Você está na página 1de 6

A questão das pensões

– A situação aqui descrita aplica-se também a uma


multiplicidade de países

Prabhat Patnaik [*]

Todos os dias observamos um


fenómeno estranho, tão
estranho que a sua estranheza
passa geralmente despercebida.
Os porta-vozes do governo, do
primeiro-ministro para baixo,
repetem até à exaustão que a
Índia é a grande economia em mais rápido crescimento
no mundo atual, que em breve se tornará uma economia
de 5 milhões de milhões (trillion) de dólares e que
ultrapassou a China em termos de taxa de crescimento
do produto interno bruto. E, no entanto, os mesmos
porta-vozes do governo afirmam que o governo não tem
dinheiro para pagar o antigo regime de pensões dos
funcionários públicos, quanto mais para um regime de
pensões universal adequado e não contributivo para os
milhões de pessoas que passaram os seus anos de
trabalho como empregados no sector não organizado.

A "economia de crescimento mais rápido" do mundo, ao


que parece, não pode pagar pensões para os seus
idosos, tal como não pode pagar uma dieta adequada
para a sua população feminina, uma vez que 57% das
mulheres entre os 15 e os 49 anos, de acordo com o
Inquérito Nacional de Saúde Familiar, sofriam de anemia
em 2019-21 (contra 53% em 2015-16). Do mesmo
modo, esta chamada "economia de crescimento mais
rápido" do mundo não consegue fornecer uma nutrição
adequada à sua população em geral, pelo que ocupa o
111.º lugar no índice mundial da fome entre os 125
países para os quais o índice é calculado; e a proporção
da população rural que não consegue aceder à norma
mínima de 2200 calorias por pessoa por dia que a antiga
Comissão de Planeamento havia tomado como
referência para a pobreza rural aumentou de 68% em
2011-12 para bem mais de 80% em 2017-18, de acordo
com dados disponibilizados por nada menos que o
Inquérito Nacional por Amostragem.

Vamos aprofundar um pouco mais o assunto. O único


argumento apresentado pelos seus defensores a favor
do novo regime de pensões em detrimento do antigo
regime dos funcionários públicos é o argumento
orçamental, que é considerado quase axiomático. No
momento em que se menciona o antigo regime, a
resposta imediata da maioria dos meios de comunicação
social e dos economistas, quase como um reflexo, é:
"Mas o governo não tem dinheiro para isso". Ora, ao
abrigo do antigo regime, um funcionário público, após a
reforma, recebia metade do último salário e do subsídio
de invalidez como pensão, que era posteriormente
ajustada à inflação (em sintonia com a DA dos
funcionários públicos em serviço). Quando ajustada à
inflação, a pensão "real" permanecia mais ou menos
constante até ser ocasionalmente actualizada ao fim de
vários anos. Ora, se a economia está a crescer em
termos "reais" 6 a 7 por cento ao ano, como o governo
se gaba, então, uma vez que o número de funcionários
públicos que recebem pensões não está a crescer a este
ritmo, e uma vez que qualquer aumento da pensão real
ocorre, se é que ocorre, apenas após um considerável
desfasamento temporal, o montante da pensão como
proporção do PIB deveria estar a diminuir ao longo do
tempo (até que ocorra qualquer revisão real que possa
trazê-lo de volta ao seu nível original).
Por outras palavras, longe de o montante das pensões
se tornar insustentável ao longo do tempo, deveria estar
a diminuir em termos proporcionais ao longo do tempo e,
por conseguinte, a tornar-se mais fácil de acomodar, se
os próprios números de crescimento do governo forem
levados a sério. Mas então porque é que o Governo
afirma o contrário? A razão não pode residir no facto de,
embora o crescimento do PIB esteja a ocorrer a um
ritmo acelerado, o orçamento do Governo estar, de
alguma forma, impedido de se expandir ao mesmo ritmo,
pois não há qualquer razão plausível para que isso
aconteça. A verdadeira razão, então, deve ser o facto de
o governo querer simplesmente que proporções cada
vez maiores do PIB vão para os capitalistas e para os
ricos, para o que pode sempre avançar com o
argumento conveniente de que essas transferências
ajudam a impulsionar o investimento e,
consequentemente, o crescimento do PIB.

Contudo, tal argumento não tem qualquer justificação:


a alegação habitual de que se for dado mais dinheiro
aos capitalistas, eles investirão mais é um argumento
ridículo, cuja vacuidade foi exposta há quase um século
por ninguém menos do que o economista burguês J M
Keynes, o qual, juntamente com o economista marxista
polaco Michal Kalecki, demonstrou que o capitalismo é
geralmente um "sistema de procura constrangida". Num
tal sistema, a produção, o investimento e o crescimento
são impulsionados pelo aumento da procura agregada e
não por transferências para os capitalistas. Esta
proposição foi tão claramente demonstrada pela
experiência que nem mesmo o governo Modi pode
acreditar na sua veracidade; a sua recusa em
disponibilizar mais recursos para as pensões, quer para
os seus próprios empregados, quer para a população
idosa em geral, é uma clara demonstração de viés de
classe, que nada tem a ver com qualquer lógica
económica sã.

PIB E PALÁCIOS DE MARAJÁS

O facto de o Governo cacarejar acerca da taxa de


crescimento, mesmo em meio de uma situação de
grande aflição, e de se recusar a aliviar essa aflição em
nome do aumento do PIB, em suma, todo este
fetichismo do PIB contém um absurdo cujo limite foi
atingido sob o domínio dos marajás de outrora. Muitos
deles utilizaram o trabalho de mendigos ou de corveia,
em que o trabalho é forçado a sair do trabalhador sem
que este lhe seja pago, a fim de construírem palácios
para si próprios. Tais construções ter-se-iam traduzido
numa elevada taxa de crescimento do PIB, embora a
opressão infligida ao povo fosse desumana. Um
fetichista do PIB deveria, portanto, ter-se orgulhado da
mendicância. Do mesmo modo, temos hoje em dia
dezenas de milhões de idosos a serem empurrados para
condições de vida desumanas, com apenas uma ínfima
parte deles a receberem do governo central uma
ninharia de 200 rupias por mês por pessoa, não porque
não existam recursos no país para melhorar a sua sorte,
mas porque os recursos são apropriados pelos
capitalistas e pelos ricos em geral, com o argumento
absolutamente espúrio de que assim aumentaria o
crescimento do PIB.

Examinemos esta questão dos recursos um pouco mais


cuidadosamente. Em 2018-19, havia cerca de 13
milhões de pessoas com mais de 60 anos que
precisavam de uma pensão vitalícia de cerca de 3000
rupias por mês. Nesse ano, o rendimento nacional bruto
do país, em números redondos, foi 187 mihão de
milhões de rupias. Por conseguinte, o pagamento de
3000 rupias por mês aos idosos não teria exigido mais
do que 2,5% do RNB. O pagamento das pensões
implicaria despesas, uma parte das quais reverteria a
favor do Estado sob a forma de impostos e, por
conseguinte, poderia ser reafectada. Assumindo, numa
base conservadora, que 30 por cento dessa despesa
reverte para o governo depois de todas os ciclos do
multiplicador terem sido completadas (isto é, a despesa
que gera produção e rendimentos e, consequentemente,
mais despesa e mais produção e rendimentos, e assim
por diante, com os impostos a serem pagos em cada
ciclo, ter sido finalmente completada), uma despesa total
de 2,5 por cento do Rendimento Nacional Bruto (RNB)
exigiria uma injeção inicial de procura no valor de
apenas 1,75 por cento do RNB na economia.

Partindo do princípio, não irrealista, de que, quando os


ricos pagam impostos mais elevados não deixam
necessariamente de consumir (a não ser que os
impostos sejam extraordinariamente pesados), este
montante pode ser aumentado confortavelmente através
da imposição de um imposto sobre a riqueza de apenas
1% apenas aos 1% mais ricos da população. Portanto,
não há escassez de recursos no país para instituir um
programa de pensões universal e não contributivo, do
qual aqueles que já estão inscritos em algum regime de
pensões (e que, presumivelmente, recebem mais de
3000 rupias por mês, a preços de 2018-19) retirar-se-ão
voluntariamente.

Certamente, pensar-se-ia, o número de potenciais


pensionistas teria aumentado agora em comparação
com 2018-19 e, por causa da inflação, o montante de Rs
3000 por mês teria de ser revisto em alta. A pressão
orçamental atual não seria mais pesada? A resposta é
"não", porque entretanto o rendimento nacional a preços
correntes também aumentou, tanto por causa do
crescimento real como também por causa da subida dos
preços, que eleva o rendimento nacional nominal. De
facto, como o número de potenciais beneficiários não
teria crescido na mesma proporção que o rendimento
nacional real, a provisão do mesmo montante de pensão
"real" (Rs 3000 por mês a preços de 2018-19), exigiria
uma parcela menor da rendimento nacional e, portanto,
um esforço orçamental ainda menor.

Para além da ajuda digna que proporciona aos seres


humanos, este regime tem ainda uma outra vantagem.
Com o capitalismo neoliberal a chegar a uma crise de
sobreprodução, é urgente uma maior despesa do
Estado, financiada quer por um défice orçamental quer
por impostos sobre os ricos, para ultrapassar a crise. No
entanto, o neoliberalismo opõe-se tanto a um maior
défice orçamental como a maiores impostos sobre os
ricos, razão pela qual não há solução para a crise no
próprio neoliberalismo. Medidas como um regime
universal de pensões não contributivas constituem,
neste contexto, uma forma de ultrapassar a crise e o
prenúncio de uma nova ordem.
14/Janeiro/2024

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2024/0114_pd/question-
pensions

Este artigo encontra-se em resistir.info

17/Jan/24

Você também pode gostar