Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
https://jornalggn.com.br/gestao/aspectos-politicos-do-pleno-emprego-por-michal-kalecki/
2. Pode-se perguntar, de onde o público vai tirar o dinheiro para emprestar para o
governo se não reduzir o seu investimento e consumo. Para entender esse processo, é
melhor, penso eu, imaginar por um momento que o governo paga seus fornecedores em
títulos públicos. Os fornecedores, em geral, não reterão esses títulos, mas os colocarão
em circulação enquanto compram outros bens e serviços, e assim por diante, até que
finalmente esses títulos atingirão pessoas ou empresas que os manterão como ativos
remunerados. Em qualquer período de tempo, o aumento total de títulos públicos em
poder (transitório ou definitivo) de pessoas e empresas será igual ao dos bens e serviços
vendidos ao governo. Assim, o que a economia empresta ao governo são bens e serviços
cuja produção é “financiada” por títulos do governo. Na realidade, o governo paga pelos
serviços, não em títulos, mas em dinheiro, mas ele emite títulos simultaneamente e
assim retira de circulação o dinheiro; e isto é equivalente ao processo imaginário
descrito acima.
1
3. Pode-se objetar que os gastos públicos financiados pelo endividamento causarão
inflação. Para isso, pode ser respondido que a demanda efetiva criada pelo governo age
como qualquer outro aumento de demanda. Se há oferta suficiente de trabalho, plantas e
matérias-primas estrangeiras, o aumento da demanda é atendido por um aumento na
produção. Mas, se o ponto de pleno emprego dos recursos é atingido e a demanda
efetiva continua a aumentar, os preços subirão, de modo a equilibrar a demanda e a
oferta de bens e serviços. (No estado de sobre-emprego de recursos, como o que
testemunhamos atualmente na economia de guerra, um aumento inflacionário dos
preços tem sido evitado apenas na medida em que a demanda efetiva por bens de
consumo é contida pelo racionamento e pela taxação direta). Segue-se que, se a
intervenção governamental tem como objetivo atingir o pleno emprego, mas freia um
pouco antes da demanda efetiva ultrapassar a marca de pleno emprego, não há
necessidade de ter medo da inflação. (ii)
II
Em primeiro lugar deve se afirmar que embora a maioria dos economistas agora
concordem que o pleno emprego pode ser alcançado pelos gastos do governo, este de
modo algum foi o caso, mesmo no passado recente. Entre os opositores dessa doutrina
existiam (e ainda existem) proeminentes e autointitulados “especialistas econômicos”
estreitamente ligados à banca e à indústria. Isso sugere que há um fundo político na
oposição à doutrina do pleno emprego, mesmo que os argumentos apresentados sejam
econômicos. Isso não quer dizer que as pessoas que desenvolvem essas teorias não
acreditam em sua economia, por mais lamentável que isso seja. Mas a ignorância
obstinada geralmente é uma manifestação de motivações políticas subjacentes.
Há, no entanto, indicações ainda mais diretas de que uma questão política de primeira
categoria está em jogo aqui. Na grande depressão na década de 1930, as grandes
empresas sempre se opuseram aos experimentos de aumento do emprego pelos gastos
do governo em todos os países, exceto a Alemanha nazista. Isto pôde ser visto
claramente nos EUA (oposição ao New Deal), na França (o experimento Blum), e na
Alemanha antes de Hitler. A atitude não é fácil de explicar. Claramente, uma maior
produção e emprego beneficia não só os trabalhadores, mas também os empresários
porque seus lucros aumentarão. E a política de pleno emprego descrita acima não colide
com os lucros, porque não envolve nenhuma tributação adicional. Os empresários diante
de uma recessão anseiam por uma retomada; porque é que eles não aceitam de bom
grado a retomada sintética que o governo é capaz de oferecer-lhes? É esta questão difícil
e fascinante que pretendemos tratar neste artigo.
As razões para a oposição dos “líderes industriais” ao pleno emprego alcançado via
gastos do governo podem ser subdivididos em três categorias: (i) não gostam da
interferência do governo no problema do emprego como tal; (ii) não gostam da direção
dos gastos do governo (o investimento público e o consumo subsidiado); (iii) não
gostam das mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego.
2
Vamos examinar em detalhe cada uma dessas três categorias de restrições a uma
política governamental expansionista.
3
disciplinar”. A posição social do patrão seria prejudicada, e a autoconfiança e
consciência de classe da classe trabalhadora cresceria. As greves por aumentos salariais
e melhorias nas condições de trabalho criariam tensão política. É verdade que os lucros
seriam mais elevados sob um regime de pleno emprego do que são, em média, nos
termos do livre mercado, e até mesmo o aumento dos salários decorrente do maior
poder de barganha dos trabalhadores é menos propenso a reduzir os lucros do que para
aumentar preços, e, portanto, afeta negativamente apenas os interesses rentistas. Mas a
“disciplina nas fábricas” e a “estabilidade política” são mais apreciadas do que os lucros
pelos líderes empresariais. Seu instinto de classe lhes diz que um pleno emprego
duradouro é inaceitável a partir do seu ponto de vista, e que o desemprego é uma parte
integrante do sistema capitalista “normal”.
III
1. Uma das funções importantes do fascismo, como tipificado pelo sistema nazista, foi
remover as objeções capitalistas ao pleno emprego.
A aversão a política de gastos do governo, como tal, é superada sob o fascismo pelo
fato de que a máquina do Estado está sob o controle direto de uma parceria das grandes
empresas com o fascismo. A necessidade do mito das “finanças saudáveis”, que servira
para impedir o governo de causar uma crise de confiança devido aos gastos públicos, é
removida. Em uma democracia, não se sabe como será o próximo governo. Sob o
fascismo não há próximo governo.
IV
4
1. Qual será o resultado prático da oposição a uma política de pleno emprego pelos
gastos do governo em uma democracia capitalista? Vamos tentar responder a esta
questão com base na análise das razões para essa oposição dadas na seção II. Nós
discutimos lá que podemos esperar a oposição dos líderes do setor em três planos: (i) a
oposição por princípio aos gastos do governo com base em um déficit orçamentário; (ii)
a oposição ao direcionamento deste dispêndio tanto para o investimento público – o que
pode prenunciar a intromissão do Estado em novas esferas da atividade econômica – ou
no sentido de subsidiar o consumo de massa; (iii) a oposição a manutenção do pleno
emprego e não apenas a prevenção de depressões profundas e prolongadas.
Agora deve-se reconhecer que a fase em que “os líderes empresariais” poderiam se
dar ao luxo de ser oposição a qualquer tipo de intervenção do governo para aliviar a
depressão é mais ou menos passado. Três fatores contribuíram para isso: (i) muito pleno
emprego durante a presente guerra; (ii) desenvolvimento da doutrina econômica do
pleno emprego; (iii) em parte como resultado desses dois fatores, o slogan “O
desemprego nunca mais” agora está profundamente enraizado na consciência das
massas. Esta posição reflete-se nos recentes pronunciamentos dos “capitães da
indústria” e seus especialistas. A necessidade de que “algo deve ser feito na depressão”
é consensual; mas a luta continua, em primeiro lugar, quanto ao que deve ser feito na
depressão (ou seja, o que deveria ser a direção da intervenção do governo) e em
segundo lugar, que isso deveria ser feito apenas na depressão (ou seja, apenas para
aliviar recessões em vez de garantir permanentemente o pleno emprego).
2. Nas discussões atuais destes problemas surge, uma vez ou outra, a concepção de se
combater a depressão estimulando o investimento privado. Isto pode ser feito através da
redução da taxa de juros, pela redução do imposto de renda, ou subsidiando o
investimento privado diretamente nesta ou em outra forma. Que tal esquema deva ser
atraente para o mercado não é surpreendente. O empresário continua a ser o meio
através do qual a intervenção é conduzida. Se ele não sentir confiança na situação
política, ele não vai ser subornados para investir. E a intervenção não envolve o
governo, seja na “brincadeira com” o investimento (público), seja no “desperdício de
dinheiro” com subsídios ao consumo.
5
emprego estimulando o investimento privado: a taxa de juros e imposto de renda teriam
de ser reduzidos de forma contínua. (iv)
Este estado das coisas é talvez sintomático do futuro regime econômico das
democracias capitalistas. Na recessão, quer sob a pressão das massas, ou até mesmo sem
ela, o investimento público financiado por endividamento do Estado serão realizados
para evitar o desemprego em grande escala. Entretanto, se forem feitas tentativas de
aplicar este método com o propósito de manter o alto nível de emprego alcançado com a
retomada do crescimento posterior, é bem provável que seja encarada uma forte
oposição dos líderes empresariais. Como já foi discutido, pleno emprego duradouro não
é de todo o seu grado. Os trabalhadores sairiam do “controle” e os “capitães da
indústria” ficariam ansiosos para “ensinar-lhes uma lição”. Ademais, o aumento de
preços na retomada é uma desvantagem dos pequenos e grandes rentistas, e torna-os
“cansados de crescimento”.
6
1. Deveria um progressista ficar satisfeito com o ciclo de negócios político da forma
como descrito na seção anterior? Acho que a isto deveríamos nos opor em dois níveis:
(i) que isto não assegura um pleno emprego duradouro; (ii) que esta intervenção
governamental está associada ao investimento público que não abarca o subsídio ao
consumo. O que as massas demandam agora não é a mitigação da recessão, mas sua
abolição total. Nem deveria a consequente utilização mais completa dos recursos ser
feita em investimentos públicos não desejados apenas para gerar emprego. O programa
de gastos governamentais deveria estar dedicado apenas ao investimento público de fato
necessário. O resto do gasto público necessário para manter o pleno emprego deveria ser
usado para subsidiar o consumo (através de transferências às famílias, pensões e
aposentadorias, redução dos impostos indiretos e subsídios aos bens de primeira
necessidade). Os opositores deste tipo de gasto governamental alegam que o governo
não terá, então, nenhuma contrapartida ao seu dinheiro. A resposta é que a contrapartida
deste dispêndio é o maior padrão de vida das massas. Este não é propósito de toda a
atividade econômica?
Entretanto, lutar pelo pleno emprego pode levar ao fascismo? Talvez o capitalismo se
ajuste ao pleno emprego no caminho? Isto parece extremamente improvável. O
fascismo surgiu na Alemanha diante de um cenário de desemprego tremendo, e se
manteve no poder assegurando o pleno emprego enquanto a democracia capitalista
fracassou neste objetivo. A luta das forças progressistas pelo emprego de todos é ao
mesmo tempo uma maneira de se prevenir a reincidência do fascismo.
Notas:
(i) Este artigo corresponde aproximadamente a uma palestra dada à Sociedade Marshall
em Cambridge na primavera de 1942.
(ii) Outro problema de natureza mais técnica é o da dívida nacional. Se o pleno emprego
é mantido por gastos do governo financiados por empréstimos, a dívida nacional
aumentará continuamente. Isso não precisa, no entanto, envolver quaisquer perturbações
na produção e no emprego se os juros da dívida forem financiados por um imposto
anual sobre o capital. A renda corrente, após o pagamento do imposto sobre o capital, de
alguns capitalistas será menor, e de outros maior, do que se a dívida nacional não
tivesse aumentado, mas o seu rendimento global permanecerá inalterado e seu consumo
agregado não será suscetível a mudanças significativas. Além disso, a propensão para
investir em capital fixo não é afetada por um imposto sobre o capital, porque ele é pago
sobre qualquer tipo de riqueza. Se uma determinada quantia está em dinheiro ou títulos
do governo ou investida na construção de uma fábrica, o mesmo imposto sobre o capital
é pago sobre ela e, assim, a vantagem comparativa é inalterada. E se o investimento é
7
financiado por empréstimos é evidente que não é afetado por um imposto sobre o capital
se não significar um aumento da riqueza do empresário investidor. Assim, nem o
consumo capitalista nem o investimento é afetado pelo aumento da dívida nacional se
seus juros forem financiados por um imposto anual sobre o capital. (Veja mais em
Kalecki, M. “A Theory of Commodity, Income, and Capital Taxation” in: Kalecki, M.
Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy 1933-1970, Cambridge
University Press, 1971)
(iii) Deve-se notar aqui que o investimento em uma indústria nacionalizada pode
contribuir para a solução do problema do desemprego apenas se for realizada em
princípios de retorno diferentes daqueles da iniciativa privada, ou deve deliberadamente
temporizar o seu investimento de modo a mitigar aqueles da iniciativa privada. O
governo deve estar satisfeito com uma menor taxa líquida de falências.
(iv) Uma demonstração rigorosa encontra-se no artigo publicado em Kalecki, M., “Full
Employment by Stimulating Private Investment?” In: Oxford Economic Papers. (1945)
os-7 (1): 83-92