te uma chávena de leite quente perfumado com essência de flor de laranjeira. Amanhã de manhã
preciso de me levantar cedo, para ir fazer compras a Cherbourg. Não te levantes. Quando acordares, basta-te ligar a
cafeteira eléctrica. Deve estar bom no jardim. Deixo-te a mesa posta debaixo das mimosas. Mas não escrevas de
mais. Nem todas as recordações merecem ser lembradas.
Mamie tinha de repente um aspecto envelhecido, com uma expressão amarga na boca, o rosto sulcado por rugas
dolorosas. Compreendi que estava fatigada, muito fatigada, talvez da vida... Beijou-me na testa com a ponta dos
lábios. O perfume leve da água-de-colónia evaporou-se depressa. Abrira a janela sobre a noite. Puxei os cobertores
da cama e cobri a cabeça.

Capítulo 7

Porque não te encontrei mais cedo, meu querido? Porque não te encontrei no meu caminho no dia em que, em
poucos segundos, a felicidade da minha curta existência se aniquilou irremediavelmente? Ter-me-ias dito as mesmas
palavras que pronunciaste há alguns meses, ter-me-ias livrado desse calvário sem glória. Sentir-me-ia ainda jovem,
limpa, capaz de ser amada... o que nós desejamos todos, desesperadamente...
Mas no meu caminho, a partir desse momento funesto, só encontrei censores, juízes ou cúmplices. Os primeiros
foram tão desajeitados que a reacção normal perante as suas exigências foi revoltar-me, repeli-los. Os juízes, esses,
só viram um aspecto do problema. Os últimos fizeram brilhar diante dos meus olhos os prazeres que eles sentiam, os
seus sonhos paradisíacos. Para isso, bastava provar, como eles, certas ervas, alguns pós miraculosos que eles me
ajudariam a procurar. Imediatamente o mundo, os seres humanos, tomariam um outro aspecto, eu saberia o que era
o amor, a felicidade, Deus... esqueceria a fadiga, a angústia, não veria a fealdade, a guerra... Imagine-se!
Apesar do meu corpo de mulher, tinha treze anos e meio, era núbil apenas há um ano! Vivendo na província,
protegida por uma família aparentemente sem problemas, ignorava tudo das baixezas, das corrupções, das
exigências da vida. Uma boa presa, em suma, para aquilo que me iria suceder.
Como iria eu adivinhar, nessa época de incomensurável decepção, que por detrás dos efeitos exaltantes que se
encontrava nos estupefacientes havia a morte? E, pior ainda, sofrimentos infernais, degradações de traços
indeléveis. Tu ter-me-ias avisado disso, meu querido. Tu ter-me-ias posto em guarda, não condenando-me, mas
explicando-me o perigo mortal que eu corria... como fizeste, infelizmente tarde de mais! Oh, tranquiliza-te. Não
cederei mais à tentação. Tive demasiado medo, sofri de mais. E além disso quero viver, mesmo uma vida. difícil e
triste, visto que não te imporei partilhá-la comigo. Repito-te: não me sinto digna de tal felicidade.
Quando vejo as alegrias simples mas intensas que a tua avó tira ainda de uma vida que, no entanto, se vai
desgastando digo que isso pode ser possível. Também ela sofreu golpes duros, lutos, decepções. Como é que teve
coragem para continuar? Serei eu mais cobarde?
Infelizmente, sinto ainda terríveis ressentimentos contra o meu destino e aqueles a quem responsabilizo por ele.
Talvez o meu comportamento não seja já anti-social, mas dentro de mim sinto um ódio que não te confesso. Mesmo
hoje, e apesar da tua ternura, me sinto hostil para com a sociedade que, fingindo ajudar-nos, nos maltrata, a nós, os
jovens que cometemos faltas! Só tu me ajudaste. Mas, na sociedade em que desejo voltar a reinserir-me, a maior
parte dos indivíduos são diferentes de ti, de mamie. Vejo-te daqui desatares a rir, declarando que não és um santo,
nem ela uma mulher ideal, e que pessoas como tu e ela existem aos milhões em todo o mundo, que basta olhar bem
à nossa volta; nem com lentes cor-de-rosa nem com lentes escuras, eu não acredito, na verdade, mas se tu o dizes...

Parei de escrever à sombra da mimosa, porque a mamie voltou de Cherbourg e me pediu para a ir ajudar a arrumar
as provisões e em seguida a cortar a sebe por detrás da casa. Ela tinha reencontrado o seu bom humor perdido
ontem à noite, maquilhara-se um pouco para ir à cidade e parecia ter menos dez anos. Deve ter sido muito bonita.
Como eu lho fiz notar, ela respondeu:
- Tenciono sê-lo até à morte. Uma velha senhora bonita é mais importante do que uma rapariga bonita. Tem mais
mérito; de resto, tenho admiradores, não penses que não.
- Como é que consegues rir tão facilmente? - perguntei, acrescentando logo a seguir: - Nós, os jovens...
- Ah, não. Essa frase não, visto que eu não te imponho a eterna censura: "Vocês, os jovens!" O que é que tu julgas?
Aos quinze anos também eu me sentia revoltada contra o mundo inteiro e esses "velhos" que achavam que a nossa
vida era demasiado fácil e que no tempo deles...
Um pouco irritada, repliquei:
- Em todo o caso, obedeciam aos vossos pais, e as raparigas permaneciam virgens até ao casamento! Depois era o
marido, o senhor. No teu tempo não se drogavam e não se deitavam por um sim ou por um não... A libertação das
mulheres...
- Pois bem, não se pode dizer que saibas muito de história, minha filha. E pensar que, se não fosse o que sucedeu,
já estarias quase a terminar o curso secundário! Aqui entre nós, acho bem que te façam repetir o ano. Falta-te um
pouco de maturidade. Felizmente, Etienne vigiar-te-á, visto que os teus pais concordaram em que permaneças em
Paris. No próximo ano... tencionas prosseguir os teus estudos? Bem sei que agora todas querem ter uma profissão.
Não acho mal, repara. A mulher em casa dá largas à imaginação. Tens projectos definidos? Casas-te antes ou
depois do fim dos estudos?
Não queria abordar esse assunto... Retorqui:
- Em que é que eu não conheço a história?
- Tudo isso porque eu tenho setenta e três anos! Mas em mil novecentos e vinte e seis tinha a tua idade. Sabes o
que isso significa? O pós-guerra, os cabelos cortados, os vestidos pelo joelho, o charleston, as sufragistas inglesas e
esses livros de Victor Margueritte que fizeram escândalo: La Garçonne, Ton corps est a toi. O seu irmão Paul tinha
escrito um romance: Jouir... Julgas verdadeiramente que vocês inventaram tudo? E as Demi-vierges, de Marcel
Prévost, os anos loucos, isso deve dizer-te algo, está na moda, e os opiómanos,
os cocainómanos, os Ballets Russos? Eu nem sempre vivi na Normandia, minha bela. Os meus pais eram
parisienses e saíam muito.

Lançada nas suas confidências, mamie não parou. Sim, casara virgem e nunca ousara sequer fumar um cigarro
egípcio, de ponta dourada, para não desobedecer ao pai! Mas fora simplesmente porque tivera a sorte de gostar de
desporto, de ténis, de natação, e de querer manter a forma. Nessa época, o desporto era como uma religião. A sua
segunda sorte fora apaixonar-se pelo teu avô. Um colosso, médico de clínica geral, mais velho dez anos do que ela,
cheio de medalhas ganhas durante a Grande Guerra que ele se recusava a usar porque odiava a guerra. Oito filhos
em catorze anos de vida em comum. E de repente ele morrera com um enfarte: trabalhava demasiado sem conseguir
amealhar nada, devido à família numerosa e às muitas consultas gratuitas que fazia... Mamie ficou com essa tribo,
tendo o mais velho treze anos e o mais pequeno seis meses.
- Tinha trinta e quatro anos - disse ela - e nenhuma profissão. Ao princípio, felizmente, os meus pais ainda eram
vivos e ajudaram-me. Estávamos em trinta e nove. Tive de meter os meus três filhos mais velhos, entre eles o pai de
Etienne, num colégio interno, os Oratoriens, em Juilly. As seguintes eram raparigas e conservei-as junto de mim.
Elas e os mais pequenitos: Christian e Benjamim. Estávamos em Março, e
ninguém duvidava que ia haver uma nova guerra excepto eu!
Fez-se silêncio, e eu não ousei dizer nada, continuando a cortar maquinalmente alguns ramos que não estavam bem
alinhados.
- Precisaste de muita coragem, mamie.
- Coragem! Nem pensava nisso! Dava de comer aos garotos, cosia, remendava, corria para descobrir lojas menos
caras, vigiava os deveres dos que andavam na escola, escrevia aos que estavam no colégio. E depois, à noite,
estava tão cansada que adormecia imediatamente, sem sequer ter tempo para chorar...
De súbito, mamie disse-me que fosse dar um passeio. Não me queria ao pé dela. Desejava com certeza que eu
reflectisse em tudo aquilo que me contara. à mesa, olhou-me gravemente, avisando-me:
- Se te conto tudo isto, eu que nunca falo de mim, é para que compreendas que, apesar daquilo que dizem os
jornais, os sociólogos e em geral todos aqueles que têm por profissão interessar-se pelos costumes, as mudanças
operadas na sociedade são superficiais. Se a pílula existisse no meu tempo, a vida sexual das mulheres seria tão
livre como a vossa, sem dúvida, e todas as relações sociais e familiares teriam sido transformadas. Na verdade, não
é por os homens irem para o espaço nem por haver armas atómicas que a natureza humana mudou: no aspecto
psicológico, os nossos contemporâneos não são provavelmente muito diferentes do homem das cavernas, e sempre
foi assim. Os progressos são apenas técnicos. Porque é que te digo tudo isto? Ah, sim. Eu tinha trinta e cinco anos,
era ainda bastante bonita e, apesar das crianças, uma verdadeira mulher, com necessidades de ternura, de
sexualidade. Como vês, não tenho receio das palavras. Julgas que não me senti tentada? Já me esquecia... com
uma família tão numerosa, apesar da ajuda dos meus pais, eu tinha grandes preocupações económicas. Existem
belas perífrases para camuflar a coisa... mas, enfim, a prostituição, receber dinheiro para entregar o corpo... percebi
bem o que tentaste confessar-me quando falaste do dinheiro de que Jean-Marie precisava... tu, sem dúvida, mais
tarde... Mas confesso-te que pensei muitas vezes que muitas mulheres casadas se prostituem à sua maneira. Afinal,
também vivem à custa de um homem, o marido, que nunca amaram ou já não amam.
Por fim, protestei:

- Mas, mamie, prostituir-se para evitar a miséria dos filhos não é o mesmo que vender-se a qualquer homem, em
quaisquer condições, apenas para obter o veneno que nos pode matar a curto ou a longo prazo e após uma agonia
terrível; apenas para permitir que uns crápulas enriqueçam à nossa custa. E depois... tenho a certeza de que tu
resististe, não te vendeste. Eras uma mulher, e eu não quero conhecer a tua vida, mas se tiveste tentações foi
certamente por outros motivos... uma atracção, uma necessidade de amor. Antes de encontrar Etienne, eu não amei
ninguém. Tive apenas uma ligeira paixoneta por um ou dois rapazes, mas isso, não contou.
Mamie ligou o rádio, porque queria ouvir as notícias. Via bem que ela pensava: "Pobre pequena Júlia, que vou fazer
de ti?" Perguntei-lhe se podia emprestar-me a sua bicicleta para passear um pouco antes de começar a estudar, pois
já era tempo de o fazer. Tenho medo, confesso-te, Etienne, que a "branca" de má qualidade com que me injectava
há um ano, e sobretudo com o que me sucedeu antes do meu coma com speed, tenha afectado as minhas
faculdades da memória. Pior! Receio que essas porcarias tenham deixado sequelas perigosas no meu cérebro, como
sucedeu com alguns dos meus companheiros.
Sabes como acabou Jean-Marie? Foi apenas uns dias antes de eu própria ficar KO.
Os pais dele fizeram crer aos seus amigos, às suas relações, que ele se havia suicidado por um desgosto de amor.
Pela bela Patrícia de A. Eu direi antes que ela o matou. Não com as suas próprias mãos, claro. Não com um tiro.
Mas quase sem se aperceber disso, porque hoje, apesar desse drama, ela não está muito melhor do que ele!
Pergunto a mim mesma como irá ela acabar. Só sei que, quando está lúcida, é roída pelos remorsos. Os pais dela é
que os deviam ter. Será preciso que te fale deles, dos verdadeiros responsáveis pela morte de Jean-Marie e pela
degradação de Patrícia e pelo que teria certamente sido a minha morte se não te tivesse encontrado. Pois o medo
não teria bastado, apesar do que eu disse. Pelo contrário... quanto mais medo se tem... mais se sente a necessidade
de atordoamento.
Mas eu tive a sorte de ser amada por ti!
E tu estás mais bem colocado do que ninguém para avaliar o que se diz a respeito de nós.
"Há apenas um meio de os salvar, de os curar: a prisão ou o amor!"
Não é bem assim. A prisão... eu evitei-a, mas muitos amigos, em França, no estrangeiro, conheceram-na. Isso fê-los
mergulhar mais profundamente na ignomínia. Quer por a saúde deles se ter deteriorado para sempre, quer por ali se
terem entregado a novos vícios, quer por terem sido contaminados por presos de delito comum, muitos deles, ao
saírem da prisão, entraram definitivamente nas fileiras dos vadios, dos bandidos.
E nem te quero falar de histórias capazes de pôr os cabelos em pé que me foram contadas pelos infelizes que
estiveram encerrados nas prisões asiáticas ou, mais modestamente, espanholas, italianas...
Não, a prisão não é uma boa solução! E o amor chega por vezes demasiado tarde!

Capítulo 8

Todas as manhãs, por volta das oito e meia, ouço tocar o telefone. No dia seguinte ao da minha chegada, pensei que
fosses tu, Etienne, que me telefonasses, mas tu só o fizeste cerca das dez horas, depois de estares no teu
consultório, e pouco antes de eu ir passear à beira-mar.
Ontem fui até ao farol de Omonville-la-Rogue. Havia grandes nuvens vindas de oeste anunciando chuva, mas que
eram frequentemente atravessadas por raios de sol, e o mar começava a encrespar-se: era soberbo. Como a tua avó
não me quis responder quando lhe perguntei o nome do interlocutor a quem a ouvira dizer: "Ela está bem, um pouco
triste, mas calma, o apetite não é ainda muito, mas dorme dez horas por noite", não insisti. Quem, além de ti, se
poderá preocupar assim, regularmente, com a minha saúde? O papá? Mas então por que razão não pediria para me
falar? Brigitte... por se sentir responsável por tudo o que me sucedeu? Ela tem razão em não pedir para falar comigo.
Que lhe diria eu? Não sei como lhe hei-de falar. Não é certamente a minha mãe, essa mulher que não merece esse
nome, pois contentou-se, porque não podia fazer outra coisa, em conservar-me nove meses dentro do seu ventre! A
propósito...
Disseste-me, ontem à noite, ao telefone, que eu devia continuar a escrever a minha história, que era a melhor
maneira de me livrar dos meus fantasmas assustadores, pois fora comigo que decidiras casar e não com esses
seres sem consistência real! E acrescentaste: "Cada coisa a seu tempo ..." Tens razão: a altura de falar dessa
mulher desconhecida, a minha mãe, virá mais tarde. Devo voltar a esse dia terrível em que fui encontrar Jean-Marie
em carência de droga, e em que conheci um certo Alex, cujo apelido ignorei sempre, e, por causa desse encontro, os
estranhos pais de Patrícia de A.
Foi também devido a esse encontro que me injectei pela primeira vez com heroína. Depois disso, a minha derrocada
foi particularmente rápida, espectacular, sem dúvida por causa de eu ser tão nova. Tu conheceste o desastroso
ponto final e todo o meu dossier, as minhas confidências, ou antes, as minhas confissões deram-te a conhecer as
principais etapas. Mas no dossier de um drogado os factos mais trágicos tomam uma forma abstracta. E quando eu
te falava, respondendo às tuas questões, permanecia desconfiada. Nós, os junkies, mentimos quase maquinalmente
quando nos interrogam. Mentimos também a nós próprios: não vivemos num mundo real, mas sim num universo de
delírios, de êxtases, seguidos de pesadelos insuportáveis.
Agora esforço-me por descobrir a verdade. Não é fácil, tanto mais que a lembrança de certas recordações me
assusta e certas imagens ainda hoje me fazem tremer. Sem dúvida porque agora vejo ainda melhor quais foram as
dramáticas consequências para o pobre Jean-Marie e as que, logicamente, me iriam dar um fim idêntico!
Eu estava a limpar, o melhor que podia, o quarto que jean-Marie sujara. Do estado angustiado, com lágrimas e
gemidos, ele passara para uma agressividade demente, mas apenas em palavras. Eu só the dizia:
- Alex virá. Patrícia telefonou-lhe de Saint-Tropez. Ele jurou que vinha.

- Ele mente, é um porco dum passador, um vadio que sonha com raparigas da alta, mas a Brigada de
Estupefacientes já o topou há muito tempo, e ele sabe-o, e não se aventurará a vir aqui, pois receia uma armadilha, e
então iremos todos presos, mesmo tu com esse ar de inocente! Quem sabe até se ele não nos denunciou já? Tenho
a certeza de que os da Brigada o deixam andar à solta para apanharem outros ao mesmo tempo que ele. São uns
porcos, a política está por detrás de tudo isto, compreendes? O que eles merecem é uma bomba. Irei eu próprio, pô-
la. Olha, em casa dos pais de Patrícia. Queres? É fácil, e tanto pior se formos também pelos ares... pois tudo isto irá
acabar forçosamente assim. Mas não faz mal, este planeta está podre. Já imaginaste que belo fogo-de-artifício?
Melhor que Pompeia ou que Sodoma e Gomorra: nós somos Sodoma e Gomorra, poderíamos brincar com o fogo do
céu. Seria uma grande brincadeira, não achas?
O delírio dele assustava-me ainda mais do que os vómitos. Quando ouvi dois toques curtos da campainha seguidos
de um terceiro, mais prolongado, o sinal, soltei um suspiro de alívio e fui abrir. O tal Alex estava à porta. Tinha o
aspecto de um correcto empregado de uns grandes armazéns. Fato cinzento-escuro, apesar do calor, laço, óculos
com aros de tartaruga, discreto, um sorriso nos lábios fechados. Não reparei no olhar dele.
- Alex?
- Chiu. Nada de nomes... Como se fosse o seu verdadeiro nome. Entrou. Era fácil perceber que era a primeira vez
que ali ia. Não precisava de explicar:
- Não tenho o hábito de me deslocar. Que se passa?
Vi imediatamente que o luxo do apartamento o intimidava. Mas Jean-Marie, apesar do seu estado, ou por causa de
os seus sentidos estarem particularmente despertos, apercebeu-se também da chegada de Alex.
Lançou-se literalmente contra o homem, suplicando, de mão estendida:
- Depressa, não aguento mais, vou enlouquecer...
- Calma. Tens sorte em teres quem te apaparique. Pat jurou que me enviava o montante da tua dívida. Esta também
trabalha para ti? Parabéns!
Não compreendi o que ele insinuava. Jean-Marie abria febrilmente o pequeno saco, provava com a ponta do dedo o
pó branco. Alex resmungou:
- É da boa, da melhor. Não te preocupes. - Jean-Marie estava nu, mas tinha na mão uma colher, um garrote e uma
seringa.
- Ajuda-me! - Dirigia-se a mim. Alex afastara-se com um ar desdenhoso. Aquilo não lhe dizia respeito. Compreendi
que não se tratava de um passador habitual, desses que vendem droga para arranjarem dinheiro para se poderem
envenenar também. Não, Alex nunca devia ter sequer dado uma passa. Só o dinheiro lhe interessava, e agora
parecia fazer o inventário dos quadros e dos móveis da sala para onde tínhamos voltado.

Por ordem de Jean-Marie, tirei com a colher um pouco de água duma jarra de flores; estava suja, mas ele fez-me
sinal que não queria saber disso; depois, ele próprio despejou o pó branco nesse líquido, pedindo-me para acender
por baixo da colher um isqueiro de mesa que ali se encontrava. Tremendo, encheu a seringa. Não creio que ele a
tivesse esterilizado e recordei-me de histórias de abcessos, de envenenamentos, de tétanos e de agonias por entre
as mais atrozes convulsões.
- Tu és doido!
- Cala-te! Contenta-te em apertar o garrote. No meio dos hematomas escuros, apanhou a veia.
Enterrou brutalmente a agulha, e uma gota de sangue misturou-se ao líquido. Então, lentamente, voluptuosamente,
com um suspiro de alguém que acaba de escapar a um perigo mortal, Jean-Marie começou a injectar-se, esvaziando
o conteúdo da sua seringa até à última gota.
Antes mesmo do fim da operação, os seus traços apaziguaram-se. A transformação era espantosa, e eu sentia-me
ofegante perante essa surpreendente metamorfose.
- Vem, querida.
Retirava a agulha e chupava-a como fizera antes de a enterrar no braço. Dessa vez não o fazia por uma questão de
esterilização - os drogados acham que a saliva é desinfectante -, este último gesto devia-se ao facto de não querer
perder uma única gota do precioso líquido!
Poucos minutos depois, o rosto dele reflectia uma enorme felicidade, uma grande paz, e a sua voz fez-se meiga para
dizer:
- Eis a felicidade. Tu és a minha irmãzinha muito querida. Vais ver, Patrícia e eu havemos de te amar ternamente,
com um amor que os outros ignoram, assexuado, angélico... o mundo é tão belo, tão fraterno graças à White Lady...
a Dama Branca... Acho que não se lhe pode dar um nome mais belo. Deixa-me sozinho com ela. De resto, Patrícia
tomará com certeza o primeiro avião para vir ter comigo. Devemos primeiro ficar sós, depois acolher-te-emos e irás
connosco para Deauville, onde serás feliz como nós. Sabes, em redor de Patrícia só há seres maravilhosos, não são
pessoas como as outras...
Fugi. Parecia-me que, se não fugisse imediatamente, iria querer experimentar injectar-me também. Ora Alex não
levara senão a quantidade necessária para quatro xutos, para ele se aguentar até ao dia seguinte à noite, quando
muito. Felizmente, entretanto Patrícia voltaria. Ela ajudá-lo-ia. Não
era maravilhoso ter uma amiga, um amigo que nos salvava do inferno?

Na rua, corri, a chorar, para o metro. Vira o inferno de Jean-Marie. Chegando ao bairro dos Halles, dirigi-me para o
único sítio em Paris onde seria acolhida sem me fazerem perguntas. Lembrei-me que, ao passar pela sala, em
Neuilly, ficara admirada de não ver Alex. Também ele se esquivara. Quem me dera nunca mais ter visto esse sinistro
individuo! Mas quando ele se cruzou outra vez no meu caminho, eu encontrava-me no ponto exacto em que os
drogados já não são capazes de reflectir, de se defender, de resistir ao mal. O mal apodera-se vitoriosamente do
cérebro, do coração e do corpo deles. É uma posse absoluta, demoníaca. Como os outros, depois de ter
experimentado os alucinogéneos, as anfetaminas e todos os outros venenos que encontramos e utilizamos quando
estamos sem dinheiro e já esgotámos todas as maneiras de tentar arranjá-lo, acabei por me xutar regularmente com
heroína, a rainha das drogas, a perfeita, a do flash que se prolonga, aquela que permite planarmos no sétimo céu... e
que, um dia, nos envia para lá. Mas a ideia da morte não deterá nenhum daqueles que se tornam dependentes
dessa poderosa senhora: a heroína, o pó da felicidade...
Como a chuva começou a cair em grandes bátegas e o vento a soprar diabolicamente, fazendo estalar os ramos da
mimosa que ficava perto da minha janela, e eu sentia frio, desci com o meu caderno para a sala de estar. Mas a hora
do almoço, e sobretudo a do correio, aproximava-se.
Não tenho necessidade de te repetir que as tuas cartas diárias, por mais curtas que sejam, representam para mim o
pequeno viático que me ajuda a entrar nos meus dias. Pois se a minha saúde física está, creio, definitivamente salva,
outro tanto não ousarei dizer da minha saúde moral. Tenho ainda necessidade de que tu me ampares. Só tu o podes
fazer. E se tenho cada vez mais a convicção de não poder aceitar usar um dia o teu nome, deixa-me ser fraca
durante algumas semanas, alguns meses ainda: conserva a tua ternura e a tua amizade por mim quando deixares de
sentir o amor, o que acontecerá logo que acabes de ler esta confissão.
Como se tivesses adivinhado que eu chegara ao momento em que estas confidências se tornariam mais difíceis,
porque a minha vergonha seria maior, a tua carta desta manhã é mais apaixonada do que de costume. Lembras-te
de um dia em que eu troçava um pouco da tua extraordinária reserva, do teu modo de corar... tu, um médico com
mais dezasseis anos do que eu... porque me tinhas abraçado com a violência de um amante impaciente? Repelindo-
me meigamente, recuperando o fôlego, murmuraste: "Antiquado? E porque não? O amor, a paixão existem desde
sempre. Não estão "na moda". Derivam de algo sagrado: a vida. Não quero cometer um sacrilégio, rebaixar o amor,
o nosso amor, corpo e alma, a uma moda que me obriga a fazer amor por um sim ou por um não, por receio de
parecer velho! Se tenho medo de te falar do meu desejo é porque tu és apenas uma rapariguinha, apesar da tua
aparência... e do que fizeste..."
A tua carta de hoje, meu amor, é a de um amante, repetindo-me que não imaginas a vida sem mim, que dormes mal
porque a minha imagem te persegue, que se desses ouvidos a ti próprio virias esta noite mesmo e fixaríamos os dois
a data do casamento. Afinal, eu tenho a idade legal. Daqui a poucos meses farei dezasseis anos. Há outras
raparigas que se casam com esta idade. Isso não teria nada de extraordinário, de escandaloso...
Não sabes, Etienne, que sinto desejos de me entregar a ti, com ou sem casamento, aceitando antecipadamente que
tu me rejeites em seguida, visto eu não merecer melhor?
Comecei a cantar e a dançar. No entanto, na rádio, davam um trecho da Paixão Segundo São Mateus, de Bach!

O mau tempo continuou depois do almoço, e, como mamie precisava de ir visitar uma vizinha doente, voltei ao meu
caderno. Tenho de acabar de te contar tudo sobre Jean-Marie, sobre Patrícia de A. e sobre o mundo onde essa
rapariga introduziu Jean-Marie e para o qual me arrastou também a mim. Não penses que o fez por perversidade;
também ela foi apenas uma vítima. Não direi a mesma coisa dos pais dela. Mas desta vez não se trata de acusar
adultos de incompreensão, de espírito reaccionário ou de frouxidão. Não digo que eles fossem egoístas ou que não
quisessem perder muito tempo a educar os seus filhos; não, era algo mais subtil do que isso. Os A., muito ricos,
muito indiferentes e pervertidos, tinham perdido há muito tempo todo o sentido dos valores reais da vida. O exemplo
deles não podia deixar de se fazer sentir sobre os dois filhos, Patrícia, de vinte e dois anos, e o seu
jovem irmão, Eric, que acabara de fazer dezoito anos. Creio que, apesar de mais tarde ter ocorrido a morte de Jean-
Marie, da qual eles foram indirectamente responsáveis, não avaliaram ainda o seu crime. Vivem num outro mundo,
talvez pior do que o dos mais carenciados, apesar das aparências.
Mas, meu Deus, como essas aparências eram fascinantes, capazes de deslumbrar outros mais sabidos do que eu!
O Natal aproximava-se, e eu não voltara a ver nenhum membro da minha família. Vivia mais ou menos
agradavelmente com os meus amigos, no grande loft perto do Centro Pompidou. Era uma vida livre, cheia de festas,
de música, de pequenos e grandes amores, por vezes também de dramas, mas aos quais não dávamos grande
importância.
Sem conhecerem a minha verdadeira idade, chamavam-me, no entanto, "bebé", ou baby, conforme a disposição era
exótica ou familiar. Fora das nossas relações na comunidade, nós mantínhamos, pelo menos os mais novos, os
menos intoxicados, as nossas relações com o exterior e uma certa vida social.
Os drogados possuem um grande poder de dissimulação, tu bem o sabes, têm dotes de supercomediantes, e eu iria
jurar, ainda hoje, que muitos pais de membros do grupo não desconfiavam que os filhos fumavam, snifavam e até se
injectavam. Atribuíam a sua excitação, estranheza ou apatia ao "comportamento da juventude actual", pensando que
dentro de uns quinze anos os filhos se lhes assemelhariam: carro, televisão, mulher e filhos... Talvez nem todos se
enganassem, mas outros...
Visto tu teres estado obrigatoriamente em ligação com os polícias da Brigada de Estupefacientes e perante
delinquentes menores, sabes melhor do que eu quantos entre nós acabam mal: quer seja na morgue, na prisão ou
nos serviços psiquiátricos dos hospitais. Fala-se disso quando o herói da aventura é filho ou filha de uma
celebridade. Quanto aos outros, faz-se silêncio. Para quê dar realce a histórias que, em vez de alertar os que utilizam
estupefacientes, os incitam a mostrar-se mais astutos, ou a fazer adeptos, como para se vingarem? Que existam
cada vez mais drogados, mais intoxicados, de alto a baixo da escala social, não deve ser denunciado. Pelo menos
uma coisa que serve para enriquecer alguns!
A verdade é que aqueles a quem a droga, todas as drogas enriquecem, permanecem inacessíveis. Em grande parte
porque eles próprios não tocam nunca em qualquer espécie de droga, mesmo que se trate de uma inocente
marijuana. Sabem bem de mais que a grande escalada, com a qual eles conseguem fortunas fabulosas, começa
com a primeira passa. A menos que se tenha uma vontade e uma maturidade de espírito que, de qualquer modo,
não podia ser a minha nem a dos meus amigos.
Fui convidada por Jean-Marie e Patrícia - ela tornara-se minha amiga - para ir passar o Natal na vivenda dos pais
dela perto de Deauville, que se chamava Nabucodonosor, e mais familiarmente Nabu. Isso devia ser todo um
programa. Mas quem seria capaz de a associar à Babilónia? Não eu, com efeito, apesar dos meus estudos clássicos.

Aquela casa e os seus convidados deslumbraram-me. Compreendi por que razão Jean-Marie se apaixonara tão
loucamente por Patrícia. Ela estava à altura do cenário, onde evoluía.

Capítulo 9

Por momentos, Etienne, queria abandonar a minha própria história para te contar as de tantos amigos doentes, por
vezes mesmo já mortos, todas tão lamentáveis, e receio não haver nenhuma que acabe bem. Não é a ti que irei dizer
em que mal-estar vivemos todos, por uma razão ou por outra, jovens e menos jovens, ricos ou pobres, com ou sem
família; não te irei repetir que o mundo está doente, e talvez ainda mais noutros países do que em França. Para que
serviria isso? Tu sorririas, vagamente superior, respondendo-me: "Tu és tão nova, minha querida. Que sabes tu da
vida, dos homens, da marcha do mundo, da política?"
É certo! E não tenho intenção de fazer acusações nem de sugerir remédios. Tenho muito que me preocupar comigo
mesma. Além disso, não quero esconder-te, se a minha confissão me parece necessária, por honestidade para
contigo, que só encontro temor quando recordo os dramas que eclodiram à minha volta e terror ao recordar certas
histórias que me foram contadas...
Como aquela do jovem camionista que metia cocaína para se manter em forma, a fim de poder dormir o mínimo, e
ao qual um passador dera cianeto em vez de coca... O rapaz injectou-se sem deixar de conduzir, teve morte
imediata, e o camião desgovernado esmagou vários carros antes de se voltar e se incendiar. Total: dez mortos e três
feridos graves!
É sobretudo entre os drogados mais pobres que ocorrem os casos mais sórdidos e mais trágicos: os passadores
dão-lhes a pior mercadoria, pó misturado com detergentes, farinha, lactose... quando eles não se vêem obrigados,
para satisfazer a sua paixão, a engolir ou a cheirar seja o que for!
Mas volto à minha estada em casa dos A. Eram muito ricos. Cool... sob todos os aspectos. Desportivos, enfim, ao
mesmo tempo que cultos e snobes. A perfeita mistura para fazerem mais ou menos parte do Tout-Paris, da jet
society. Equitação, esqui, iates, prancha à vela, é claro, e para os mais exaltados viagens às Índias, ao Egipto, a
todas as ilhas paradisíacas. Em resumo, a bela vida!
Acrescento que, no conjunto, eles eram belos, justamente porque se mantinham em forma. Contudo, aborreciam-se,
e apesar da aparência sentiam-se terrivelmente mal. Tinham, além disso, uma curiosidade doentia por todas as
sensações, eróticas ou mais subtis: drogavam-se, portanto, e desde há muito tempo, pelo menos o pai.
Fora ele que arrastara os outros. Não existe nenhum drogado que não faça adeptos, pelo menos quando tem
dinheiro. O pai dele fora oficial na Indochina e provara o ópio desde a infância, mas muito cautelosamente. Em
seguida, após um acidente de carro e uma convalescença dolorosa, habituara-se à morfina. Daí à heroína vai
apenas um passo, que ele transpôs rapidamente. Mas há mais de dois anos, em Nova Iorque, tomara o gosto pela
cocaína, e aumentava rapidamente as doses, que lhe davam a sensação de um dinamismo centuplicado, de uma
inteligência e de uma acuidade de pensamento mais afinados. Sonhava abandonar o seu job. Perdoa-me se não te
digo mais. É um senhor muito conhecido, muito importante, muito poderoso... nós teríamos, ambos, aborrecimentos.

Pode ser que ele próprio os venha a ter um dia, embora não o creia: ele conhece demasiados segredos de todo o
género. Mas dizia a quem o queria ouvir que havia de escrever um livro, que faria sensação. Também não acredito
nisso. Muita gente se iria suicidar antes que ele escrevesse a primeira linha. Para levar a vida que ele e o seu
"grupo" levavam, era evidente que tinha de traficar de qualquer modo, vigiado pelos verdadeiros patrões da droga,
que desconfiam sempre de um drogado.
Esse homem tem outra fraqueza: as mulheres... sobretudo as rapariguinhas. Tinha cinquenta e cinco anos quando, o
conheci. As suas experiências eróticas eram muito complicadas, e Jean-Marie deu-me a entender que ele estivera
envolvido, numa sórdida história de homossexualidade ligada a uma rede de fotógrafos que utilizava crianças muito
novas dos dois sexos. A mulher dele, mãe de Patrícia, divide-se entre dois amantes: um, Arnaud, com mais de
sessenta anos, uma antiga ligação; o outro, Serge, um jogador de ténis, designado como uma das nossas
esperanças internacionais. É mais novo que Patrícia e não acredito que não prefira a filha à mãe, ainda que Marie-
Hélène de A. possua um imenso encanto. Tomam-na por vezes pela irmã mais velha da filha. Serge, muito
preocupado com a sua forma, contentava-se com alguns charros de marijuana à noite; mas Arnaud de R., que tinha
também vivido na Indochina, fumava ópio desde sempre, com exclusão de qualquer outra droga, às quais negava a
nobreza que atribuia ao seu veneno pessoal, cuja utilização exigia um ritual que lhe era particularmente querido.
Dizia-se que o casal de jovens asiáticos que o servia lhe proporcionava os prazeres que ele não encontrava junto de
Marie-Hélène, nem mesmo com as call-girls de luxo, pelas quais não ocultava o seu gosto.
Eis em que casa eu fui cair, eu, ainda de tal modo "cisne branco", apesar de tudo!
Marie-Hélène e Antoine de A. receberam-me calorosamente. Ela, divertida com os olhares que o marido me deitava,
sem que eu parecesse ficar perturbada, travou imediatamente amizade comigo. Nessa época, ainda mais do que
hoje, eu sentia necessidade de uma afeição maternal como a que tinha irremediavelmente perdido. Não desconfiava.
A propriedade, o ambiente, os prazeres, as gentilezas dos meus anfitriões, tudo era maravilhoso. Até Patrícia, ao
princípio um pouco ciumenta, se mostrava para mim a mais simpática das "irmãs". Sentia-me deslumbrada. A vida...
era aquilo! Não via mais que o meu prazer imediato. É certo que à noite nós fumávamos todos, falando de pintura, de
música, de literatura. Eu ouvia-os, admirada com aquela gente tão brilhante. Não os vira injectarem-se nem snifarem
cocaína. Sem dúvida estavam à espera de me observarem, para estarem seguros de mim e poderem viver como de
costume.
Era um fim-de-semana de meados de Setembro, mas fazia calor como no auge do Verão. Tínhamos ouvido, música
durante todo o dia, Mozart, mas também Chats Sauvages, Stockhausen e Alain Souchon! Um pouco irónica, Marie-
Hélène emprestara-me um
vestido de algodão branco que tinha nas costas um grande sol carmesim. Começou a falar-me do Tao. Era
apaixonante, e o haxixe vinha também do Afeganistão. Apesar dessa guerra, ou da do Líbano, o melhor haxixe vinha
ainda desses dois países, por não sei que perigosos caminhos.

Nem sequer me apercebi de que o tempo ia passando. Sentia-me tão bem. Marie-Hélène falava-me de coisas
interessantes com a sua bela voz meiga. A noite caía já muito mais cedo do que no Verão. Um grande silêncio
reinava por toda a casa. O jardineiro regava os relvados e os canteiros de flores.
- Já experimentaste ácido, minha queridinha?
- Oh, isso! Não quero experimentar mais nenhuma vez. Sabes, Marie-Hélène...
Tinha-a tratado maquinalmente por tu, como se fosse uma amiga da minha idade. Ela corou de prazer e murmurou:
- Como tu és gentil!... e tão encantadora, tão pura ainda... peço-te, trata-me por tu, não somos nós amigas? Sabes
que podes contar comigo em qualquer ocasião?
Estávamos já um pouco tontas, tanto mais que em vez de bebermos água quando tínhamos sede, bebíamos gin
tónico com mais gin do que água tónica.
- Fizeste uma má viagem? Talvez fosse por estares infeliz nesse momento. Aqui estás em segurança, não é
verdade? Todos te adoramos! Virás passar os fins-de-semana, e, em Paris, se tiveres necessidade de nós... de mim
em particular... Patrícia às vezes é muito dura... parece-se com o pai. Mas não se trata de LSD. É muito melhor.
- É psilocibina? Verdadeiros cogumelos mexicanos trazidos de lá? Mescalina?
Ela começou a rir e apertou-me contra si. Senti os seus seios um pouco moles contra o meu peito.
- Tu sabes muito! É o nosso Jean-Marie que te ensina. Pobrezinho. Ele não sabe controlar-se. Quando estiveste com
ele nunca tiveste aborrecimentos? Patrícia estava tão preocupada no outro dia. E aqueles telegramas! Tem cuidado
quando telefonares. Nós estamos obviamente sob escuta. Há muito tempo que fomos detectados. É uma sorte
termos bons amigos. Mas por vezes os amigos mudam de campo! - Depois, num tom grave, mais confidencial,
prometedor ao mesmo tempo, murmurou: - Confia em mim. Eu só desejo a felicidade de uma bonita rapariga como
tu. Conheces o STP?
- Ah, Serenidade, Tranquilidade, Paz... é isso?
- Vais ver, é o próprio universo do divino, do
êxtase, como se se sentisse orgasmo após orgasmo, e não tenhas medo, não causa habituação.
Aqueles que nos querem fazer experimentar uma droga, querido Etienne, tornam-se poetas para descrever as
sensações que ela pode dar. De resto, não tinha eu provas de que naquela casa todos viviam numa perfeita
harmonia? Exceptuando Jean-Marie, os outros pareciam viver uma existência feliz, fácil, como pelo menos nove
décimos da humanidade desejariam ter. Foi mais forte do que eu. Supliquei:
- Sim, por favor, Marie-Hélène, deixa-me experimentar!
E ela, de repente, acrescentou:
- De qualquer modo, às vezes, os nossos piores fantasmas vêm à superfície com o ácido. O STP liberta-os, para nos
libertar: isso pode ser perigoso. Mas faremos isso depois do jantar, vão sair todos, querem jogar e acabar a noite no
Reginskaia. Tu fingirás estar fatigada e eu direi que fico a

fazer-te companhia, porque esta noite os criados saem também e eu não quero deixar-te sozinha em casa. O STP,
como o LSD, não se deve tomar quando se está sozinho. De resto, eu acompanhar-te-ei. Os meus fantasmas são
ternos, não tenhas medo. E se me confundires com o teu pior inimigo e sentires desejo de me lacerar com as tuas
bonitas unhas... espero ser capaz de me defender.
Era tarde de mais para me assustar. Da minha experiência com o ácido só recordava belas sensações!
Os homens e Patrícia regressaram a casa para mudar de roupa. Tinham decidido ir jantar a Deauville. Tudo se
passou como tínhamos combinado, excepto Marie-Hélène ter dito que estava com uma atroz dor de cabeça e que
queria que eu lhe fizesse companhia. De resto, eu era demasiado nova para a festa que eles tinham planeado.
O olhar irónico que Antoine deitou à mulher devia ter-me alertado. Patrícia e Jean-Marie, Serge e Eric, igualmente
presentes, não ligaram importância. Iam encontrar-se com amigos da idade deles e pareciam não dar pela minha
presença.
O Senhor de R., beijando a mão de Marie-Hélène, murmurou:
- Invejo-a, minha cara... talvez amanhã seja convidado... Ele habitava numa sumptuosa vivenda, mesmo em
Deauville, com terrenos para treinar os seus cavalos. Acrescentou, sorridente:
- Tenha bons sonhos... viva encantadoras realidades, tem o que é preciso para isso. Mais tarde me contará.
Marie-Hélène tinha mandado preparar uma bandeja com acepipes leves, saladas e uma variedade de pastéis que ela
dizia serem receitas tailandesas, além de uma garrafa de champanhe. Eu já bebera demasiado durante o dia.
Planava nas nuvens de cores suaves com laivos de ouro.
Marie-Hélène pôs uma cassete com música indiana. Um raga de Ravi Shankar, o Raga de ]a Nuit commençante.
Acendeu paus de incenso. A iluminação, uma vez corridas as cortinas, era avermelhada, proveniente de pequenas
lanternas de cobre arrendado. Depois, acendeu círios filiformes, de cera pura.
- Roubei-os numa pequena capela ortodoxa, solitária no seu minúsculo rochedo grego. Se quiseres, levo-te lá em
breve. O tempo está bom até fins de Outubro, e nessa altura já não há turistas. Viveremos nós as duas, sem
homens... eles são tão aborrecidos. Poderemos fazer o que quisermos. Lerei para ti, em grego os poemas de Safo.
Não é preciso compreender.
- Mas..
- Cala-te. Não te preocupes. Tu és livre, não
és? De qualquer modo, nós somos pessoas aparentemente muito recomendáveis. Se o desejares, escreverei uma
bela carta aos teus pais para obter autorização. Com a tua idade, podes muito bem viajar com amigos. Trago-te a
tempo para a abertura do ano escolar...
Ali todos julgavam que eu tinha dezasseis anos.
- Põe-te à vontade, mas com um vestido mais bonito.
Estendia para mim uma soberba túnica chinesa, antiga, de brocado verde e ouro, ideal para os meus cabelos ruivos.
- Despe-te, eu também vou mudar de traje. Certamente não me vais dizer que não ousas mostrar-te nua? Nos
nossos dias! E, além disso, não somos ambas mulheres? Eu é que devia sentir-me perturbada por já não ter uma
juventude como a tua.
Pôs-se nua à minha frente. Eu corei. Ela começou a rir:
- És adorável! A tua mamã é mais bela do que eu?
Quase respondi: "Sim, ela tem apenas trinta e seis anos."
- Não sei, nunca vi a minha mãe nua!
Não acrescentei que nunca vira, de facto, a minha mãe.
Depois disso parece-me que as coisas se passaram muito depressa. Comemos alguns pastéis macios mas
apimentados, bebemos champanhe e engolimos as pílulas que Marie-Hélène me deu. Depois ordenou-me:
- Deita-te.
Tínhamos apagado o nosso último cigarro.
Deve ter-se passado uma hora durante a qual continuámos a ouvir ragas. Não falávamos e estávamos estendidas
lado a lado com uma pequena separação entre nós. Eu receava adormecer, mas ao mesmo tempo percebia que
estava extraordinariamente consciente daquilo que me rodeava, das cores, dos sons, da presença daquela mulher e
da sua beleza.
De súbito, tive a impressão de que o aposento e os objectos começavam a girar lentamente como um barco a que se
tivessem largado os remos e fosse arrastado pela corrente. Em seguida, pareceu-me que a cama era uma roda
sobre a qual eu estava amarrada, mas com cordas de veludo ou de seda; era muito agradável, muito voluptuoso.
Gostaria que esse movimento não parasse nunca. Era de tal modo maravilhoso que a sensação de felicidade me fez
gemer. Vi o tecto, vermelho-vivo, abrir-se como um grande figo maduro, e o seu suco perfumado corria-me pelo
rosto, pelos lábios, que eu ia lambendo...
- Porque choras, querida? Não há razão para isso. Não estamos bem juntas? Vem aos meus braços. Ficarás
abrigada contra aqueles que te querem fazer mal.
Não me apercebi de que ela estava de novo nua e que a sua pele era suave. Senti um calor horrível, como se uma
couraça de metal escaldante me queimasse a pele, e de súbito dei por mim a gemer:
- Sinto-me mal... mal... sufoco!
Comecei a debater-me, a querer desembaraçar-me daquela prisão, mas queimava os dedos e sentia-me cada vez
pior.
Felizmente, Marie-Hélène ajudou-me a escapar daquela armadura insuportável. O contacto com os dedos dela e o
som suave da sua voz tranquilizaram-me. Tive ainda consciência de lhe suplicar que não me deixasse.
Recordo-me ainda que, quando me encontrei nua contra aquela mulher também nua, me encostei aos seus seios, ao
seu ventre. Ela murmurou ardentemente:
- Não tenhas medo, é melhor do que com um homem, verás! São uns brutos, enfim, nem todos, sobretudo os novos,
mas eu vou ensinar-te, e depois zombaremos deles, sim, faremos amor diante deles para os tornar ciumentos; de
resto, Antoine e Arnaud são requintados, adorarão observar-nos, acariciar-nos-ão como eu vou acariciar-te.
A boca dela deslizava sobre os meus seios, descia sobre o meu ventre, e eu deixei de compreender o que ela
sussurrava.

Oh, meu amor, precisas de acreditar em mim: o nojo que eu hoje sinto é real e absoluto, percebi finalmente que toda
aquela gente era profundamente perversa. Não os julgo, mas sei que nas mãos deles eu era apenas um objecto de
prazer que poriam de parte quando se cansassem. Mas até essa altura, se eu cedera primeiro a Jef e depois a Jean-
Marie fora simplesmente porque toda a gente fazia amor sem sequer lhe dar importância. O amor físico fora apenas
para mim o meio de me apertar contra um rapaz para ter um simulacro dessa ternura que tanta falta me fazia! O acto
em si mesmo ferira-me muitas vezes. Os rapazes de dezoito e vinte anos só muito raramente são amantes hábeis.
Isso não tem importância quando se ama de todo o coração. Mas até então não fora esse o meu caso. Seria o efeito
do STP, a sensualidade, a habilidade de Marie-Hélène? Não quero mentir-te. Conheci, sob o efeito do STP e de
Marie-Hélène, sensações extraordinárias. Tremi de prazer. Gritei de felicidade. Todos os meus infortúnios, os meus
medos desapareceram. Depois, de repente, o balouçar lento da cama, do aposento, acelerou-se. Senti enjoo.
Assustei-me, supliquei à minha companheira:
- Vou vomitar. Pára esta terrível máquina!
- Não há máquina alguma. Acalma-te, bebe calmamente, respira o mais lentamente possível.
Esqueci-me de te contar, querido Etienne, que nesse quarto, quase inteiramente pintado em laca vermelha chinesa,
os objectos eram raros, assim como os móveis, mas havia um enorme quadro muito estranho. De quem?
Certamente de um pintor conhecido. Os A. eram amadores de arte. Viam-se nele mulheres com túnicas
transparentes num parque do tipo "campo inglês", no meio de árvores, numa bruma ligeiramente colorida. As suas
cabeleiras, compridas, encrespadas, louras e ruivas, estavam coroadas por grinaldas de flores brancas e amarelas,
os seus olhos, imensos, glaucos, pareciam não ver nada.
O conjunto parecia um cenário de cinema e, na altura, deslumbrou-me. Mas depois, de fazer amor com aquela
mulher, e era a primeira vez que eu cedia a esse género de carícias, as minhas sensações iam mudando, pouco a
pouco, invadia-me um medo indefinível. Recordo-me de cada detalhe. Comecei a gritar. O buda, em frente da cama,
triplicara de volume, e o seu bronze dourado cintilava, como que iluminado do interior. A cabeça dele tocou em breve
no tecto, os seus joelhos cruzados atingiram as paredes, os lábios, torcidos num ricto ameaçador, ordenaram-me:
"Ela é que é responsável pela tua infelicidade. Castiga-a!"
Em poucos segundos, tudo oscilou à minha volta. Aquela mulher que se encontrava a meu lado já não era Marie-
Hélène mas sim Brigitte. Fui tomada por uma raiva assassina, levantei-me, gritei-lhe as injúrias mais ordinárias,
palavras que nem eu própria julgava conhecer, dizendo-lhe que ela não passava de uma puta porca, que o meu pai a
fora buscar a uma casa de má fama, que era esse o lugar dela, que ela o tinha enganado desde o primeiro dia, que
só casara com ele por causa do dinheiro, que fora certamente ela que expulsara a minha verdadeira mãe para tomar
o lugar dela... mas que o dia da vingança, do castigo, tinha chegado,... Sim, tomava-a por Brigitte.
Dirigia-me já, como que hipnotizada, para um punhal exótico que se encontrava suspenso da parede, cuja lâmina
tinha reflexos vermelhos, como sangue, e gritei:
- Vou apunhalar-te até ficares desfigurada, os seios dilacerados, o ventre perfurado, inutilizável... odeio-te... odeio-
te...
Haverá realmente tanto ódio, tanta fealdade no fundo do nosso coração?
- Depois disso mato-me, porque a vida é realmente muito repugnante. Não quero viver mais!
Brandia já a arma! Fui atingida na têmpora esquerda com um objecto pesado, enquanto uma voz bradava,
aterrorizada:
- Pára, Júlia. Tu és doida!

Foi uma grande sorte para mim. Com o choque, desmaiei.


Quando acordei estava no meu quarto, cuidadosamente deitada na minha cama. Antoine inclinava-se sobre mim e
não escondia a sua inquietação. Onde estava eu? Desde quando? Era dia ou noite? Parecia-me que se tinham
passado dias e dias desde um acontecimento de que não conseguia lembrar-me mas que devia ter sido abominável.
- Marie-Hélène fez mal - disse Antoine, que fumava nervosamente. - Enfim, evitámos o pior: ela, tu.... e eu! Se tu a
tivesses matado,... se eu te tivesse ferido mortalmente... não me teria salvo do escândalo! Eu já lhe tinha proibido o
STP, que por vezes é pior que o LSD, apesar da sua reputação, sobretudo quando se bebe álcool, e ambas tinham
bebido. Sem contar... Como é que tu pudeste chegar tão depressa a isto? Jean-Marie contou-me que tens apenas
catorze anos. Nós somos adultos, sabemos o que fazemos, quando devemos parar. Mas uma criança como tu...
Era como se eu tivesse voltado de um país distante, primeiro soberbo e depois aterrorizador.
- Com que idade julga que começou Patrícia? E onde? Não é preciso ir longe, o liceu basta! Nós experimentamos
tudo, pelo menos uma vez. Alguns continuam, outros não. E que julga que fazem os drogados quando não têm
dinheiro para a erva? Inalam frascos de dissolvente que as mães têm em casa, compram colas ou clorobenzedrina
fingindo que é para tirar nódoas. Depois contam aos amigos como foi bom. Em seguida habituam-se e não podem
passar sem isso. É o ideal para vos esquecer, a vocês, os velhos, às vossas historiazinhas sujas, à vossa política de
merda...
Antoine estava estupefacto. Mas tinha sobretudo medo. A minha presença metia-lhe medo. Anunciou-me que me ia
dar dinheiro para me permitir voltar para casa e perguntou-me se eu queria telefonar para avisar os meus pais do
meu regresso. Recusei delicadamente.
- Obrigada, não preciso de nada. Tranquilize-se, também não incomodarei mais ninguém aqui.

Capítulo 10

Parti sem prevenir Patrícia nem Jean-Marie. Também não queria voltar a vê-los. Sabia que eles eram infinitamente
mais drogados que o resto da família, e sobretudo que eu não queria que me arrastassem para o caminho mais
perigoso, aquele por onde eu ainda não enveredara, convencida como estava de que saberia evitá-lo: o da heroína,
a droga por excelência, a divina, a mais perigosa de todas.
Tu sabes como afinal acabei por fazer como todos os outros e fui de degrau em degrau, chegando até ao limiar que,
uma vez transposto, conduz à morte... ou ao milagre!
Graças a ti, mais do que a todos os outros médicos que me trataram, foi o milagre. E tu não o realizaste tratando-me,
mas sim amando-me. Não existe outro antídoto, outra cura de desintoxicação eficaz. O amor, apenas o amor, o
verdadeiro, aquele que implica não só o corpo mas também o coração e a alma, salva desse terrível veneno.
Encontrei-me no cais da estação de Lisieux, onde fora conduzida por Arnaud de A., posto ao corrente do ocorrido. Ao
despedir-se, procurou o meu olhar e confessou:
- Estou perturbado. Nós somos sem dúvida criminosos, mas você ajudou-nos de tal modo a sê-lo...
- Comecei antes de os conhecer...
Também ele quis dar-me algumas notas com uma expressão preocupada. Recusei. O comboio para Paris chegou
dez minutos mais tarde. Pedira a Arnaud para me deixar sozinha, recomendando-lhe que vigiasse Jean-Marie, que
me parecia o menos capaz de se dominar. Injectava-se de quatro em quatro horas, contentando-se por vezes em
chupar a agulha da seringa e injectando-se por cima da roupa. Arriscava-se a ter um abcesso, uma septicémia ou
uma hepatite viral.
Arnaud de A. quis ainda dizer qualquer coisa. Fugi sem o querer ouvir.
Ao chegar a Paris tomei o metro até à estação Rambuteau. A maior parte dos habitantes da nossa "comunidade"
tinha regressado ao loft, mas faltavam alguns, quer por terem ficado detidos pela família, voltando à sua província ou
ao seu país, quer por estarem a fazer uma cura num hospital. Uma das raparigas curara-se e casara! Uma outra,
infelizmente, morrera, ninguém sabia se devido a uma overdose ou a um suicídio. Não voltávamos a falar dos
desaparecidos após a constatação desse desaparecimento.
Voltei às aulas. Repetia o terceiro ano, o que, hipoteticamente, tornava menos graves as minhas numerosas faltas.
Disse-te já que era boa aluna, e se tivesse feito os meus exames em Tours teria certamente passado para o ano
seguinte. Agora frequentava aulas em que as raparigas tinham mais ou menos a minha idade. A maior parte delas
tinha, contudo, feito já os quinze anos, às vezes mais. Não te surpreenderás se eu te disser que as principais
preocupações delas diziam respeito ao amor... mas também, por vezes, à droga. Eu, no liceu, não falava nem de
uma coisa nem de outra. Mantinha também a discrição sobre a minha família. E mostrava as minhas notas ao Dr.
Ferran, o advogado do meu pai, e aos meus correspondentes, em casa dos quais almoçava pontualmente todos os
domingos, chegando mesmo a ir à missa com eles!

Na verdade, sentia-me de novo terrivelmente só. Não me dava já com Jean-Marie nem com Patrícia. Eles tinham
deixado de me ir ver e até de me telefonar. Devo dizer que eles me metiam medo, não sei porquê.
Os que tinham voltado da Grécia, da Turquia, tinham haxixe e até heroína, que podiam vender para viverem sem
problemas durante vários meses: Do mesmo modo, alguns amigos vindos da Holanda tinham atravessado as
fronteiras sem complicações, trazendo os tubos de creme para a barba e de pasta de dentes e os tampões higiénicos
das raparigas cheios de heroína pura que eles tencionavam misturar suficientemente para fazer fortuna e conservar
a provisão necessária para o seu próprio consumo.
Foi nessa época que me apercebi de algo evidente: todos os drogados, numa ocasião ou noutra, se tornam
vendedores. Eles depressa descobriram que eu tinha problemas de dinheiro, a mensalidade do meu pai não me
chegava. Jérôme, marido de uma rapariga grávida de oito meses, fez-me uma proposta:
- Caroline precisa de estar deitada, ela está mais ou menos desintoxicada, fuma apenas alguns cachimbos, pois não
queremos que a criança fique stoned mesmo antes de nascer. De resto, um destes dias eu farei uma cura e iremos
embora daqui, já metemos os papéis para comprarmos uma casa, e eu comecei a trabalhar com um arquitecto,
desenho, maquetas: abandonei o curso no último ano, mas posso arranjar clientes. Entretanto, como precisamos de
reunir um pequeno capital, pensei em ti para nos ajudares.
- Como?
Eu simpatizava muito com Jérôme e Caroline. Também eles tinham problemas com os pais, grandes comerciantes
que lhes davam apenas o dinheiro bastante... para eles não aparecerem no bairro onde viviam... por causa dos
vizinhos, dos clientes!
- São horrorosos, sobretudo os meus - queixava-se Jérôme. - Os de Caroline são ainda mais parvos... dão-lhe lições
de moral, choram e suspiram, dizendo que no tempo em que a Igreja se ocupava mais com os jovens... Se
soubessem! Não quero denunciar ninguém, mas garanto-te que há padres que fumam e snifam... também eles têm
grandes problemas, e eu sou discreto! Somos todos uns pobres diabos. Não somos piores do que muitos que
parecem respeitáveis. Os meus velhos, por exemplo, não se drogam, é certo, mas o meu pai bebe, e um dia terá de
tratar uma cirrose, e a minha pobre mãe ficou grávida sete vezes, nunca usou a pílula, e evita a casa de saúde
enchendo-se de medicamentos e dos discursos do seu confessor. Na loja deles, comércio de vinhos, licores e outros
artigos de luxo... todos os meios são bons para enrolar a clientela. Boas pessoas... pois então!
- É verdade, pais como nós temos dão por vezes vontade de chorar. Mas que se há-de fazer?
- Bem, temos de andar ao gosto dos tempos. Eu comecei aos quinze anos. Tenho vinte e seis e parece que tenho
quarenta. Caroline fez vinte anos e já precisa de substituir metade dos dentes... Mas agora os garotos começam aos
doze, dez anos, às vezes menos; talvez isso não seja mau, não têm tempo de se aperceber da porcaria que é a vida.

Eu não percebia onde ele queria chegar; levava o seu tempo, afogava o veneno em considerações filosóficas. Por
fim, prometi acompanhá-lo numa volta por Pigalle e pela Place Blanche. Ele queria mostrar-me alguns "esconderijos"
onde os vendedores dissimulavam a mercadoria que vendiam aos consumidores. A técnica consistia em ter a
certeza de receber o dinheiro e depois em não se deixar prender por um inspector da Brigada no momento em que
se entregava a mercadoria ao cliente.
De qualquer modo, de uma maneira geral, a troca não se fazia directamente. Explicava-se onde estava escondido o
pequeno embrulho precioso. Os esconderijos mudavam todos os dias, indo desde as casas de banho de um bar a
uma paliçada que protegesse um terreno vago, da tampa de um caixote de lixo a um monte de tijolos! Enfim,
conforme o local, a hora... e a imaginação. A mim não me faltava. Nunca me deixei apanhar.
Aproximávamo-nos dos Halles quando Jérôme observou que eu era talvez demasiado jovem e bonita para me
aventurar regularmente naqueles sítios. Seria rapidamente notada tanto pelos polícias como pelos bandidos.
- Terias aborrecimentos. Mas talvez eu tenha algo de mais fácil para ti. Rende menos, mas de qualquer modo
melhorará as tuas finanças, e um dia ou outro virás a ter necessidade de dinheiro, como todos nós.
Não prestei atenção àquele "um dia ou outro virás a ter necessidade de dinheiro". O dinheiro, faça-se o que se fizer,
nunca é de mais, não é verdade? Eu conseguia "deitar a mão" a livros e às vezes mesmo a peças de vestuário - as
minhas amigas tinham-me ensinado uns bons truques -, mas quanto aos discos tornava-se mais difícil: os
vendedores das grandes lojas vigiavam-nos ferozmente!
Quando chegámos ao apartamento, os outros anunciaram-nos que Caroline fora levada para o hospital, pois ia sem
dúvida ter um parto prematuro. Tinham-na levado para Tarnier, pensavam eles. Assustado, Jérôme suplicou-me que
o acompanhasse. Eu devia declarar ser irmã da jovem parturiente.
Eram três horas da manhã, mas como nós éramos a "família" permitiram-nos ir ver Caroline! Ela estava, por sorte,
sozinha num pequeno quarto à espera de ser conduzida para a sala de partos. Jérôme mostrava-se
extraordinariamente enervado.
Caroline, inquieta, perguntou-lhe se ele já dera a sua injecção. Mesmo assim não percebi. Quando saímos,
perguntei-lhe se ele estava doente.
- Idiota, vives no meio de nós... estiveste com Jean-Marie e Patrícia e ainda não compreendeste?
- Injectas-te?
- E então?
De minuto a minuto, ele mostrava-se mais agressivo, histericamente agitado, falando, precipitadamente, com uma
voz aguda que fazia com que as pessoas se voltassem para nos olhar. Eu não ousava fazer sinal a um táxi, mas a
pé era meia hora de caminho. Fi-lo seguir-me quase a correr. Quando chegámos, vi que ele chorava.
Os outros, em casa, dormiam, embrutecidos. Aqueles que conservavam a luz acesa, por detrás do seu biombo, não
deviam estar em melhor estado ou então faziam amor. Não era altura de os incomodar.
- Meu Deus, ajuda-me, não vês como tremo. Se parto esta seringa não tenho outra e faço estragos.

Entregava-me uma colher, um pequeno embrulho cuidadosamente dobrado e uma seringa, todos os utensílios que
eu vira nas mãos de Jean-Marie, pois, em casa de Patrícia, quem se injectava não o fazia publicamente e nunca lá
encontrei qualquer algodão sujo de sangue.
- Não sei. Nunca dei uma injecção fosse de que género fosse em toda a minha vida.
- Aprenderás. Não é difícil. Deita a "merda" na colher, com um pouco de água, evidentemente. Depressa, senão
enlouqueço.
As tremuras dele tinham aumentado, havia um brilho assassino nos seus olhos, e um ricto horrível torcia-lhe os
lábios. Era de tal modo visível que ele sofria terrivelmente que, recordando o que se passara com Jean-Marie, cedi.
- Vou ferver a agulha.
- Não. Não vale a pena. Ainda nenhum de nós apanhou o tétano, e não será um pequeno abcesso que me matará...
Ele teria feito aquilo para melhor "me ter na mão" ou para me iniciar num universo que ele julgava paradisíaco?
Depois de lhe ter apertado o garrote, entreguei-lhe a seringa onde eu metera a mistura tépida, aquecida ao calor da
chama do isqueiro dele, e segui a operação da entrada do líquido na veia perfurada. Presenciei a espantosa
transformação que se deu em Jérôme, subitamente apaziguado, que me declarou:
- Vais ver. Não há nada melhor. Ofereço-ta.
Preparava uma nova dose, sem desinfectar a agulha. Eu sentia-me enojada. Quis debater-me, mas ele agarrou-me,
rindo e ameaçando-me de me violar se eu continuasse a fazer barulho. Eu deixei de me mexer. Ele fazia as coisas
com uma perícia diabólica, arrancou-me a blusa, prendeu o garrote e enterrou a agulha. Eu chorava. Como não uso
soutien, fiquei com os seios nus. Ele deixou-se cair sobre mim, murmurando:
- Estás bem, não estás? Então não te preocupes. Não sou o primeiro, e como já não andas com Jean-Marie... De
resto, estou-me nas tintas, e Caroline durante alguns dias terá mais com que se ocupar.
Rapidamente deixei de ter qualquer vontade própria, mas continuei a chorar enquanto ele me possuía. Foi muito
rápido e não me deu qualquer prazer. Depois, ele deitou-se ao meu lado, mas como o colchão era muito estreito
tínhamos de nos apertar um contra o outro. Ouvi a voz dele, apaziguada, ordenar:
- Acaba de choramingar. Gosto de ti, todos gostamos de ti aqui. A primeira vez - falava evidentemente do xuto de
heroína - não dá grande prazer. Mas amanhã voltaremos a fazer o mesmo e então... Não te preocupes com a
mercadoria, tenho vários filões, não nos faltará!
Antes tivesse faltado e isso me tivesse levado mais depressa ao hospital, meu querido! Ter-te-ia encontrado antes
que tudo me parecesse irremediável. De resto, ao princípio, a heroína fez-me bem. Com efeito, ela atenuava a minha
cólera contra Brigitte e o meu pai e reduzia a importância dos acontecimentos, parecia-me, à sua justa medida. Já
não me sentia revoltada com a minha mãe por me ter abandonado e pensava em ir vê-la a Neuilly. Que cada um
construísse a felicidade à sua maneira, era tudo o que eu queria.
É sem dúvida o perigo mais terrível da heroína. Não provoca essas imagens feéricas, sumptuosas, que dão a maior
parte dos alucinogéneos, nem essa sensação de força, de dinamismo, de inteligência decuplicada, de resistência
física

e intelectual "super-humana" da coca. Não: ela apazigua. Ela dá euforia como todos os derivados do ópio. Após a
sua absorção, o mundo perde todas as asperezas, as pessoas ficam banhadas na felicidade, na amizade, no amor,
quase naturalmente. Um pouco como um nadador esbracejando ao sol, numa água morna, perfumada, a deixar-se
levar, de costas, pela corrente que o conduzisse a alguma ilha encantada...
Mas estou enganada. O pior da heroína não é a felicidade que provoca. É, quando já existe dependência física, a
tortura demoníaca que é infligida quando se está em carência e que só termina quando o corpo tiver recebido a dose
de veneno que lhe é necessária! Os verdadeiros drogados, aqueles que a morte espreita, quase sempre, após que
martírios, que degradações físicas, não se injectam já para sentir o que quer que seja... injectam-se para deixar de
sofrer!
Mas de tudo isso, desse calvário no extremo, do qual tu me encontraste, não fiz eu, nessa noite, a avaliação
completa de todas as suas consequências. Já sonolenta, ouvi a voz de Jérôme tranquilizar-me.
- Será fantástico. É da boa, da de melhor qualidade. O que os médicos contam é aldrabice, não há nada de mais
sensacional. De qualquer modo, os medicamentos que eles receitam são muitas vezes bem piores, e as
anfetaminas... nunca cedas ás anfetaminas sob pretexto de tratamentos, nem à coca. Deixa isso para os idiotas que
dizem que depois se sentem mais inteligentes, enfim, eles acreditam nisso! Agora vou contar-te o plano que vai fazer
com que vivamos como paxás sem sermos apanhados pelos chuis.
Jérôme devia estar já na lista dos vendedores detectados pela Brigada de Estupefacientes, e talvez fosse vigiado,
seguido, nas suas idas e vindas. Mas o seu tráfico era pequeno e, de momento, deixavam-no em paz. Felizmente
para mim, eu não fora ainda interpelada, em parte porque não saía até tarde, à noite, e não frequentava as
discotecas conhecidas como antros de drogados. Afinal só estava em Paris há quatro meses. Mas que caminho
percorrera já! Jérôme continuava a sussurrar, recomeçando a acariciar-me, embora, aparentemente, não
sentisse necessidade de voltar a fazer amor.
- Tu serás suficientemente esperta para não te deixares apanhar. Quando olham para ti, apesar dos teus cabelos
ruivos, as pessoas são capazes de te dar a comunhão sem confissão. Trata-se de criares uma pequena rede pessoal
e também de te saberes controlar. Não faças como eu. Sei que mais tarde ou mais cedo irei parar ao hospital, à
prisão de Sainte-Anne e à camisa de forças.
Na verdade, eu já não o ouvia. Sentia-me bem, como se estivesse a ser levada por um grande rio, muito calmo, sob
um céu luminoso. Sentia-me indolente, como se eu própria me transformasse numa espécie de água correndo
aprazivelmente entre margens floridas. Certamente os seres humanos, a vida, os meus amigos eram maravilhosos...
Devo ter adormecido...

Capítulo 11

Os dias em casa da tua avó, Etienne, passam simultaneamente muito depressa e muito devagar. Devagar porque
me parece que não te vejo há muito tempo. Apesar das tuas cartas e dos teus telefonemas, sinto terrivelmente a tua
falta.
Preciso de descansar, dizes tu, de escrever esta confissão, visto desejar tanto fazê-lo. Tu pareces ter adivinhado que
eu a comecei... como se começa a demolição de uma casa apodrecida pela humidade, a areia e as térmitas. Sabes
que o que tento destruir são dois anos de loucuras, de erros, de terrores que me conduziram às portas da morte.
Se soubesses que era o teu amor por mim que eu queria destruir com estas recordações sei bem que as proibirias,
que serias capaz de queimar este caderno. Contudo, tenho de continuar.
Mas os dias passam muito depressa... pois parecem-me os últimos duma felicidade que eu entrevejo aqui, que
partilharia contigo e, mais tarde, com aqueles que, sem verdadeiramente o desejarem, estiveram na origem da minha
infelicidade.
Não te revelei como acolhi uma carta que, de certa maneira, teria podido deter-me na encosta por onde eu começava
a deslizar. Sem dúvida por ter vergonha de ter repelido o apelo!
Dois dias antes do Ano Novo, o de 1982, recebi uma carta de Brigitte. A minha primeira reacção, ao reconhecer a
caligrafia dela, foi querer rasgá-la sem a ler. Tanto mais que nenhuma palavra do meu pai a acompanhava. Mas a
curiosidade foi mais forte. Nunca me separei dessa carta. Vou transcrevê-la. Brigitte escreveu:
"Minha pequena Júlia,
Espero que te tenhas tornado razoável e que depois de leres esta carta venhas passar as festas de Ano Novo
connosco. Feriste-nos profundamente, ao teu pai e a mim, e por causa de toda essa história que só se passou na tua
cabeça Frédéric teve de se afastar. Apesar da confiança que deposita em mim, Robert não suportava a presença
dele. Felizmente para o nosso antigo amigo, isso não teve repercussões graves no seu projecto de casamento. Tu
ignorava-lo, eu sei, mas ele tinha certas razões para guardar segredo. Casa-se em Fevereiro e deixa imediatamente
a região. Ofereceram-lhe uma situação interessante em Itália: é um país de que ele gosta e cuja língua felizmente
conhece.
Pelas tuas notas pode-se supor que trabalhas a sério. Os teus irmãozinhos reclamam-te muitas vezes e encarregam-
me de te beijar. Envia-me um telegrama, ou melhor não, telefona-me às horas em que o teu pai estiver no escritório.
Arranjarei as

coisas com Robert, que ainda se mostra muito magoado. Para quê esconder-te isso? Claro que como agora estás
inscrita em Paris deverás terminar aí o teu ano escolar. Nós não iremos nem incomodar-te nem vigiar-te, porque o
Dr. Ferran e os Michelets não te poupam elogios, o que tem ajudado um pouco a sarar as feridas do teu pai. Mas
vem passar as férias a casa. Nós esperamos-te, amamos-te, mesmo que tu penses o contrário. E não esqueças que,
se te sentires infeliz, deves voltar para casa, mesmo correndo o risco de perder o ano no liceu. Continuas a ser a
minha pequena Júlia, a minha filhinha querida. Não o esqueças, repito-te."
Ah, se Brigitte, em vez de ter escrito, me tivesse ido buscar, teria percebido imediatamente. É uma mulher enérgica e
não ignora o que representa a droga. Falou-me muitas vezes disso. Ela seria mais compreensiva que o meu pai, que,
por sua vontade, mandaria prender todos os drogados, sem qualquer outra forma de processo. Ela ter-me-ia levado à
força para Tours, ter-me-ia tratado. Começou estudos de enfermagem antes de conhecer o meu pai. Para mim ainda
não seria, com certeza,
tarde de mais.
A verdade...
Claro que, diante dos meus amigos, eu me tornava fanfarrona. Mas cada vez mais frequentemente pedia a um deles
que me assinasse um bilhete a apresentar desculpas, imitando a assinatura do senhor Michelet, felizmente ilegível,
atribuindo-me todas as pequenas doenças possíveis que me
permitissem faltar às aulas sem verificação. Cada vez me sentia pior quando a droga me faltava!
Infelizmente, o dinheiro rareava também, o que já seria aborrecido se eu me limitasse a fumar haxixe ou marijuana.
Mas um grama de heroína custava, na altura, oitocentos francos no mínimo! Isso tornava-se dramático, apesar de eu
não estar ainda nas doses de Jean-Marie, nem sequer nas de Jérôme.
Para quê lembrar-te do meio mais simples que nós, raparigas, utilizamos para nos abastecer? Afinal, a prostituição
fazia menos mal aos outros do que os roubos, o tráfico e outros "abusos de confiança" e "golpes" que os rapazes
praticam. Ter uma necessidade insuperável de droga aniquila qualquer senso moral e mesmo a simples piedade
humana. Um rapaz que, anteriormente, tenha lutado pelos ideais políticos mais generosos, no dia em que tiver
necessidade de se injectar será capaz de roubar, sem remorsos, a carteira a uma velha que tenha acabado de
receber a sua pensão e não tenha outros recursos para viver... será capaz de roubar um inválido, uma criança!
Ao princípio resisti, não queria fazer o mesmo que as outras raparigas. Elas não se prostituíam no sentido absoluto
do termo, o que seria de certa maneira mais honesto. Não! Elas mantinham uma aparência de honestidade, fingiam
escolher os seus parceiros, reclamavam muito alto o seu direito à liberdade sexual, como os rapazes, e quando iam
para a cama com um homem mais velho... e mais endinheirado que os seus companheiros habituais... diziam que o
faziam porque ele lhes agradava. Havia de resto, por vezes, uma certa verdade nessas afirmações, mas, enfim, elas
vendiam-se!

Eu era ainda demasiado jovem para aceitar a ideia de fazer o mesmo. Então, ao princípio, utilizei alguns truques para
subtrair dinheiro ao Dr. Ferran e sobretudo aos Michelets. Estes eram crédulos e, creio, estavam vagamente
chocados por os meus pais nunca me irem ver nem me receberem em Tours. Ferran era mais lúcido e fazia
perguntas insidiosas. Para alguém que soubesse alguma coisa da droga, bastava olhar para mim para compreender.
Eu já não tinha a pele branca, como as louras, mas sim macilenta, com grandes olheiras debaixo dos olhos e as
pupilas minúsculas... tudo sinais que não podiam enganar... sem acrescentar a isto que tinha frequentemente de
ocultar a tremura das mãos e que o meu humor passava da maior euforia para momentos de depressão que
chegavam às lágrimas e a palavras negativas e de suicídio...
O Dr. Ferran telefonou-me um dia para o loft, dizendo que precisava de falar comigo. Convidou-me para jantar num
restaurante. Eu já notara que ele não usava aliança, mas isso não significava que não fosse casado. Eu perguntava
a mim mesma porque seria aquele encontro inesperado. Estava intrigada. Aceitei. Antes de ir ter com ele, tive a sorte
de poder injectar-me: um amigo que simpatizava comigo dera-me um pouco de brown sugar. Não era o mesmo que
a boa heroína, mas bastava para me pôr de bom humor. Cuidei da minha apresentação. Tinha estatura de mulher, e
uma das raparigas da casa emprestou-me um vestido e um casaco elegantes, que ela costumava usar quando ia
visitar a família, ao Norte. Nós, as provincianas, tínhamos mais facilidade em dissimular perante os nossos pais a
existência que levávamos na capital.
- Mas tu estás perfeita!
O Dr. Ferran marcara encontro comigo em Saint-Germain des Prés, onde, de, qualquer maneira, o meu aspecto
habitual não espantaria ninguém. Depois de me ter observado, ele decidiu que iríamos jantar a um restaurante na
moda, ali no bairro.
Bastou-me deitar um olhar aos outros clientes para perceber que muitos deles estavam viciados em coca. Sorri
interiormente, quase certa de conhecer os motivos que tinham levado o advogado do meu pai a convidar-me: não
fora certamente para me pregar moral!

Não esperava o discurso que ele me fez na altura da sobremesa.


Ele tinha-se instalado na minha frente, sem nunca deixar de me fitar. Mostrara-se brilhante e compreensivo acerca
dos... problemas dos jovens, antes de confessar que a sua vida particular se encontrava num momento mau: ia
divorciar-se. Mas, na sua situação, precisava de tomar precauções infinitas.
Apercebi-me então de que o meu companheiro teria, quando muito, quarenta anos, que era bastante atraente,
bastante conhecido, visto muita gente o ter cumprimentado e algumas pessoas lhe terem ido apertar a mão. Além
disso, as mulheres pareciam vivamente interessadas por ele. Apresentou-me como filha de um velho amigo do seu
irmão mais velho, chegada recentemente a Paris para completar os estudos. Os sorrisos dos seus interlocutores
pareceram-me simultaneamente ambíguos e admirativos.
- Permite-me que te trate por tu e que te peça para fazeres o mesmo em relação a mim, pois caso contrário daria a
impressão de eu ser um velhote.
O ambiente era agradável. Não me desagradava sentir-me longe do loft e dos meus companheiros, mas começava a
perguntar a mim mesma onde quereria ele chegar. Soube-o quando me encontrei de novo no carro dele. Atraindo-me
para si, beijou-me bruscamente. Beijava muito mais sabiamente do que os rapazes com quem até então eu já tinha
estado. No entanto, repeli-o e afastei-me.
- O meu pai não te disse a minha idade?
- Que interessa que tenhas quinze anos ou dezasseis anos... não é a tua primeira experiência. Sem contar...
- Sem contar?

- Tomas-me por um idiota, menina? Achas que eu não percebi ainda que te drogas? E que me bastaria prevenir os
teus pais para seres levada entre dois polícias e fechada num centro de desintoxicação?
- Matar-me-ia primeiro!
As palavras tinham-me escapado. Era a primeira vez que me vinha à ideia acabar com uma vida que eu sabia
irremediavelmente estragada. Devo ter tido um ar de sinceridade. Ele sabia que não devia excitar um drogado sob o
efeito do estupefaciente.
- Vamos a minha casa tomar um café. Não tenhas medo. Não quero ver-me a braços com uma história de desvio de
menores. A minha carreira seria destruída. Já tenho bastantes problemas com a minha mulher. E quero ainda menos
ver-me numa história de drogados que se injectam, porque tu estás metida nisso, não é? A marijuana e o haxixe já
não te chegam. Eu também já fumei algumas vezes e comi compota e biscoitos. Mas com prudência! E quando fui à
Tailândia fiz, como toda a gente, uma excursão aos Mois e experimentei um ou dois cachimbos de ópio... se é que se
tratava verdadeiramente de ópio. Não me provocou qualquer efeito. Nem sequer uma sensação de euforia. Tu,
evidentemente, estás na morfina ou na heroína... a coca excitar-te-ia mais. O teu sorriso de mulher Buda traiu-te logo
que entraste no Flore.
Tínhamos chegado ao Boulevard Malesherbes. Subimos. O apartamento dele condizia com o consultório. Muito
elegante, mas clássico. Móveis ingleses e gravuras antigas. Cadeirões de cabedal, estofados. Ele nem sequer me
ofereceu de beber. Observava-me através das pálpebras meio fechadas. Deixei de o tratar por tu. De certa maneira,
começava a ter medo. Ele tinha demasiados meios de fazer pressão sobre mim.
- Então? Heroína, é para isso que precisas de dinheiro? Como é que tens arranjado essa porcaria até aqui? Não é
com o dinheiro que o teu pai te envia... Porque é que fugiste? Por que motivo não quer ele ter qualquer relação
contigo?
Eu ia contar-lhe tudo, a minha mãe... Brigitte... Frédéric... pois não acreditava nas negações da minha madrasta. O
olhar agudo que Alain Ferran pousava sobre mim, a sua tensão - de que eu me apercebia, -, igual à de uma fera
prestes a lançar-se sobre a sua presa, foi para mim uma espécie de aviso. Ele queria, não sei porquê, ter poder não
sobre mim... mas sim sobre o meu pai. Provavelmente por uma sinistra questão de interesses? Isso nunca o soube e
não o desejo saber. Fechei a boca e baixei a cabeça. Comecei a transpirar e a sentir náuseas. Queixei-me.
- Está muito calor!
- Estás com falta de droga, não é? Não tenho aqui nada para te ajudar... só um frasco, de éter. Queres cheirá-lo?
Ele só pensava nele, e interiormente decidi nunca mais apelar para aquele homem. Só servia para me entregar o
dinheiro, que o meu pai me mandava.
- Não, não quero éter, mas não me sinto bem, tenho de ir para casa. Obrigada pelo jantar.
Levantei-me, pedi o meu casaco. Ele ordenou-me:
- Volta a sentar-te e ouve! Talvez eu possa ajudar-te!
- Ajudar-me? Em que sentido?

Ele não me respondeu imediatamente, observava-me cada vez mais atentamente. Tive imediatamente a impressão
de que ele ia reter-me à força; não para abusar de mim, pois nem percebia por que razão me beijara. Provavelmente
fora apenas por curiosidade, para conhecer as minhas capacidades de defesa. Essa vigilância tornou-se,
bruscamente, intolerável. Sentia agora, de súbito, uma sensação que me fazia estremecer, enquanto momentos
antes tivera calor. E pior, uma sensação de angústia absolutamente insuportável: um perigo terrível espreitava-me,
tanto mais terrível por ser indefinível.
- Há quantas horas te injectaste?
Não respondi. As minhas articulações dos joelhos, dos cotovelos, dos dedos doiam-me atrozmente, como apertadas
num torniquete cada vez mais torturante. Gritei, e a minha própria voz me fez dores de ouvidos, como se os
tímpanos fossem rebentar.
- Meu Deus! Meu Deus, vou morrer!
Começara a chorar e sentia que ia vomitar. Ele percebeu isso, levou-me até à casa de banho e levantou a tampa da
retrete.
- Deixo-te. Chama-me se precisares de mim.
Quanto tempo estive eu debruçada sobre a bacia? Apesar dos arrepios e da sensação, cada vez mais dolorosa, de
estar encerrada num bloco de gelo, o suor corria-me pela testa e por todo o corpo. Tentei ver-me ao espelho por
cima do lavatório, mas aquele rosto contraído não podia ser o meu... tinha o aspecto duma velha angustiada, a
babar-me, com os cabelos colados pelo suor.
Era horrível. Aquele homem devia ter-me feito beber alguma bebida estragada, o restaurante era seu cúmplice, e o
meu pai... ou Brigitte... e se ele fosse outro amante dessa mulher horrível e os dois tivessem projectado a minha
morte?
Vês, Etienne, eu estava em pleno delírio. De súbito, a imagem que eu fixava enevoou-se. Tinham-me contado a
terrível história de um rapaz que ficara cego na prisão, por lhe terem tirado a droga de repente... em seguida fora a
loucura. Comecei a procurar no pequeno armário dos remédios. Atirava raivosamente os frascos e as coisas para o
chão. Podia também ter engolido indistintamente o conteúdo de todos. Sem dúvida que o teria feito, visto não
encontrar o que procurava. Nem o frasco de éter havia. Não dei por cair, de resto sem me magoar, pois essa queda
era infinitamente menos dolorosa do que as descargas eléctricas que me atravessavam o corpo. Vomitei outra vez.
Ouvi a porta abrir-se e uma voz constatar:
- Que estragos que ela fez! Mas tu és doido, meu velho, é uma garota. Porque é que a trouxeste para tua casa? Está
com falta de droga, tens razão. Seria melhor, se ainda for a tempo, enviá-la para Marmottan e em seguida prevenir a
família dela para a fazerem entrar num centro. Há um, muito bom, em Boulogne.
Apesar do meu estado comatoso - não podia mexer-me, nem falar, apesar dos meus esforços -, ouvia perfeitamente
o interlocutor de Alain. Era certamente um médico. Ouvi-o até partir uma ampola. Os meus sentidos estavam
despertos, exceptuando a vista. De resto, mantinha instintivamente os olhos fechados para evitar que me
interrogassem.
- O que é que lhe vais dar? Será que ela ficará transportável? Pode ir para o hospital, mas não partindo daqui. Sou
advogado do pai dela; é uma história sombria de que não conheço todas as coordenadas. Um bom cliente, a minha
família é íntima da dele, eu sou mais novo. Foi ela que veio procurar-me. Queria dinheiro e ainda há oito dias lhe
entreguei a pensão que o pai lhe manda.

- A heroína é cara! Digo-te, mais uma vez, que o melhor seria mandá-la fazer uma cura de desintoxicação. Há muito
tempo que ela se droga?
- Com certeza que não. Só está em Paris há oito meses.
- É o suficiente. Tranquiliza-te. Injectei-lhe um produto com azafenotiazina, vai-se acalmar. Deves deitá-la e cobri-la
bem. Quando acordar estará ainda sob o efeito da injecção. É um calmante muito forte. Aproveita então para a
levares... onde quiseres. Mas para a próxima vez tem cuidado! Ela podia ter entrado em coma, eu seria obrigado, a
enviá-la para a reanimação e a participar o caso à polícia...
Não ouvi o fim da conversa. Mergulhei, de repente, no sono. Quando acordei, vi Alain Ferran a dormir num cadeirão,
na minha frente. Tinha-me deitado na cama dele. Sorri-lhe. Encontrava-me ainda sob o efeito do medicamento que
me fora administrado e não sentia qualquer hostilidade contra ele. Nesse instante, ele acordou também.
- Estás melhor?
- Que me sucedeu?
- Oh, nada. Agora vou levar-te a casa. Lembras-te do que me prometeste?
Lembrava-me apenas das palavras que ele trocara com o médico invisível, mas evitei evocar a cena.
- Não. É importante?
- Bem, um cliente meu tem tido alguns aborrecimentos, o que não impede que te possa ajudar... se do teu lado tu
mostrares um pouco de boa vontade em lhe seres útil.
Não percebia nada do que ele dizia. Ele adivinhou isso ao ver o meu sobrolho franzido e a minha boca a abrir-se
numa interrogação. Por isso, disse:
- Ele telefona-te e explica-te. Prestou-me um grande serviço e é natural que eu o queira ajudar. Chama-se Alex.
Era a segunda vez, desde que vivia em Paris, que me falavam de um Alex. A primeira vez fora em casa de Patrícia
de A. Esse era um vendedor de droga. Pareceu-me improvável que se tratasse do mesmo personagem. Alain Ferran
não se drogava mas evidentemente que um advogado era obrigado a entrar em contacto com todo o género de
pessoas, e não obrigatoriamente das mais recomendáveis.
- Ele que me telefone - respondi. - É possível que ele esteja em condições de me ajudar.

Capítulo 12

O meu caso foi exemplar? Certamente que não. Não percorri o caminho habitual dos que começam a drogar-se. Fui
demasiado depressa, e, porque a ocasião se me apresentou, comecei a entregar-me àquilo que poderia mais
facilmente destruir-me.
Se não contaste à tua avó nada de preciso, ela compreendeu sem dúvida de onde eu vinha e julgou mais saudável,
em vez de fingir ignorar isso, atacar-me no meu próprio terreno. Ontem o temporal - pois o tempo muda
constantemente nesta região - impediu-nos de sair. Vento, chuva torrencial, granizo, obrigaram-nos a ficar em casa.
Depois do almoço, pegando no seu eterno tricô, ela instalou-se diante da lareira. Eu também, mas sem tricô. Lia um
desses hebdomadários que ela recebe todas as semanas. Sem sequer deitar um olhar para o artigo que eu estava a
ler, a tua avó perguntou-me:
- O que é que pensas desse artigo sobre a droga nos liceus? E das "esperas" que lhes fazem nas ruas? Ficaste
chocada por eu empregar esta palavra? Mas transviar crianças que nem sequer sabem porque fumam ou snifam é,
para mim, como violá-las, quer sejam raparigas ou rapazes. Quando forem adultos, e assumirem a responsabilidade
do que fizerem, é diferente. Mas desencaminhá-las aos oito, dez, doze anos... depois espoliá-las, não, é demasiado.
Esses traficantes de erva que lhes dão a primeira "passa" deviam ser chicoteados, como na Grã-Bretanha!
- Está muito ao corrente do calão, avó!
- Agora já não me tratas por mamie? julgava que me chamava Hélène.
- Tu lês muitos artigos, Hélène! Tudo isso é simultaneamente mais sórdido, mais triste e mais complicado.
- Pois bem, esclarece-me.
Não me apercebi da armadilha. De qualquer maneira, tenho muita confiança nela! Sem mesmo dar por isso, falei
como se me dirigisse a ti, neste caderno. Ela estava calada, e eu ouvia apenas o ruído das agulhas, exactamente
como quando estou a escrever. Suspirei:
- Quando não se tem dinheiro bastante para arranjar, ou continuar a arranjar a droga, e desde que se tenha um
amigo que estude Medicina ou Farmácia, mas que se recuse a roubar morfina ou éter no hospital, recorre-se às
anfetaminas, claro. Tomam-se muito mais do que a dose prescrita por qualquer médico, claro, e além disso com
álcool. Há quem as tire de casa dos pais, de amigos... e nas farmácias não faltam. Como essa mistura é espantosa e
permite estar acordado várias noites seguidas, além de excitar as faculdades intelectuais, para as aulas é formidável.
Eu trabalhava muito bem. Era brilhante sempre que queria.
Pouco a pouco fui abandonando o "se" impessoal, de uma explicação abstracta, para passar para o "eu", pois não
podia enganar Hélène.
- Mas esses medicamentos que me forneciam clandestinamente também tinham de ser pagos. Os que os arranjavam
precisavam também de dinheiro para se abastecerem, para subornar os responsáveis pelos produtos tóxicos! Então
comecei a fazer o mesmo que as outras...

Já nem sei o que lhe contei, mas ela ouvia sem fazer comentários, mesmo quando falei dos gangs do liceu. Havia-os
em todas as classes e para todas as idades, espoliando os mais fracos, aqueles a quem os pais davam dinheiro para
pequenos gastos, e outros que o roubavam. E havia também chantagens. "Se não me pagas, denuncio-te. Hei-de
arranjar maneira de te meter erva nos bolsos, pedras de haxe, ácidos e outras coisas. E vê lá se te apanham com
tubos de cola na pasta!" Isto era para os mais pequenos. Os chefes de gangs mais perversos, mais velhos,
assustavam as suas vítimas de treze, quinze anos, dizendo-lhes: "Nem te aperceberás se eu misturar veneno no teu
pó... e ficarás doente como um cão ou pior! Enquanto os teus pais te estiverem a tratar vamos enviar-lhes cartas
anónimas, a eles, ao reitor, à polícia... acabarás na prisão. Vê lá se preferes ser espancado?"
Evidentemente que esses mesmos gangs ameaçavam as raparigas, além do mais, de as violar. Depois de as terem
aterrorizado suficientemente, anunciavam: "Tu podes pagar de outra maneira.... não é difícil... permitimos-te mesmo
escolher os tipos que queiras, mas tens de te deitar, minha filha, e trazer-nos a massa. Senão somos três, quatro,
dez, se for preciso, e tu ficas boa para o hospital..."
Enquanto eu falava, a tua avó afastou-se bruscamente. Creio que se apercebeu de que eu estava a falar de mais e
que depois me envergonharia de o ter feito!
Mas tu, tu deves saber tudo. Nessa época, próximo do fim do Inverno, isto é, em Março ou Abril de 1983, eu quase
não comia. Comia apenas uns biscoitos, mascava pastilhas elásticas e bebia leite. à noite é que bebíamos bebidas
alcoólicas. É espantoso como as pastilhas elásticas nos enchem o estômago. Comecei também a faltar muito às
aulas. Uma rapariga e um rapaz da comunidade assinavam-me os bilhetes para eu apresentar no liceu, desde que
Jérôme e Carolina haviam desaparecido do nosso círculo. Creio que tinham arranjado um estúdio noutro sítio.
Eu já não vivia no mundo dos outros, precisava de empregar uma quantidade de truques para enganar os meus
correspondentes e, por intermédio deles, o meu pai. Alain Ferran prevenira-me de que o seu cliente, o famoso
senhor Alex, me contactaria de um dia para o outro, mas até ao momento não tivera quaisquer notícias. Quanto a
esse desconcertante advogado, aparentemente preferia não me voltar a ver: eu não desejava outra coisa, desde que
ele me entregasse as mensalidades. Tinha a certeza de que não me denunciaria, pois a vida dele também não me
parecia irrepreensível.
No grupo que vivia no loft, com idas e vindas incessantes, estrangeiros de passagem por um dia ou dois,
formávamos verdadeiramente uma seita, ou melhor, uma franco-maçonaria, com as nossas palavras de passe, os
nossos rituais, os castigos quando infringíamos as leis ocultas da comunidade, mas sobretudo com um sistema de
defesa muito aperfeiçoado contra qualquer ameaça vinda do exterior, em especial dos nossos pais burgueses, mas
também de algum pequeno vendedor especialmente desonesto, ou de amadores demasiado curiosos, pusilânimes,
que poderiam trair-nos.

Eu devia ter mais cuidado que qualquer outro... era menor! É certo que uma rapariga de treze anos contara a sua
vida de prostituta e drogada... mas podia-se calcular que estava protegida, e depois disso crescera. Mas ela não
pertencia ao nosso grupo e por isso não queríamos saber dela.
Os meus companheiros, rapazes e raparigas, tinham todos mais de dezoito anos. Tinham sido já detectados como
viciados, mas como há muito tempo não eram apanhados em flagrante delito de tráfico ou de consumo, como não
houvera nenhum caso de roubo ou de acidente grave com eles, no decorrer de uma party, deixavam-nos em paz.
Claro que os acidentes não faltaram enquanto eu lá estive. Por vezes sem verdadeira gravidade, como sucedeu
comigo... vómitos, desmaios prolongados, gritos quando havia falta de droga, discussões ou tentativas de suicídio...
Isso é moeda corrente, tu sabe-lo. Depois disso, muitos daqueles a quem essas coisas sucediam ficavam
assustados, iam para os centros, falavam e até tentavam curas de desintoxicação.
Mas houve pior. Um holandês, extremamente simpático, morreu numa casa de banho... Agora que há sanitários que
se podem fechar à chave, tornaram-se o local preferido dos que se injectam. Ninguém os vai incomodar, e eles
injectam-se ali à vontade, contentando-se em desinfectar a agulha com saliva. Deves ter lido que há alguns meses
foi encontrado um rapaz morto numa dessas casas de banho... Eu conhecia-o. Era o namorado de uma companheira
nossa... Tinha vinte e cinco anos. Há também os que se deixam prender. São sempre os pequenos passadores sem
importância, nunca os grandes, e sobretudo jamais os grandes patrões da droga. Há realmente alturas em que a
Brigada consegue deitar a mão a quantidades espectaculares de heroína, de cocaína ou de haxixe; mas os homens
presos são sempre gente sem importância e o tráfico recomeça logo no dia seguinte, com novos truques, novos
esconderijos, novos distribuidores. Sobre isso não te posso dar detalhes. Não estive metida com essa espécie de
gente, nunca conheci sequer os porteiros das discotecas chiques, que são os fornecedores habituais dos drogados
ricos. Apenas mais tarde, depois de ter conhecido o senhor Alex, e sob a sua protecção, me aventurei nesse
universo dantesco do bairro negro em torno da estação de Lyon, o ilhéu Châlon, e num outro, de aparência mais
calma, do bairro chinês, do décimo terceiro bairro, e no novo bairro chinês de Belleville...
Mas antes de te contar esse itinerário perturbador, queria confessar-te que os piores infortúnios não são suficientes
para pôr em guarda aqueles cujo organismo se habituou às drogas duras. A nossa sensibilidade ao perigo, ao
sofrimento que não seja causado pela falta de droga, esbate-se rapidamente. Recordo-me: de início, quando os
meus amigos tinham aborrecimentos com a polícia, eu ficava preocupada. Depois, pouco a pouco, comecei a
encolher os ombros ao saber que um ou outro fora apanhado pela Brigada. Só no dia em que Vincent...
Nunca te falei de Vincent. Um rapaz engraçado, diziam que era homossexual. Com efeito, não falava de sexo, e nós
não lhe conhecíamos nenhuma ligação de qualquer espécie, isso não parecia interessá-lo. Tocava quase todo o dia,
cantarolava em

voz baixa, perdido em intermináveis "viagens". Tomava muitas vezes ácido, mas também se injectava, e um dia
pensámos que ele ia morrer na nossa frente. Ele tinha misturado uma anfetamina com morfina que lhe fora dada por
um amigo farmacêutico. Foi alucinante, de efeito quase instantâneo... não sei como escapou!
Depois disso, não voltou a ser o mesmo. Sempre meigo, distante, mas como que perseguido pela angústia de sentir
a falta da droga. Então, como quase todos nós, começou a traficar para arranjar dinheiro. Terá sido denunciado, os
seus patrões terão perdido a confiança nele. Certamente houve uma denúncia. Talvez um grupo rival - punks que
nos consideravam antiquados? Nunca se saberá! O que é certo é que ele foi apanhado em flagrande quando
passava cinco doses a uns garotos ricos que faziam jogging em Luxembourg...
Libertaram-no uns dias mais tarde, e ele foi buscar o seu saco-cama lá a casa. Tivemos medo de que aparecessem
os chuis atrás dele, mas deixaram-nos em paz. Se o visses, pobre infeliz! Um farrapo, vacilante, mal podendo andar.
Não disse nada aos outros. Abracei-o, e ele chorou durante mais de uma hora. Por entre os soluços, ia contando.
Falava como se se tratasse de outra pessoa: fazia uma simples constatação. Fora brutalmente espancado para
revelar nomes, moradas e para explicar como deixava a droga nos esconderijos onde o comprador a ia buscar
depois de ter pago. Mas a polícia conhecia melhor esses truques do que ele. Depois tinham-no deixado sem droga, e
ele rebolara aos pés deles, suplicando que o ajudassem; eles haviam troçado dele e feito coisas que eu não tenho
coragem de te dizer e em que nem quero acreditar. Finalmente, tinham chamado um médico. Vincent batera com a
cabeça contra as paredes, para se matar, com as forças centuplicadas. O médico dera-lhe uma injecção e mandara-
o para a enfermaria da prisão, dizendo aos polícias que não se podia tirar de repente a droga a um viciado. Como se
eles não
o soubessem! Finalmente... conhecida a sua identidade, puderam contactar com a família dele... pessoas de bem,
totalmente ignorantes do que o filho fazia. Pagaram a caução. Ele ia voltar para junto da família, iria fazer uma cura,
mas tinha receio.
- E se já for tarde de mais para mim? - dizia ele; e bruscamente acrescentou: - Volta para casa. Acaba com isto. Só
te conduzirá ao inferno.
Depois foi-se embora, sem sequer me dar tempo para lhe responder.
Infelizmente para mim, ele pronunciara as únicas palavras que não devia. Voltar para casa? Sentia-me incapaz
disso, verdadeiramente incapaz. Não me tinham eles expulsado? Porque tinham então tido filhos? E a minha mãe, se
sabia que ia abandonar-me, porque eu era filha de um homem a quem ela já não amava, porque não abortara? Teria
sido menos cruel.
Etienne, meu querido, se soubesses como eu gostaria de ter filhos teus! Se soubesses como eu me ocuparia deles!
Mas também a isso eu devo renunciar. Hoje, quando, finalmente, me sinto capaz de assumir responsabilidades,
tenho receio... medo por tudo o que eu fiz do meu corpo, droga ... e sexo também, tenham consequências sobre as
crianças que eu possa ter. Se houvesse sequelas? Se elas nascessem com uma hereditariedade demasiado pesada,
taras de que não teriam culpa, se fossem anormais marcados para toda a vida? Eu não o suportaria, tu também não.
Imaginas o nosso desespero, o futuro dessas crianças e o nosso? Se o primeiro fosse normal, eu voltaria a ter medo
pelo segundo, pelo terceiro!

Oh, se eu te dissesse tudo isto de viva voz, tu abraçar-me-ias, cobrir-me-ias as pálpebras de beijos, a ponta do nariz,
o queixo, as faces, rindo, mas também ralhando: "Que menina tu és ainda, que não sabe nada de nada, que imagina
um romance negro, que cai em qualquer armadilha, acredita em qualquer balela. Pobre orfãzinha, avezinha caída do
ninho", e repetir-me-ias gravemente o que me disseste da primeira vez em que me beijaste: "Júlia, minha querida,
daqui em diante eu serei simultaneamente o teu pai, o teu irmão, o teu amante, o teu amigo... e o pai dos teus futuros
filhos, os nossos filhos! Mas serei também a tua mãe, que te acarinhará, te guiará, te explicará e te amará
incondicionalmente..."
E acrescentarias, como já fizeste: "Passarinho assustado, friorento, mas que faz inchar orgulhosamente as suas
penas para parecer ameaçador por causa dos predadores que o espreitam, a si, tão vulnerável..."
Tens razão, meu querido: vulnerável e menina. Mas uma menina velha que é tão trágica como uma velha querendo
passar por menina.
Uma noite, um pouco antes da Páscoa, vendo os outros partirem para umas férias mais ou menos longas, não tendo
já dinheiro e sentindo-me incapaz de estender a mão aos transeuntes com uma receita para curar uma doença,
como muitos fazem, e querendo arranjar um pouco de dinheiro para comprar brown sugar, à falta de heroína, decidi
ir falar com a minha mãe, a verdadeira. Quem sabe? Talvez ela tivesse pena de mim e me recebesse de braços
abertos? Prometi logo a mim própria, se isso sucedesse, pedir-lhe-ia que me mandasse fazer uma cura de
desintoxicação. Prometer-lhe-ia renunciar à vida de loucura, desde que ela me quisesse.
Mas para não chegar lá inesperadamente e incomodá-la, resolvi telefonar-lhe primeiro. Mal podia falar, tão comovida
estava. Disse:
- És tu, mamã? ... Sou a Júlia... Estou em Paris... queria ver-te... sou muito infeliz...
Comecei então a soluçar. Como ela não pronunciava uma única palavra e respirava muito depressa, ofegante,
julguei que estava tão comovida, como eu. Entre dois soluços, consegui articular:
- Ó mamã, não te comovas, vamos ser felizes as duas. A ele não o quero ver.
Com uma voz nítida, fria, como a voz do presidente de um júri a anunciar uma condenação à morte, ela declarou:
- Há mais de doze anos que perdi a autoridade maternal, oficialmente. É certo que te abandonei. És filha do teu pai,
e isso chega para eu te ter horror. Tenho outros dois filhos, sou viúva, voltei a casar e sou feliz. Não permitirei a
quem quer que seja que venha perturbar a minha vida. Foi essa Brigitte que te criou. Se tens aborrecimentos com
eles, não tenho nada com isso. Suponho que precises de dinheiro. O que estás a fazer sozinha em Paris? Não me
respondas. Dá-me a tua morada. Enviar-te-ei um vale... mas previno-te de que será a primeira e a última vez. É inútil
telefonares-me. Nada temos a dizer uma à outra.
Desligou antes de mim. Eu nem queria acreditar no que ouvira, nem que ela tivesse desligado antes de eu lhe dar o
meu endereço. Não lho enviei. Ela tinha razão: nada tínhamos a dizer uma à outra.

Limpei as lágrimas. Pedi um pouco de pó a uma amiga, dizendo que lhe pagaria algumas horas depois, e desci à
rua.
Já não tinha realmente importância o que ia fazer. Ser uma pequena prostituta não seria certamente pior do que era
aquela mulher: a minha mãe! Quem poderia acreditar que houvesse pessoas assim? E no entanto...
Só te conto a verdade, meu amor, uma verdade sórdida, mas a verdade.

Capítulo 13

Tu, que seguiste uma via bem direita, Etienne, poderás verdadeiramente compreender o que me sucedeu? Apesar
da tua experiência de médico, de psiquiatra? Deves imaginar que existe, no fundo de jovens como eu, uma tara de
que não são certamente responsáveis, mas que não deixa de ser uma tara. Isso não é correcto. Basta por vezes um
incidente minúsculo, uma atmosfera hostil, circunstâncias adversas. Tu fizeste normalmente os teus estudos,
voltando todos os dias para um lar feliz. Tu entendias-te bem com os teus pais, com os teus irmãos e irmãs e nada
destruiu essa felicidade familiar que nós achamos um pouco aborrecida, monótona, para utilizar termos correctos, e
que então rejeitamos com insolência.
Acreditarás se eu te disser que muitos de nós, quando estamos drogados, sonhamos com essa felicidade insípida?
Com esse paraíso perdido digno do romance mais cor-de-rosa, onde amor rima com "para sempre"? E se existe
promiscuidade entre nós, se aparentemente aviltamos o amor, é porque é só o que nos resta, num mundo que nos
causa horror, o que nos dá um simulacro de ternura e de esquecimento.
Infelizmente, o despertar desses simulacros é quase sempre tão terrível como estar em carência de droga. Conheci
as duas coisas. De cada vez é como cair por um abismo vertiginoso, primeiro num inferno escaldante, depois gelado.
Simplesmente, a falta de droga deixa-nos mais ofegantes, mais devastados, do que a falta de amor.
Hoje ia voltar ao assunto em que fiquei ontem, mas fechei o caderno aterrada com o que teria de dizer. Para me
tranquilizar fui rapidamente até à cozinha, onde Hélène preparava caramelos de chocolate e areias para a tua
eventual visita no fim-de-semana. Mas eu sei que tu não virás antes de eu terminar esta confissão, ou então que
estarás aqui apenas de passagem.
Queres deixar-me livre e não ignoras que se me apertasses muito ternamente nos teus braços eu poria estas
páginas de parte e entregar-me-ia sem pensar às promessas de felicidade que a tua presença basta para me dar,
mesmo que não entendas a necessidade desta "grande limpeza" do meu coração e da minha alma. Mas o meu
corpo? Como devolver-lhe a sua inocência, a sua pureza? Certamente poderia ter amado, entregar-me apesar da
minha pouca idade: não seria a única. O abominável é que me vendi. Cientemente... Primeiro num gesto de raiva, de
revolta, no dia em que a minha mãe me renegou pela segunda vez. Mas depois mais conscientemente, quando
compreendi que era a melhor moeda de troca ao alcance das raparigas, fossem quais fossem os seus desejos!
Desci portanto à rua... fitei demoradamente um ou dois homens sozinhos que passeavam perto de Beaubourg. Segui
um que se assemelhava vagamente ao meu pai e que me falou meigamente.
- É a tua profissão? Evidentemente que não, mas precisas de dinheiro. Afinal... agradas-me, e não tenhas medo,
serei gentil para contigo. Não sou um perverso. Conheces um hotel?

Compreendendo que eu era uma principiante, levou-me para o parque onde deixara o seu carro e começou
imediatamente a acariciar-me e a beijar-me. Estava muito excitado, tanto mais que eu me mostrava distante, para ser
dócil, mas totalmente contraída. Quando chegámos perto da Madeleine, arrastou-me para o que eu suponho ser uma
casa destinada a encontros desse género, mostrou-se muito ardente e deu-me todo o dinheiro que tinha na carteira;
mil e quinhentos francos. Depois suspirou:
- Devias tentar outra coisa! Quando penso que tenho uma filha da tua idade! - Hesitou e depois acrescentou: -
Suponho que te drogas?
Não respondi e perguntei se podia ir-me embora. Ele vestia-se com um ar tão triste como eu. Ouvi-o resmungar:
"Porca de vida."
Mil e quinhentos francos para ser aviltada, sem contar com todos os perigos que corria! É certo que tomava agora
regularmente a pílula, mas aquele homem poderia ter uma doença venérea - não me fizera ele essa pergunta a mim?
-, sobretudo se tinha o hábito de se deitar com raparigas que não estivessem sujeitas a inspecções médicas. Não
tinha sequer com que pagar dois dias de droga! Os preços aumentavam. Quando um tipo mais novo me abordou,
perguntando-me imediatamente: "Quanto?", perguntei a mim mesma se ele me teria visto entrar naquela casa com o
outro, voltando a sair apenas uma meia hora mais tarde.
- Quinhentos... mais? Então fazes truques? Pareces bem nova para seres já viciosa. Enfim, hoje em dia...
Seguiram-se várias perguntas que eu prefiro não recordar. Que náusea! Mas de certa maneira sentia-me de tal modo
infeliz que experimentava um desejo masochista de me rebolar pela lama, de levar as coisas o mais longe possível.
Era uma espécie de vingança...
Quando voltei ao loft, tinha seis mil francos no saco. Injectei-me imediatamente e estendi-me sobre a cama,
esquecendo tudo e todos. Os outros tinham posto um velho disco dos Beatles, Lennon...
Mais um que se drogara e que finalmente parara, mas de que lhe servira isso? Fora assassinado por um louco!
Talvez nós fôssemos todos loucos e atribuíssemos demasiada importância a essas ninharias. Pensando bem...
esses tipos que tinham feito amor comigo... já nem me lembrava deles, era como se me tivesse limitado a levantar a
saia para cima. Dois deles, apressados, nem sequer me tinham pedido para me despir. Tenho a certeza de que
pensavam noutra mulher.
Eu já sabia que, quando as minhas provisões de heroína diminuíssem, voltaria à rua. Mas o que sabia também era
que só me decidiria a isso depois de ter utilizado outros meios para arranjar dinheiro.
Não ficarás zangado comigo, Etienne, se não te explicar as experiências desagradáveis que me valeram essas
incursões ao mundo da prostituição paralela? A liberdade de costumes actual faz com que não haja diferença entre
as raparigas ou as mulheres que fazem amor sem darem a esse acto verdadeira importância, por vezes
simplesmente porque se sentem sós e têm necessidade de que um homem as convide para irem ao cinema, a um
restaurante, ou lhes ofereça um pequeno presente banal. Também há as que dizem: "Se os homens não pensassem
que nós somos para comprar, não nos venderíamos!"
Só muito raramente uma rapariga aborda um homem, a não ser que se trate de uma profissional. São eles que nos
perseguem. A prova é que também eles têm problemas em muitos domínios.

Mas acho que fiz bem pior do que isso! Quero falar da venda de droga aos jovens, aos muito jovens. Apenas aflorei o
problema neste caderno, há uns dias, porque o punha constantemente de lado. Para quê?
Isso sucedeu porque o senhor Alex me telefonou finalmente. Declarou ser conhecido do Dr. Alain Ferran. Ignorava
que eu já ouvira falar dele em casa de Patrícia de A. Não podia desconfiar que eu era a rapariga que ele encontrara
no quarto de Jean-Marie.
Marcou encontro comigo no Luxembourg, em frente da Fonte Médicis, no dia seguinte às dez horas, mesmo que
chovesse. Havia apenas uma espessa bruma sobre Paris e muito pouca gente nas ruas. Por detrás dos óculos
escuros que ele usava, como da outra vez em que o vira, percebi que me fotografava, me reconhecia e me avaliava.
Dessa vez tinha, com certeza, intenção de me propor colaborar com ele. Tive medo. No entanto, não o bastante para
fugir antes de ele me dirigir a palavra. De resto, ter-me-ia apanhado. Propôs, com uma voz suave, baixa, cautelosa,
como se nos víssemos pela primeira vez, que me sentasse. Eu não lhe estendi a mão. Mal entreabriu os seus lábios
finos, esboçou um sorriso irónico e atacou sem mais preâmbulos.
- Creio que tens necessidade de dinheiro? Injectas-te, com certeza. Farias melhor em tomar star dust.
Era desses que utilizavam, por snobismo, vocábulos anglo-saxónicos, que pronunciava de resto com um forte
sotaque mediterrânico, mas não exactamente marselhês, talvez grego, com outras entoações indefiníveis.
- Porquê? Quer oferecer-ma?
Percebi que se não queria que ele me tratasse como uma garota à sua mercê precisava de me mostrar insolente e
distante, muito décimo sexto bairro, género new-wave. Felizmente, a minha aparência, nessa manhã, era perfeita.
Era uma aluna liceal chique, no bom género. Afinal, eu andava num liceu muito bem frequentado, a cinco minutos de
distância dali.
- Julgava que hoje em dia toda a gente se tratava por tu. Tu és um pouco provinciana, não és?
- De que se trata?
- Ferran não te pôs a par? É verdade que também ele deve proteger a sua fachada. Eu digo-te em poucas palavras.
É simples. Eu tenho a mercadoria. Muito boa para aqueles que têm com que a pagar, de resto demasiado perigosa
para os teus futuros clientes.
- Os meus futuros clientes?
Ele começou a rir e eu percebi que ele andava a seguir-me há já algum tempo. Compreendi que sabia que eu me
prostituía. Certamente corei, porque ele riu mais e apertou-me contra si. Mas eu libertei-me violentamente.
- Ora, tenho tempo... quando me apetecer verdadeiramente... tenho com que te pagar mais caro do que os outros, se
quiser... virás comer à minha mão.
- Isto parece-me um diálogo de cinema. Poderemos falar mais a sério? De que clientes se trata?
Ele fez girar a sua cadeira de ferro, e o seu olhar voltou-se para o lago. O tempo começava a levantar. Era quarta-
feira e havia já ali muitas crianças que brincavam alegremente, soltando gritos estridentes.
- São encantadores. É um trabalho fácil.

- Quer que eu a venda a estes garotos? São muito novos, não têm dinheiro. Poderia ser presa... Além disso, eles são
vigiados.
- Por quem? As mães, de um modo geral, trabalham... a famosa liberdade que as mulheres têm de se sentarem oito
horas a uma secretária!
Além do mais, o tipo era reaccionário e gostava de pregar moral aos outros!
- Vender-lhes-ás pequenos tubos de cola, que já lhes vendem nas papelarias; existem outros truques, mas primeiro
tens de travar amizade com eles, e se aparecer uma mãe mostras-te simpática, dizes que costumas vir estudar para
o Luxembourg, que adoras crianças, que não te importas nada de os vigiar. Declaras que queres ser pediatra, enfim,
uma grande história.
- Não será a vender-lhes cola que farei fortuna.
- Não te preocupes. Começa assim, eles têm mais dinheiro do que tu pensas. Depois vender-lhes-ás pequenas
pílulas e... para imitarem os grandes, passar-lhes-emos um pouco de farinha misturada... verás como eles a
procurarão, e depois levar-nos-ão até aos mais velhos, é infinitamente mais rentável do que tu julgas. Em caso de
necessidade, para obterem o seu pequeno flash... eles aceitarão fazer-me uma visita, todos esses garotos adoram
ser fotografados.
Juro-te, Etienne, ignorava completamente, nessa época, que existia um comércio de fotografias pornográficas feitas
com crianças, especialmente rapazinhos, para homossexuais curiosos que as pagavam caras. Mas para conseguir
renovar os modelos, para obter a sua docilidade, era necessário, primeiro, torná-los dependentes. A droga, uma
qualquer, desde que produzisse nesses garotos uma habituação e criasse uma necessidade, muitas vezes mais
psíquica que física, era o meio ideal para atingir esse objectivo...
Tentei recusar-me. Argumentei como pude até que, sem erguer a voz, o senhor Alex observou:
- Se o Dr. Ferran contasse aos teus pais o que tu fazes, por que motivo faltas tantas vezes às aulas, a causa dos
teus passeios à volta de Saint-Germain des Prés... ou nos bairros mais mal-afamados, talvez eles te cortassem a
mesada, não? E as casas de correcção, sabes o que são? Se não me engano ainda não és maior, pois não?
Comecei a transpirar, a tremer. Sabia que precisava de me injectar daí a menos de uma hora. O meu interlocutor
conhecia-nos a todos muito bem. Mudou o assunto da conversa, mostrou-se agradável, perguntou-me se eu
continuava a frequentar as aulas, que parecia que eu era uma aluna brilhante! E o amor? Teria eu um namorado? Só
isso dava felicidade. Suspirou, subitamente sentimental:
- Ah, se tu quisesses, agradas-me muitíssimo... uma pequena como tu... queres ir uma destas noites jantar a um
restaurante verdadeiramente chique? Mandar-te-ei um lindo vestido, tenho relações na alta costura. Se quiseres
posso lançar-te nos meios mais elegantes!
- Você?
Creio que ele compreendeu o meu desprezo. Não corou, empalideceu de uma maneira assustadora, com o seu olhar
invisível por detrás dos óculos escuros.

- És atrevida... mas não o serás durante muito tempo. Continua assim e em breve estarás no hospital, pequena
cretina. Com a droga, é preciso viver dela e deixar que os outros morram. Eu ter-te-ia ajudado.
Quando o deixei, vacilava. Alguém, na Rue Vaugirard, sem se deter, murmurou ao passar por mim:
- Devia meter-se num táxi e ir para Marmottan imediatamente!
Suponho que se tratasse de um médico e que o meu aspecto o tivesse alertado, embora não quisesse ver-se
envolvido com uma drogada. O meu primeiro impulso foi voltar-me e interpelá-lo. Desejava agarrar-me a ele como a
uma bóia de salvação, mas ele apressava visivelmente o passo. Comprendi que não se voltaria. Vi um táxi vazio
aproximar-se. Chamei-o e ao entrar disse maquinalmente:
- Hospital Marmottan.
O motorista não se voltou. Reparei que ele tentava observar-me pelo retrovisor.
- Não se sente bem?
- Sim, sim. Estou muito bem.
- Então é algum desgosto de amor. Porque é que está a chorar?
- Eu não estou a chorar! - Acendeu-se a luz verde, e o táxi partiu sem o motorista me responder. Parecia-me que
nunca mais chegaríamos a esse local que eu ainda desconhecia e onde desejava, de súbito, que me fechassem, que
me tratassem, me protegessem. Sentia-me terrivelmente cansada.
Gostaria que um acidente, uma prolongada doença me obrigasse a ficar hospitalizada durante meses, sem a
possibilidade de me mexer, completamente abandonada aos médicos e às enfermeiras. Querer bastar-me a mim
própria fora um fracasso, mas a culpa seria minha?
Receberam-me muito gentilmente, sem me fazerem perguntas, pelo menos durante alguns dias. Quando quiseram
fazer a minha ficha respondi que era órfã, que não conhecia ninguém e que não daria o nome dos meus amigos.
Esse anonimato não poderia durar. Dessa vez, um médico de serviço ordenou que me deixassem em paz. Depois se
veria.
Mas não lhes dei tempo para isso. Quando comecei a sentir-me melhor, receei que prevenissem os meus pais.
Temia que com a minha fuga e com o que dela resultara me encerrassem numa instituição severa, ou numa casa de
saúde onde seria vigiada noite e dia. Coisa que eu não poderia aceitar. Suicidar-me-ia!
Sim, foi em Marmottan, quando me senti pela primeira vez protegida, que eu encarei seriamente a possibilidade de
pôr fim aos meus dias! Não via qualquer futuro. Sem dúvida que se eu voltasse a frequentar regularmente o liceu, se
levasse uma vida normal, poderia recuperar o tempo perdido desde há alguns meses. De resto, não estava atrasada
nos meus estudos. Mas para onde iria viver se deixasse o loft e os meus únicos amigos?
A ideia de pedir aos Michelet para ir viver com eles era impensável. Não havia de resto lugar para mim na vida deles,
calma, monótona... e aí a minha neurastenia só aumentaria. Mas se voltasse para junto dos meus amigos...

Voltei. De início, limitei-me a fumar alguns cigarros de erva. Não gostava de beber, isso punha-me doente,
repugnava-me. Depois, uma noite, um rapaz que fizera uma prolongada estada em Marrocos levou-me a um cuscuz,
a casa de uns amigos senegaleses. Eu sabia que era aí que ele se fornecia de heroína. No fundo, eu dizia para mim
mesma, querendo enganar-me: "Não me injectarei. Contentar-me-ei com uma limonada com um pouco de pó,
apenas o bastante para me sentir cool."
Era a primeira vez que eu entrava nesse repugnante ambiente do caminho Brunoy do ilhéu Châlon. Era em Maio,
recordo-me bem, em fins de Maio do ano passado. A noite começava a cair. No passeio viam-se algodões
ensanguentados. No limiar das casas, terrivelmente degradadas, cheirando a urina e a peixe fortemente temperado
com especiarias, viam-se homens a conversar ou imóveis, com os olhos perdidos no vácuo. Outros sentavam-se na
beira dos passeios. Tipos visivelmente drogados paravam, contactavam rapidamente com outros que passavam, e
seguiam mais rapidamente ainda, depois de terem trocado um maço de notas por um pequeno embrulho que eles
desmanchavam febrilmente, antes de se esconderem, de qualquer maneira, atrás da porta de um daqueles tugúrios.
- Tenho medo, olha para aquele homem com uma navalha na mão.
- Não te preocupes. Estamos a chegar. É um dos meus amigos. Ganha um dinheirão... mas apenas com os
europeus. É um morabito. Não se droga, juro-te, aconselhou-me a parar se quero evitar uma grande infelicidade... o
que ele não sabe é que me estou nas tintas para todas as infelicidades que possam suceder-me... até as espero, já
nada receio nesta vida! É ele que cozinha. Vais ver, os cuscuz dele são espantosos. As raparigas que o rodeiam são
engraçadas. Adoro as africanas. Nuas, são soberbas. Mas tu tem cuidado, elas não gostam que toquem nos homens
delas. Contenta-te em comer e beber... dar-te-ei qualquer coisa como o paraíso!
Tive ainda tempo de o avisar de que nunca mais voltaria a provar nem LSD nem STP...
- Não, não, isto é melhor do que o ácido. Confia em mim.
Aqui não vale a pena pagar o avião. Viajamos, para o coração da África sem nos deslocarmos. É um verdadeiro
trovão!
Entrámos num compartimento nu onde se encontravam uns quinze rapazes e raparigas negros, de olhares ávidos,
incompreensíveis e misteriosos.
Ia repetir-lhe que tinha medo quando um colosso de perto de dois metros se dirigiu para nós. Envolto numa
sumptuosa túnica de seda branca entremeada com fios dourados, inclinou-se imperceptivelmente e com uma voz
lenta, sonora e solene, acolheu-nos:
- Que Alá seja convosco!
Sinceramente, eu não acreditava que Alá estivesse connosco. Talvez com o morabito, ou até com os seus
companheiros. Mas nós ficaríamos, com certeza, fora dessa bênção. Nós que tínhamos seguramente mais
necessidade dela do que qualquer outra pessoa!

Capítulo 14

Não escrevi durante três dias porque tu estiveste aqui. Senti-me feliz e o passado apagou-se. Quando partiste,
depois deste fim-de-semana maravilhoso, estive quase prestes a rasgar tudo, imaginando então, como tu me tens
dito incessantemente, que estes dois anos não passaram de um pesadelo que devo esquecer. Mas tu próprio deves
recear qualquer coisa! Pois se vieste inesperadamente, sem sequer prevenires Hélène, foi devido à emissão, da
semana passada, sobre a droga. Nela foram mostrados muitos rapazes e raparigas na última fase de intoxicação,
horrorosos detritos humanos, cadáveres vivos, verdadeiros farrapos humanos... e a maior parte deles não tinha mais
de vinte e cinco anos: dir-se-ia serem velhos, débeis mentais.
Terás adivinhado que, entre eles, descobri antigos amigos? Não seria mais uma razão para fugir definitivamente
desse universo demoníaco? Infelizmente não foi essa a razão que te trouxe. Tu sabes que o horror provoca
frequentemente, para ser esquecido, o desejo de voltar a qualquer dessas drogas susceptíveis de apagar a
realidade.
E é verdade que nessa noite, quanto tive a certeza de que a tua avó estava a dormir, me dirigi, descalça, para a casa
de banho, para o pequeno armário-farmácia, e que estendi a mão para uma caixa de comprimidos. Hélène toma, por
vezes, calmantes. Ela também sofre de insónias que lhe fazem lembrar os maus momentos que deseja esquecer.
Voltei ao meu quarto e pensei em engolir todo o conteúdo da caixa. Continha uns vinte comprimidos, e eu receei que
não fossem suficientes... disse a mim própria que não tinha o direito de impor a Hélène... ir encontrar-me morta ou
agonizante. Nem de te dar a ti esse desgosto. E de súbito percebi que mesmo um só comprimido seria perigoso:
depois não poderia passar sem eles e seria a nova maneira de me drogar. Quantas mortes célebres não tem havido
por esses excessos? Foi quando voltei à casa de banho, para ir arrumar a caixa, que ela me ouviu. Despenteada,
pálida, apareceu à entrada da porta e interpelou-me com uma violência inusitada.
- Júlia, não fizeste disparates, pois não? Eu seguir-te-ia. Nunca seria capaz de suportar tal coisa... e de suportar o
desespero de Etienne. Fala, diz-me o que tomaste. Chamarei o meu médico. Se for preciso fazes uma lavagem ao
estômago... Não pode ser uma coisa irremediável, não existem aqui produtos mortais... e não tenho seringa, nem
qualquer género de ampolas!
- Oh, Hélène, não tenhas medo... quis, mas não fiz nada, juro. Desejava apenas dormir, mas mesmo isso meteu-me
medo... uma vez basta!
- Uma vez?
Hélène recompunha-se, apertava-me contra si, acariciava-me os cabelos, murmurava:
- Ainda há brasas na chaminé, vamos acender a lareira e ficamos a conversar. Podemos dormir mais tarde, amanhã
de manhã. Queres que diga a Etienne para vir cá?
- Não. Isso não. Não quero que ele se inquiete...
Não te chamou. Vi o espanto dela quando o teu carro parou em frente da casa. Tu adivinhaste. Tinhas visto a
emissão.

Então vivemos esses três dias, ou melhor, dois dias e meio, como a vida devia ser sempre! Mas agora que partiste a
angústia volta à superfície e eu tenho de voltar à minha tarefa. Não me sentirei tranquila antes de me desembaraçar
dessas recordações. E sobretudo, como já te disse, acho que te devo isso.
Hélène e eu instalámo-nos na sala de estar, diante da chaminé onde a lenha crepitava. Como eram duas horas da
manhã e tínhamos jantado por volta das sete e meia, na véspera, ela preparou uma refeição leve acompanhada por
um grande bule com uma dessas infusões de que guarda segredo, com sabor a limão e adoçada com mel.
- Já alguma vez tiveste desejo de te suicidar? Não receies que eu tenha intenção de te pregar moral, ou de afirmar
que com a tua idade não há motivo para não se ser feliz e querer acabar com a vida. Isso é falso! Quanto mais novos
somos mais ilusões temos e suportamos pior perdê-las e descobrir as hipocrisias e as fealdades da existência. Isto
não é romantismo, é saber, simplesmente, que de repente nos sentimos horrorizados. A mim sucedeu-me muitas
vezes estar desgostosa com a vida aos quinze anos, e no entanto não vivi um drama familiar como o teu. - Hélène
repetiu daí a pouco, após um silêncio: - Já alguma vez tiveste o desejo de te suicidar?
- Já o fiz, já o tentei, e não me refiro ao facto de me injectar constantemente, o que equivalia a um suicídio lento,
inexorável. Não, estava lúcida, quando...
Em vez de acabar a frase mostrei-lhe os pulsos. Hélène não reparara ainda nas duas pequenas cicatrizes brancas. É
verdade que eu as escondo, uma sob a pulseira do relógio, a outra debaixo de uma larga pulseira de marfim que me
foi oferecida por um casal de amigos que veio de África.
- Conta.
Não sei muito bem por onde começar. Já não me recordo em que dia isso sucedeu, nem sei exactamente por que
razão, certa noite, me decidi. Talvez por todos os outros terem saído, convidados para uma festa onde eu não quis
acompanhá-los, algures no décimo terceiro bairro... Sim, era no bairro chinês, mas não iam a casa de asiáticos; de
resto, estes desconfiavam de pessoas como nós, receavam os nossos disparates, os nossos escândalos. São
pessoas que muitas vezes escaparam a perigos terríveis e mostram-se extremamente prudentes. E se ali residem
alguns grandes traficantes de droga, nós não sabemos quem são, e os pequenos dealers ignoram até a existência
deles. Tanto quanto me lembro, foi ao ouvir Largillier cantar que comecei a soluçar e a repetir, como uma cantilena:
"Não posso mais... não posso mais..." O que já há muito tempo me era intolerável era o trabalho para o qual me
orientara o terrível Alex. De resto, tinha um encontro com ele no dia seguinte e tencionava anunciar-lhe que não
devia contar mais comigo para vender droga àqueles jovens, ainda mais novos do que eu, que se não tivesse
dinheiro preferia...
Hélène ergueu os olhos para mim e fitámo-nos durante muito tempo. Foi ela que suspirou:

- Não, também não suportarias a ideia de te prostituir. Minha pobre filha, meus pobres filhos, como podem chegar a
isso? Têm então, todos, um desgosto tão grande dentro de vocês? É certo que a moda, o arrastamento... mas é
sobretudo o aborrecimento de viver neste universo onde só se fala de guerra, de tortura, de ódio, de dinheiro... onde
mesmo aqueles que invocam Deus, sob um nome ou outro, são fanáticos impiedosos, quando não são hipócritas!
Então a voz dos outros, a que fala de beleza, de indulgência, de compreensão, com sinceridade, como poderá ser
ouvida? E percebo bem que com o desemprego, as dificuldades económicas, o futuro não seja muito encorajador
para os jovens e lhes pareça terrivelmente fechado. Como é que não se hão-de sentir atraídos por qualquer coisa
que lhes permita esquecer? Creio que um médico desse hospital de que me falaste no outro dia escreveu um livro.
- Sim, Marmottan. O Dr. Olivenstein.
- É isso. Um belo título, perturbador: Não Há Drogados Felizes... Teria também podido escrever, sem dúvida: "As
pessoas felizes não se drogam", não achas? Terias tu começado a drogar-te se não tivesses descoberto que a tua
mãe... poder-se-á dar-lhe esse nome?
De que serviria contar a Hélène o meu telefonema para Neuilly? Não fora no entanto alheio à minha decisão. Voltei à
minha narrativa. Não disse imediatamente a Hélène que não lamentava essa tentativa. Foi mais ou menos graças a
ela que te encontrei. Mas esse é o nosso segredo, não é?
- Estava portanto a chorar enquanto ouvia um disco e senti um desejo lancinante de me injectar uma última vez.
Desse modo, estaria num estado de euforia no momento em que.. não escolhera ainda o modo de me suicidar. Não
sei porquê, a ideia de morrer de overdose repugnava-me. Podia-se sofrer terrivelmente antes de morrer, e eu não
queria sofrer. Queria adormecer, não ter de pensar, de mentir, de correr perdidamente atrás do pó branco, de uma
pílula, da erva. Correr atrás do dinheiro, dos traficantes, correr para fugir à vigilância de Alex e de Ferran. Apenas os
Michelet, essa boa gente a casa de quem eu continuava a ir almoçar todos os domingos e que me viam cada vez
com pior aspecto, me tranquilizavam um pouco. Um dos rapazes do loft, Vincent, barbeava-se com uma antiga
navalha de barba do avô. Era disso mesmo que eu precisava, uma bela lâmina como me diziam que os africanos
utilizavam nas suas lutas. Bastaria carregar um pouco, com um gesto rápido, da esquerda para a direita, num pulso,
da direita para a esquerda, no outro!
- E tu fizeste-o?

- Primeiro injectei-me, esperei cerca de meia hora, continuei a ouvir o rádio, um posto inglês que toca música jazz.
Pensei se deveria escrever algumas cartas, mas não sentia desejos de dizer fosse o que fosse a ninguém. De resto,
toda a gente ficaria contente por se ver livre de mim. Foi fácil, nem sequer me apercebi, de início, que sangrava,
depois achei que era belo o sangue sobre a minha pele, sentia-me vogar como no convés de um veleiro, no Verão,
ao sol. Em seguida ficou tudo azul diante dos meus olhos, luminoso e depois... nada... Acordei num quarto onde
havia apenas uma luz débil, com alguém sentado ao lado da minha cama. Tinha uma agulha espetada junto do
cotovelo e os pulsos estavam ligados. Abriu-se uma porta e uma voz disse: "Não se incomode, minha senhora."
Tentei abrir os olhos, mas não consegui. No entanto, ouvia todos os ruídos, percebia o que diziam. O homem
continuava: "É normal que ela não tenha ainda acordado, esteve na reanimação muito tempo e talvez tenhamos de a
levar outra vez para lá, pois perdeu muito sangue. É preciso levar igualmente em conta o estado em que se
encontrava e ainda se encontra. Somos obrigados a proceder com cuidado, a diminuir gradualmente as doses da
droga. Precisará também de ser observada por um psicólogo. Estes garotos não se drogam sem razão... nem
impunemente..."
Ele tinha dito "minha senhora", mas quem poderia preocupar-se comigo? Se tivessem prevenido o meu pai, ele teria
certamente vindo... a não ser que tivesse enviado uma das irmãs dele. Eu que o julgava mais ou menos zangado
com elas. Ou então seria a senhora Michelet, a mulher do correspondente do meu pai? Sim, com certeza era ela.
Tratava-se de uma mulher delicada que devia ficar muito perturbada com o que eu fizera. O médico, pois não podia
deixar de ser um médico, prosseguiu: "Só a teremos aqui o tempo que for necessário. Poderá levá-la dentro em
pouco para casa. Vive na província, creio?"
Mais uma vez eu queria abrir os olhos, mostrar que estava consciente, que ouvia a enfermeira à minha volta,
arranjando a roupa da cama, verificando se a agulha estava bem metida na veia, apalpando-me a testa com a sua
mão fresca e seca. Pareceu-me, num momento de silêncio, que alguém chorava, que abria o fecho de uma carteira,
sem dúvida para tirar um lenço. "Ainda não se tinham apercebido, a senhora e o seu marido, que esta criança
se drogava? Diz-me que ela tem apenas quinze anos, que ainda não os fez... é verdadeiramente aterrorizador.
Tenho no meu serviço garotos de treze anos e menos. Outro dia trouxeram um miúdo que se tinha atirado de um
oitavo andar. Estava a morrer e..."
Adivinhei um gesto da enfermeira para o médico. Teria ela percebido que eu estava a acordar da anestesia, mas
ainda incapaz de mostrar, mesmo por um bater de pálpebras, que estava consciente? O silêncio foi imediato. Então
os soluços da mulher que ainda não tinha dito nada tomaram um volume extraordinário. Finalmente, ouvi-a
murmurar, mas com uma tal violência contida que era como um grito: "Que fazer, doutor? Seremos nós
verdadeiramente os responsáveis? Serei eu responsável por um tal horror? Houve um grande mal-entendido.
Encolerizei-me de uma forma absurda e disse... o que nunca deveria ter sido dito daquela maneira. Depois disso
tudo se precipitou... e agora... o que havemos de fazer? Não é possível que nada se possa fazer... eu sei... está
salva... de certa maneira, mas a droga, doutor... como curá-la desse vício?"
Deixei de sentir vontade de abrir os olhos. Aquela voz era a de Brigitte.

Capítulo 15

Brigitte... Ter escrito o nome dela mergulhou-me num desespero sem limites, apesar das tuas afirmações, das dela e
das de Hélène, a quem eu confessei, ou melhor, contei, a cena em que enfrentei Brigitte.
Recordo-me do texto de um autor grego que tive de analisar recentemente numa aula de Francês: "Os deuses
cegam aqueles a quem querem perder." Que demónios se meteram nesta triste história de mal-entendidos
acumulados?
Ao ouvir a voz da minha madrasta, desejei, com todas as minhas forças, voltar a mergulhar num sono profundo. Ele
proteger-me-ia desse encontro, das perguntas que me iriam ser feitas. Mas no mesmo instante, contra vontade, abri
os olhos.
O médico foi o primeiro a debruçar-se sobre mim:
- Muito bem, recuperou a consciência, minha filha. E volta de muito longe, mas agora o pesadelo terminou, e precisa
apenas de recuperar as forças... perdeu muito sangue. Terá de comer grandes bifes. Quanto ao resto, mais tarde
trataremos disso.
- Júlia! Que susto nos pregaste!
Brigitte afastava o médico e inclinava-se para me beijar. Eu respirava o perfume dela. Voltei bruscamente a cabeça
para o outro lado. Os lábios dela apenas puderam aflorar os meus cabelos. Mas nem a enfermeira nem o médico
notaram que eu me esquivara.
- Deixo-vos. Devem ter muitas coisas a contar uma à outra. Se precisarem de Nadine, toquem. Eu volto mais logo.
Brigitte exclamou:
- Oh, minha querida, minha pequena Júlia. Porquê... Nunca devíamos ter-te deixado partir, não compreendo,
interpretaste tudo tão mal! Mas acabou-se! Logo que possas sair do hospital voltarás para casa, não é verdade? Meu
Deus, estou a
fatigar-te, tu ainda não tens forças para falar. Olha, trouxe-te rosas brancas, as de que tu mais gostas, por serem tão
raras. E frutas cristalizadas. Ainda gostas delas, não gostas? Depois, quando estiveres boa, iremos comprar todos os
vestidos e calças de que gostares. Está bem?
Fazer-se perdoar com presentes! Era isso que ela queria? Durante alguns instantes revi a abominável cena, mas a
verdade é que já nem me lembrava desse famoso Frédéric pelo qual eu me julgara vagamente apaixonada e que era
o amante de Brigitte. Não me recordava sequer da cor dos seus olhos.
- Um mal-entendido! Ouviste o que eu disse, Júlia? Mas não falemos mais disso. A única coisa que conta é curares-
te, não voltares a fazer um disparate tão grande. Não podes saber como me assustei! Prometes que não te drogas
mais?
- E o papá?
Ela apertou-me contra si e tocou desajeitadamente nos meus pulsos feridos. Gemi:
- Estás a magoar-me. Não me respondeste. O papá também está à minha espera?
Ela baixou a cabeça, fungou... assoou-se, limpou os olhos. Fui eu que respondi:
- Não!

Não, o meu pai não me esperava. Não queria esperar-me. Não me perdoara ter estragado a sua felicidade. De
qualquer modo, as minhas acusações, a minha fuga.... e agora a minha vida de drogada, a minha tentativa de
suicídio, por fim, estragavam-lhe a existência calma que ele desejava após o desgosto e a perturbação provocados
pelo abandono da minha mãe. Mas eu precisava de responder também à pergunta bem definida de Brigitte:
- Não, não recomeçarei. Vou tentar não me drogar mais.
- Cala-te, suplico-te. Vamos acarinhar-te. Dentro em breve nem sequer te recordarás deste pesadelo.
- Não. Não quero voltar. Tenho de ficar em Paris para terminar o meu ano escolar. Já perdi tempo suficiente. E
depois não sou capaz de viver com vocês todos...
- Júlia!
- Júlia está farta, Brigitte, farta das vossas mentiras, das vossas hipocrisias e definitivamente do vosso modo de
viver.
- Preferes destruir-te?
Pela terceira vez gritei:
- Não! - Depois, um pouco mais calma, acrescentei: - Também estou farta dos drogados e de toda a fauna que anda
em torno deles, farta do mundo, das vossas guerras, das revoluções deles e de todas essas crianças que continuam
a fazer... para quê a vida? Para o cataclismo nuclear?
- Não te enerves, peço-te. Vou deixar-te, precisas de descansar, mas repito-te que, se pudermos, o teu pai e eu
faremos qualquer coisa para que tu recuperes a confiança na vida!
- E, se for necessário, mandam-me para a prisão?
Brigitte estava já de pé. Fez-se um grande silêncio. Ela parecia petrificada.
- Para a prisão? Que estás a dizer? Que disparates fizeste tu? É melhor confiares-te a mim, eu talvez te compreenda
melhor que o teu pai, sou mais indulgente, poderia arranjar as coisas.
- Tranquiliza-te, que de momento não creio que me arrisque a ser presa, embora tenha feito coisas repugnantes que
são, seguramente, contra a lei. Mas nunca fui presa e espero não estar na lista negra.
Ela escondeu o rosto entre as mãos, murmurando:
- É horrível. Tu não compreendes que o que a droga vos faz é horrível?
Sentia-me fatigada, queria que ela se fosse embora, me deixasse reflectir sozinha no que queria fazer. Fechei de
novo os olhos e murmurei:
- Deixa-me. Ouviste o que disse o médico? A única maneira de nos curar, excluindo a prisão...
- Depois zombei: - O que é que quer esse tipo? Na prisão, as pessoas continuam a drogar-se, a injectar-se, o tráfico
continua, não sei como, mas continua. Contaram-me... amigos que estiveram lá uns meses. Saíram de lá mais
desgostosos com a vida do que nunca.
Brigitte estava aterrorizada:
- Meu Deus, mas como é que chegaste a dar-te com crápulas desses? Eu tinha-te educado tão bem. Eras uma
rapariguinha verdadeiramente adorável!
Não eram palavras que ela devesse dizer. Mais uma vez protestei:
- Não!

Já não sabia bem a que dizia "não", mas essa recusa dirigia-se em bloco a tudo o que Brigitte tivesse podido propor-
me. Depois, voltando-me, acrescentei:
- Arranja-me, o mais depressa possível, um quarto. Quero viver sozinha. Irei regularmente a casa dos Michelet. São
boas pessoas. Não me darei com mais ninguém, prometo-te. Mas é preciso que me ajudem. - Mais tarde, então...
Ouvi-a suspirar profundamente, murmurar por fim:
- Tentarei convencer o teu pai... sabes como são os homens, e tu desiludiste-o tanto! Os teus irmãozinhos ficariam
tão satisfeitos por te voltar a ver... nós dissemos-lhes que tu vivias em Paris por causa dos estudos, e eles estão
sempre a pedir para os trazermos à capital.
Brigitte tentou enternecer-me. Fingi adormecer. Ouvi-a afastar-se em bicos dos pés. Quando tive a certeza de que
ela se fora embora e não voltaria, abri os olhos.
Sobre a mesa-de-cabeceira, ao lado da jarra com rosas, encontrava-se um bilhetinho: "Terás o teu quarto, mas
deves aceitar que eu venha visitar-te, pois caso contrário Jacques recusará e levar-te-á para casa à força: não
esqueças a tua idade. A lei está connosco."
Aquelas últimas palavras estavam a mais. Detestei-a novamente. Afinal fora ela que destruíra a paz do meu
universo. Desejava permanecer o mais tempo possível no hospital, o tempo suficiente para me desintoxicar, e
também o tempo bastante para os meus antigos companheiros e o senhor Alex me esquecerem.
Sabes, Etienne, eu era ainda muito ingénua. Dois dias depois começaram a aparecer visitas. Algumas ditadas pela
amizade, mas nem todas. Alain Ferran foi o primeiro, precedido por um soberbo ramo de flores. Mas se estava
inquieto era mais por ele próprio do que por mim. Receava que eu contasse coisas a respeito dele. Ameaçou-me de
uma maneira encoberta.
- Aparentemente, as coisas não se passaram muito mal com a tua madrasta...
Não gostei que ele me tratasse por tu. Respondi secamente:
- Aparentemente. O essencial, agora, é arranjarem-me um quarto não muito mau e que aumentem um pouco a
minha pensão. Não me faça perguntas. Não falei nem de si nem do senhor Alex.
- Ah, já me esquecia de uma notícia que te vai agradar: Alex saiu de França... para ir passar umas prolongadas
férias... nos Estados Unidos. Que o Diabo o conserve por lá!
O meu alívio foi tão notório que ele sorriu, descontraiu-se e confessou:
- Eu também não estou descontente com isso! - Subitamente confiante, acrescentou: - Também eu, num
determinado momento da minha vida, me desorientei! Não, com a droga não. Fumei uma passa de erva, como toda
a gente, mas a cocaína metia-me medo. Um dos meus amigos teve de fazer uma operação ao nariz para lhe porem
uma membrana plástica por causa disso. Mas bebo... tenho problemas... adivinhaste, rapazinhos... muito pequenos...
por vezes rapariguinhas também, brincadeiras com uns e outras... nada receies, tu és já demasiado crescida. É a
razão do meu divórcio.
Sentia-me tomada de uma repugnância sem limites. Decididamente, a natureza humana nada tinha de belo. Ao
mesmo tempo, tinha pena dele. E ele, pelo menos a meus olhos, era já um velho. Portanto incurável. Prometi.

- Considero-o um bom advogado. O resto não me diz respeito. Claro que nada direi, mas arranje maneira de eu ter
um tecto decente ao sair daqui e dinheiro bastante para poder levar uma vida conveniente, com amigos, digamos...
mais burgueses.
Ele prometeu, cumpriu a sua promessa, e quando saí do Hôtel-Dieu, com a única obrigação de me dirigir
regularmente a um centro de desintoxicação, toda a gente, inclusive eu própria, podia pensar que estava
completamente curada, assim como das minhas veleidades suicidas.
Era contar sem a solidão, a angústia nascente dessa solidão, contar sem a minha fraqueza e sem o liceu...
Não voltei para o loft das proximidades de Beaubourg. Aos amigos do grupo, que foram visitar-me ao hospital, disse
que a minha família me obrigara a regressar a Tours. Fraca mentira, depressa descoberta. Mesmo na minha turma,
havia duas raparigas que se drogavam e se davam com o grupo. Dos trinta alunos da turma, mais de um terço
injectava-se com o que lhes ia parar às mãos. Rapazes e raparigas roubavam ou prostituíam-se para poderem obter
a mercadoria, tornavam-se por sua vez traficantes e, como todos os drogados... faziam adeptos!
Mesmo sem te ter encontrado, parece-me que teria resistido: começava a compreender o declive pelo qual
escorregava. Tinha agora pressa de terminar o mais rapidamente possível os meus estudos para me tornar
independente. Mas, apesar disso, não sabia ainda que profissão me agradaria.
Como muitas raparigas, sonhava vir a ser jornalista, viajar, contar histórias! Gostava muito do pequeno estúdio que
Brigitte me alugara, perto do Jardim das Plantas. Em breve, as cerejeiras do Japão estariam cobertas de flores. Iria
estudar à sombra delas.
Mas Brigitte telefonava-me um pouco frequentemente de mais. Comecei a ter a impressão de que ela me vigiava e
passei a mostrar-me mais distante. O meu pai não me falara uma só vez para saber como eu estava. Brigitte devia
aproveitar a ausência dele para me telefonar. Deduzi daí que ela se sentia verdadeiramente culpada e que tentava
fazer-se perdoar. Nessa altura quase não saía, mas à noite recebia alguns amigos que vinham ouvir música. Alain
Ferran oferecera-me um gira-discos!
Claro que esses amigos fumavam um pouco e namoravam, mas eu mantinha-me ajuizada sob todos os aspectos.
Quando me sentia tentada, olhava para as cicatrizes, ainda vermelhas, dos meus pulsos. Sem dúvida teria
conseguido, sobretudo se tivesse tido boas notas nos exames.
Infelizmente, uma noite, um camarada, Jean-Pierre Vallon, chegou perturbado, com o Le Monde nas mãos.
- Conheceste, em Tours, um rapaz chamado Jean-Marie? - perguntou.
- O que é que lhe sucedeu?
O passado veio subitamente à superfície: a minha fuga na moto de Jean-Marie, a chegada ao loft dos amigos dele...
as nossas poucas semanas de amor... Patrícia... a vivenda de Deauville.
- Estou a falar contigo!
Ele estendeu-me o jornal. Bastou-me ler o título: Morto com overdose, aos vinte anos, em condições ainda
misteriosas.

Tive de me apoiar à parede para não me desmoronar. Não era a primeira morte de que tinha conhecimento, mas
Jean-Marie era diferente! Eu nem queria crer, devia haver engano na pessoa. Comecei a ler o artigo. Tudo era ainda
mais perturbador do que eu julgara.
Jean-Marie fora encontrado, na véspera, na sumptuosa vila dos A., entre Deauville e Trouville, porque o empregado
encarregado de medir os contadores da electricidade ficara admirado da ausência dos guardas e até do cão. Dera a
volta à casa, pelo exterior, e fora alertado pelo cheiro nauseabundo que provinha de uma das janelas. Sabia que era
o cheiro de um cadáver em decomposição. Tomado de pânico, alertara a polícia, que pudera apenas constatar a
morte de Jean-Marie. Uma morte ocorrida seis dias antes! No começo do fim-de-semana anterior... quando a casa se
encontrava cheia de convidados...
O repórter falava do possível escândalo que poderia atingir celebridades do mundo do espectáculo e do jornalismo,
mas não insistia. O seu chefe de redacção devia ter-lhe aconselhado prudência. De resto, os A., após um
interrogatório rotineiro, tinham sido autorizados a sair de França para uma viagem que diziam estar prevista há muito
tempo. Dizia o jornal que Patrícia de A., perturbada com a morte do seu jovem amigo, partira também para ir
repousar algures.
- Não poderão evitá-lo - murmurei. - O escândalo rebentará.
- O escândalo?
Sentia os nervos em franja. Pedi um charro ao meu companheiro. Quando fumei o terceiro, comecei a falar de Jean-
Marie e dos A. Como terá terminado essa noite? Já não sei. No fim, sentia-me planar. Era, uma vez mais, uma
garota perdida, que desejava apenas esquecer.

Capítulo 16

O médico diagnosticara bem, pois só evocara a prisão por humor. Humor negro, claro! Só um grande amor por um
drogado, da parte de um rapaz ou de uma rapariga que não se droguem, pode com efeito curar um drogado do seu
vício. Mas apenas o amor de um ser que não se entregue a nenhum género de estupefacientes e que também não
dependa do alcool.
O camarada nos braços do qual eu chorei nessa noite não estava mais apaixonado por mim do que eu por ele...
também não era muito forte, era da mesma idade que eu... e também ele estava em vias de estragar a sua vida,
passando da utilização de drogas fracas para as duras. Os pais dele encontravam-se separados, e ambos lhe davam
bastante dinheiro... para se fazerem amar. Voltamos sempre aos nossos pais e aos problemas deles a
acrescentarem-se aos nossos.
A mim ainda me faltavam, infelizmente, cinco longos meses para te encontrar: o tempo bastante para descer uma
encosta que acabara de subir, unicamente por ter estado às portas da morte!
Nem sequer foi preciso esse tempo para eu me tornar, de novo, um farrapo humano. Oito dias depois de ter sabido
da morte de Jean-Marie, injectava-me outra vez com heroína: não encontrara outro meio para atenuar o meu
desgosto, o horror dessa morte e a minha solidão.
Ao princípio, uma só dose por dia bastava-me, e era Pierre-Jean que ma oferecia. Sei que é escandaloso, mas, na
altura, esse rapaz que acabava de fazer quinze anos, enquanto eu os faria daí a dois meses, gastava por dia cerca
de três mil francos! Sim, leste bem! De resto, conheces o preço da heroína e da cocaína. Não me pedia para dormir
com ele por causa disso. Creio que ainda era virgem e não sabia para que sexo o impeliriam as suas tendências. Na
verdade, falava apenas da mãe, que dizia ser a mais bela, a mais inteligente, a mais dotada, a mais amada por todos
os homens que se aproximavam dela. Era escultora e separara-se do marido devido aos seus ciúmes doentios.
- Ele sofre muito - dizia Pierre-Jean. - Também ele a ama, e eu tenho pena dele, porque é bom, mas não é um
artista. Só é capaz de ganhar dinheiro... e de o desbaratar. Tornou-se alcoólico e começou a jogar. Um dia
acabaremos por ficar todos arruinados...

Entretanto, com o dinheiro que Pierre-Jean gastava, para acabar por se matar, poderiam viver três ou quatro famílias
ou mesmo mais. Começara a fumar aos doze anos! De resto, tinha uma figura de velhinho, macilento, com um corpo
raquítico, descarnado. No ano anterior fora operado a um abcesso maligno, na garganta.
- Não tenho desejo de chegar a velho - afirmava ele. - A vida é por demais repugnante.
Não ousava concordar com aquela apreciação, mas não estava longe de pensar como ele. E não éramos os únicos!

Agora, meu querido, sei que uma vida aparentemente banal pode reservar felicidades incalculáveis: basta-me ver
Hélène, observar o intenso prazer que ela tira, apesar da idade que tem, de cada gesto, de cada momento da sua
existência, embora solitária. Mas, nessa época, eu apenas descobria as mentiras dos adultos, as suas hipocrisias, os
seus compromissos, e parecia-me que só o dinheiro os interessava. E gastar sem conta, apenas para nos
envenenarmos, parecia-me uma justa revolta.
Quando uma pessoa fica totalmente viciada pela heroína, os outros estupefacientes deixam de ter interesse para
ela... deixa-os para os principiantes! Depois de uma dose diária passei para duas, para me sentir bem, e passado
algum tempo tive de as aumentar mais um pouco.
As horas em que sentíamos a falta da droga eram cada vez mais torturantes, e Pierre-Jean, os amigos dele e eu
tínhamos apenas um objectivo: fazer fosse o que fosse para evitar esses sofrimentos demoníacos que nos levavam a
rebolar pelo chão como animais a uivar de dor, suplicando que tivessem piedade dos nossos corpos que se
dilaceravam por dentro, tremendo com um frio mortal.
Ah, Etienne, tu nunca foste mais do que testemunha desses gritos, dessas súplicas, e isso bastou para te perturbar,
como me disseste, durante dias e dias. Mas se tivesses conhecido esse martírio na tua própria carne, se tivesses
compreendido que, com a falta de droga, um drogado é capaz de vender o pai e a mãe e de agir da maneira mais
degradante, desde roubar a matar, se for preciso, para obter a injecção que irá apaziguá-lo durante algumas horas...
Não julgues que nos momentos de lucidez não temos vergonha, e que não sabemos que corremos para a
autodestruição, tão certamente como se nos lançássemos para o meio do mais mortífero dos combates... Mas não é
o nosso espírito, a nossa inteligência, a nossa vontade que nos guiam: é o nosso corpo! Um corpo incapaz de
suportar o martírio que sofre.
Não suponhas também que jovens como Pierre-Jean, eu e outros ignoramos que drogar-nos na adolescência é uma
condenação à morte prematura. Mas, num certo sentido, nenhum de nós deseja viver até à velhice: não queremos vir
a ser como aqueles que condenamos, não me cansarei de o repetir.
Mas vejo que me afastei da narrativa que te queria fazer antes de vires passar as férias da Páscoa! A Ressurreição!
Se pudesse ser também a ressurreição da rapariguinha que eu era antes da terrível descoberta. A esse propósito
vou abrir outro parênteses. Não há dúvida de que fujo de certas recordações, repetindo a mim mesma que é
supérfluo voltar a falar de acontecimentos que já te contei, visto que, após esse último drama, tu foste o primeiro
rosto amigável que se debruçou sobre mim.
Porque é que quase ralhaste comigo no outro dia! Eu estava aninhada, nos teus braços. Tínhamos feito uma longa
caminhada, e acabávamos de chegar perto, da praia, em semicírculo, da baía de Ecalgrain. O sol atravessava, por
fim, as nuvens muito brancas, semelhantes a montanhas nevadas, que vinham de leste. O mar estava mais liso que
um lago. Era soberbo e irradiava, de tanta imensidade, uma sensação de serenidade absoluta. A água tinha reflexos
de tom azul-turquesa e cinzento-avermelhado. Duas gaivotas planavam silenciosamente diante de nós. Estávamos
sentados sobre a erva macia, salpicada de flores brancas e de giesta. Apertando-me contra ti, murmuraste:

- Nunca te ocorreu que possas, ter-te enganado? Tu és demasiado impulsiva, minha querida. Mas agora já não és
uma criança. Dentro de menos de dois meses terás dezasseis anos. Pensava esperar por ti até ao teu aniversário do
próximo ano. Mas é absurdo... e não me sinto capaz disso! Se quiseres, casamo-nos em Outubro. Serás uma
mulher... és uma mulher. Não poderás, como eu fiz em relação a ti, esquecer as fraquezas dos outros? Perdoar-lhes
o mal que involuntariamente te fizeram? Não és capaz de compreender que também eles sofreram muito?
Como tenho ainda dificuldade em entender esse género de linguagem! Repliquei, um pouco asperamente:
- Sofrer... por enganar o marido? Sofrer por repelir a sua própria filha... e já não falo na minha mãe. Não se é mãe
simplesmente por aceitar dentro de si a semente de um homem que já não se ama. Mas o meu pai?
Olhaste-me com uma severidade inusitada. E também com inquietação. Tive a impressão de que me julgavas, de
que me condenavas. Fui imediatamente presa dos meus demónios, afastei-me de ti.
- Será que também te pareces com eles? - perguntei.
Ficaste com uma expressão tão infeliz que me voltei. A paz ambiente só fazia com que a minha angústia
aumentasse. Eu, que desde a minha chegada a casa da tua avó escrevi apenas para te demonstrar e demonstrar a
mim própria que era indigna do teu amor, assustava-me com a ideia de estares desiludido, de me amares menos!
Como somos ilógicos, meu amor. No entanto, tu repetias:
- E se te tivesses enganado? Se tivesses inventado um romance... que não existiu?
- Que queres dizer?
- Se Brigitte ama verdadeiramente o teu pai, se se dedicou, de corpo e alma ao bebé que tu eras e te considerou
como sua própria filha, tão querida como os que nasceram da sua própria carne? Se ela nunca tiver deixado de os
amar a todos ternamente?
Creio possuir uma natureza terrivelmente ciumenta. Durante alguns segundos fiquei escandalizada. Então, ela tinha-
te seduzido também a ti, porque era ainda bonita, atraente, sensual. Estava louca de cólera.
- Ela iludiu-te, como a toda a gente?
- Oh, minha querida, minha avezinha ferida que levanta as suas penas contra inimigos imaginários, que estás tu a
inventar agora?
Encostaste-me a ti e começaste a acariciar-me os cabelos como se faz a um animal que se quer acalmar. Mas
continuavas a ralhar-me.

- Não deves duvidar assim de toda a gente. Sobretudo de mim, mas dos outros também não. Acrescentarei que
mesmo que Brigitte tivesse amado outro que não o teu pai... terias tu o direito de a julgar... ela faltou aos seus
deveres para contigo? O que se lhe pode censurar é ter-te dito brutalmente o que a tua verdadeira mãe fizera. E o
teu pai? É certo que se encerrou numa atitude condenável como pai... mas compreensível da parte de um homem da
idade dele, com princípios rigorosos, de um homem a quem a vida já ferira profundamente no aspecto sentimental,
de um homem, enfim, que não admitia que a sua própria filha fosse destruir o seu lar, até então feliz. - Após um
longo silêncio que não tive coragem de interromper, tu concluíste: - Isso não me diz respeito... mas tenho a
convicção de que a tua madrasta não tem nada a censurar a si própria, e que aquilo que tomaste por um gesto de
ciúme da parte de uma amante... foi apenas o sobressalto de uma mulher que conhecia bem o tipo de homem pelo
qual uma garota como tu se sentia perigosamente atraída. Receava as consequências dessa atracção, receava esse
Don Juan provinciano que devia apreciar os frutos verdes.
- Foi o que ela te disse?
Tinha-me levantado e voltava-te as costas, olhando o mar que se estendia na nossa frente. Tu obrigaste-me a voltar-
me e a enfrentar o teu olhar grave e triste.
- Amo-te, Júlia, amo-te de alma e coração, mas se também não tens confiança em mim...
Sem acabares a frase, voltaste-te e começaste a caminhar com grandes passadas. Eu ansiava que esperasses por
mim, que me chamasses.
Mas continuaste a andar. O vento batia-me nos cabelos. Para te apanhar, fui obrigada a correr.
Nessa mesma noite, voltaste para Paris. No momento de pores o carro em andamento, inclinaste-te uma vez mais
para fora para me sorrires. O teu olhar era novamente meigo, terno, cheio de amor. Mas murmuraste:
- Reflecte, querida. Calmamente... como uma rapariga crescida... talvez te tenhas enganado. Não sentes desejo de
deixar de sofrer? Pensa bem! Tanta coisa talvez por nada...
A falar verdade, ainda não deixei de pensar nisso desde a tua partida. Revivi cem vezes essa famosa cena que
esteve na origem das minhas infelicidades. Não me sinto ainda capaz de te responder: "Tens razão. Enganei-me!"
Para ser completamente sincera, não admito que também o meu pai me tenha repelido. Se ele tivesse ido ao hospital
depois do meu suicídio falhado... nessa altura cedeu apenas às minhas exigências materiais, ordenou aos
correspondentes que me vigiassem, deu instruções a Alain Ferran, permitiu a Brigitte telefonar-me, preocupar-se
comigo.
Mas a verdade é que não se incomodou, não me escreveu nem me telefonou. Pode compreender-se isso da parte de
um pai? Eu esperava que ele o fizesse!

Capítulo 17

Acompanhei Hélène à igreja de Saint-Germain des Vaux para a missa de Ramos. Os nossos ramos de buxo foram
benzidos. Depois, Hélène apresentou-me aos seus amigos e conhecidos, explicando: "A minha futura nova neta." Eu
teria querido protestar. Não ousei fazê-lo. Aquela boa gente felicitava-me e felicitava Hélène, dizendo: "É muito
bonita. É noiva de Etienne ou de outro dos seus netos?" Depois, dirigiam-se a mim, perguntando-me se já terminara
os meus estudos, insistindo no facto de eu ir ter o melhor marido do mundo, afirmando que virias a entrar um dia
para a Academia de Medicina. Adivinhei que o facto de seres psicanalista os interessava menos que seres interno
dos hospitais. Eu sentia-me corar a cada um dos seus cumprimentos. São respeitáveis, encantadores, mas com
umas ideias extremamente convencionais!
Durante o almoço que se seguiu a essa longa missa, não pude deixar de troçar um pouco do notário e da mulher e
do gordo lavrador com uma ranchada de filhos.
Se eles soubessem quem eu sou e o que me sucedeu, apesar da idade que tenho, confessa que ficariam
consternados, que lamentariam, Etienne, e que não augurariam nada de bom para um casal como nós!
Hélène riu, aquiescendo com um gesto. Em seguida, começou a contar-me que essas famílias tinham, como todas,
histórias que não eram tão respeitáveis como isso.
- É a vida, minha querida, e eu não gosto de mexericos. Tu drogaste-te. É a praga da nossa época. Mas em algumas
famílias houve alcoólicos... indivíduos que, digamos, não possuem uma concepção muito rigorosa da honestidade,
outros que nem sempre tiveram a conduta que seria de esperar de bons patriotas, outros ainda que não são filhos do
pai cujo nome usam; e tantas outras coisas que não caem sob a alçada da lei mas que nem por isso são estimáveis.
Vamos, não te faças pior do que és!
Quando, a tua avó me fala assim não posso deixar de pensar que me prostituí simplesmente para comprar um pouco
de droga, que concorri, felizmente não por muito tempo, para intoxicar crianças que, por minha culpa, talvez nunca
venham a ser adultos sãos ou nem cheguem mesmo a tornar-se adultos! Esse é, dos meus crimes, o que encaro
com maior dificuldade. Tu costumas ajudar-me, constatando: "Se não tivesses sido tu, outros o teriam feito!"
Mas quando, por sua vez, Hélène me falou de Brigitte, do papá e dos meus irmãos, não suportei mais e exclamei:
- Que conspiração estás tu a preparar com Etienne? Conheço-te! Imaginemos que Etienne tivesse atravessado o
inferno cujas etapas todas eu percorri. Os pais dele tê-lo-iam abandonado como fez o meu pai? E se isso tivesse
sucedido, embora eu saiba que seria impossível, porque o pai dele é teu filho, e porque a mãe dele... bem, a mãe
dele não é como a minha mãe, nem como Brigitte... tu dar-lhes-ias razão?

- Não é a mesma geração, minha querida. Nós obedecíamos a certos princípios. Seriam os melhores? Por vezes
sim. Mas obedecer às leis, simplesmente por recear o julgamento da sociedade, não é, por definição, mais honroso e
muitas vezes mais corajoso e menos honesto do que contrariar essas leis. Tu és muito categórica nas tuas
apreciações. Enfim, quem conhece... os caminhos da Providência? De um mal pode sair um bem. Não foi preciso
viveres esse calvário para teres encontrado Etienne? Ele é mais velho do que tu quinze anos, e deves calcular que
tenha encontrado antes de ti outras mulheres e raparigas. Esteve apaixonado como o estamos todos, rapazes e
raparigas, várias vezes, depois dos quinze anos de idade. O homem que ele é conheceu com certeza paixões, tanto
físicas como sentimentais, decepções, cansaços. E foi esse homem feito, cuja profissão o ajudou a conhecer ainda
melhor a alma humana, que me disse...
Querida Hélène, como ela hesitava em faltar à discrição contando-me as tuas confidências. Mas eu percebi bem que
ela achava necessário dar-me a conhecer a verdade, embora tivesse de te trair.
- Compreendes que és o grande amor de Etienne, o seu único e verdadeiro amor, aquele que permite compreender
tudo, perdoar tudo, aquele que também exige tudo, uma dávida incondicional, assim como ele se dá
incondicionalmente a ti. Foi isto o que ele me disse, aquilo que não confiaria a qualquer amigo, nem ao pai, nem à
mãe...
Eu esperava, com o coração a bater. Fomos instalar-nos ao sol, no jardim. Hélène tinha o seu eterno tricô entre as
mãos, eu tinha um livro que conservava fechado sobre os joelhos. Sentia-me tão perturbada que não me lembro do
título dele, mas apenas do gesto com que o abria e fechava, de tempos a tempos.
"- Eu não só a adoro, avó, como tenho por ela um respeito, uma admiração que nunca senti por nenhuma outra."
- Hélène, troças de mim! Respeito e admiração: ele por mim? O inverso, sim, está bem. Mas, Etienne, que sabe até
que ponto eu caí, não pode sentir admiração e muito menos respeito por mim! Piedade, ternura, amor... concedo...
mas respeito!
Eu ria, com mais vontade de chorar, pois sabia como me teria sentido orgulhosa por te inspirar esses sentimentos
impossíveis.
- És uma tolinha, minha querida, apesar do que julgas ter vivido. És tão totalmente ignorante da vida que te tornas
comovente. Se eu tivesse censuras a fazer aos teus pais, mas Deus me livre disso, pois aprendi como é difícil fazer o
melhor pelos filhos, acusá-los-ia de te terem mimado de mais, de te terem preservado! Não julgues que eu faço parte
daqueles espíritos tacanhos que dizem: "Ah, se tivessem tido a rédea mais curta, se lhes tivessem dado uns bons
sopapos, se não fossem tão benevolentes..." Não, eu penso, pelo contrário, que o dever dos pais é tentar, sem
cessar, compreender os filhos, admitir que as mentalidades e os costumes mudam, que isso sempre foi assim, que
também eles se revoltaram, pelo menos interiormente, contra as exigências, os modos de pensar e de agir dos seus
próprios pais, e depois explicar-lhes certos perigos, mas de forma "inteligente". Uma simples proibição ou discursos
moralizadores incitam sobretudo à revolta!
- Onde queres chegar, Hélène?

- A esta coisa muito simples: Etienne ama-te, e ama-te "com conhecimento de causa". Não tem ilusões, mas
estudou-te suficientemente, como psicólogo, médico e homem já muito vivido, para poder dizer o que me disse: "Sim,
estou apaixonado por ela, porque ela é encantadora, maravilhosa, tão jovem e frágil, mas amo-a não só com todo o
meu coração mas também de corpo e alma, por ela ser notavelmente pura..."
- Pura?!
Corei, empalideci, senti-me simultaneamente escaldante e gelada... exactamente como se me faltasse a droga
durante instantes, mas a essa sensação de sofrimento sucedeu uma vaga de inexplicável felicidade. No entanto,
repetia atordoada:
- Pura? Hélène, ele não pode ter utilizado essa palavra!
- Pura! E eu sou da opinião dele. O que é que são actos ditados pelo desespero, pelo arrastamento? Tu tens uma
alma estranhamente pura, mas infelizmente poucos se poderão aperceber disso. As pessoas julgam pelas
aparências. Ora tu desembaraçaste-te dessas aparências como de um disfarce que julgavas atraente e que era
apenas horrível.
- Etienne e tu são demasiado indulgentes, pois sei que não são cegos nem inconscientes, pelo contrário.
Simplesmente, são demasiado bons.
- Nós amamos-te.
- Sim, amam-me, mas não é como...
Admiras-te, Etienne, se te disser que não fui capaz de pronunciar as duas palavras seguintes? Mas não é como os
"meus pais". Comecei a soluçar. Soluços que não conseguia conter, que me sufocavam, que as palavras de ternura
e os beijos de Hélène não conseguiam acalmar.
Por fim, fui sacudida por soluços tão violentos que assustaram Hélène. Levantei-me bruscamente, corri para casa,
subi as escadas quatro a quatro até chegar ao meu quarto. Depois de fechar a porta à chave, atirei-me para cima da
cama, gemendo: "Porque não estou eu morta... apetece-me morrer... sim, morrer... adormecer... não pensar mais...
não recordar."
Ouvi Hélène entrar em casa. O sol desaparecera. Daí a momentos, a chuva caía com força, batendo no telhado e
nos vidros. De repente, adormeci. Tenho por vezes essa sorte, quando me sinto muito infeliz, de fugir assim para a
inconsciência. Mas tive um sonho estranho que te quero contar. Não faz parte da tua profissão analisar os nossos
sonhos?
Este foi agradável ao princípio, mas depressa se transformou num pesadelo. Não será isso um indício, aterrorizador,
de que eu não esteja verdadeiramente curada, de que no meu subconsciente continua a existir um perigoso desejo
de voltar a mergulhar no abismo pestilento de onde tu me tiraste à força de paciência, de cuidados que deste tanto
ao meu corpo como ao meu espírito, com uma presença atenta à minha menor veleidade de recaída? A maioria dos
drogados que se desintoxicam recomeçam de um dia para o outro, ambos o sabemos. As verdadeiras curas são
raras e só possíveis com a ajuda de um companheiro ou companheira muito fortes, inacessíveis à tentação dos
"paraísos artificiais". Se eu te perdesse, se me afastasse voluntariamente do teu caminho? Hélène não seria
suficientemente forte para vencer o meu desejo de aniquilamento. Parece que estou a querer censurar-te por não
estares junto de mim, quando eu própria estou farta de te repetir que não quero ser tua mulher, e ainda menos ser a
mãe dos filhos que tu desejas! Que falta de lógica.
Mas vou contar-te o sonho...

... Encontrava-me sentada numa cadeira no Jardim do Luxemburgo, com o meu pai a meu lado, dando-me a mão. É
preciso dizer que eu era uma menina de cinco anos. O tempo estava bonito, luminoso, e eu vestia um vestido
branco. Ouvia as pessoas que passavam dizerem: "Que linda menina, tão engraçada!" O meu pai ficava satisfeito e
dizia-me: "Podes ir brincar, mas não te sujes. A mamã ralhava comigo e eu ficava muito triste."
Os meus pés não tocavam no solo. Eu balouçava-os para trás e para diante com tal força que ia fazendo cair a
cadeira. Imediatamente o meu pai me olhou com grande severidade e me avisou: "Toma atenção! Vais cair, sujas o
vestido e magoas-te!" Eu continuava. Era como se estivesse num balouço. De resto, pouco a pouco, sentia a cadeira
erguer-se e depois baixar-se, depois levantar-se mais, sobretudo quando ia para trás. Olhei por cima do ombro e vi
uma das estátuas das rainhas de França fazer uma careta ameaçadora. Assustada, quis agarrar-me à mão do meu
pai... mas no lugar dele havia agora uma grande nuvem de um cinzento ferroso. Chamei-o, parei o movimento da
cadeira e encontrei-me à beira do lago onde havia um grande número de barcos à vela. O vento começara a soprar e
eles deslizavam rapidamente sobre as águas. Alguns começaram até a girar sobre si mesmos. Tão depressa que se
tornava angustiante e me causava vertigens. O tempo estava cada vez mais sombrio, apesar de ser em pleno dia,
como se se aproximasse um temporal.
Ouvi de novo a voz do meu pai, mas tão forte, tão dura, que me fez sobressaltar. No mesmo instante, dois barcos
chocaram, na minha frente, molhando-me. O meu pai gritou: "Vês o que fizeste? Agora estás toda molhada. E repara
como estás suja!" Parecia tão zangado que eu não ousei fitá-lo. Estava, com efeito, encharcada e sentia-me invadir
por um grande frio. Então comecei a chorar, a chorar, chamando-o, chamando a minha mamã, e nesse momento
soube, sem ter acordado, que sonhava, que não era essa menina, mas sim "eu", como sou agora. No entanto,
continuava a ter a mesma sensação de frio, tremendo, batendo os dentes, dizendo a esse pai invisível: "Peço-te,
aquece-me, abraça-me, fricciona-me, traz cobertores, botijas. Depressa, estou gelada, é insuportável. Oh, como
tenho frio, como tenho frio, como me sinto mal..."
De súbito, Etienne, tive a consciência de que essa menina que gemia pela minha boca e começava a rebolar-se na
lama em volta do lago, onde os barcos faziam uma roda cada vez mais assustadora, como um carrossel de feira
enlouquecido, era eu. Apitos agudos, terríveis, acompanhavam essa roda. Eu gritava, torcendo-me com dores e com
medo, gritava por socorro. Vi aproximar-se uma pesada silhueta de homem que se inclinou sobre mim, me agarrou
por um braço, quase ao ponto, de me deslocar um ombro. Então supliquei: "Não me mates, papá, não voltarei a fazê-
lo, eu própria lavarei o meu vestido." Só uma assustadora exclamação de troça me respondeu, e eu senti-me erguida
por cima da água por uma mão impiedosa. A mão ia abrir-se para me deixar cair. A voz dizia, desdenhosa: "É o que
tu mereces." Comecei a cair, a gritar... e acordei!
Hélène refrescava-me as têmporas com um algodão molhado em água com um pouco de vinagre.
- Meu Deus, que susto me pregaste! Que te sucedeu? Júlia... jura-me que não foste buscar nada à farmácia.
- Não tens lá nada, nem sequer um xarope para a tosse ou uma aspirina... tiraste tudo no outro dia. Lembras-te?

Estremeci. Sabia que tivera um sonho de carência de droga e isso assustava-me. Não estaria curada? Após a minha
prolongada cura no centro de desintoxicação de Boulogne, após tantas e tantas semanas. Aqui ainda não fumei
sequer um cigarro vulgar. Então? Era o meu cérebro que continuava intoxicado?
- Anda, vamos passear até ao pôr do Sol, faz mal dormir à tarde, causa pesadelos, não penses mais nisso. Mas
como tu gritaste! Até julguei que estavas magoada. Devia no entanto saber que certas más recordações se
impregnam indelevelmente na nossa memória inconsciente e ressurgem quando menos esperamos. É terrível! Eu
revivi assim cenas de bombardeamentos a que assisti durante a última guerra. Mulheres a enlouquecer perante o
cadáver de um filho, homens feridos, suplicando que acabassem com eles... Vá, vamos. Todos nós temos as nossas
trevas. É preciso expulsá-las. O sol voltou. Esta noite faremos crepes. Amanhã começa a Semana Santa, tentaremos
permanecer sóbrias, e rezar... sim, minha querida... eu sei... tu já não és praticante. Não importa. Reza à tua
maneira. Se pedires algo do fundo do coração, com confiança, obtê-lo-ás. O nome que os homens dão àquele que
ouvir a tua prece, pouco importa.
Mesmo lá fora, ao sol, eu continuava a tremer. Não conseguia rezar. Não me saia dos lábios a prece que consistia
em suplicar: "Quem quer que sejais, ajudai-me a ser corajosa, a esquecer, a merecer o amor de Etienne."
É apenas agora, ao traçar estas palavras, que descubro como, contra toda a sensatez, alguma coisa em mim deseja
apaixonadamente vir a ser a tua mulher um dia. Vir a ser digna desse papel! Sou tão fraca, meu amor!

Capítulo 18

Quarta-Feira de Cinzas! Julguei que esse ritual tivesse passado de moda. Em Tours, desde o ano da minha
comunhão solene, nunca mais desenhei uma pequena cruz de terra na testa. Hélène perguntou-me se eu me
importava de a acompanhar, acrescentando risonhamente que na idade dela não era inútil lembrar-se que em breve
voltaria ao pó e que isso era justo, já vivera o seu tempo, e por vezes sentia-se até um pouco cansada da vida, não
que a vida não fosse apaixonante, mas havia demasiado sofrimento no mundo e, por vezes, sentia desespero por
não ser possível aliviar tantos infortúnios.
- Mas, Hélène, basta a tua presença para ajudar alguém. Julgas que não me fizeste um bem enorme? Quem sabe se
sem ti e estes dias passados em Diguleville eu me teria curado? A cura na clínica é uma coisa... mas depois? Terei
necessidade de te contar quantos dos meus amigos tiveram uma recaída depois de uma cura que os devia ter
desintoxicado completamente? Claro que é útil ser tratado, rodeado de enfermeiras, médicos e psicólogos. É bom
estar ao abrigo das tentações, dos maus encontros, vigiado de todas as maneiras... Mas, no que me diz respeito, era
também triste, pois o meu pai não me propôs voltar para casa. Contentou-se com o gesto que nem sequer fez
quando eu cortei as veias: enviou-me flores, chocolates, frutas cristalizadas, um relógio de pulso, uma caneta, mas
sem que uma só palavra acompanhasse esses presentes!
- Pois bem, é preciso esperar. Talvez que um dia, em breve...
Pareceu-me que Hélène se calava mais frequentemente que de costume no meio de cada frase. Estaria a ocultar-me
qualquer coisa? Mas o quê? Não estou inquieta por isso. Dela e de ti nenhum mal pode vir. Se tenho medo... é
porque pergunto a mim própria se, duma maneira ou de outra, não irei decepcionar-vos não agindo como esperam
que eu faça.
Sinto-me muito nervosa. Esta vida, aqui, representa apenas umas férias para mim. Mais uma vez, eu, que estava tão
adiantada nos meus estudos, me deixei atrasar. Foi em Agosto de 83, como sabes, que o pior me sucedeu. Dessa
vez não fui responsável, enfim, é uma maneira de dizer. Digo que não quis o que me sucedeu. Mas o resultado foi
que faltei ao começo das aulas e que agora tenho dois trimestres completamente perdidos.
Mesmo que possa voltar ao liceu... não recuperarei o tempo perdido. Passar nos exames nessas condições seria
impossível. Pergunto a mim mesma se não será melhor estudar durante as férias e apresentar-me a exame em
Setembro? Estarei à altura de o conseguir? Não me respondas, meu querido, que só devo preocupar-me em casar
contigo... que poderei recomeçar os estudos um pouco mais tarde, quando me encontrar inteiramente recomposta,
sólida. De qualquer modo, já me avisaste de que não devemos ter filhos senão daqui a dois ou três anos: sou
demasiado jovem, criança de mais e excessivamente vulnerável.
Mas se isso nos sucedesse? Avisei-te. Nunca mais serei capaz de abortar. Aceito o aborto para as outras, aprovo-o,
mas eu não poderei resolver-me a fazê-los. Só à ideia de suprimir um embrião que, se vivesse, seria "o teu filho"
estremeço de horror. Compreendes isso?

Acabei por acompanhar Hélène à igreja, nessa manhã, muito cedo. Quando voltámos, ela pôs brioches no forno,
depois sugeriu-me, como o tempo estava magnífico, que fosse passear o dia inteiro, porque ela queria fazer uma
limpeza geral à casa e gostava de a fazer sozinha. Eu só poderia atrapalhá-la, se ali ficasse.
- De resto, seria melhor que terminasses o teu "diário" antes da Páscoa.
- Não é um diário!
- Ou o teu romance, ou lá o que é. Garanto-te que seria uma boa coisa que te livrasses definitivamente daquilo que
te pesa ao ponto de teres de o escrever. Desejava que as festas da Ressurreição fossem para nós o início de uma
nova era, de uma era de felicidade e de paz. É a mensagem desta data: pensa bem... morrera toda a esperança... e
eis que a esperança renascia!
Já não consigo acreditar no Deus da minha infância, mas a fé da tua avó impressiona-me: é tão calma, tão segura de
si, dá um tal sentido a cada um dos nossos sofrimentos e mesmo ao mal que existe no mundo. Mais do que qualquer
discurso, que as pregações dos padres, a vida de Hélène e o seu comportamento com os outros conseguiriam
convencer-me de que existe em nós uma centelha divina e que cada uma das etapas da nossa vida, mesmo as
piores, tem um sentido.
Hoje não me dirigi imediatamente para o mar. As árvores, despidas desde há uma dezena de dias, estão agora
envoltas numa tenra folhagem de um verde suave, por vezes dourado ou ligeiramente avermelhado, pois existe uma
grande variedade de árvores nesta região. Após um desvio por Omonville-la-Petite, onde me recolhi diante do túmulo
de Jacques Prévert, recordando alguns dos seus poemas, desci para Omonville-la-Rogue, até ao porto. Por fim,
decidi-me a seguir pela estrada do farol de Jardehen.
Aí, numa pequena praia que a maré alta tornava estreita, instalei-me confortavelmente para escrever, pensando que
iria simultaneamente bronzear-me e terminar a minha confissão.
Imagino-te a ler este caderno, gravemente, por vezes com um sorriso enternecido, exclamações perante as minhas
ingenuidades, sobrolhos franzidos, angústias, mesmo cóleras. Quando tiveres acabado de ler estes gatafunhos,
queima-os, esquece o passado, como tantas vezes me tens ordenado que faça. Ele é tão lamentável!
Entretanto, desconfio do que pensarás quando chegares a esta Quarta-Feira de Cinzas que devia ser um pouco
triste e cinzenta mas que o sol torna radiosa. "Ela afasta o essencial... não se atreve a reviver essa noite em que
quase morreu, não por o desejar mas por a escalada iniciada ter chegado ao cume e, depois disso, só poder haver
uma queda espectacular."
E ficarias inquieto, pois sabes que, para me sentir livre, preciso de pôr a descoberto a última chaga, pois não há
outro meio de evitar a infecção e por fim a morte... se não a do meu corpo, pelo menos a morte da minha alma, do
meu coração.
Mas neste ambiente deslumbrante como evocar as trevas, o inferno, a lama? E os malditos que eram, nessa noite,
os meus companheiros de desespero, de degradação... e todavia tínhamos julgado organizar uma grande e alegre
festa!

Pierre-Jean, como eu, dava-se com rapazes e raparigas mais velhos que nós, mas não do género daqueles que eu
encontrara em casa de Patrícia de A. Apesar do dinheiro que tinha e do meio social a que pertencia, os seus amigos
eram verdadeiros marginais, daqueles que tinham há muito deixado a
família e os amigos de infância, sem dúvida por esse meio estar na origem da sua revolta, daquilo que eles queriam
esquecer. Não eram também junkies ou amadores de cocaína como na comunidade em que eu vivera aquando da
minha chegada a Paris. É certo que todos, ricos ou pobres, punks, baba-cools e new-waves, se conhecem melhor ou
pior.
Mas, como sabes, cada grupo forma uma espécie de clã que tem os seus locais de encontro privilegiados, os seus
fornecedores específicos, os seus "truques" cuidadosamente mantidos em segredo, para esconder a droga em caso
de necessidade, os seus esconderijos quando, por sua vez, se tornam dealers. A sua reputação varia, pois há os
dealers honestos, integrando na mercadoria, outros produtos apenas numa pequena proporção, e outros... aqueles
que por terem grande necessidade de dinheiro acabam por fornecer heroína apenas numa proporção de vinte e às
vezes de dez por cento!
Devíamos felicitá-los, dirão os ignorantes, é menos veneno! Infelizmente, essas misturas estão muitas vezes na
origem de acidentes mortais, na medida em que esses "porcos", que não têm outro nome, substituem a heroína por
detergentes e até por arsénico! O que explica, que os acidentes de overdose se contem mais frequentemente entre
os drogados sem dinheiro ou entre os que estão mal informados sobre os problemas da droga: os adolescentes
inexperientes, as crianças ou pessoas rudes que começaram por tomar anfetaminas - como alguns camionistas -
para fugirem à fadiga. Um dia, um dealer vai prospectar esses meios de trabalhadores, faz-lhes um grande desconto,
tenta-os, oferece-lhes gratuitamente a sua "picadela" de brown sugar, ou o mata-borrão impregnado de LSD ou de
STP: o que se segue já tu sabes.
Pierre-Jean levou-me primeiro para um bar do Boulevard Sébastopol. Estávamos quase exclusivamente rodeados de
emigrantes. Encontravam-se ali também, evidentemente, alguns amigos do Quartier Latin, além de prostitutas e de
personagens indefinidos. Sabiam que Pierre-Jean tinha dinheiro e
que não pertencia a qualquer grupo, por isso tinham-lhe respeito. Esqueci-me de te dizer que ele era muito alto e
muito forte. Toda a gente lhe dava entre dezoito, e dezanove anos. Entre essa fauna viam-se alguns indivíduos mais
velhos, vestidos de um modo mais convencional, mas os seus fatos eram sempre muito novos, os seus anéis
demasiado largos, os seus sapatos de crocodilo rutilantes de mais, as unhas visivelmente bem manicuradas, as suas
expressões demasiado alerta. Isso divertia-me, e o mesmo sucedia quando ele me levava a Belleville e se cruzava
com um dos seus fornecedores, lhe metia na mão um maço de notas enquanto o outro lhe sussurrava qualquer coisa
ao ouvido. Pierre-Jean conduzia-me imediatamente para junto de um caixote de fixo e ordenava-me:
- Tu levantas a tampa com este jornal. Do lado esquerdo está um pequeno saco de plástico coberto de legumes
apodrecidos. Pega-lhe.

Apesar da sujidade, guardávamos o plástico no elegante saco de couro Pierre Cardin que Pierre-Jean trazia ao
ombro. Logo a seguir, ele fazia sinal a um táxi e íamos ou para a casa dos pais dele ou para o meu pequeno estúdio.
Em seguida, injectávamo-nos um ao outro. Depois, durante algumas horas, era evidentemente o paraíso, éramos
felizes, ouvíamos música, falávamos de poetas, de filósofos, da vida, do mundo. Contávamos também os nossos
desejos, os nossos
amores... e tudo isso, contrariamente ao que pensam os adultos, era sentimental, verdadeiramente assexuado! A
heroína, como a morfina, afinal, diminui a sexualidade mais do que a excita, acalma qualquer dor física ou moral,
apazigua as nossas veleidades de agressividade... e só quando ela falta
é que o drogado enlouquece e é capaz de matar se o impedem de se injectar! Estou a repetir-me, mas a verdade é
que o problema é este.
Deixei novamente de ir assistir às aulas. É muito mais fácil suceder isso do que pensam os nossos pais. A vigilância
é frouxa e há inúmeros truques para que não nos sejam marcadas faltas. De resto, há quem se injecte mesmo no
liceu ou aproveite os intervalos para ir à casa de banho snifar. A maior parte dos professores não vêm problema
nisso... os outros... bem... não é mistério para ninguém que muitos vigilantes se drogam, que há cumplicidades.
Graças a Pierre-Jean, que me amava como se eu fosse a irmã que ele sempre desejara ter, não era forçada a
prostituir-me, nem a retomar esse abominável negócio com as crianças. Em suma, de certo modo, sentia-me
bastante feliz. Mas ao mesmo tempo tinha verdadeira consciência de que esse estado de coisas não podia durar. Um
dia, Brigitte descobriria o que se passava. No fundo, ela ficara sobretudo inquieta com a minha tentativa de suicídio,
mas julgava-me agora protegida contra "as más companhias", visto eu ir regularmente a casa dos Michelet e
apresentar boas "notas", inventadas por um amigo, falsas, é claro! Escrevi, como prometera, algumas cartas aos
meus irmãos, cheias de banalidades e de mentiras, mas que pareciam provar que a minha vida em Paris se
desenrolava normalmente e que eu me sentia bem no meu pequeno estúdio. Era, de momento, tudo quanto
esperavam de mim.
Admiraste-te muitas vezes, quando me interrogavas, por constatar o abandono em que eu fora deixada. Com efeito,
e sem já falar do meu pai, a quem a minha fuga ferira profundamente, é preciso compreender que Brigitte tinha uma
vida muito ocupada, com as suas obrigações mundanas, a casa, os estudos dos filhos... além disso, eu não a
recebera muito bem no hospital, e a disposição do meu pai não devia ser das melhores depois do meu "escândalo".
Que queres? Eles são assim e não são os únicos!
à minha volta havia inúmeros rapazes e raparigas em "questiúnculas" com os pais, quer por eles terem fugido e os
pais não os terem procurado, fingindo que os filhos se encontravam em casa de amigos, quer raparigas que tinham
sido expulsas de casa... por estarem grávidas (sim, ainda sucede em 1984 um pai dizer: "Tu já não és minha filha...
não queremos um bastardo... nem que faças um aborto!", quer rapazes repelidos por um pai ou uma mãe juntos com
outra pessoa que não seja o marido ou a mulher... e além disso, como agora somos maiores aos dezoito anos, à
menor veleidade de desobediência, os pais dizem aos filhos: "Queres ser livre, gostas de proceder como um
pequeno crápula... pois bem, vai para onde quiseres, mas não julgues que te vou manter."

Não creias, Etienne, que eu acuse, por definição, todos os pais como os verdadeiros responsáveis pelos nossos
disparates. Não penses que eu afirme que se nos drogamos é por causa deles. Existem também milhares de casais
que fazem tudo quanto podem, ou julgam razoável, para tornar os filhos felizes. Mas são muitas vezes desajeitados e
cegos, fazendo como a avestruz, recusando-se a ver o que é evidente. E, com o medo que têm da droga, iludem-se.
Quando os primeiros sintomas os alertam, apenas lhes sabem dizer: "Espero que não te drogues!" Evidentemente, o
interpelado protesta, que nunca o fez e que nunca o fará, enquanto, na verdade, já adquiriu o vício da coca ou das
anfetaminas e faz desaparecer pequenas quantias do porta-moedas da mãe ou da carteira do pai, vende livros
escolares e passa a vida a pedir dinheiro, para objectos que lhe são "necessários" para a escola... enfim, a
interminável lista de pequenas mentiras imprescindíveis para se abastecer, traficar...
Desde a altura em que conheci Pierre-Jean tornei-me mais ou menos livre dos expedientes geralmente utilizados
para a obtenção de droga. Mas quanto tempo iria isso durar? Essa chuva de ouro, iria, irremediavelmente, acabar. O
dinheiro que eu tinha não me permitiria comprar a dose mínima para mais de três ou quatro dias e, mesmo assim, só
se fosse de má qualidade. E depois?
No entanto, assustava-me com o que poderia esperar-me. Teria gostado que alguém me pegasse na mão e me
conduzisse de novo a um centro de desintoxicação. Todas as manhãs, ao acordar, jurava a mim mesma ir a
Marmottan e suplicar que me curasem de-fi-ni-ti-va-men-te!
Mas, a dez passos da entrada, retrocedia, voltava precipitadamente para casa, tentava resistir um pouco, mas logo a
seguir vinham as angústias, as dores, o pânico. O frio apoderava-se de mim e só tinha um meio de atenuar tanto
sofrimento: a colher com um pouco de água em que dissolvia um pacotinho, a chama do isqueiro para aquecer a
mistura, o garrote e a agulha espetada nas veias já feridas, onde era difícil encontrar um sítio para injectar...
Estávamos justamente em pleno flash quando um amigo telefonou a informar-nos da hora da festa combinada. Era
um sábado. Não me recordo da hora exacta, nem me quero recordar, pois se soubesse que era a 8 ou a 17, por
exemplo, todos os dias 8 e 17 de cada mês começaria a tremer, recordando aquilo que se passou...

Os exames tinham terminado e eu julgava ter passado, pois durante quinze dias enchera-me de coca e de
anfetaminas para compensar o efeito das minhas injecções de heroína, que fui espaçando durante esse período.
Havia meses que eu mal comia, ingerindo apenas, e só uma vez por dia, alimentos já cozinhados. Mas, em
compensação, bebia muito café. Era o regime da maior parte dos meus companheiros, e é claro que estávamos
muito excitados. Surgiam discussões a propósito de qualquer ninharia. Havia gestos disparatados, como o de um
companheiro que, ao passar cerca das sete da tarde pela Rue de Saint-André-des-Arts - cheia de gente, suja pelos
inúmeros pacotes de batatas fritas vazios e latas de refrigerantes espalhados pelo chão -, deu de repente duas
enormes bofetadas a uma rapariga que se cruzou com ele. A rapariga caiu, e os que ali se encontravam rodearam o
rapaz para lhe dar uma lição. A polícia apareceu rapidamente e preparava-se para o prender, mas nesse momento a
multidão mudou de ideias e resolveu defendê-lo. A violência generalizou-se... Uma hora
depois, seis estudantes e três raparigas iam a caminho da prisão, enquanto outros quatro, gravemente feridos, eram
levados para o hospital. Todos tinham haxixe com eles, alguns heroína. Esses não passariam nos seus exames. Na
imprensa apareceram artigos sobre o perigoso aumento da droga. Todo o bairro passou a ser vigiado e foram feitas
outras prisões. Uma delas perturbou-me muito. Tratava-se de uma amiga nossa, um pouco mais velha do que nós,
que tivera de renunciar aos seus estudos secundários e trabalhava agora numa gelataria do Boulevard Saint-Michel.
Para pagar a sua ração diária de pó fazia um pouco de tráfico, apenas o que lhe era necessário, e eu comprara-lhe,
duas ou três vezes, brown sugar quando não tinha dinheiro para mercadoria melhor. Foi presa em flagrante delito, na
casa de banho mesmo em frente da casa onde trabalhava. Com a pressa, não fechara a porta e injectava-se na
coxa, por cima da roupa, se bem que uma injecção intramuscular seja menos eficaz que uma intravenosa. Mas
receava que notassem a falta dela na loja. Vítima de denúncia? Certamente. Elas são numerosas. Partem por vezes
de pessoas que julgam fazer bem, pois o flagelo da droga apavora-as, e com razão... embora aqueles que elas
denunciam não sejam os verdadeiros criminosos, como todos sabem.
Esses são as vítimas, as verdadeiras vítimas da droga. Há também milhares de denúncias feitas pelos próprios
drogados, devido a ajustes de contas, quer sentimentais quer políticos, feitos com o pretexto de aniquilar algum
dealer desonesto ou
perigoso... enfim, a moral dos drogados não é, certamente, a de pessoas como tu, meu querido!
A minha experiência com Patrícia de A. e com os pais dela, a morte trágica de Jean-Marie tinham-me escaldado
demasiado e eu desconfiava agora dos "muito ricos". Se tinha confiança em Pierre-Jean, apesar da "massa" que ele
gastava, era por ele partilhar o meu horror por esse meio. - Assim, quando ele me transmitiu o convite para uma festa
"sublime"... em casa de uma amiga que tinha um apartamento, na ilha Saint-Louis, com jardim no terraço, a minha
primeira impressão foi para recusar.

- Tu és doida, é um sítio maravilhoso, absolutamente fantástico! Os pais dela já estão em férias. Ela irá ter com eles
daqui a oito dias... Decidiu que será uma festa ininterrupta... como o cinema em sessões contínuas... até à sua
partida! Não seremos muitos, mas poderemos ficar lá instalados... será ela que nos fornecerá a mercadoria, é de crer
que o seu amiguinho, que é farmacêutico, perdeu a cabeça. É muito mais velho do que ela, um senhor bem
estabelecido, louco por ela... e agora, graças aos seus cuidados, totalmente stoned. Não te inquietes também com as
companhias. Parece que até vai lá um que escreveu um livro genial. Creio que encontrou há dias um editor, o que é
mais uma razão para haver festa. Também lá estará um seminarista que parece estar convencido de que Deus se
encontra no fim do caminho não só de todos os alucinogéneos mas também de qualquer droga: um verdadeiro
missionário! De resto, o sonho dele é ir para a Tailândia... creio também que tem tendência para fazer adeptos entre
os rapazinhos... por razões mais carnais. É o problema dele.
Nada disso me atraía, mas acabei por aceitar. Muitos amigos tinham já partido para férias e eu iria certamente ficar
sozinha durante o mês de Agosto. Não recebera qualquer convite de Tours para ir passar as férias com os meus pais
e com os meus irmãos. Eu também não teria certamente aceitado o convite. Indo a essa festa tinha a possibilidade
de encontrar novos amigos franceses ou estrangeiros. E poderia partir de férias com alguns deles.
Pierre-Jean citou ainda alguns convidados susceptíveis de me intrigarem. Falou de um psicanalista já muito
conhecido, apesar de ser ainda muito novo, e pelo qual muitas mulheres, e até muitos homens, estavam
apaixonados.
Tu, Etienne, confessaste-me que por vezes te sentiste tentado a experimentar, mas que as drogas te metiam medo.
Outros são mais fracos ou mais inconscientes. à força de nos ouvirem falar dos nossos êxtases, do bem-estar que
sentimos com os alucinogéneos, ou quaisquer outras drogas... acham que é uma experiência a tentar. Depois...
muitas vezes é
tarde de mais, e percorrem os mesmos círculos demoníacos do nosso inferno. Um pouco mais conscientemente,
sem dúvida.
Preparei-me portanto para essa festa, tornando-me o mais bonita possível. Lavei a cabeça, pintei demoradamente os
olhos. Quanto à pele e aos lábios, não precisava de me preocupar com eles. Apesar da minha vida desregrada,
certamente devido à minha extrema juventude, era fresca, tinha um ar inocente e, sem falsa modéstia, muito
atraente, mesmo excitante.
As mini-saias estavam na moda, e as minhas pernas permitiam que eu as usasse ultracurtas. Ao receber a minha
última mensalidade, cometera uma loucura... comprara uma saia e uma camisa de cabedal branco, macio como
tecido. Esse vestido não o conheces. Deitei-o fora algumas semanas mais tarde... quando ressuscitei.
Ter-me-ia lembrado, de cada vez que o vestisse, do horror desse instante em que me sentira cair no abismo, numa
queda que nunca mais acabava. Tinha manchas que nunca mais poderiam sair: de sangue, o sangue de outra
pessoa.

Capítulo 19
Quinta-Feira Santa! O tempo continua magnífico. Hélène continua a não me querer em casa, que resplandece de
limpeza. Agora fecha-se na cozinha, onde parece estar a fazer preparativos para um banquete. No entanto, no nosso
dia-a-dia, aplica as leis antigas... da Quaresma! Comemos peixe, leite e nem sequer há vinho à mesa...
Pessoalmente, não me importo. Alimentei-me durante tanto tempo tão pouco e tão mal que agora sou capaz de me
contentar com o mais ascético dos regimes. Pelo contrário, até estou contente. A alimentação demasiado rica da tua
avó fez-me engordar um quilo ou dois! Bem sei que isso não me prejudica. Sou do tipo filiforme. Mas mesmo assim...
de resto, isto não irá durar. A partir de domingo, as refeições suculentas voltarão.
Visto teres intenção de passar aqui uma semana, sei que ela te prepara verdadeiros manjares. Quando regresso dos
meus passeios, vem-me às narinas o cheiro delicioso, de bolos. E não só. Tenho a impressão de que prepara
também pastéis, empadas. Estará à espera de outros convidados além de ti? Pessoas importantes? Sinto-me
intrigada. A todas as minhas perguntas, Hélène responde apenas com olhares de incompreensão, como se nada
tivesse mudado na sua vida.
Voltei outra vez à baía de Ecalgrain; é, na verdade, o local que mais me agrada na região, apesar de gostar de
muitos outros. E escrevo, escrevo-te...
Dirigi-me, portanto, para a festa em casa dessa Vera desconhecida. Pierre-Jean ia vestido de branco, como eu.
Tínhamos ar de meninos da primeira comunhão, demasiado crescidos, sem dúvida, e não de pessoas que se
encaminhavam para uma festa de drogados.
De certo modo, o acidente de que fui vítima nessa noite foi talvez o milagre que permitiu que eu me salvasse, mesmo
contra a minha vontade, da catástrofe que me ameaçava, inevitavelmente, se percorresse, uma segunda vez, etapa
após etapa, o caminho que me levara a querer acabar com a vida. E mesmo que não atentasse contra a minha vida,
a morte prematura estaria no extremo do terrível calvário, como o que foi percorrido por tantos dos meus amigos,
rapazes e raparigas simpáticos, sensíveis, infelizmente demasiado fracos e vulneráveis. Nesses dois anos, quantos
não conheci eu que estão hoje mortos ou, ainda pior, em hospitais psiquiátricos? Outros estão na prisão ou
vagueiam de país em país, como verdadeiros farrapos humanos, desprezados por toda a gente, acabando por se
transformar em lamentáveis mendigos, verdadeiros detritos humanos votados a um fim atroz, esqueletos vivos,
literalmente "enlouquecidos" pela sua existência miserável, totalmente irrecuperáveis...

Sim, tive sorte em quase ter morrido nessa noite: foi assim que te conheci. Evitando os fantasmas torturadores que
me teriam sem dúvida assaltado, os sofrimentos infernais de que seria testemunha, que faziam gritar alguns dos
meus companheiros, suplicar que lhes dessem fosse o que fosse... mesmo urina de um drogado, para se injectarem,
porque isso teria ainda restos de heroína! E evitar as feridas infectadas, provocadas por agulhas sujas, produtos
falsificados, e os abcessos nos pulmões, misteriosos, devoradores, consequência da ingestão de uma droga ou
outra, emagrecimentos até à caquexia, as crises de loucura furiosa... e, por fim, todos os actos mortíferos cometidos
durante os períodos de carência de droga! Poderia também ter assistido ao descalabro irremediável do meu cérebro,
depois deixaria mesmo de me aperceber disso e seguiria os impulsos comandados por essas células deterioradas.
Etienne, meu querido, é agora que tenho medo do que poderia ter feito se tivesse recaído. Quem sabe se, um dia, eu
não me teria tornado parricida, eu, que considerava o meu pai o principal responsável pelo que me tinha sucedido?
Quem sabe até onde é que teria chegado o massacre? E seria apenas uma notícia mais para as pessoas normais,
bem inseridas na sociedade, mas que qualquer de nós teria absolvido. Na verdade, aquilo que Brigitte fazia por mim,
materialmente, só servia para irritar o meu ressentimento a respeito dela e do meu pai. Chegara quase a incluir os
meus irmãos nesse ressentimento, nesse ódio nada razoável e, sobretudo, incontrolável.
... A noite estava muito bonita, não muito quente apesar da época. Seguindo pelo cais Bourbon, víamos, Pierre-Jean
e eu, passar um comboio de lanchões. Os candeeiros, do outro lado do Sena, eram apenas ponto amarelados num
céu ainda claro. Raros transeuntes, ribeirinhos, sorriam-nos ao passar por nós, porque formávamos um casal bonito.
Entrámos num apartamento admiravelmente mobilado, com belos móveis, pesados cortinados, num tom entre o
vermelho e o violeta, iluminado apenas por velas. Volutas de fumo chegavam às vigas pintadas do tecto, do século
XVIII, derivadas dos pauzinhos de incenso cujas pontas vermelhas brilhavam na penumbra. Sobre uma comprida
mesa de mármore preto havia cristais e pratos cheios de iguarias como as que preparam os Tailandeses e os
Cambojanos. De resto, duas jovens asiáticas, encantadoras, vestindo sarongs, iam de um convidado para outro,
oferecendo bombons, guloseimas multicolores, grossos charros enrolados à mão, em papéis cor-de-rosa-vivo,
azul-claro ou amilado.
Nós não éramos os primeiros a chegar. Havia já lá muita gente. Parecia que cada um queria rivalizar em
originalidade; alguns eram incondicionalmente punks, com cristas de cabelos verdes e amarelas, vermelho-
vermelhão; outros, talvez mais snobs, new-wave, ou até new-new-wave, envergavam trajes visivelmente comprados
na feira da ladra, de uma elegância muito 1950 ou até 1930.
A nossa chegada, vestidos de branco, sem jóias e sem penteados extravagantes, no fundo, muito banalmente 1983,
provocou uma certa admiração. Mas quando Vera exclamou, dirigindo-se para nós:
- Oh, meu pequeno Pierre-Jean, que maravilha... e tu - disse ela, inclinando-se para mim para me beijar nos lábios, o
que me sobressaltou -, tu és sublime. Dir-se-ia que saíste de um quadro de Burne-Jones... uma pequena maravilha
pré-rafaélica. Ah, conheço alguém que vai ficar loucamente apaixonada por ti!
Não tinha dito "apaixonado", mas sim "apaixonada", mas sim "apaixonada", e eu vi imediatamente que naquela
assembleia havia grande número de homossexuais dos dois sexos, na medida em que nem todos os drogados são
atraídos pela sexualidade, mas sim por amores que consideram mais requintados, mais subtis, menos vulgares.
A nossa anfitriã voltou-se, fez um sinal com a mão a alguém que eu não reparei, pois estava muito ocupada a
estender a mão a um homem dos seus trinta anos, com o crânio rapado, uns olhos hipnóticos, que se apresentou
com uma certa rigidez, murmurando:
- Sim, um Burne-Jones... ou melhor, talvez a Béatrice de Béatrice de Beardsley... e a Beatriz de Dante, tal como ela
era, ainda infantil, quando ele foi deslumbrado pela vida. Você será muito mais velha que ela?
Corei. Aquele era o primeiro a descobrir que eu era provavelmente o benjamim da reunião, que talvez não devesse
ali estar. Ao mesmo tempo, o seu olhar confessava aquilo que as palavras confirmavam:
- Que importa! Tal como é, acho-a infinitamente desejável. Permita-me que a acompanhe ao bufete, enquanto espero
poder levá-la para alimentos menos grosseiros! Há, nesta casa, alguns sítios encantadores, seria para mim um
precioso prazer poder mostrar-lhe a magia que possuem.
Aquela linguagem elaborada, inusitada entre os amigos da minha idade, fez-me sorrir, voluntariamente trocista. Mas
subitamente o meu sorriso desapareceu: a rapariga que acompanhava a dona da casa estendia teatralmente as
duas mãos para mim e exclamava:
- A minha pequena Júlia! Cada vez mais bela! Mas que boa surpresa encontrar-te aqui.
Eu sentira-me empalidecer. Percebia que estava a ser observada por aqueles que nos rodeavam, pois não
correspondi àquele acolhimento amigável... Fitava a minha interlocutora com um olhar quase assustado. Patrícia de
A. parecia totalmente consolada da morte de Jean-Marie. Sorria, maquinalmente. Recuei, prestes a fugir. Uma mão
de ferro segurou-me por um ombro.
- Viu algum fantasma... o de Lady Macbeth, por exemplo?
O homem com o crânio rapado devia conhecer as razões da morte de Jean-Marie. Inclinou-se para mim e murmurou-
me ao ouvido:
- Não vê que ela está completamente stoned? Venha, não tarda que ela caia nos braços de um qualquer. Mas não
se fie: ela está sifilítica até aos ossos... o que não é de admirar, visto estar farta de mandar buscar vadios que
dormem debaixo das pontes e putas...
Meu Deus, Etienne, em que mundo fora eu cair?
Fiz notar àquele que queria fazer papel de cavaleiro andante que preferia estar no meio dos outros a acompanhá-lo
aos sítios aonde ele queria levar-me. Fossem quais fossem as delícias prometidas. E que ainda por cima tinha sede
e queria provar as iguarias que nos ofereciam.

Ele acedeu imediatamente ao meu desejo, interpelou uma das jovens criadas, deu-lhe ordens na língua delas e
conduziu-me para um sofá livre, mesmo na extremidade da sala. Eu não duvidava um só instante de que aquilo que
ia comer estaria condimentado com haxixe ou com ópio ou com qualquer outra coisa mais ou menos nociva. Claro
que ao ponto a que eu tinha chegado isso pouca importância tinha. Sentia-me até divertida com a ingenuidade do
meu companheiro. Imaginaria ele que eu era uma principiante tendo até então no meu activo apenas alguns charros
de erva, umas pitadas de coca, uns pedacinhos de açúcar com LSD?
Bebi uma primeira bebida aromatizada com xarope de romã ou angustura. Pierre-Jean desaparecera. Patrícia,
reparei, observava-me de longe. Eu devia ter desconfiado do olhar em que ela me envolvia, assim como ao homem
que ainda não me dissera o seu nome. Este aproximou-se de mim, quase boca com boca, e perguntou:
- Onde a conheceu? Quando? O seu nome é Júlia? Conheceu Jean-Marie Mesurat, o amante da Patrícia? Sabe que
ele morreu?
- Sim. De overdose.
Chamo-me Eric Vallagne e sou arquitecto.
De overdose, certamente. Mas quem foi que lhe deu o speed que o matou?
Senti-me invadir por esse frio glacial que nos faz
bater os dentes quando estamos em carência de droga. Não podia estar ainda a senti-la. Eu e Pierre-Jean tínhamo-
nos injectado antes de sairmos do meu estúdio e subirmos para a moto dele. Pierre-Jean conduzia uma Yamaha
1.000 com uma carta de condução falsificada!
- Por favor, não me fale nisso! Patrícia não me interessa, nem Jean-Marie, nem você, nem ninguém. - Ele obrigou-me
a levantar e conduziu-me ao bufete, onde pediu uma taça de champanhe. Era, ao lado das outras, uma bebida
inocente. A festa apenas começava. Alguém reclamou silêncio. Encontrava-se entre nós uma cantora de variedades
cuja carreira se anunciava brilhante. Começou a cantar uma canção de amor, desesperada. Pedi mais champanhe, o
cheiro do incenso misturado com os perfumes fortes das mulheres, e o aroma xaporoso do haxixe, mergulhavam-me
numa perigosa euforia. Eric Vallagne fez de novo sinal a uma das tailandesas e falou-lhe demoradamente. Ela
inclinou-se na frente dele, com as mãos juntas sob o rosto, que permanecia impenetrável.
- Viveu em Banguecoque? - perguntei-lhe eu.
- Não, em Chang-Mai, no Norte... não muito longe do Triângulo de Ouro... e dos belos campos de papoilas brancas.
Não se assuste, não sou um traficante. Sou antes um diletante ou um esteta... os meus pais morreram novos... eu
herdei... bem, é quase como num mau romance. Vamos, menina, acalma-te e trata-me por tu se não me achas
demasiado velho para isso. Não tenho intenção nem de te violar nem de te fazer seja o que for que não desejes! Não
ficaremos aqui até tarde. Permites-me que te conduza a um local mais saudável? Não, para minha casa não. Mas é
Verão, a noite está boa, poderemos ir de carro, até Deauville. Dentro de hora e meia estaremos lá. Cearemos...
depois, escolherás: ou vamos ao Casino ou dançar no Régine.
- E para terminar a tua cama?
Tratei-o por tu porque assim a resposta me parecia mais insolente.
- Não obrigatoriamente. Não quero ser acusado de desvio de uma menor.
Alguém fez "chiu"... A cançonetista começava uma nova canção. Nesse momento, vi Patrícia aproximar-se de nós,
com um copo em cada mão. Entregou-me um deles e eu peguei-lhe, colocando-o em seguida sobre uma mesinha,
junto de mim.
- O que é isso? - perguntou Eric a Patrícia.

- Tu desconfias de mim... é apenas um gin fizz... exactamente o que convém a uma rapariguinha... como tu gostas
delas, não é verdade? Para ti é algo de mais forte.
Trocaram novamente um estranho olhar, e eu percebi desprezo da parte do homem e ódio em Patrícia. Eric também
não bebeu imediatamente, observando a bebida como se tentasse detectar qual a sua composição. Patrícia voltou-
lhe subitamente as costas e afastou-se.
Nesse momento preciso, um rapaz interpelou o meu companheiro e pediu-lhe para ir urgentemente arbitrar o
diferendo que surgira entre dois convidados a propósito da data de construção de não sei que complexo da região
parisiense. Ele voltou-se, para mim e disse:
- Espera-me. Volto já!
E seguiu aquele que reclamava a opinião dele. Aquiesci. Depois, como ele não voltasse, e ninguém parecesse
interessar-se pela minha presença, lentamente, a pequenos goles, fui bebendo o conteúdo do copo que Patrícia me
oferecera. A bebida tinha, com efeito, um gosto a gin e a limão.
Mas de repente senti-me cair num precipício. Depressa, cada vez mais depressa...
Terei gritado, como me pareceu, enquanto tudo ficava escuro à minha volta, eriçado de rochedos com pontas agudas
sobre as quais eu iria empalar-me? Quem mo dirá? Só de pensar nisso sinto-me invadir pelo terror... Vou gritar,
Etienne. Tenho medo, medo...

Capítulo 20

Hélène encontrou-me lavada em lágrimas, metida na cama às cinco horas da tarde, com o caderno encostado ao
peito, a tremer como se estivesse transida de frio, apesar dos cobertores quentes que me tapavam até ao queixo.
- O que é que fizeste?
Percebi, pelo medo que evidenciava, o que ela imaginava. Abanei a cabeça num gesto frenético de negação. Não,
não tinha tomado qualquer medicamento, susceptível de me drogar que tivesse escondido nas minhas bagagens!
Fora suficiente recordar-me...
Quando se esteve verdadeiramente intoxicado, só as recordações chegam, por vezes, para nos fazer reviver todas
as sensações, primeiro maravilhosas, depois, de vertigem em vertigem, atrozes, flash antes da carência.
- Julgava que tinhas saído, minha querida. Não me ouviste chamar-te?
- Sim! E como o telefone tocou pouco antes, pensei que tivesse sido Etienne... mas não me apetecia falar-lhe.
- Não era Etienne. Mas porque não querias falar-lhe?
- Era Brigitte?
- Não... o teu pai. - Sentei-me. Estava nua na cama, mas não se tratava de uma questão de pudor. Deixara de sentir
frio. Escaldava.
- Isso não é verdade... ou então vai-me acontecer alguma desgraça. Ele recusa-se a deixar-me estar aqui contigo?
Quer encerrar-me nalguma clínica psiquiátrica?
Hélène fitou-me com uma certa tristeza e uma certa expressão de cólera no olhar! Falou mais lentamente do que de
costume, como para se certificar de que eu iria perceber perfeitamente cada uma das suas palavras:
- Alguma vez me apanhaste em flagrante delito de mentira desde que aqui chegaste? Mesmo quando fazias
perguntas indiscretas? Tentei, ao menos, uma só vez, camuflar-te qualquer verdade? O teu pai telefonou-te... queria
falar contigo. Agora penso que era ainda um pouco cedo de mais.
- Peço-te perdão - murmurei por fim. - Mas vês em que estado estou? Acabo de reviver o pior momento da minha
vida. Experimentei o mesmo terror. É abominável, Hélène, abominável! Depois vens dizer-me que o meu pai
telefonou! Como é que ele sabe que eu estou aqui? E quem lhe deu o teu número do telefone?
Ela recompusera-se. Obrigou-me a deitar-me, destapou-me as pernas, mas tapou-me o peito.
- Vou fazer-te uma massagem nos pés, vai descontrair-te. É um método chinês. Verás, é fantástico. Em seguida,
quando te sentires mais calma, conversaremos. Não tenhas medo... trata-se apenas de fazer o ponto da situação,
para ti, para Etienne, para toda a gente.
Os únicos momentos de despreocupação que tinha conhecido desde há dois anos devia-os a Hélène, pois mesmo
perante ti, meu amor, nunca deixei de me sentir inquieta. Mas a recordação dessa queda num buraco negro sem fim
continuava a perturbar-me. Encolhi os ombros e resmunguei:
- Estou cansada das lições de moral. Mesmo os médicos mas fizeram, incluindo Etienne. É certo... que eu não devia
ter-me drogado, nem prostituído, nem devia ter frequentado os bares suspeitos, nem traficado, nem... nem... Mas já
imaginaram a impressão que nos causa descobrir que vocês, os mais velhos, não são capazes de ter confiança em
nós? A vossa sociedade é hipócrita e pode dizer: Faz o que eu digo, não faças o que eu faço: mentir, enganar a
minha mulher ou o meu marido, roubar os meus clientes, aldrabar os meus superiores e os meus inferiores..." Uma
bela moral, na verdade. Primeiro o haxixe... para esquecer, para nos sentirmos bem, para termos relações amigáveis
com os outros... Quem poderá imaginar o despertar torturador? Esse buraco negro do qual muitos não saem?
Sei bem, meu querido, que após semanas de inconsciência voltei à superfície. Quantos outros médicos, além de ti,
se debruçaram sobre mim com solicitude, para estudar o caso aparentemente desesperado que eu era, quando a
ambulância me levou do cais de Bourbon para o Hôtel-Dieu, quantas enfermeiras se revezaram à minha cabeceira
com uma paciência infinita para tratarem a espécie de cadáver vivo em que eu me transformara, como elas velaram
por mim, evitando que eu me estrangulasse com os lençóis ou batesse com a cabeça nas paredes, com a
possibilidade de partir o crânio, ou de cortar a língua quando estivesse em crise. Sei também que se não fosse a
delicada operação ao abcesso pulmonar que eu tinha teria morrido, no meio dos mais terríveis sofrimentos, apesar
dos calmantes que já não faziam qualquer efeito sobre mim!
No entanto, quando penso: "Estou salva, fui salva", é só de ti que me lembro. É o teu rosto que me aparece, o teu
rosto com uma indizível expressão de bondade, os teus lábios que me dizem:
- Então, Júlia, o pesadelo, acabou. Livraste-te desta complicação. Agora é preciso aprender a viver, a ser feliz.
Vamos dedicar-nos os dois a essa tarefa. Está bem?
Lembras-te dos meus olhos encarquilhados a fixarem-te? Da minha boca aberta que não conseguia emitir um único
som? Não sei o que exprimia o meu rosto, mas devia ser o assombro, a incredulidade de um náufrago no meio do
oceano que descobre, no momento em que se vai afundar, uma embarcação a remos que se dirige para ele, que lhe
estendem já uma mão salvadora.
Tu pareceste incomodado, murmuraste: "Não sou o bom Deus. E se o fosse... conheces o provérbio: "Faz a tua parte
que Eu te ajudarei." Preciso que me ajudes, Júlia. Se assim não for, nada conseguiremos."
Não sei, meu querido, qual foi o momento preciso em que tu te apaixonaste por mim. O que posso dizer-te é que ao
primeiro olhar que lançaste sobre mim, um olhar de médico, ou pior... de psiquiatra... à primeira entoação da tua voz,
eu pensei, e isso foi maravilhoso: "Este é diferente, neste poderei ter confiança!" Foi tão excitante... como o meu
primeiro flash, perdoa-me a comparação.
- Estás a ouvir-me, Júlia? Onde estás tu?
A tua avó chamava-me à ordem. Já não tinha frio, sorri e declarei:
- Desculpa... más recordações... depois boas... estava muito longe.

- Eu vi. Gosto muito de ti, minha pequena Júlia, tu sabes, mas és demasiado impulsiva e talvez que a maior censura
que se possa fazer aos teus pais é de te terem protegido demasiadamente das realidades da vida, tanto das
materiais como das sentimentais... ou das dos sentidos! É preciso por vezes compreender certas fraquezas... mas...
Interrompi-a.
- As de Brigitte? Brigitte não é "os meus pais". Quanto a meu pai, foi ele ao menos uma vez ver-me ao hospital,
quando ninguém esperava que eu me salvasse? Não? Nem sequer me enviou umas palavras, ou me telefonou, ou
me mandou uma flor, ou uma caixa de chocolates.
- Como o sabes?
Querida Hélène, indulgente, demasiado indulgente. Tanto para o egoísmo masculino, como para as fraquezas das
mulheres! Não chegou ela ao ponto de afirmar que se tivesse a minha idade em 84 também se teria sem dúvida
drogado, e teria percorrido as mesmas etapas infernais que eu percorri, e que a sorte dela fora faltar-lhe imaginação
quando era nova, fora ser dócil e viver em casa de uns pais bastante severos.
Protestei:
- Que queres fazer-me acreditar? Que Brigitte e o meu pai gostam de mim? Por que motivo me mentiu ela? Para que
me deixou crer que era minha mãe até ao momento em que o amante... - Hélène preparou-se para me interromper,
mas eu não deixei, continuando: - Eu gostava dela como de uma mamã, tinha confiança!
- E se tivesses razão para gostar dela e não tivesses motivo para deixar de confiar nela? E se cometeste um grave
erro, Júlia? Essa eventualidade nunca te ocorreu?
- Ela enganou o meu pai, não o ama, casou com ele por causa do dinheiro, da sua posição social.
Mais uma vez, Hélène replicou:
- E se isso não for verdade? Brigitte é muito bela, ao que parece, e bastar-lhe-ia escolher, com certeza. Preferiu o teu
pai, e não é muito fácil viver com um homem quinze anos mais velho e criar a filha de outra mulher. Outra mulher que
fora adorada. Tu mesma reconheces que Brigitte se mostrou perfeita contigo, durante anos, não fazendo qualquer
diferença entre ti e os teus jovens irmãos, considerando-te realmente como uma filha mais velha. Os teus irmãos não
sabem a verdade, nem agora.
Perguntava a mim mesma onde quereria Hélène chegar. Para acabar com o interrogatório, enfiei umas calças, uma
camisa e disse:
- Vou passear. Não precisas de mim, pois não?
- Toma cuidado com as cobras. Leva um pau e não venhas muito tarde. Quero jantar cedo. Amanhã vou à igreja às
dez. Não precisas de me acompanhar. Basta que vás à tarde, para a missa de Sexta-Feira Santa.
Saí. Depois de uma longa caminhada pelos campos, de numerosas paragens à beira-mar e junto dos inúmeros
riachos cujas águas corriam rapidamente para o mar, subi a um muro que cercava um prado. Belas vacas brancas e
pretas olharam-me com espanto mas sem se incomodarem. Pastavam. A erva era ainda pouca. Vi um riacho que se
insinuava por entre os tufos de primaveras amarelas. Sentei-me com o sol a bater-me nas costas para não ficar cheia
de sardas. E escrevo-te, escrevo-te...

Como eu gostava que fosse uma longa carta de amor e como gostaria também de escrever ao papá, a Brigitte, para
lhes anunciar que tu me amas e que sou a rapariga mais feliz do mundo! Gritar a todos que também eu vos amo, que
fui louca mas que tu e a tua avó me ajudaram a esquecer, que o passado se apaga, que o universo monstruoso que
eu conheci não é, obrigatoriamente, o de toda a juventude. Mas será isso possível? Não será tarde de mais? Meu
Deus, porque é que depois de ter dito que não me sentia digna de ti fraquejo agora e espero? Oh, Etienne, porque é
tão difícil viver?...
Sonhei longamente, ouvindo os ruídos à minha volta, respirando o aroma da erva florida... respirando-o de tal
maneira que me senti subitamente tomada por uma ligeira vertigem, como no início de uma embriaguez, prestes a
desmaiar de prazer! Mas esse prazer transformou-se subitamente em terror, pois tive a impressão que... uma
impressão que eu conhecia muito bem, a mesma que me provocavam as primeiras baforadas de haxixe... Serei eu
então como esses alcoólicos cujo sangue está de tal modo impregnado que só o facto de sentirem o cheiro de uma
garrafa de uisque ou de conhaque os põe à beira da embriaguez?
É algo que não podem avaliar aqueles que nunca se drogaram. Imaginam que a nossa habituação a um
estupefaciente exige, para fazer efeito, o aumento incessante das doses. Isso é verdade, mas infelizmente é verdade
também que a habituação à maior parte dos estupefacientes não é apenas física mas também psíquica. A cura desta
última é mais difícil. Isto é de tal modo verdadeiro que um drogado pode sentir-se bem por aspirar seja o que for. E
quando digo seja o que for é exactamente isso que quero dizer. Não são apenas os produtos de substituição, como
fazem muitos de nós com a gasolina, por exemplo, que vão roubar aos depósitos dos carros para cheirar, ou as
raparigas que cheiram o dissolvente do verniz das unhas... Não vou fazer aqui uma lista, que tu de resto conheces,
dos xaropes, colas, bebidas aparentemente anódinas, que servem de droga aos que já estão viciados e que se
querem drogar à força, em quaisquer circunstâncias e por quaisquer meios! A esses, julgo que até uma injecção de
água pura bastaria para os drogar. Isso seria, em qualquer caso, menos nocivo. Mas estou a desviar-me do assunto.
Perdoa-me, meu querido...
Deitei fora as flores que tinha colhido, e voltei a casa para acabar de te contar o meu dia. Dentro de alguns minutos
acompanharei Hélène à igreja de Landemer. Iremos de carro. Espero que ela não me fale de ninguém a não ser de
ti.

Capítulo 21

Estou um pouco desiludida, meu amor: tu só chegas amanhã, domingo. Vieram de Cherbourg umas flores soberbas,
com estas palavras: "Amo-te..."
Depois, uma hora mais tarde, de outra florista, chegaram outras flores, sem qualquer cartão... e uma hora mais tarde
um terceiro ramo, também anónimo. Não compreendo, só podes ter sido tu a enviá-las. Enlouqueceste ou ganhaste
a Lotaria?
Hélène ergueu as sobrancelhas e murmurou: "Não compreendo..." Mas fiquei com a impressão de que estava a
mentir. Como lhe fiz notar que ela se tinha confessado ontem, para poder comungar na missa da meia-noite, ela
respondeu com o seu ar mais sério:
- Pedi para ser absolvida, antecipadamente, de todos os pecados que pudesse cometer daqui até à missa da
Páscoa!
Existe decididamente, desde há alguns dias, uma atmosfera misteriosa nesta casa. De resto, neste momento, estou
sozinha. São quase dez da noite. Hélène disse que eu devia deitar-me cedo para estar bonita amanhã, para te
receber. A tua querida avó bem diz que é moderna, mas continua convencida de que as raparigas é que devem
agradar aos rapazes e não o contrário. Perdoo-lhe isso. Também eu desejo estar bonita para te receber. Desse
modo, talvez tenhas pena de mim.
Lavei cuidadosamente a cabeça, pus um leite amaciador na cara. É verdade que precisava dele. A minha "pele de
bebé" é muito frágil, e o sol e o vento... Bem, não quero aproveitar estas últimas linhas da minha confissão para te
fazer um curso de estética. Mas não tenho sono. A1ém disso, sinto-me perturbada porque julgava estar preparada
para o que te ia dizer, para que saibas que te amo apaixonadamente, que certamente não voltarei a amar mais
ninguém... mas que devemos separar-nos, renunciar à felicidade de nos casarmos!
É que a ideia de não mais te voltar a ver é-me insuportável. Tenho necessidade de ti, pelo menos da tua amizade,
preciso que me guies pelo menos até eu ser uma pessoa de corpo inteiro, capaz de assumir o meu passado.
Entretanto, terás encontrado uma rapariga digna de ti, digna de te dar belos filhos... pronto, estou a chorar!
Acalmada a minha crise de lágrimas, pareceu-me de repente adivinhar algo que de novo me dá vontade de chorar,
mas é impossível, tu ter-me-ias preparado, não é verdade? As coisas assim só sucedem nos contos de fadas, um
pouco ridículos, nos quais há muito tempo não acredito. Foi esse o sentido do teu soberbo ramo de flores brancas e
cor-de-rosa, como para um ramo de noiva? Nós não somos noivos, não o seremos amanhã. Afinal, eu também tenho
uma palavra a dizer a esse respeito. Não quero...
E os outros dois ramos também de flores brancas e cor-de-rosa? E o minúsculo embrulho preso por uma fita com
dois pequenos corações vermelhos nas pontas, que não é com certeza um ovo da Páscoa? É alguma jóia, com
certeza. Porquê uma jóia, meu Deus? Até a preparação da mesa, na casa de jantar, foi um mistério. A porta está
fechada à chave. Tanto pior, não aguento mais, vou espreitar. Sei onde Hélène guarda as chaves. Vou abrir, vou
saber.

Pronto! Já fui ver. Quantos minutos fiquei eu parada à entrada da porta? Estava petrificada! Sobre a toalha bordada,
engomada, nove talheres, pratas e cristais, flores brancas e cor-de-rosa, taças de champanhe. Percebi
imediatamente que aquela mesa assim posta não se destinava a receber vizinhos e decidi imediatamente fugir! Não
posso imaginar que estejas ao corrente do que se passa, que possas ter dado o teu acordo. Voltei a fechar a porta e
subi ao meu quarto. Vou apagar a luz e fechar definitivamente o caderno da minha confissão. Deixá-lo-ei bem à vista
sobre a mesinha-de-cabeceira. Hélène, depois tu e aqueles que convidaste hão-de vê-lo. Eu terei fugido. Não, nada
receies, não tenho intenção de fazer um disparate, de me suicidar ou pior... de voltar para o meio daqueles que
vivem num inferno que eu nunca mais terei a coragem de enfrentar. Então o quê? Eu arranjar-me-ei: é possível.
Trabalharei, e vocês não me mandarão procurar pela polícia. Se for necessário, irei ter com os meus antigos
companheiros, que me arranjarão uma documentação falsa até eu atingir a maioridade. Aos dezoito anos serei livre
para estragar a minha vida, ou para ser feliz, sozinha!
Mais tarde, muito mais tarde, dar-vos-ei notícias minhas, a todos.
Agora é cedo de mais. Para todos, mas sobretudo para o encontro que Hélène, adivinho-o, desejou, pois ela, mais
do que eu, acredita nos contos de fadas, e sem dúvida conseguiu convencer os outros, a ti... a eles...
Para ter a certeza de acordar a tempo, Júlia deixou os cortinados do quarto abertos, e agora o céu está claro,
rosado, porque o Sol apareceu por detrás da casa. Levantou-se. Os seus gestos cautelosos eram no entanto
precisos. Continha a respiração, caminhando nas pontas dos pés, tendo o cuidado de não fazer ranger algumas
tábuas do soalho cuidadosamente arranjado. Por fim, acariciou o bonito vestido de piqué branco que Hélène lhe
mandara fazer em Cherbourg para esse domingo "diferente dos outros". Vestiu em seguida umas calças de ganga,
uma Tee-shirt já desbotada, dobrou outras duas que meteu no seu saco e saiu do quarto sem olhar mais para aquele
compartimento que tão querido lhe fora. Desceu as escadas com os ténis na mão. Depois começou a correr pela
estrada em direcção à beira-mar, por onde passariam bastantes carros, mesmo àquela hora, a quem ela pudesse
pedir boleia.
O Sol levantara-se já e coloria o mar de mil tons, como um deslumbrante traje de palhaço, mas Júlia não queria ver
tamanha beleza, tal serenidade para glorificarem a Ressurreição.
Passou por ela um camião que avançava a grande velocidade e não teve tempo de o chamar. Começou então a
correr cada vez mais depressa, para pôr uma distância maior entre si e a casa de Hélène, entre Etienne, entre
aqueles que iriam chegar e ela mesma!
Nove talheres! Maquinalmente, e acelerando ainda mais o passo, contava-os: Hélène, Etienne, ela, os pais de
Etienne... eram cinco. E os outros quatro? Quatro desconhecidos?

Júlia viu-se obrigada a parar, ofegante. Deixou-se cair na berma da estrada. As ervas e as primaveras estavam
cobertas de gotinhas de orvalho que o sol tornava cintilantes e cada ramo, orvalhado, fazia lembrar os fios do véu da
Virgem. Júlia estremeceu. Ouviu o ruído de um carro que se aproximava por detrás e ergueu-se antes de ver o
veículo aparecer na curva da estrada. Júlia ergueu um braço, começando a andar, como se nem sequer quisesse ver
o rosto do condutor.
O ruído dos travões fê-la finalmente voltar-se. Não eram pessoas da região. O carro tinha matrícula de Paris. Um
casal de uma certa idade, com uma expressão extraordinariamente surpreendida, olhava-a.
- Para onde deseja ir, menina?
A voz fez sobressaltar Júlia. Achava-lhe algo de familiar. Mas seria parecida com a de quem? Agradável, um pouco
abafada. Não, não conhecia nenhuma mulher que tivesse aquele tom de voz, simultaneamente quente e um pouco
rouco.
- Para Cherbourg, minha senhora. A minha bicicleta avariou-se e ainda são vinte quilómetros até lá. Vou chegar
atrasada.
- Muito bem, suba. Esperam-nos em Omonville-la-Rogue, bem, não exactamente, mas está bem, levamo-la a
Cherbourg primeiro. De qualquer modo, ainda é muito cedo e poderíamos ir acordar toda a gente. Conhece bem a
região, ou está aqui a passar férias?
O homem limitara-se a sorrir e durante uma fracção de segundo Júlia teve a impressão de que aquele sorriso lhe
recordava um outro. O carro pusera-se de novo em andamento, devagar, quando subitamente o condutor perguntou:
- Como se chama? Para parisiense é muito madrugadora. Não me engano quando digo que é parisiense, pois não?
Era preciso inventar uma resposta não muito precisa. Quando a sua fuga fosse descoberta, Hélène e a família
começariam a interrogar os vizinhos e talvez fizessem um apelo pela rádio. Aquele casal poderia informá-los de que
lhe tinham dado boleia. Devia ficar numa das ruas das proximidades do porto e não perto da estação de caminho de
ferro. Tinha muito tempo. O primeiro comboio para Paris partia por volta das nove horas. De resto, desceria em
Caen, para os despistar, no caso de a mandarem procurar.
- Vêm de Saint-Michel? - perguntou por sua vez para quebrar um silêncio que se estava a tornar inquietante.
- Sim. Ficámos lá desde ontem, pois aqui só nos esperavam hoje. É um grande dia para nós... para toda a família.
Com certeza um dia também ficará noiva. Agora é a vez do nosso filho!
- Quero descer! - gritou Júlia. - Parem, estou doente. Quero descer!
- Doente?
O carro parou perto de um atalho que seguia ao longo de um pequeno riacho, e o condutor voltou-se lentamente,
enquanto a mulher, levando a mão à boca, continha uma exclamação assustada.
- Não, Júlia, tu não estás doente, tens apenas medo, pois tu chamas-te Júlia, não é verdade? Fugiste... porquê? Não
queres casar com o meu filho? Que se passa? Ele desgostou-te? Já não o amas?
O carro que parara para lhe dar boleia era o dos pais de Etienne, e agora os dois olhavam para ela com um ar grave
e triste. Não pareciam zangados nem escandalizados, os seus olhos tentavam sorrir-lhe, mas os da mãe de Etienne
encheram-se de lágrimas, e ela murmurou:

- Não percebo, ele ama-a profundamente, há meses. Receava de tal maneira ser demasiado velho para si. Vai sentir-
se terrivelmente infeliz. Nós sentíamos uma tal alegria ao pensar...
O condutor, pondo a mão no ombro da mulher, impôs-lhe silêncio. Depois dirigiu-se a Júlia:
- Vamos dar meia-volta, queres? É normal que estejas um pouco nervosa, é um grande dia para uma rapariga, não
podias dormir, querias ver aparecer o Sol para desceres à praia, mas estavas fatigada e não querias que se
inquietassem com a tua ausência, e então pediste-nos boleia. Não há nada de extraordinário nisso. É normal teres
encontrado os pais do teu noivo. Ele chegará mais tarde. Vem de Paris. É bom que nessa altura já tenhamos travado
conhecimento. Não te preocupes. Tudo correrá bem. - Voltando-se novamente para a mulher, resmungou: - Não
chores mais. Ficas com os olhos vermelhos e com a cara inchada, e Etienne não gostará disso. Ele que certamente
disse a Júlia que tu és... depois dela... a mulher mais bonita do mundo.
- Oh, não, não. Peço-vos!
Houve um silêncio interminável. O médico não desfitava Júlia, como se quisesse hipnotizá-la, esperando a reacção
dela, enquanto a mãe de Etienne escondia o rosto nas mãos.
- Nós apenas sabemos uma coisa, Júlia. Que Etienne te ama e que fez bem.
- Foi ele que os chamou? Ele sabe?
- Foi por ele saber muito mais coisas do que tu... por exemplo, que o teu pai envelheceu dez anos por não poder
perdoar a si próprio a sua intransigência, e as consequências que ela teve. Pronto, não digas nada, não queremos
saber o teu segredo. E tu farás bem em esquecer. É preciso sempre esquecer os sofrimentos, os erros, os rancores,
e tu fá-lo-ás.
- A minha madrasta também virá?
Os lábios de Júlia tremiam.
- Ela não deixou de se preocupar contigo um só dia, contou-nos Etienne, e os teus irmãos cresceram tanto que
poderás não os reconhecer.
Foi mais forte que ela. Júlia queixou-se:
- Eles fizeram-me tanto mal. Se não me tivessem expulsado...
O seu interlocutor levou um dedo aos lábios, depois suspirou:
- Também tu lhes fizeste muito mal. Isso tem de acabar, não achas?
Eles não lhe faziam qualquer censura, não lhe perguntavam sequer como é que ela tencionava arranjar-se sozinha
em Paris, sem ter terminado os seus estudos, antecipadamente entregue ao pior. Fingiam ignorar que ela se
drogara, que cometera actos abjectos para alimentar o seu vício. No entanto, mesmo que Etienne nada lhes tivesse
dito, o médico teria certamente adivinhado tudo.
- Eu não sou digna dele.
- Não mintas, não é do julgamento de Etienne que tu tens medo. Ele nada tem a perdoar-te. Ama-te e confia. Queres
que te diga, como um diagnóstico médico, o que te fez fugir, pronta a cometer mais uma vez um disparate que seria,
agora, irremediável?
Júlia esperava. Sabia o que iria ouvir.

- Tiveste vergonha de olhar de frente alguém a quem odiaste injustamente. Creio que Brigitte, é o nome dela, não é,
te ama como se fosses de facto a sua filha mais velha. O resto deves tê-lo inventado. Tem-se tanta imaginação aos
quinze anos! É perigosa, essa imaginação. Vá, vamos!
Júlia aquiesceu em silêncio, e a cada curva da estrada o seu coração batia mais depressa, mas de alegria.. Não
perderia Etienne. Ele conservá-la-ia bem apertada contra ele, para que ela não tropeçasse quando avançassem,
juntos, para um homem que apertaria os maxilares para ocultar a sua comoção, para uma mulher encantadora, ainda
mais comovida do que ele.
E os dois, ela não duvidava que seria assim, diriam: "Perdoem-nos."
Ela atirar-se-ia primeiro para os braços do homem, depois para os da mulher, e murmuraria por sua vez: "Perdão."
- Terei o tempo necessário para mudar de roupa - disse. - Hélène comprou-me um vestido, um vestido lindo. Um
verdadeiro vestido de noivado. E preparou um destes almoços. Etienne já vos disse que me tornei uma excelente
cozinheira?
- Não. Disse apenas que tu eras a rapariga mais formidável do mundo, a mais corajosa.
Júlia não queria ouvir mais. Ia recomeçar a chorar e não era decididamente o dia para isso. Quando o carro parou,
viu Hélène no limiar da porta. Correu para ela e abraçou-a, murmurando:
- Porque é que não me avisaste? Quis fugir porque tive medo!
No mesmo tom confidencial, Hélène replicou:
- Medo de quê? De estares por fim apaziguada, feliz! Parece-me que já pagaste o teu preço. De resto, verás, a
felicidade não é simples. Mas agora tenho a certeza de que serás capaz de ser feliz. Eles chegam ao meio-dia. No
fundo, estou contente por tu teres aberto a porta da casa de jantar, e esta manhã senti-te fugir, mas queria que
voltasses por tua vontade.
- E se eu os não tivesse encontrado, por acaso, na estrada?
Hélène, como o filho, respondeu gravemente:
- Não há acaso, foi a Providência. E agora só te resta fazer uma coisa.
Júlia recuou um passo, sem largar as mãos de Hélène.
- Arrumar o meu quarto, destruir esse caderno que se tornou inútil e voltar a descer para comer esses brioches cujo
aroma me chega às narinas...
O pai e a mãe de Etienne esperavam, sem se admirarem com aquela troca de palavras entre Hélène e Júlia.
- Não destruas o teu caderno. Não tinhas intenção de o dar a ler a Etienne? Pelo menos, ele casará com
conhecimento de causa. Nem todos os homens podem dizer o mesmo. Mas tenta acrescentar-lhe algumas palavras,
por exemplo, que o amas e que só isso conta. Penso que será o melhor ponto final. E agora deixa-me ir beijar o meu
filho. Há meses que espero poder fazê-lo. Quem sabe? Talvez também os teus pais esperem há muitos meses. Os
filhos, verás, não são uma coisa simples!
De súbito, ao longe, o repicar alegre dos sinos anunciou a primeira missa da manhã.

FIM

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