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16/02/1983 • Rio de Janeiro, RJ – Brasil

O vozerio emaranhado, a batida frenética dos tambores, o maldito


cheiro daquela mistura de ervas com sei lá mais o quê minha avó colocava
nesse negócio para encher o lugar dessa fumaça terrível e nauseante.
Tudo isso somado ao calor escaldante de um típico verão carioca que
castigava o barracão com o sol batendo forte sobre as telhas... e lá estava
eu. Sentado frente à uma mesa redonda adornada com velas, incenso e
cristais... meras alegorias sem sentido.
Do outro lado da mesa à minha frente, o homem sentado carregando
um fuzil atravessado nas costas com a bandoleira sobre o ombro me
encarava com olhos cheios de temor e esperança. As guias em seu pescoço
revelavam sua fé. “Xandão”, como era conhecido na região, era o frente do
morro e um frequentador fiel do terreiro de minha vó e beeem generoso.
Se ele soubesse que 90% do que ela fazia e dizia era pura encenação,
minha avó certamente teria tido um fim muito mais trágico que o que teve
anos mais tarde. Xandão tinha uma reputação macabra de ser o torturador
mais cruel que o morro já teve. Mas ela sempre teve um trunfo e nunca
hesitou em usá-lo... Ela tinha à mim. Seja “sorte”, “maldição” ou “algo
maior”... eu nasci com o dom de receber presságios do destino, não me
pergunte como. Com o tempo eu aprendi a “clamar por esses presságios”
e foi assim que minha avó, falsa mãe de santo requisitadíssima no Santa
Marta, montou seu negócio mais lucrativo. Todo traficante teme o seu
destino, e a maioria tem dinheiro sobrando. Eles iam com certa frequência
até o barracão atrás de alguma mensagem reveladora, algum sinal divino
indicando que posição tomar diante das diversas situações que os aflingia
em seus cotidianos violentos. Naquela tarde não foi diferente. Não
demorou muito para começar a ouvir o zumbido, fino e distante, mas
desnorteador... as imagens vinham sempre depois. Eu podia sentir meus
olhos fervendo instantes antes das primeiras imagens chegarem. A medida
que um brilho cintilante inundava meus olhos, meus sentidos eram
atingidos por uma onda de informações... Ouvi um constante uivo de um
vira-lata enquanto minha mente me levava para um beco escuro no alto
do morro onde o chão estava marcado com pegadas de sangue e cinco
silhuetas sombrias sorriam comemorando algo. Antes de voltar a sí, pude
ouvir choro de uma mulher desamparada... Eu sabia que era choro de luto.
Xandão iria morrer na próxima operação policial. Olhei para minha avó e
apenas pelo meu olhar ela já sabia. Rapidamente mandou cessar os
tambores e tirou todos do salão, ficando apenas eu, ela e Xandão. Ela deu
a fatídica notícia da melhor forma que pôde e lhe passou um monte de
instruções e itens para comprar e oferendas para fazer a fim de evitar seu
trágico destino... Dias depois chega a notícia, Xandão foi morto.

Semanas depois...
Infelizmente para minha avó, o sujeito que assumiu o antigo cargo do
agora, falecido Xandão, não era nem um pouco manipulável. Certo dia, eu
estava doente. Sofrendo por uma gripe infernal. Minha avó decidiu que eu
iria fazer minha “mágica” para o novo frente do morro mesmo assim. Eu
estava puto pela falta de empatia, pela exploração, por tudo... então eu
menti, fingi ter visto alguma coisa mas sequer tentei de fato. Eu disse para
ele que ele não tinha com o que se preocupar, que tudo estava indo bem e
seu futuro era calmo e próspero. Terrível erro. Na mesma semana uma
mega operação aconteceu no morro, resultando na morte de vários
traficantes e armas apreendidas. O frente não gostou nem um pouco de
ser pego de surpresa com a guarda baixa e resolveu se vingar... minha avó
foi morta no que eles chamam de “micro-ondas”, basicamente colocaram
ela amarrada no meio de vários pneus e atearam fogo nela viva. Eu tive
sorte... levei apenas dois tiros no peito.
Eu fui socorrido por moradores do morro e levado para o hospital mais
próximo. Entre os poucos flashes que tenho daquele dia antes de acordar
no CTI, me lembro dos enfermeiros correndo comigo numa maca pelos
corredores do hospital, me lembro deles gritando que eu tava perdendo
muito sangue, me lembro da chegada do médico e me lembro depois de
estar só o médico e um outro sujeito que vestia um terno muito elegante
no quarto, mas eu não conseguia ver seu rosto. Me lembro do tal sujeito
derramar algo sobre minha boca. Passei anos desejando aquilo
novamente, mesmo sem saber o que era. Quando acordei, estava cercado
de enfermeiras e policiais. Me lembro de ouvir pela janela o borburinho do
lado de fora. Eram repórteres... não era todo dia que um garoto de 10
anos sofria uma tentativa de homicídio e sobrevivia. Aquilo foi um prato
cheio pra polícia cair matando em cima da vagabundagem do Santa Marta.
Eles não descansaram enquanto não mataram o frente do morro, executor
de minha avó.
O médico que cuidou de mim acabou me adotando. Se não fosse ele, eu
teria ido para algum abrigo... nunca conheci meu pai e minha mãe estava
perdida pela cidade, se afundando cada vez mais nas drogas. Eu decidi que
seria policial quando crescesse e meu bem feitor, Dr Amaro Portela, fez
questão de me apoiar para que eu conseguisse alcançar esse objetivo, mas
nunca me permitiu abandonar meu dom. Ele dizia que eu deveria estudá-
lo, procurar entendê-lo melhor para aprimorá-lo. Ao contrário de minha
avó, o Dr Amaro preferia manter isso em segredo. A única excessão era seu
“amigo” que frequentava a casa regularmente... ele o chamava
estranhamente e de forma muito suspeita, de “Senhor Tiberius”. Era
estranho porque o tal Tiberius parecia ser mais novo que o Dr Amaro, mas
enfim... Os dois passavam horas tentando traduzir um enorme livro
estranho e conversando sobre cálculos, fórmulas complexas, anatomia,
geometria etc... depois eles se trancavam no escritório por pelo menos
30min e quando saíam, o Dr Amaro sempre parecia mais eufórico e vivo,
apesar de ser nítido o quanto ele tentava não transparecer isso. Tiberius
sempre se mostrou muito interessado no meu “dom”. As vezes ele trazia
alguns objetos para que eu tentasse obter algum presságio através deles.
Algumas vezes dava certo, outras não vinha nada... Muitas vezes eu
apenas contava o que ouvia, sentia e via para ele e deixava que ele
interpretasse, pois eu mesmo não entendia nada do que tinha visto. E
assim foi até meus 23 anos, quando finalmente entrei para a Polícia Civil
em 1996 e fui morar sozinho.

Sete anos na função de policial no Rio de Janeiro foram o suficiente


para me tornar uma pessoa fria e racional. Deixar ser guiado pela emoção
poderia custar minha vida, então fiz o que pude para anestesiar o máximo
minhas emoções. Dr Amaro se mudou para Vitória-ES, onde podia
aproveitar sua aposentadoria com tranquilidade, longe da violência do Rio
e nesses sete anos que servi a polícia, não ví mais o Sr Tiberius, mas sabia
que também estava em Vitória, pois trocávamos cartas com certa
frequência, até mais do que com meu pai adotivo. Sr Tiberius continuou
interessado em meu dom. Fazia perguntas sobre como eu estava lidando
com ele no meu trabalho, me enviava mantras e simpatias que
supostamente me ajudariam a me concentrar, etc...
Em 2003, uma tempestade caía sobre todo o Rio. Eu estava de folga,
havia começado a namorar uma policial da minha delegacia, então
estávamos na minha casa assistindo um filme. As batidas na porta me
causaram um frio na espinha tão sinistro que eu peguei minha pistola e fui
atender à porta com ela em punho... era Sr Tiberius. Eu estranhei a
surpresa, não falava com ele a cerca de um mês e com o Dr Amaro fazia
quase duas semanas... ele logo revelou o motivo de sua vinda e com muita
sutileza, me informou da morte do Dr Amaro. Eu não estava preparado
para enterrar a única figura paterna que eu tive e muito menos para saber
que não havia sido por meios naturais, ele foi assassinado. Tiberius não
deu detalhes, apenas disse que a polícia de Vitótia estava investigando e
pediu que eu fosse para lá pra ajudar no funeral e toda burocracia
fúnebre. Então eu fui... Me despedi de minha namorada com um beijo na
testa e parti naquela mesma noite. Se eu soubesse naquela época que não
voltaria mais, teria ficado mais um pouco com ela, pelo menos terminado
a noite.
Já em Vitória, descobri através do advogado do Dr Amaro que eu era
seu único herdeiro. Ele não tinha filhos nem parentes próximos, então
deixou tudo para mim em seu testamento. Ele não era nenhum ricaço,
mas seus bens deixados com certeza seriam de grande ajuda. Tiberius me
aconselhou a cuidar com atenção da biblioteca pessoal de meu falecido
pai. Disse que ali haviam alguns livros raros que nem mesmo o Dr Amaro
tinha permissão de ler, mas que ele os guardava em segurança com
bastante zelo, especialmente para mim, na esperança de que eu pudesse
estudá-los um dia.
O enterro foi triste e solitário... Apenas eu, o padre e os coveiros
comparecemos. Lembro de ter ficado chateado com Tiberius por não ter
comparecido, mas o mesmo se desculpou dizendo que em breve eu
entenderia o motivo dele não ter ido ao cemitério às 10:00hrs da manhã.
Na noite seguinte, eu estava me preparando para voltar pro Rio quando
tocatam a campainha. Era Tiberius novamente sem avisar... Ele queria que
eu o acompanhasse até um lugar. Lembro de tentar argumentar por um
breve instante, antes de ser inundado pela vontade repentida de atender
ao pedido dele e da melhor maneira possível. Muito estranho, mas
quando me deu conta já estava no carona de seu carro em movimento, em
direção ao desconhecido. Ele me levou até a Universidade Federal de ES e
disse que precisava de um favor. Parecia mais uma intimação, mas
enquanto ele me explicava a situação, mais eu me sentia compelido em
acatar o seu pedido da melhor maneira possível. Ele me disse que iríamos
nos encontrar com uma pessoa, que ele precisava falar algo com ela essa
noite, mas que em determinado momento ele nos apresentaria e eu teria
a chance de apertar a mão do sujeito. Nessa hora ele esperava que eu
tentasse obter algum presságio relacionado a tal pessoa. Eu concordei e
comecei a me “preparar” usando dos meios que ele me havia aconselhado
nas cartas para ajudar na minha concentração. Ele não quis demonstrar,
mas eu vi o leve sorriso que se formou no canto de sua boca quando me
ouviu entoando o mantra que havia me enviado.
Não demorou muito para nosso alvo chegar. O homem que aparentava
ter cerca de 50 e poucos anos ostentava mais que seus cabelos grisalhos.
Ele chegou em uma Mercedez e vestia um terno feito sob medida com
abotoaduras de ouro e uma Montblac mais cara que meu carro no bolso
do paletó. Amboa descemos do carro e eles se aproximaram e se
cumprimentaram de forma muito formal e cordial. Quando o sujeito
começou a me olhar de cima para baixo, Tiberius me apresentou com as
seguintes palavras: “-Esse é David, ele é filho do Amaro. Fiz alguns testes
com ele e posso garantir que ele nos será tão útil quanto seu pai foi. Ele é
novo na cidade então estou rodando com ele para mostrar os locais
importantes. David, esse é o Sr Thomas Ziehe. Também conhecia seu pai.”
O desgraçado me tratou como um mero objeto. No entanto, não fiquei
tão indignado naquele momento. Tudo que eu queria era cumprir
perfeitamente com o que me havia sido designado por ele. Então apenas
entrei na onda e estendi a mão para o sujeito para cumprimentá-lo
dizendo: “-Prazer em conhecê-lo Sr Ziehe. Espero ser mais útil que meu pai
foi enquanto esteve vivo. Estou às ordens.” E o sujeito caiu... apertou
minha mão retribuindo o cumprimento um pouco hesitante e dizendo
apenas: “-Seja bem vindo então. Cuidaremos de você.” Não precisei
sequer tentar “chamar” por meu dom... Assim que encostei minha mão na
dele, minha consciência foi sugada rapidamente por um vórtex negro de
escuridão sombria e angustiante para outro lugar. Logo eu estava como um
espectador flutuante assistindo aquelas imagens que passavam diante dos
meus olhos como cenas de um filme e mudavam rapidamente, se
desmanchando em uma fumaça esvoaçante com cheiro de enxofre e
morte, dando lugar à próxima cena, e a próxima e a próxima, até
finalmente terminar. Lembro de ter começado com a cena de dois caixões
de pé encostados em uma parede de pedra, em um deles estava meu pai,
Dr Amaro, o outro estava vazio mas havia um tipo de pentagrama
vermelho pintado em seu fundo com algo que possivelmente era sangue;
A segunda cena começa com um enorme bode negro parado no alto de
um penhasco, olhando estranhamente para baixo e à medida que a visão
do bode ia se afastando como se descesse o penhasco, eu pude ouvir os
gritos de desespero, brados de guerra e os sons de uma batalha
acontecendo. Quando a visão finalmente chegou na planície abaixo do
penhasco, haviam duas colunas enormes de Marfim colocadas uma do
lado da outra, e no meio delas uma batalha sangrenta acontecia entre
homens sem rosto que vestiam armaduras e cores iguais. Então a visão
começou a fazer o caminho de volta, seguindo o mesmo padrão até chegar
ao penhasco novamente, mas no lugar do bode estava Thomas, com um
olhar sádico e cruel assistindo a batalha; A terceira cena começa com o
som de sussurros initeligíveis, até que a silhueta de dois homens aparecem
trocando uma pasta de documentos enquanto o que está recebendo a tal
pasta sussurra ao pé do ouvido da outra silhueta. Logo a silhueta de um
carro surge ao lado dos dois e um giroflex vermelho e azul começa a
quebrar os tons escuros as cena a medida que as luzes giram, até que o
barulho de uma moeda sendo jogada pro alto ecoa forte e a cena vai se
desmachando; A quarta cena começa a se formar quando as sombras da
cena anterior forma uma moeda dourada girando no ar em um zoom até
focar no desenho da moeda... uma cabeça de bode com longos chifres e
uma chama pairando sobre ela. O zoom vai se afastando e a moeda cai,
passando por duas mãos se cumprimentando, onde a visão foca agora.
Uma das mãos era estranhamente grotesca, com grandes unhas como
garras e protuberâncias afiadas em suas extremidades, além de estar suja
com algo escuro como óleo, só que mais doentio... a outra mão ostentava
um rolex e um anel de ouro no dedo mindinho, onde tinha gravado o
símbolo de uma pirâmide. Logo a visão da cena se afastou um pouco e
então pude ver que os donos daquelas mãos não estavam se
cumprimentando, mas a mão mais bizarra estava na verdade puxando o
dono da outra mão para cima, ajudando-o a escalar o que parecia ser uma
pirâmide, almejando o topo, que reluzia com um trono dourado envolto
em chamas que dançavam ora negras, esverdeadas. Foi a última cena.
Quando voltei a sí, parecia que não tinha passado nem dez segundos.
Terminamos de nos cumprimentar e Tiberius mandou eu esperar no carro
enquanto ele iria acompanhar o Sr Thomas até o laboratório da
universidade e logo retornaria.
A princípio pensei se tratar de algo relacionado à Maçonaria. O Dr
Amaro era Maçom, nunca fez questão de me esconder isso. Somente mais
tarde viria a entender que se tratava de algo muito mais complexo e além
da minha compreensão. Meia hora depois Tiberius retorna com uma
expressão satisfatória em seu rosto. Ele entra no carro sorindo e dá a
partida dizendo que eu fiz um bom trabalho e logo me pergunta o que eu
ví... Quando contei, ele freiou bruscamente o carro no acostamento e me
encarou com os olhos arregalados e uma expressão séria, me indagando
se eu tinha certeza absoluta do que ví, se eu não estava mentindo, que
isso era mais sério que eu podia imaginar. Após eu confirmar tudo, ele deu
a partida no carro cantando pneu e mudando a rota, dizendo que isso
mudava tudo! Logo sua expressão séria deu lugar à gargalhadas histéricas
em meio à frases como: “-Agora eu te peguei, desgraçado!” e “-Veremos o
que o Regente vai achar disso seu verme traidor!”
Eu já estava assustado pra caralho a essa altura. Ele me levou até uma
mansão ali mesmo em Goiabeiras, onde haviam várias pessoas na casa.
Todos me olhavam com estranhamento... Ele me conduziu até um dos
aposentos e eu apenas o segui sem questionar. Chegando lá, enquanto eu
voltava minha atenção ao enorme quarto e as obras de arte nas paredes,
ele me preparava uma “bebida”. Fiquei um pouco relutante em tomar
aquele líquido rubro da taça que ele me entregou, mas ele insistiu dizendo
ser a melhor safra que eu já tomei em toda minha vida. Quando senti o
gosto do sangue descendo pela minha garganta, eu soube na hora que
aquela pessoa que havia me dado o sangue que me salvou quando fui
baleado ainda criança tinha sido ele. Me sentí mais vivo que nunca e
estranhamente mais fascinado por ele. Ele me explicou vagamente que o
mundo como eu conhecia era uma fraude, disse que meu pai sabia disso e
que por isso foi assassinado, pego entre as engrenagens das maléficas
maquinações de um ambicioso traidor. Disse que me revelaria tudo, mas
que precisava que eu ficasse por ali mais uma noite. Apenas uma noite e
tudo seria esclarecido... Eu concordei, é claro. A essa altura eu concordaria
com qualquer absurdo muito mais suspeito que isso. Então eu fiquei ali,
“hospedado” na grande mansão, mas preso em meu quarto trancado por
fora, mais como um prisioneiro que como um hóspede. Só entendi isso
quando notei a ausência do meu celular e me dei conta de que não
colocava as mãos nele desde quando cheguei em Vitória.
Na noite seguinte, já estava impaciente trancado naquele quarto, até
que Thomas finalmente apareceu e abriu a porta adentrando o cômodo.
Ele carregava um semblante tranquilo e contente enquanto falava comigo:

“-Você foi aprovado... Sempre soube que tinha potencial. Sua vida inteira
você foi testado. Eu estava lá quando teve sua primeira troca de tiros; Eu
estava lá quando precisou resolver aquele quebra-cabeça no caso do
pedófilo; Eu também estava lá quando sumiu com o corpo do seu parceiro
invejoso porque ele ameaçou contar pra corregedoria que você vendeu
aquele fuzil pros traficantes do Dona Marta, se não terminasse com sua
namorada para que ele tivesse chance com ela. Eu sempre estive lá, você
apenas não me via. Agora chegou a hora de saber toda verdade...”
Eu só ouvia o que ele dizia sem conseguir me mover. Meus olhos
arregalados com espanto por ele saber de algo que eu nunca contei para
ninguém, logo deram lugar a expressão de medo e desespero quando ví
sua expressão se fechar mudando repentinamente antes de proferir as
fatídicas palavras:

“-DE JOELHOS!”

E eu caí sobre meus calcanhares. Em questão de segundos ele já estava


com seus dentes cravados em meu pescoço, com uma poça de sangue se
formando abaixo de nós, o meu sangue... Ele estava me mantando e cada
minuto daquilo era desesperadoramente satisfatório. Ofegando com o
desespero de um
Afogado, senti e saboreei o sangue salgado correndo por meus lábios. Com
uma ânsia desesperada agarrei e suguei o sangue, que cauterizava a dor
em minha garganta até meu esôfago. Meus olhos rolaram para o teto
impecavelmente limpo enquanto eu morria.

Acordei envolto em uma mortalha, deitado no chão frio. A escuridão em


torno de mim lentamente dava lugar a formas, amontoadas a um braço de
distância. Sussurros reverberavam através da câmara. Não conseguia ver
lâmpadas, nenhuma parede familiar, apenas uma tênue cintilação de uma
lamparina que
Pendida do teto alto e abobadado. Minhas roupas haviam sido levadas.
Apenas um manto branco cobria meu corpo, mas o frio da pedra não me
incomodava. Quase que por causalidade, percebi que não estava
respirando, que a sala parecia ecoar um pouco mais alto como se algum
som de fundo houvesse sido removido de mim, e que estava com sede.

“Levante-se”, uma voz entoou gravemente. De novo, a fonte de sussurros


aumentou em volume, então esvaneceu. Sentei-me, sutilmente ciente de
que algo estava faltando, temeroso e desejoso ao mesmo tempo – quase
que uma sensação desperta, mas mais como um desejo intelectual, como
a fome por conhecimento ou vingança. Eu queria, mas não tinha ideia do
que.

“Erga-se dos mortos, postulante”, a voz entoou, seguida pelos sussurros.


Eu compreendi sílabas em latim que saltavam pela abóbada enquanto
uma figura envolta em túnica se aproximava de mim ostentando um cálice.
Senti-me repentinamente fraco e zonzo. Apoiei-me em minhas mãos e
então me ergui do chão.
“Você descansará para sempre, ou buscará para sempre?” a figura
perguntou.

Minha voz resmungou bruscamente, “Eu quero viver”. A voz no canto de


minha mente suplicava, gritava, chamava a atenção de todos os modos,
Você está morto e eles querem matá-lo novamente. Você morrerá
repetidas vezes. Ela tornou-se fraca enquanto enrijecia minha postura.
“Fale comigo”, a figura disse. Ela segurou o cálice diante de mim. Um
aroma flutuou, de uma só vez convidativo e repulsivo. Segurei-o, mas a
figura puxou-o de volta, repetindo, “Fale comigo”. Uma sentença em latim
saiu da boca da figura. Das outras figuras pela sala, um silvo sutil de
palavras sussurradas seguiu-se. Tropecei sobre minhas próprias palavras,
através de sentenças e conjugações em latim enquanto o mundo parecia
incerto a meu respeito. Por fim, o homem deu-me o cálice e pediu que
bebesse, e com uma vontade crescente e desconhecida, bebi do copo.

O gosto lento de sangue inundou meus sentidos e lavou minha garganta,


levando consigo fome, desejo e incerteza. Senti a fria morte do líquido, seu
gosto amargo e podre trazendo um perceptível fedor de
Decadência. Ao meu redor, as figuras em mantos aguardavam imóveis,
mas eu vi em torno delas uma terrível malevolência, como se de algum
modo refletissem a antiga potência do sangue que bebi. Senti um calor e
dor repentinos, então nada. O cálice, vazio, caiu de meus lábios e foi
rapidamente arrebatado pelos longos dedos da figura diante de mim.
“Você bebeu do cálice e renasceu em nosso sacramento”, a figura entoou
com um pouco de impaciência.

“Onde... o que é isso?” perguntei.

Na luz vacilante, uma das figuras aproximou-se. Era Thomas... Meu captor
retirou seu capuz e sorriu para mim, novamente de forma que me causou
desconforto. Desta vez, meu estômago não apertou e minhas costas não
formigaram; ao invés disso, senti uma leve suspeita, uma paranóia rasteira
enquanto ele falava. “Bem-vindo ao nosso círculo, cria. Você cruzou o
limiar. Agora você tem muito a aprender”. Nesse momento soube que seja
lá o que tinha acabado de acontecer, não tinha mais volta. Então decidi
que entraria de cabeça e mergulharia o mais fundo possível nesse mundo
novo que me seria apresentado.

Hoje faz vinte anos que fui abraçado. Abandonei completamente minha
vida no Rio com ajuda de meu Senhor e desde então me dedico
inteiramente todas as noites em armazenar conhecimento e ser útil para o
Clã, para minha Casa e para a Camarilla. Espero um dia alcançar o cargo de
Regente de Vitória. Segundo Tiberius, Thomas era um talentoso Tremere
que estava em uma disputa feroz contra meu Senhor em provar seu valor
ao Regente. Sua ambição o levou à lugares sombrios e o fez mexer com
coisas que deveriam ficar enterradas no mais profundo abismo para que
ninguém encontrasse. O Dr Amaro era carniçal e amigo fiel de meu Senhor,
ele foi apenas uma das vítimas de suas maquinações para minar a
influência de Tiberius e assim conseguir galgar status no clã. Tiberius já
suspeitava que ele estava envolvido com poderes proibidos, mas não
podia arriscar uma investigação sem ter certeza de que iria resultar na
condenação de seu rival, pois caso a investigação não desse em nada e ele
fosse pego investigando, seria visto como ofensa e aí o jogo poderia mudar
de figura. Uma vez que meus presságios confirmaram suas suspeitas ele se
viu livre para levar sua investigação ao Regente, que agiu rápidamente
com seus próprios meios para descobrir a verdade, revelando Thomas
como um criminoso e traidor, consequentemente causando o fim de sua
não-vida.
Tiberius me proibiu de procurar saber mais sobre o assunto “infernalismo”.
Até mesmo pronunciar essa palavra poderia ser visto com maus olhos.
Claro que isso só atiçou ainda mais minha curiosidade, mas não posso me
exceder e preciso dançar conforme a música se quiser ter sucesso. Um
dia... e esse dia vai chegar... eu finalmente terei autonomia para estudar
sobre o assunto. Até lá, faço o melhor que posso e provo todas as noites o
porquê eu fui escolhido para essa existência feroz e angustiante que é a
não-vida.

Apenas recentemente Tiberius me revelou que ele na verdade é meu


Tataravô, e que em algumas gerações os homens da família nasciam com
uma espécie de “propensão” para o oculto. Ele vinha monitorando a
árvore genealógica e seus descendentes na esperança de que alguém
como ele nascesse com essa “pré-disposição” para a taumaturgia e
quando ele soube da minha história, compartilhada pelo Dr Amaro, cuidou
pessoalmente para que eu não deixasse essa “centelha” morrer, como fez
meu pai biológico que nunca conheci. Ele disse que não me contou antes
porque não queria despertar nenhum tipo de sentimento que me levasse
a acreditar que meu caminho seria mais fácil por isso, e me alertou que
esse fato não muda nada. Se eu pisar em falso, serei cobrado da mesma
forma, com a mesma rigidez que qualquer outro.

Agora com o Príncipe desaparecido, talvez eu tenha uma chance de provar


meu valor. Veremos o que me aguarda nas próximas noites.

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