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Semanas depois...
Infelizmente para minha avó, o sujeito que assumiu o antigo cargo do
agora, falecido Xandão, não era nem um pouco manipulável. Certo dia, eu
estava doente. Sofrendo por uma gripe infernal. Minha avó decidiu que eu
iria fazer minha “mágica” para o novo frente do morro mesmo assim. Eu
estava puto pela falta de empatia, pela exploração, por tudo... então eu
menti, fingi ter visto alguma coisa mas sequer tentei de fato. Eu disse para
ele que ele não tinha com o que se preocupar, que tudo estava indo bem e
seu futuro era calmo e próspero. Terrível erro. Na mesma semana uma
mega operação aconteceu no morro, resultando na morte de vários
traficantes e armas apreendidas. O frente não gostou nem um pouco de
ser pego de surpresa com a guarda baixa e resolveu se vingar... minha avó
foi morta no que eles chamam de “micro-ondas”, basicamente colocaram
ela amarrada no meio de vários pneus e atearam fogo nela viva. Eu tive
sorte... levei apenas dois tiros no peito.
Eu fui socorrido por moradores do morro e levado para o hospital mais
próximo. Entre os poucos flashes que tenho daquele dia antes de acordar
no CTI, me lembro dos enfermeiros correndo comigo numa maca pelos
corredores do hospital, me lembro deles gritando que eu tava perdendo
muito sangue, me lembro da chegada do médico e me lembro depois de
estar só o médico e um outro sujeito que vestia um terno muito elegante
no quarto, mas eu não conseguia ver seu rosto. Me lembro do tal sujeito
derramar algo sobre minha boca. Passei anos desejando aquilo
novamente, mesmo sem saber o que era. Quando acordei, estava cercado
de enfermeiras e policiais. Me lembro de ouvir pela janela o borburinho do
lado de fora. Eram repórteres... não era todo dia que um garoto de 10
anos sofria uma tentativa de homicídio e sobrevivia. Aquilo foi um prato
cheio pra polícia cair matando em cima da vagabundagem do Santa Marta.
Eles não descansaram enquanto não mataram o frente do morro, executor
de minha avó.
O médico que cuidou de mim acabou me adotando. Se não fosse ele, eu
teria ido para algum abrigo... nunca conheci meu pai e minha mãe estava
perdida pela cidade, se afundando cada vez mais nas drogas. Eu decidi que
seria policial quando crescesse e meu bem feitor, Dr Amaro Portela, fez
questão de me apoiar para que eu conseguisse alcançar esse objetivo, mas
nunca me permitiu abandonar meu dom. Ele dizia que eu deveria estudá-
lo, procurar entendê-lo melhor para aprimorá-lo. Ao contrário de minha
avó, o Dr Amaro preferia manter isso em segredo. A única excessão era seu
“amigo” que frequentava a casa regularmente... ele o chamava
estranhamente e de forma muito suspeita, de “Senhor Tiberius”. Era
estranho porque o tal Tiberius parecia ser mais novo que o Dr Amaro, mas
enfim... Os dois passavam horas tentando traduzir um enorme livro
estranho e conversando sobre cálculos, fórmulas complexas, anatomia,
geometria etc... depois eles se trancavam no escritório por pelo menos
30min e quando saíam, o Dr Amaro sempre parecia mais eufórico e vivo,
apesar de ser nítido o quanto ele tentava não transparecer isso. Tiberius
sempre se mostrou muito interessado no meu “dom”. As vezes ele trazia
alguns objetos para que eu tentasse obter algum presságio através deles.
Algumas vezes dava certo, outras não vinha nada... Muitas vezes eu
apenas contava o que ouvia, sentia e via para ele e deixava que ele
interpretasse, pois eu mesmo não entendia nada do que tinha visto. E
assim foi até meus 23 anos, quando finalmente entrei para a Polícia Civil
em 1996 e fui morar sozinho.
“-Você foi aprovado... Sempre soube que tinha potencial. Sua vida inteira
você foi testado. Eu estava lá quando teve sua primeira troca de tiros; Eu
estava lá quando precisou resolver aquele quebra-cabeça no caso do
pedófilo; Eu também estava lá quando sumiu com o corpo do seu parceiro
invejoso porque ele ameaçou contar pra corregedoria que você vendeu
aquele fuzil pros traficantes do Dona Marta, se não terminasse com sua
namorada para que ele tivesse chance com ela. Eu sempre estive lá, você
apenas não me via. Agora chegou a hora de saber toda verdade...”
Eu só ouvia o que ele dizia sem conseguir me mover. Meus olhos
arregalados com espanto por ele saber de algo que eu nunca contei para
ninguém, logo deram lugar a expressão de medo e desespero quando ví
sua expressão se fechar mudando repentinamente antes de proferir as
fatídicas palavras:
“-DE JOELHOS!”
Na luz vacilante, uma das figuras aproximou-se. Era Thomas... Meu captor
retirou seu capuz e sorriu para mim, novamente de forma que me causou
desconforto. Desta vez, meu estômago não apertou e minhas costas não
formigaram; ao invés disso, senti uma leve suspeita, uma paranóia rasteira
enquanto ele falava. “Bem-vindo ao nosso círculo, cria. Você cruzou o
limiar. Agora você tem muito a aprender”. Nesse momento soube que seja
lá o que tinha acabado de acontecer, não tinha mais volta. Então decidi
que entraria de cabeça e mergulharia o mais fundo possível nesse mundo
novo que me seria apresentado.
Hoje faz vinte anos que fui abraçado. Abandonei completamente minha
vida no Rio com ajuda de meu Senhor e desde então me dedico
inteiramente todas as noites em armazenar conhecimento e ser útil para o
Clã, para minha Casa e para a Camarilla. Espero um dia alcançar o cargo de
Regente de Vitória. Segundo Tiberius, Thomas era um talentoso Tremere
que estava em uma disputa feroz contra meu Senhor em provar seu valor
ao Regente. Sua ambição o levou à lugares sombrios e o fez mexer com
coisas que deveriam ficar enterradas no mais profundo abismo para que
ninguém encontrasse. O Dr Amaro era carniçal e amigo fiel de meu Senhor,
ele foi apenas uma das vítimas de suas maquinações para minar a
influência de Tiberius e assim conseguir galgar status no clã. Tiberius já
suspeitava que ele estava envolvido com poderes proibidos, mas não
podia arriscar uma investigação sem ter certeza de que iria resultar na
condenação de seu rival, pois caso a investigação não desse em nada e ele
fosse pego investigando, seria visto como ofensa e aí o jogo poderia mudar
de figura. Uma vez que meus presságios confirmaram suas suspeitas ele se
viu livre para levar sua investigação ao Regente, que agiu rápidamente
com seus próprios meios para descobrir a verdade, revelando Thomas
como um criminoso e traidor, consequentemente causando o fim de sua
não-vida.
Tiberius me proibiu de procurar saber mais sobre o assunto “infernalismo”.
Até mesmo pronunciar essa palavra poderia ser visto com maus olhos.
Claro que isso só atiçou ainda mais minha curiosidade, mas não posso me
exceder e preciso dançar conforme a música se quiser ter sucesso. Um
dia... e esse dia vai chegar... eu finalmente terei autonomia para estudar
sobre o assunto. Até lá, faço o melhor que posso e provo todas as noites o
porquê eu fui escolhido para essa existência feroz e angustiante que é a
não-vida.