Você está na página 1de 8

09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

PANDEMIA

A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa


julgada
Solução de questões a partir dessa perspectiva, que tem como pressuposto renovada teoria da segurança
jurídica

SÉRGIO CABRAL DOS REIS

08/06/2020 09:20

Crédito: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

Como se sabe, atualmente, a pandemia do novo coronavírus, causador da Covid-19,


vem causando re exos em todas as áreas jurídicas, não sendo diferente com a área
trabalhista.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 1/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

Nesse contexto, uma questão surge frequentemente é a que diz respeito à


possibilidade (ou não) de suspensão dos acordos judiciais realizados no período pré-
pandemia com cumprimento, ao menos em parte, no período da pandemia.

Entende-se que a resposta deve ser positiva, e a solução deve ser encontrada na
própria teoria da coisa julgada, em sua perspectiva mais moderna.

Pode-se adiantar, de forma especí ca e direta, que, diante dessa questão, a hipótese
é no sentido de que a teoria dinâmica da coisa julgada – que trata da projeção desse
instituto no tempo, especialmente em relação às relações jurídicas continuativas e
também as de trato sucessivo – permite a suspensão da e cácia dos acordos
judiciais, pois o argumento utilizado nessa situação, desde que minimamente
comprovado pela parte que o invoca, é relativo a um fato posterior completamente
imprevisível no momento da celebração do acordo: a força maior decorrente da
pandemia.

A teoria clássica da coisa julgada, nesse contexto, é inservível para solucionar


adequadamente a questão, por conta do seu caráter marcadamente retrospectivo e
estático. Trata-se de um sistema voltado para o passado, porque é fundado na
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 2/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

imutabilidade e não lida com uma caraterística marcante da sociedade


contemporânea: a mudança.

En m, o modelo clássico da coisa julgada, por ser rápido, porque baseado em


simpli cado raciocínio lógico-formal – “o acordo faz coisa julgada; logo, sua e cácia
não deve ser suspensa, e deve incidir também a cláusula penal” –, resolve apenas
processos mais simples, focado nas relações jurídicas instantâneas, revelando-se
insu ciente e inadequado para resolver problemas mais complexos, a exemplo do
caso enfrentado neste estudo.

Revela-se oportuno observar que as categorias abstratas do Direito, a exemplo da


coisa julgada, não podem virar as costas para a realidade. Conforme preleciona
Jacques Chevallier[1], a dinâmica da vida não pode ser xada na objetividade das
formas jurídicas, que só têm sentido se conectadas com a realidade.

Imagine-se o caso em que uma banda de música tenha rmado um acordo de R$


50.000,00 (cinquenta mil reais), em dez parcelas iguais, em dezembro de 2019.
Cumpriu regularmente o pagamento das parcelas até abril, quando, publicamente,
instaurou-se um estado de quarentena, principalmente para os agentes econômicos
que atuam no campo de entretenimento.

No caso, essa banda de música tocava em bailes de formatura e outros eventos do


gênero, tendo paralisada toda a sua atividade. Por conta disso, pleiteia a suspensão
do acordo até o término do período de força maior. Como o processo também é um
procedimento em contraditório, intima-se a parte contrária, que, de plano, rejeita a
pretensão, invocando, inclusive, a questão da coisa julgada.

Como o juiz deve decidir esse incidente? Naturalmente, outros detalhes do caso
poderiam conduzir a resultado diverso, mas, em tese, pelo que se narrou, é possível
a suspensão do acordo, por mero incidente processual.

Ainda que com reforço do direito material, entende-


se que a solução de questões como essa está na
própria teoria da coisa julgada, que tem como
pressuposto uma renovada teoria da segurança
jurídica.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 3/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

A decisão judicial, assim como o acordo homologado judicialmente, é fruto do


debate argumentativo estabelecido entre as partes. Nesse sentido, revela-se
essencial saber se o argumento novo, motivador do pedido de revisão ou de
suspensão de e cácia da coisa julgada, fazia parte das expectativas das partes no
momento do processo, em especial no momento da celebração do acordo.

Nesse sentido, conforme preleciona Antonio do Passo Cabral[2], a teoria dinâmica da


coisa julgada, procura romper com o modelo tradicional, marcadamente
retrospectivo, privatista, cognitivista e estático. Esse modelo clássico da coisa
julgada, como dito, caracteriza-se por ser um sistema voltado para o passado,
porque é fundado na imutabilidade e não lida com uma caraterística marcante da
sociedade contemporânea: a mudança.

Esquece que o processo é um ambiente de diálogo, in uência re exiva e cooperação


(art. 6° do CPC), marcado pelo contraditório entre todos os sujeitos, de modo que as
estabilidades também passam a decorrer de autovinculações cuja formação é
derivada dessa coordenação de atos e debates.

Sendo assim, para saber se há quebra na boa-fé objetiva e na proteção da con ança,
impõe-se aferir, quando houver pedido de revisão da coisa julgada, se o argumento
invocado pela parte interessada fazia parte da expectativa de debate no momento
do processo.

Impõe-se considerar todo o diálogo argumentativo das partes, sobre a amplitude da


cognição, sobre quais pontos e questões foram efetivamente discutidas no curso do
procedimento.

No exame das estabilidades processuais, portanto, é insu ciente analisar apenas a


norma pronta – o acordo judicial homologado, no problema em apreço –, pois
também se deve incorporar na análise todo o iter que a condicionou
argumentativamente.[3]

Como se percebe, os limites temporais da coisa julgada, nessa perspectiva


dinâmica, também comportam como enfoque de nir as condições para a alteração
do julgado e consideram que a previsibilidade, a calculabilidade e a con abilidade no
Direito não devem ser aferidas apenas em um momento temporal.

A teoria dinâmica da coisa julgada tem como premissa a estabilidade e a


continuidade jurídicas e considera que a regra seja a manutenção da intangibilidade
da coisa julgada, mas permite, em circunstâncias excepcionalmente imprevisíveis
(no debate estabelecido no processo), que esse fato (modi cação do julgado) venha
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 4/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

dinamicamente ocorrer. Trata-se, en m, de uma teoria que sabe que a continuidade


pressiona pela permanência da posição estável, mas os atos não são imutáveis ou
inalteráveis.[4]

Observa-se, assim, que há, na própria teoria da coisa julgada, uma outra perspectiva
de discussão, que diz respeito à cadeia argumentativa utilizada no processo,
especialmente no momento da celebração do acordo judicial. Nesse aspecto, é fato
que, no aludido exemplo da banda de música, a imprevisibilidade da pandemia e de
seus efeitos sobre a economia é de evidência solar.

Na realidade, em plena pandemia, ainda não se tem certeza de nada. Por exemplo,
não se sabe até quando durará a situação da quarentena, ou se haverá lockdown em
determinadas cidades. Quando será fabricada a vacina contra o novo coronavírus?
Até quando o Estado terá disponibilidade nanceira, para socorrer os necessitados?
E a saúde pública entrará em colapso?

Ninguém tem respostas precisas. Imagine-se, então, a situação daquela banda de


música, que, pelo menos desde abril, não está desenvolvendo atividade econômica
produtiva. A coisa julgada, em sua perspectiva dinâmica, apresenta respostas para
essas situações.

Se o argumento não fere as legítimas expectativas dos pactuantes, não há que se


falar em arbitrariedade quanto à revisão ou à suspensão de e cácia da coisa julgada
decorrente do acordo homologado judicialmente.

Como se percebe, o importante, à luz da teoria dinâmica da coisa julgada, é saber se


o tema da pandemia e seus efeitos fazia parte da cadeia argumentativa do processo
que transitou em julgado.

É preciso responder às seguintes indagações: a) no caso do acordo judicial, a


pandemia, em tese, fazia parte da expectativa de debate entre os seus
participantes? b) a força maior era um evento previsível no momento do debate
relativo ao acordo? A resposta, à evidência, revela-se negativa.

Vale observar que não se trata de uma mera análise inadequada do mercado e da
dinâmica da economia do país e do mundo. Em outros termos, não se trata de uma
mera “crise econômica”, que são cíclicas e inerentes ao regime capitalista.

Pelo contrário, para a maior parte do mundo empresarial, a pandemia do novo


coronavírus apresenta-se como um fato histórico absolutamente imprevisível, um
genuíno exemplo de força maior enquanto evento invencível e inevitável. Algumas

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 5/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

empresas estão simplesmente impossibilitadas de funcionar, e esse fato não pode


ser desprezado pelo Poder Judiciário.

Não se pode esquecer de que a decisão judicial só mantém sua e cácia, enquanto
subsista a realidade que regula[5], e essa lição deve ser aplicada aos acordos
trabalhistas. Embora a proteção da con ança e a proibição de arbitrariedade sejam
inerentes à segurança jurídica[6], é certo que o abalo desta é tolerado pelo Direito
diante de fatos supervenientes absolutamente imprevisíveis, como a situação atual
de pandemia.

Observe-se que o princípio da segurança jurídica, com seu corolário de proteção da


con ança, submete o exercício do poder ao Direito, fazendo com que os cidadãos
possam prever, com relativa certeza, as consequências que advirão das situações
jurídicas a que deram causa.

Ora, em relação aos acordos rmados no período pré-pandemia, não é razoável


a rmar que os atuais pedidos de suspensão frustram justas expectativas. Não custa
insistir: os pedidos de suspensão desses acordos são fundamentados em fato
superveniente “absolutamente imprevisível”.

Esses vínculos sem solução de continuidade possuem uma cláusula implícita, a


cláusula rebus sic stantibus. Por ela, os vínculos jurídicos não nascem e se encerram
imediatamente, somente estarão mantidos na hipótese de permanecer o estado de
fato vigente à época da estipulação, de modo que, modi cado o ambiente objetivo,
por circunstâncias supervenientes e imprevistas, a força obrigatória da decisão pode
ser revista. Por meio dessa cláusula, credita-se dinamicidade nos vínculos
continuativos, com relevante função econômica e de paci cação social.

Por outro lado, no caso da suspensão do acordo, que pode ocorrer por mero
incidente processual, observa-se que não há ofensa frontal à coisa julgada, pois a
obrigação, em si, inclusive quanto ao valor estipulado, permanecerá intacta, o que
eventualmente pode mudar é o prazo de pagamento.

No particular, pode-se inspirar no que ocorre em determinados casos em relação


aos pedidos de dispensa de pagamento de cláusula penal, quando o atraso é de
poucos dias e sem prejuízo imediato ao credor.

Vale ressaltar, entretanto, que as situações merecem uma análise pontual, dentro do
esperado bom senso, como consequência imediata dos princípios e cláusulas gerais
apontados.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 6/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

Não se pode esquecer que a regra é a manutenção do pactuado, o respeito à coisa


julgada, por uma questão de segurança jurídica, mas, comprovada a gravidade da
situação para a parte reclamada, diante da impossibilidade de produzir neste
momento e, por consequência, de honrar com os seus compromissos, é possível
julgar procedente o pedido de suspensão do acordo.

Sendo assim, incumbe às partes portarem-se no incidente em conformidade com o


dever de boa-fé objetiva, procurando soluções intermediárias e razoáveis, movidas
pela equidade e pela boa razão.

Se esse fato não for possível, cabe à Justiça do Trabalho observar a preservação de
vínculos de longa duração, a exemplo do pagamento de pensão alimentícia
decorrentes de acidentes ou doença do trabalho, além de outras situações que
envolvem conteúdo existencial, como a manutenção das obrigações relativas a
plano de saúde.

Por outro lado, as obrigações meramente patrimoniais, desde que minimamente


comprovada a di culdade econômica da parte devedora, são possíveis de
exibilização por ordem judicial.

A despeito de tudo isso, vale enfatizar que o melhor caminho será sempre o
dialógico. Nesse sentido, é o momento de conclamar a sensibilidade dos advogados
e a dimensão ética da advocacia, para que, mediante o estímulo sincero às soluções
consensuais, contribuam, diretamente, para que a Justiça do Trabalho cumpra a sua
missão institucional, que é a realização da justiça social.

En m, é a hora do DNA da Justiça do Trabalho, do orescimento de sua essência, no


sentido de fomentar o cooperativismo e a conciliação entre as partes, se possível
com a preservação dos empregos.

[1] CHEVALLIER, Jacques. O estado de direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo e

Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 123.

[2] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre a continuidade,

mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed. Salvador: JusPODVIM, 2014, p. 40-
41 e 416.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 7/8
09/06/2020 A suspensão de acordos trabalhistas e a questão da coisa julgada - JOTA Info

[3] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre a continuidade,

mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed. Salvador: JusPODVIM, 2014, p. 413
e 510.

[4] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre a continuidade,

mudança e transição de posições processuais estáveis. 2. ed. Salvador: JusPODVIM, 2014, p. 96,
317-318 e 337.

[5] NIEVA-FENOLL, Jordi. “La cosa giudicata: la ne di un mito”. Rivista Trimestrale di Diritto e
procedura Civile, Milano, Giuffrè, Anno LXVIII, n. 4, dic. 2014, p. 1384.

[6] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito

tributário. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 371 e 633.

SÉRGIO CABRAL DOS REIS – Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mestre em Teoria Crítica en Derechos Humanos y Globalización pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilla,
Espanha). Mestre em Direito Processual e Cidadania pela UNIPAR. Professor de Direito Processual Civil da
UEPB. Professor de Direito Processual do Trabalho da UNIFACISA. Coordenador pedagógico da pós-
graduação em Direito do Trabalho e Previdenciário da UNIFACISA. Professor da Escola Superior da
Magistratura Trabalhista da Paraíba (ESMAT XIII). Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado
da Paraíba (ESMA-PB). Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba
(FESMIP-PB). Professor da Escola Superior da Advocacia da Paraíba (ESA-PB). Membro da Associação
Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (13ª Região).
Endereço residencial: Av. Ingá, 540, ed. Killie de Lamberti, apt. 2201, Manaíra, João Pessoa – PB, CEP
58038-250.

Os artigos publicados pelo JOTA não re etem necessariamente a opinião do site. Os textos
buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a
pluralidade de ideias.

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-suspensao-de-acordos-trabalhistas-e-a-questao-da-coisa-julgada-08062020 8/8

Você também pode gostar