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Natal/RN
2020
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Natal/RN
2020
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, inicialmente, a CAPES, pelo fornecimento da bolsa, sem a qual, estes longos 4
anos não teriam sido possíveis na dedicação ao estudo aqui apresentado.
Agradeço a Sérgio Linard pela leitura e correção dos “limiares” e das considerações finais do
texto. Fez uma grande diferença na qualidade final. Se ainda resta algum problema,
certamente é por minha falta.
Agradeço, por fim, a minha mãe pela paciência com meus aborrecimentos durante esse
processo. Agradeço também a Fabíola pelo suporte sempre próximo.
6
RESUMO
Este estudo consistiu no esforço de pensar uma política das imagens a partir de Georges Didi-
Huberman, o que demandou, em alguma medida, montar três planos de composição: um no
campo do saber, encontrando na heurística o eixo capaz de articular um saber em relação com
o páthos. Para tanto, recorremos a um paradigma estético de pensamento retirado da filosofia
de Walter Benjamin, nomeado constelação. A constelação da heurística, então, possibilitou-
nos compor esse tipo de saber conjugado com as emoções; um no campo da política, a qual,
ao invés de diferenciar público e privado, ato e potência, práxis e poiesis, inscreve-se em
outra esfera, a dos gestos, permitindo-nos encontrar com uma política da exposição, na qual
se expõe o que está em vias de se perder, o que está desaparecendo. Aí, paradoxalmente,
vemo-nos diante do ser em comum, que aparece quando exposto e quando comparecemos,
demandando de nós, pois, outras modalidades de relação: a imaginação, a tomada de posição
e a empatia, e; por fim, um no campo da imagem, a qual, ao contrário de ser um depósito das
ilusões humanas, torna-se lugar de retirada de saberes: sobre os nossos sofrimentos, sobre o
que não somos, sobre os passados que não foram, sobre o que ainda não somos capazes de
saber, sobre o próprio não-saber, sobre a cólera e sobre nossas potências. Tudo isso significou
pensar e assinalar os deslocamentos das imagens no corpo dessa teoria outra, dessa política
das imagens, que tem como função restituir as imagens ao livre uso comum dos homens, para
dar a conhecer. Talvez, seja essa sua principal atribuição: dar a conhecer para que o resto seja
possível.
ABSTRACT
This study consisted in an effort of thinking a politics of images coming from Georges Didi-
Huberman, which, to some degree, required us to come up with three planes of composition:
one in the field of knowledge, finding in his heuristics the axis capable of articulating a
knowledge in relationship to páthos. Therefore, we resorted to an aesthetic paradigm of
thought taken from the philosophy of Walter Benjamin, known as constellation. Thus, the
constellation of heuristics has enabled us to compose one such kind of knowledge conjoined
with emotions; one in the field of politics, which, instead of differentiating between public
and private, potentiality and actuality, praxis and poiesis, is itself inscribed in some other
sphere, the one of gestures, allowing us to meet up with a politics of exposition, in which it
exposes what is about to be lost- what is disappearing. Right there, paradoxically, we see
ourselves faced with the being in common, which appears when exposed and when we appear
along with it, thus requiring from us other modes of relation: imagination, taking a stand and
empathy; at last, one in the field of image, which, instead of being a reservoir of human
illusions, becomes a place of removal of knowledges: about our sufferings, about what we are
not, about pasts that didn‟t come to be, about what we‟re still incapable of knowing, about
actually not-knowing, about cholera and about our potentialities. All of this meant to think
and point out the displacements of images in the body of this other theory, this politics of
images, whose function is to retrieve images to the free common usage of men, to make them
cognizable. Perhaps, this would be it‟s main attribution: to make cognizable, so that all else is
possible.
RÉSUMÉ
Cette étude a consisté en un effort de réflexion sur une politique d'images basée sur Georges
Didi-Huberman, qui a nécessité, dans une certaine mesure, la mise en place de trois plans de
composition: un dans le domaine de le savoir, trouvant dans l'heuristique l'axe capable
d'articuler le savoir en relation avec le pathos. Pour cela, nous avons recours à un paradigme
esthétique de pensée emprunté à la philosophie de Walter Benjamin, nommé comme
constellation. La constellation heuristique nous a donc permis de composer ce type de savoir
en conjonction avec les émotions; celui du politique, qui, au lieu de différencier public et
privé, acte et puissance, praxis et poiesis, s'inscrit dans une autre sphère, celle des gestes, nous
permettant de rencontrer une politique d'exposition, dans laquelle il s'expose ce qui va être
perdu, ce qui est en train de disparaître. Là, paradoxalement, nous sommes confrontés au fait
d'être en commun, qui apparaît lorsqu'il est exposé et lorsque nous apparaissons, nous
demandant, par conséquent, d'autres modes de relation: imagination, prise de position et
empathie, et; enfin, dans le domaine de l'image, qui, au lieu d'être un dépôt d'illusions
humaines, devient un lieu de retrait de les savoirs: de nos souffrances, de ce que nous ne
sommes pas, du passé qui ne l'était pas, de ce que nous ne sommes pas encore capables de
savoir, de ne pas se connaître, du choléra et de nos puissances. Tout cela signifiait penser et
signaler les déplacements des images dans le corps de cette autre théorie, de cette politique
des images, dont la fonction est de restituer les images au libre usage commun des hommes,
de se faire connaître. C'est peut-être votre tâche principale: faire connaître pour que le reste
soit possible.
LISTA DE IMAGENS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
PROLEGÔMENO: A constelação como paradigma estético de conhecimento 18
LIMIAR – A função da Constelação 56
PARTE I – HEURÍSTICA 62
1.1 A heurística como teoria 73
1.2 A heurística como sem fim... 80
1.3 A heurística como gaio saber 90
LIMIAR – Uso heurístico e ser sem obra 129
PARTE II – POLÍTICA 137
2.1 A política como empatia 138
2.2 A política como imaginação 153
2.3 A política como tomada de posição 164
2.4 A política como exposição 197
LIMIAR – A política da exposição da perda 230
PARTE III – IMAGEM 239
3.1 A imagem como informe 239
3.2 A imagem como técnica e contato 259
3.3 A imagem como citação 313
3.4 A imagem como levante 320
LIMIAR – Nefelomancia 329
CONSIDERAÇÕES FINAIS – RESTITUIR UMA IMAGEM 335
REFERÊNCIAS 357
12
INTRODUÇÃO
Talvez a pergunta mais importante a se fazer num processo de escrita de uma tese
seja: o que significa dedicar certo tempo, ou, para alguns, tanto tempo, a um tema, a um autor,
a um trabalho? O tempo que dedicamos é um tempo no qual o que acontece é a tomada do
nosso corpo diante do que escrevemos. Não apenas damos corpo a um estudo, nunca damos
qualquer corpo, senão o nosso próprio corpo. As palavras o atravessam e o transformam.
Fazer esse tipo de experiência, insípida e insignificante para aqueles que não entendem a
razão de haver tantos doutores no país, é um processo pelo qual somos também feitos
experiência. Ela se faz em nós, nunca em outro lugar. É importante ter isso em mente, pois é
ela que, poderosamente, confere valor ao nosso pensamento. Corpo e pensamento
atravessados por uma experiência que é a experiência do próprio atravessamento.
Estar diante de uma e várias imagens, a partir do pensamento de um filósofo da
imanência, como Georges Didi-Huberman, é entender que enveredar no pensamento é lançar-
se no mundo, desde o mundo, para nele se encontrar novamente. Não há outro mundo, a não
ser, talvez, o que não sabemos desse e tudo o que deixamos de ver. Mesmo o que sabemos
deve estar sempre no campo da atenção estranhada, para que não se torne uma luz opaca que
mais nos cega (com suas certezas) do que nos ensina algo (o próprio processo de saber). Lidar
com o pensamento desse sujeito é uma experiência de saber que o pensamento e o
conhecimento podem aquilo que com eles e neles se movem e nos co-movem juntamente.
Como nosso olhar a acompanhar o voo de uma borboleta, a espera de captar alguns relances,
algumas fulgurações de suas cores e seus gestos. No pensamento dele, então, estar diante de
uma imagem, como estar diante de um pensamento, é um gesto de abertura alegre e generosa,
sem perder a tenacidade e a destreza dos golpes a cortar o que desmobiliza o olhar e o
pensamento. Não sabemos, porém, se nos fizemos capazes de disferir tais golpes de maneira
“limpa”, com a precisão cirúrgica. Mas a tenacidade em direção às imagens nunca foi abalada,
ainda que constantemente alterada. Um caminho e uma paisagem informes, um movimento,
por vezes, de errância e perda. Principalmente de perda – e de retirada.
O que podemos dizer é que, na organização desse estudo, perder tornou-se muito
mais importante do que ganhar. Perdemos algum senso acerca da teoria. Ela funcionou num
contrassenso e num contrarritmo, cada vez mais se abrindo ao páthos, não recusando, mas
proliferando as hipóteses, no lugar de causas e de fins. A heurística apareceu como o
conceito-chave, conceito-operatório desse momento: ora princípio, ora operação, ora função,
ora uso. Uma constelação de formas assumidas pela heurística para tentar dizer de que tipo de
13
de desaparecimento, com o que difere e com o estranhamento. Essa política não separa a
ordem pública da ordem privada, o emocional do racional. Pelo contrário, lança umas sobre as
outras, coloca-as em contato e em choque. Uma outra faculdade de conhecimento surge para
dar conta desse processo e uma nova modalidade de lidar com seus elementos: a faculdade da
imaginação, com sua capacidade de expandir, mas também de retirar sentidos que espaçam a
razão (e suas causalidades) unificadora sob a égide do racional; a modalidade é a do uso, pelo
qual chegamos ao uso comum dos homens, isto é, um exercício de profanação. A política das
imagens torna-se o trabalho de profanar o pensamento, religando-o aos sentimentos, e, ao
mesmo tempo, de conferir um caráter impessoal, impróprio e abissal aos sentimentos, capaz
de criar um espaço estranho ao qual todos remetem com suas criações, mas que não pertence
inerentemente a ninguém: o lugar do comum, no qual o ser do comum se expõe. Sua
exposição, então, torna-se o gesto (nem prática, nem produção) da política das imagens. Aí tal
política encontra seu ethos: expor os povos que estão desaparecendo, dando-lhes visualidade e
permitindo-lhes tomar a palavra, apesar de tudo, no campo mesmo da precariedade de um tal
gesto.
Nesse processo, Didi-Huberman está, constantemente, a constituir e mostrar uma
série de procedimentos, técnicas e processos capazes de cumprir essa política: a montagem,
nos diários, nos atlas, nos abecedários, no cinema, o enquandramento na fotografia, os usos
dos poemas e do desenho, a junção de acaso e precisão, as impressões – toda uma sorte de
formas artísticas com a intenção de expor sem sub-expor ou sobre-expor, isto é, estabelecer
uma justiça da exposição. Isso se torna possível considerando-se tanto a singularidade do que
está desaparecendo quanto uma nova dimensão da universalidade, a qual passa pela tomada
de consciência diante do sofrimento que a todos conectam – uma universalidade aberta e
imanente, sempre passível de atualização e alteração no corpo da sua constelação. Uma
comunidade inconfessável, em que há o esforço constante de lutar contra o que nos faz calar,
diante daquilo que quer calar e fazer desaparecer (e, por vezes, consegue), restando uma
ferida e um buraco a perturbar qualquer desejo de tudo saber. Os povos que aparecem aí estão
sempre por vir, como estão, igualmente, ameaçados de deixar de existir. A existência aí se
inscreve tanto como sobrevivência quanto como resistência. A política passa, então, a mais
operar no espaço denominado pelo autor como “tomada de posição” do que poruma simples
“tomada de partido”, como espaço de passagem, como estratégia e tática de existência do que
como ato de liberdade do ser humano, obrigando-nos a pensar outra via que não essa da ética
do homem livre. A partir da noção agambiana de homem sem obra, que definiu a condição do
escravo, tentamos chegar a uma possibilidade de política capaz de articular-se com esses
15
Não é pouca coisa o que o autor exige. Por fim, isso tudo com um objetivo político:
desarmar nossos olhares para aprender a olhar (a heurística da política das imagens) e a
rearmar o olhar para saber ver (as imagens como uma política heurística), especialmente na
situação de quem precisa lutar para sobreviver, encontrando nos momentos de levante a
configuração e o aparecimento destas três coisas: a abertura heurística que aparece para uma
possibilidade outra (um passado inacabado, uma história descontínua, um povo que falta), a
política capaz de fazer jus ao sofrimento (a dor e a capacidade de suportar essa dor para
levantar-se em cólera) e as imagens que configuram os sentimentos e os afetos, que podem, ao
expor o sofrimento, (re)acender a chama que falta para a revolta. Todo um esforço sempre a
nos colocar diante de uma questão: para viver é preciso imaginar, não apenas o que poderá
ser, mas também o que poderia ter sido; imaginar não apenas o que teremos, mas tudo o que
perdemos, mesmo aquilo que nem somos capazes de saber. A imaginação torna-se a arma
mais poderosa dessa máquina de guerra que se constitue das imagens numa política das
imagens. Mas, para fazer justiça ao sofrimento, ela se coloca no espaço de uma nefelomancia,
isto é, no processo de olhar o que não é no que está desaparecendo. Um tempo do futuro do
pretérito, daquela história que guarda as sementes de um mundo que não teve a chance de vir
a ser: mundos que faltam.
O estudo aqui realizado pretendeu pensar, ou montar, no pensamento de Georges
Didi-Huberman, uma possibilidade política para o uso das imagens, ou, talvez, uma política
das imagens, como se a sua existência apontasse para um uso político, sem, contudo,
arregimentar uma definição seja para a política, seja para as imagens. A heurística foi esse
modo, esse plano sobre o qual as coisas se organizaram, a partir do qual partiram, sem ter um
ponto de gênese e apontaram meios. A partir da noção de constelação, retirada da obra de
Walter Benjamin, apresentado no prolegômeno, a heurística se configura heuristicamente,
mas aqui focado em três eixos: teoria, causalidade e forma de saber, a partir de uma função,
apresentado no primeiro limiar. A partir disso, foi possível pensar outra modalidade de saber,
que parte, não de uma definição, de um ser, mas de um uso. O limiar que o segue trata
justamente dessa variação em torno de uma questão de ética e de política: a condição de ser
sem obra dos escravos. O que fundamenta ética e politicamente o trabalho dessa política das
imagens é, então, a capacidade de fazer jus, de partir da situção de quem perde, de quem
sofre, e não dos poderosos. A política retirada daí foi, pois, uma política da exposição. Essa,
por sua vez, compôs-se em quatro eixos: empatia, imaginação, tomada de posição e
exposição, a partir dos quais se pensou uma “polìtica da exposição”, não de qualquer coisa,
mas precisamente do que se está perdendo, do que está desaparecendo. As imagens, no seu
17
plano de composição heurístico, então, tentaram encontrar uma modalidade de fazer justiça a
tal política, qual seja, operando como aquilo que é capaz de fazer visível esses processos de
desaparecimento, esses povos em risco. Para tanto, elas foram trabalhadas em quatro eixos:
informe, técnica e contato, citação e levante. Formas de aproximar e distanciar-se a fim de
tornar capaz olhar, ainda que não seja possível alcançar alguma cognoscibilidade. A ideia foi,
assim, ofertar um aparato teórico e procedimental, a fim de conseguir relançar as questões
sobre as imagens, que demandou remontar a política e a própria configuração da teoria. Tudo
com uma função: restituir uma imagem, uma imagem específica, que sempre esteve no fundo
desse estudo, alimentou-o, foi a condição de sua forma, a intensidade a medir cada passo e
cada parada. Sua força vem de fora da filosofia, colocando e perturbando o próprio fazer,
elaborando, por vezes, uma distância que sempre pareceu demasiada, mas que nunca foi
demasiadamente longe para que não continuasse a assombrar e demandar reparo. O reparo
possível por esse tipo de estudo pode ser, então, expor, mostrar e tomar a palavra, suportar e
assumir, no espaço do pensamento o sofrimento dessa imagem. Talvez não seja o suficiente.
Talvez.
18
Como saber? Questão de teoria. Há saber. Ele está aí, em algum lugar. Buscamos
uma forma de se chegar até ele. Está à espreita, latente, até mesmo passivo; aguardando que
alguém, qualquer um o saiba, isto é, aprenda-o, compreenda-o e faça-o dizer o que antes
silenciava. Pensamos nas ferramentas para chegar até ele, para trazê-lo à luz, para lapidá-lo,
para expô-lo. Saber arqueológico, saber genealógico. Questão de saber, enfim.
Saber como? Questão de método. Há saber? Há dúvida quanto a sua existência.
Buscamos a própria possibilidade de saber. Não se sabe aonde (se) está. Está por ser
inventado. E por vir. É potência e impotência ao mesmo tempo. Está na noite e só a noite
guarda sua possibilidade. Há de se criar as ferramentas para buscar esse saber. Inventa-se
tudo; vem depois; é anárquica nesse sentido, sem fundo, sem fundamento. Questão de não-
saber, enfim.
É possível entrelaçar-se em ambos? A estrutura que define enquadra. E o por-se
diante de uma singularidade desconcerta. Podemos trabalhar por um desvio, uma alteração no
percurso que nos carrega por outras veredas: sinuosas, mesmo estreitas, de fazer perder-se por
vezes; para poder alcançar uma clareira de onde podemos ver as estrelas, entrecortadas por
nuvens, algumas dessas límpidas, outras cinzentas – cor de aço – anunciando um temporal,
junto ao vento que corta nossa pele, tocando-nos; para labirintos desorientadores,
encruzilhadas, mesmo por desertos, e ainda pelo mar. Desvios – essa vida. Caminhando ao
lado dos quadros, nos seus limiares. Caminhando ao lado do desconhecido, à beira do
abismo, quando não se lançando nele. Paradigma, então. Paradigma que se configura no
limiar, desenhando um contorno, a formar uma imagem, capaz de nos colocar diante e dentro
de certos desvios. Podemos fazê-lo no chão, criando um percurso habitual a deixar rastros, sua
trilha. Podemos fazê-lo nos céus, com as estrelas, através de constelações.
Paradigma na forma de limiar: constelação. Que forma, entretanto? Forma em
formação, forma em movimento, forma aberta1. Forma que configura, inventando sua teoria
1
Eichebaum (1978, p.21-22) no inìcio de seu texto, “La teoria del „método formal‟”, funcionando como uma
espécie de história do movimento formalista russo, deixa claro, contra os detratores do grupo, que o trabalho
realizado não tinha como intuito chegar a um formalismo, um conjunto de doutrinas, mas, muito mais, elaborar
uma pesquisa aberta e em formação. Diz ele: “Nós não tìnhamos e não temos nenhuma doutrina ou sistema
acabado. Em nosso trabalho científico, apreciamos a teoria só como hipótese de trabalho com cuja ajuda
indicam-se e compreendem os feitos [...] Estabelecemos princípios concretos e, na medida em que podem ser
aplicados a uma matéria, atentamo-nos a eles. Se a matéria requer uma complicação ou uma modificação de
nossos princípios, fazemos de imediato: sentimo-nos livres com respeito a nossas próprias teorias; (e toda ciência
deveria sê-lo, pensamos, na medida em que existe diferença entre teoria e convicção). Não existe ciência
acabada, a ciência vive vencendo erros e não estabelecendo verdades”. (tradução nossa).
19
que lhe enseja um método. As duas inventam-se e se relacionam. Como proceder quanto a
isso? Pelo conceito do conceito? Não. Pela sua própria apresentação, nessa forma. A
constelação como paradigma só pode ser mostrada constelarmente. Ela é da ordem (ou do
modo) do como, não do ser. A constelação não tem ser, isto é, não tem fundamento, senão nos
usos que lhe dão no corpo do texto. Ela se configura na relação de uso, de como aparece
enquanto se mostra, sem com isso abrir mão de uma estrutura, de uma (e várias) forma(s).
Estrutura móvel, forma sem fim. Lida, quer lidar, com o vivo, sem posses, sem desejo último
de verdade. Há, porém, certa autoridade, mas aquela que partilha o autor, como lembra
Agamben, daquilo que participa junto na configuração, que a produz, capaz de acolher a
produção anterior e continuá-la numa outra [nem sempre nova, anacrônica?] moldagem. O
que se produz, então, não é histórico, no sentido do historicismo, mas histórico, no sentido de
intensidades presentes que figuram o passado histórico, sentindo a proximidade pática com o
que se produz, ao qual se liga, por um instante que seja, no trabalho da memória. Rememora-
se, muitas vezes, o gesto, o páthos, da produção dessa história. Sentimo-nos, nesse momento,
tocados por sua aura. A autoridade é a da resistência experenciada no próprio gesto. A
estrutura é a das mãos que recorda o gesto e o leva adiante, nos seus próprios termos, na sua
própria forma, no seu molde, na impressão realizada desse molde. É, enfim, um método, a
configuração do processo, daquele que um dia inventou e desse aqui e agora, tocado pelo
gesto, pelo saber produzido e lançando sua sombra aos pés do presente, que o sente na relação
com a distância.
Há um ar circulando nessa cadeia, carregado de poeira e de pequenas luzes a brilhar
na noite. São essas as estrelas do chão. Não é difícil imaginarmo-nos levantando os olhos para
as estrelas, poeira mais antiga, talvez, a circular sobre nós, deixando-nos apenas um rastro:
sua luz, fraca, sem forças para suportar o dia2. Que tipo de saber alcançamos? Não há como
crer-se possuidor de certezas, dada a fragilidade do que nosso paradigma tem habilidade de
produzir. Que pode nosso paradigma? Ver alguma coisa, olhar o que passa, enquanto passa;
registrar algumas observações, recomeçar sempre. O que ele pode, pode, no entanto, diante do
que vive, pode vir à altura de nossos afetos e pode inventar para si um saber, nem que seja um
saber-como, uma técnica, um modo de fazer. Pode estar além ou mesmo aquém do Saber, mas
nunca no seu centro. Ao lado, talvez. Paradigma. Não tão somente um “modelo”, porém um
2
Não devemos pensar as estrelas aqui como pontos fixos e imóveis no céu, a formar constelações. É preciso,
para tanto, concebê-las em movimento, isto é, capazes de abarcar tantas possibilidades de compreendê-las, tal
como a fluidez com que devém nos céus: “lascas de gelo”, “buracos”, “condensações de ar”, “átomos em queda
no vácuo”, “rebanho da lua”, “esferas de cristal”, tudo isso dito por Weinberger (2019, p.11-12), para quem,
aliás, “somos fixos e elas [é que] se movem”.
20
limiar, algo que se coloca e relaciona-se à distância com esse Saber3. Encontramos saberes,
saberes de sobrevivência, saberes de resistência, saberes de potências, saberes de perigos,
saberes comuns. A constelação responde a essa imagem. De onde vem, então? Quem fez dela
um paradigma?4 Voltamos a esse ponto, porque seu peculiar olhar sobre o método
fundamenta nossa pesquisa.
Walter Benjamin (1892-1940), filósofo sui generis, não pagou barato para compor
sua filosofia. Uma obra de pensamento que exigia, nos seus termos, estar no “olho do
furacão”, embora à margem, inventariando os estragos, sem perder de vista o centro calmo e
lìmpido. Ele soube reconhecer os perigos de um progresso “angélico”, ladeado aos quatro
ventos como a promessa da barbárie vigente. Para a abertura das grandes alamedas de Paris
havia que arruinar o já existente e expulsar os indesejados. Aparecia aí uma espécie de
dialética, perspectivada por aqueles que sequer tinham nome e compunham uma massa com
algo em particular por comum: o sofrimento. Ainda que a constelação seja uma metáfora
sideral (da mesma que parece assemelhar com o daquele que busca, por fim, a moral dentro
de si), ela o é à custa da luz do dia, ao custo do sol. É uma metáfora da noite, a qual reporta,
ao mesmo tempo, a ausência de unidade e um comum que toca a todos: o envolvimento
expansivo da própria noite. É, talvez, a metáfora do homem que olha à distância, enquanto
aguarda na sua janela, a chegada da mensagem imperial, que é a mensagem de um morto,
trazida por quem porta um símbolo já incapaz de ultrapassar as próprias muralhas. Uma
estrela cintilante que se desfaz em sua pluralidade, agora tendo na noite o elã de sua figura
arruinada. O que chega, então, a esse homem é a noite, talvez a única.
A constelação aparece a Benjamin já nessa perspectiva, fazendo a aparência de
unidade implodir para dar lugar a outra coisa que não sua unidade totalizadora, desejosa de
beleza, suposta manifestação do bom e da razão. Como um verdadeiro sintoma, ela vai
expandindo até alcançar o espaço de um esforço metódico, de uma operação de saber, tocando
as encruzilhadas da obra benjaminiana. O que faremos consiste em abordar o aparecimento da
constelação ao longo da obra desse filósofo, especialmente em quatro textos, onde sua
aparição é mais sintomática, isto é, coloca em questão a própria ordem do saber. São eles: “As
afinidades eletivas de Goethe” (1924-5), o prefácio de Origem do drama barroco alemão
(1925), Passagens (1928-1940) e “Teses sobre o conceito de história” (1940).
3
“O paradigma é apenas um exemplo, um caso individual que, através de sua repetibilidade, adquire a
capacidade de modelar tacitamente o comportamento e as práticas de pesquisa dos cientistas [...] lógica
especìfica e singular do exemplo” (AGAMBEN, 2019, p.13). O autor ainda o compara com a alegoria (idem,
p.22). É preciso também lembrar a máquina de guerra que não se repete, mas sempre começa de novo. Nesse
sentido, há um limite na noção agambeniana que não desejamos aqui. Nosso paradigma é máquina de guerra.
4
A concepção e adoção do “paradigma” para se pensar a obra de Walter Benjamin vem de Mòses (1997).
21
O primeiro texto, uma crìtica elaborada à novela goethiana d‟As afinidades eletivas
(1809), visou redefinir o próprio papel da crítica. Benjamin queria aí, não apenas dirigir sua
crítica a um tipo de apreciação muito em voga, a daquela do círculo de Stefan George (1868-
1933), como, ao fazer isso, abalar a própria tarefa e o sentido da crítica. A obra goethiana não
foi escolhida à toa. Ela é peculiar na sua existência, polêmica na época de sua publicação e
um ponto de torção na vida artística de seu autor – passagem para a maturidade, de certa
inflexão em suas crenças, o que lhe coloca num ponto de crise, de certa forma. Nesse sentido,
a obra é um desvio, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Por isso, pode ter sugerido a
Benjamin, a possibilidade de fazer proliferar e instaurar um novo processo de concepção de
crítica. Ele não deixa de remeter a uma ruptura com a tradição, seja no trabalho do crítico,
seja na existência da obra.
Para melhor compreender esses dois processos, trataremos de um de cada vez.
Primeiro, tratemos do trabalho do crítico (do fora) para adentrar a obra (o dentro). De certa
maneira, um quer fazer do outro seu escravo, quando o mais potente é a relação de ambos.
Enquanto o círculo de George, escreveu Benjamin, tentou a todo custo fazer, com a crítica, da
obra um momento da vida do seu autor, isto é, procurando as razões da obra na existência, na
psicologia, do autor, como chaves para o enigma, o filósofo redefine a função do crítico,
atuando como um alquimista e depois como um paleógrafo. É interessante, então, determo-
nos nessas comparações. Sobre o primeiro disse: “Onde para aquele [o quìmico] apenas
madeira e cinzas restam como objetos de sua análise, para este tão somente a própria chama
preserva um enigma: o enigma daquilo que está vivo” (BENJAMIN, 2009, p.13-14). A
segunda afirma que o crítico deveria comportar-se como um paleógrafo, quem “perante um
pergaminho cujo texto desbotado recobre-se com os traços de uma escrita mais visível, que se
refere ao próprio texto. Do mesmo modo como o paleógrafo deveria começar pela leitura
dessa última, também o crítico deveria fazê-lo pelo comentário” (idem, p.13). Ambas as
referências lidam com o trabalho do crítico, mas também com um tipo de tradição, essa
certamente por vir. Um porvir, todavia, referente a um passado atuante, seja da figura do
alquimista, pré-história do cientista, seja do texto antigo desbotado, ao qual se tem acesso pelo
comentário mais atual, sua pós-história.
O paradigma de crítica benjaminiana já desafia toda crítica ao fazer jogar com
anacronismos e inacabamentos – uma figura quase mítica e um tempo perdido. No entanto,
isso é o que garante, e funda, o presente; o que é capaz de fazer jus ao que está vivo, ao
enigma do que vive. Isso significa a necessidade de, não apenas estabelecer a diferença entre a
forma e o conteúdo, os quais surgem como o teor factual e o teor de verdade da obra,
22
embora seja o exemplo de conformação aos fins de certa tradição. Outro exemplo é a própria
trama do casamento, fonte do escândalo da época, no qual ambos os personagens, Charlotte e
Eduard, conformaram-se da mesma maneira. A bela aparência aqui também significa a
aparência do belo, isto é, o desejo de unidade no âmbito da aparência, numa complacência
que retira do sujeito a sua possibilidade de decisão, para simplesmente, salvaguardar-se tal
aparência. Os casamentos dos dois foi regida por essa perspectiva: feito por conveniência,
liberados pelo destino (o nome mítico do acaso), decidem realizar um desejo de infância, o de
juntos viverem em segundas núpcias. Essa única realização fica, pois, marcada por uma tal
conformidade, lembra o filósofo. Resta-lhe, então, essa aparência de decisão, chamado aqui
de escolha. Isto é, o mito aprisiona no espaço da escolha, a qual consistiria, basicamente, na
manutenção da conformidade à ordem instituída.
Para a crítica, nessa perspectiva, isso significa a complacência com a ordem
instituída, a continuidade de certa forma, de certa tradição, sem colocar em questão o próprio
tempo. Parece que ela existe para o reforço das paredes da prisão da obra, a fim de, não
somente mantê-la fechada, como também em afastar qualquer um que não esteja viciado
nessa forma, quem ainda teria coragem de romper com o ciclo mítico. Se o casamento e a
visão goethiana do matrimônio parecem o tema central da novela – especialmente em relação
a uma posição kantiana de casamento como contrato, ao qual Benjamin opõe a união em “A
flauta mágica” de Mozart –, para o filósofo trata-se muito mais da ruptura com a tradição e o
desejo de salvar o mito que se instaura como teor de verdade da obra. Lembrando: como se
trata de uma crise, não se sabe o caminho a seguir pelo poeta. As afinidades eletivas
configura-se, pois, como uma imagem de tensão, do ponto de vista benjaminiano. E ele
apresenta tal condição da melhor forma possível.
Agora, segundo, voltemo-nos à obra. Uma vez afastado o trabalho do crítico como
detetive a remontar as peças para alcançar o enigma que desvenda a obra, encontrada na vida
de seu escritor, o objeto parece mais digno do trabalho, assentando-se sobre si mesmo,
partindo de si, fragmento de mundo. Tal fragmento, lapidado pelo tempo e pelos comentários,
aparece como um elemento configurador de um tempo, o qual, pelo esforço da crítica
subitamente reconhece uma afinidade com o tempo presente. Ele vive, porque encontra um
tempo-de-agora, ou descobre-se uma iluminação sobre o tempo, um conteúdo que se torna
cognoscível. A novela de Goethe é a história, já o adiantamos, de um casal, em segundo
casamento, vivendo em perfeita comunhão, realizado obras arquitetônicas em sua região,
favorecidos pelos convivas e pelo dinheiro. Estão sempre a remodelar o lugar, uma maneira
de ocupar o tempo; trazer beleza para a vida, pelo menos, a aparência dessa vivificação pela
24
beleza, ao ponto de, a fim de facilitar um caminho até a capela, reorganizarem a ordem das
sepulturas, atitude ao qual Benjamin toma como “a ruptura mais definitiva com a tradição [...]
não só no sentido do mito, mas também da religião, que fundamentam o solo sob os pés dos
vivos” (ibidem, p. 23). Ruptura que, sem saída do mito, significa punição. Romper com o
mito nunca vem sem uma punição. Alguém terá de ser punido pela manutenção de uma
aparência, cuja existência põe em xeque a própria tradição.
Tal ruptura começa, justamente, através de uma metáfora científica, aquela que
empresta título à obra. A trama dá-se por uma espécie de experimento, oriundo da química –
as analogias benjaminianas não são, percebamos, gratuitas – pelo qual, Eduard tenta
convencer sua esposa a inserir novos elementos na composição de suas vidas: trazer um
amigo (o Capitão) como hóspede, enquanto ela, depois pensa, quando já parece convencida,
trazer a sobrinha do internato, Otillie. Porém, como aparências, sua leitura constitui um
perigo. Isso sucede em vários momentos: na proposta do experimento do qual se interpreta a
afinidade entre, de um lado, os amigos, e, de outro lado, Charlotte e Ottilie, sem a
consideração de outra possibilidade, aquela que de fato ocorre, entre Charlotte e o Capitão e
entre Eduard e Otillie; no momento da inauguração da pedra fundamental de uma futura
residência, quando o copo que deveria se partir como bom augúrio, um sacrifício, permanece
intacto; ou mesmo, quando Eduard sai em campanha à procura da morte, não mais suportando
seu amor por Otillie e sua traição à esposa, retorna. Todos esses presságios são mal
interpretados, enredando mais fundo os quatro personagens na punição. Eles, os quais
perderam a habilidade de adivinhar, confiando-se à razão, não souberam ler o destino ao qual
se mantinham aferrados, destino matrimonial que reencena aquela do mito e dos deuses
antigos. Mesmo o lago que ressurge após demasiadas interrupções geológicas não lhes serve
como anúncio de uma desgraça.
A resignação, a falta de decisão e a passividade diante das próprias emoções
permitiram ao mito realizar a derradeira esperança entre eles: “Menos hesitação teria trazido
liberdade, menos silêncio teria trazido clareza, menos complacência, a decisão” (ibidem, p.
22). O desejo de fazer da aparência de beleza a quintessência de suas existências, todo o jogo
de complacências e polidez, silenciando em nome de alguma nobreza, submetendo-se em
nome de algum dogma, fazem da trama urdida o embate entre o mito, que lança sua rede
sobre tudo, e aqueles que, assujeitados a um novo modo operatório desse mito, o direito,
abrem mão da própria possibilidade de decidir, ao mitificarem uma reação da natureza em
arquétipo da sociabilidade, encontram a dissolução, ou seja, a punição. A vítima a ser
sacrificada, Ottile, é a própria encarnação dessa aparência. Sem forças, desde sempre; débil
25
ao espaço do destino: “[...] tão somente a decisão, não a eleição, está inscrita no livro da vida.
Pois a eleição é natural e pode até pertencer aos elementos; a decisão é transcendente”
(ibidem, 2009, p.103). Poderíamos dizer: a decisão é anárquica. Ela é também, podemos
notar, um elemento de interrupção, de ruptura, de cesura, enfim. Há de se perceber que, pela
maneira arrazoada e equilibrada com a qual se expressam as personagens, aparentemente
deveras razoáveis, a bela aparência, na sua busca por certa justeza, esforça-se em preservar
um equilíbrio das emoções. A estética é basicamente esse esforço, como podemos ver com
Agamben (“O homem sem conteúdo”). Segundo Benjamin, apenas com a “fala dos afetos”,
através da “grande comoção do abalo” (ibidem, p.109), isto é, com o sublime é que se pode
encontrar o “poder do verdadeiro” (ibidem, p.92). O sublime, então, precipita a aparência no
declínio. Em termos de crítica, podemos perceber já uma tentativa de elaborar um novo modo
de sua concepção, pelo desmoronamento dos preceitos e das pequenas comoções: seja a
crítica, então, uma porrada de abrir o crânio, parafraseando Kafka.
Insubmisso, Benjamin não deixa por menos, o que nos indica a necessidade de
intromissão do páthos no discurso. Apenas o abalo rompe com o “ciclo mìtico”. Para isso o
filósofo tem um nome: sem-expressão (das Ausdruckslose). O sem-expressão aparece em
Benjamin numa configuração a envolver a noção de (i) enrijecimento, relacionada à forma, ou
seja, à configuração dada ao conteúdo da obra para se tornar obra; (ii) interrupção, que se liga
à noção de (iii) destruição e (iv) cesura (contrarritmo), quer dizer quatro movimentos de
imobilização e remobilização, pois eles visam, de certa forma, instaurar um limiar que abre à
reflexão acerca do que aí aparece. O sem-expressão torna-se um modo procedimental da
crítica benjaminiana, com a finalidade de suspender, ou melhor, de levantar o que se move
sub-repticiamente na obscuridade não-pensada do movimento da obra. Ela cria a distância
entre o teor factual e o teor de verdade, para daí encontrar-se com o verdadeiro, com aquilo
que rompe o mito. Primeiro dá-se uma configuração, ainda que momentânea do caos no
mundo, na forma de uma obra (imaginemos tal enrijecimento num momento de tensão.... As
afinidades eletivas parece cumprir essa imagem: tensão entre razão e mito, descobertas
científicas e a restauração de uma crença, a ruptura da tradição em nome da conservação da
aparência de beleza e da própria tradição).
Configurado numa passagem, numa tensão, a obra não parece bem corresponder ao
ideal de beleza. Interrompe-se, então, tal procura totalitária, a qual se tenta salvar a todo custo
a aparência. Vê-se, em seguida, a destruição desse sistema, a ruína dessa arquitetura. O que
resta ao crítico é, pois, elaborar um contrarritmo, um outro movimento que carrega em si o
próprio ato da cesura, da quebra. Tal movimento é um movimento interrompido; é o
27
movimento com sua falta, ou a partir dessa falta, inacabado, mas ainda gesto. Perdendo o
totalitarismo, ganha-se um “fragmento de um mundo verdadeiro”, o “torso de um sìmbolo”
(ibidem, p. 92), uma rosa que lembra a verdade do paraíso sonhado. Porque, para o filósofo, a
verdade existe, porém só nos aparece por fragmentos, na multiplicidade de fragmentos
descobertos, achados e perdidos pelo mundo. Nesse sentido, o sem-expressão é o aparecer de
uma interrupção, mas que se configura na medida em que imobiliza essa interrupção numa
imagem, isto é, numa tensão condensada exposta. Benjamin identifica esse sem-expressão
num momento específico da obra goethiana, momento crucial, talvez o último, e maior,
engano da novela: quando Ottilie e Eduard acreditam poder ficarem juntos, quando finalmente
declaram-se um ao outro e selam essa declaração com um beijo.
Nesse instante, o narrador (2014, p. 270) afirma: “A esperança passou sobre suas
cabeças feito uma estrela cadente”. Qual o sentido dessa imagem, uma metáfora, senão o
próprio aparecer do gesto literário, capaz de suspender toda a trama; interromper a ação para
dar-nos uma imagem, abrir-nos no próprio cerne da aparência, que nos chega como aparência
de aparência (esperança feita estrela), assinalando uma reconciliação enganosa (porque
demasiadamente tarde), quando a verdade é a morte de Ottilie. “Quão superior a qualquer
atmosfera anìmica estava aquele momento, e quão clara era a advertência das estrelas”
(BENJAMIN, 2009, p. 119). Tal configuração surgida dessa ruptura resulta na frase fatal do
filósofo: a esperança de reconciliação não é para “aquele que a acalenta, mas sim àqueles
outros para os quais ela é acalentada” (idem). Cabe ao narrador, no aparecer com sem-
expressão, configurar o acontecimento da esperança que, para os personagens, já não encontra
lugar. É ele que cumpre o papel de sujeito ético em virtude dessa falta; uma ética surgida do
fracasso:
[a] luta do ético jamais é apropriada para uma representação estética. Pois ou
vence o ético ou ele é derrotado. No primeiro caso, não se sabe o que foi
representado e por quê; no segundo, é vergonhoso assistir a tal
representação, pois ao final, em algum momento deve-se dar ao sensual
prioridade sobre o que é ético; [...] Em tais representações o sensual deve ser
sempre soberano; castigado, porém, pelo destino, quer dizer, castigado pela
natureza ética, que salva sua liberdade através da morte (GOETHE apud
BENJAMIN, 2009a, p.40).
imagem, a fim de, num momento oportuno encontrar aquilo que lhe permitirá uma saída da
aporia, mas não na forma de uma unificação ascética, mas, talvez, de uma queda, como a
estrela. De certa forma, e a distância entre o teor factual e o teor de verdade garantiria uma
saída, ela já está dada na própria configuração. É a estrela, como imagem do sem-expressão.
Ela aparece a Benjamin como o elemento sensível da configuração a responder tal aporia, não
com uma síntese, retornando ao totalitário e apagando o rastro da falta constitutiva, mas com
uma abertura na própria aparência; com sua chama, o incêndio de seu invólucro, a lançar
fagulhas para os lados, a formar uma (ou muitas) constelações, conjunto de fragmentos de
mundo verdadeiro, de novas configurações, ainda que arruinadas, ainda que ruínas do mundo
antigo (parciais, queimadas, incompletas, desfiguradas).
As estrelas surgem como metáforas para a reflexão sobre o próprio conhecimento, na
medida em que, “extinguindo-se o sol, desponta a estrela da tarde no crepúsculo, a qual
sobrevive à noite” (ibidem, p.120). Sobrevive por um poder de fragmentação, como
fragmentos e daquilo mesmo que resiste à expressão: “a multiplicidade irredutìvel das ideias,
sua coexistência no interior de um sistema, o fato de que esse sistema permaneça inalterável,
inclusive quando deixa de aparecer” (MÒSES, 1997, p.90)5.
Se o sem-expressão aparece nesse ensaio como uma postura, ou impostura, diante de
uma tradição de crítica literária, encontrando na estrela cadente (logo, luminosa, em chamas,
em movimento) uma forma sintomática de abertura do conhecimento, no prefácio crítico-
epistemológico de Origem do drama barroco alemão, ela se torna, devém, parte
configuradora de um método. Se no seu projeto de reconfiguração da crítica Benjamin a quer
à altura da obra de arte, no texto de 1925, praticamente paralelo ao ensaio sobre a novela de
Goethe, o filósofo, partindo novamente desse poeta, quer uma ciência à altura da arte. Ou
melhor, paralela, paradigmática a ela; uma forma que dê a ver na ciência “uma arte”. Ou seja,
a arte configura-se como paradigma de pensamento. Se antes dominava um paradigma
teológico (da bem-aventurança), passa-se, a partir desse texto, numa nova configuração, a um
paradigma estético. Se na crítica, a verdade parecia estar na vida do artista, ou seja, fora da
obra, segundo Benjamin, para certas manifestações científicas, a verdade é algo a se agarrar,
porque aí também, ela vem de fora, restando-lhes portanto, elaborar sistemas antecipatórios, a
determinar, por sua vez, os resultados, exibindo claro interesse na validade de tais sistemas e
sua consequente manutenção como possuidor de verdade.
5
Tradução nossa.
29
O filósofo alemão contrapõe a isso duas imagens: o tratado e o mosaico; duas formas
no campo de saber e no campo da técnica, as quais, em suas próprias formações, contrariam a
perspectiva científica dominante. Tanto o tratado como o mosaico buscam apresentar a
verdade, o que significa que ela se dá junto com o processo, na medida em que se estabelece o
próprio método. Se há um logos determinado nesse processo, ele está em devir, inacabado e
por se configurar. Por seu lado, aquilo que se encontra nesse processo guarda sua
singularidade (a “citação autorizada” no tratado, com fim pedagógico, e os fragmentos de
cerâmicas visìveis, na estrutura do mosaico), sem cair numa unidade totalitária ou “média
vazia”, como denomina o autor. Assim, a verdade não é agarrada de fora; ela é uma
construção inter-relacionada com o próprio método, o que permitiu ao filósofo afirmar:
“método é caminho indireto, é desvio” (BENJAMIN, 1984, p.50-51). Tal como,
posteriormente fez Adorno em “Ensaio como forma”, não se chega à verdade tentando possuì-
la. Ela aparece na medida em que se configuram os elementos de sua composição, como o
clique do cofre após acertar a combinação de dígitos da senha; uma verdade que se encontra
no próprio interior, na própria configuração, e não fora. Aqui Benjamin não perde a dialética
de vista. O ato mesmo de conhecer está na direção de uma distância e de uma perda. O tratado
não possui o saber final, nem está acabado. O mosaico é um amontoado de pedaços cujo
princípio de montagem, com seu caráter de ruínas, forma uma imagem da qual não se perde a
visibilidade de seus componentes constitutivos nem a cola, o limiar-negativo que une todos
eles. A contemplação garante a distância, mas do tipo a promover um salto, a partir de uma
espécie de arrebatamento (esotérico), o que colocava o filósofo em contato com o fenômeno.
Tal contato é igualmente indireto. Benjamin o realiza através do conceito, cujo
aporte platônico faz com que o fenômeno necessite de salvação, no espaço das ideias, por
meio de uma “inteligibilidade”. Porém, a revelia do filósofo grego, a ideia, em contrapartida,
necessita dos fenômenos para ter importância. O conceito é esse caminho. Na verdade, ele é o
único, porque o conhecimento é, no fim, acontecimento linguístico; ele está na própria
imanência de sua produção, tal como o teor de verdade está no tempo da própria obra de arte.
O conceito é a existência concreta da dialética entre o fenômeno e a ideia. E ela aparece ao
filósofo como aquilo que queima, como o “incêndio no qual o invólucro do objeto
(fenômeno), ao penetrar a esfera das ideias, consome-se em chamas, uma destruição pelo fogo
da obra, durante a qual sua forma atinge o ponto mais alto de sua intensidade luminosa”
(idem, p.53-54). Mais uma vez a metáfora da chama serve a uma abertura na forma de
elaboração do conhecimento. Se aqui é a chama que se mostra como o conceito, vemos, por
exemplo em Hegel, a chama ser utilizada como aquilo que aquece o “cadinho da razão que
30
depura o ideal”. Enquanto nesse último, o fogo “purifica” o conceito, em Benjamin o fogo é o
próprio conceito que destrói, e o faz a fim de penetrar na esfera das ideias, para fazer parte,
embora não em sua pureza ou determinidade, e sim por um fragmento que se salva como
conceito, um mundo vivo reduzido.
A luminosidade referida não é a do sol, mas a da fogueira, cujo brilho mais intenso
prescinde do dia e chama pela noite. De baixo ao alto, as estrelas, fragmento que, ao
incendiar-se, liga-se ao desejo, à esperança de bem-aventurança, a um vestígio de tempo-de-
agora, abre caminho para a multidão do céu. Em termos de método, a abertura completa-se,
ou melhor, prolifera-se: “seu valor heurìstico se mantém com a condição de ser eliminada a
metáfora solar”, revirando a metáfora da caverna, de modo a fazer do processo de conhecer
uma “metáfora da noite” (MATOS, 1999, p.147-148). Tendo a arte como paradigma,
Benjamin põe em obra seu sistema, servindo de aporte metódico para salvar a chama,
preservar a singularidade do fenômeno, na mesma medida em que aparece como a
possibilidade revolucionária de imobilização e rompimento com a tradição, com certa tradição
científica e filosófica, a qual busca na matemática e na física newtoniana um modelo de saber.
Muito habilmente, o filósofo vale-se de práticas antigas para oferecer o mais novo e
revolucionário em termos de saber: a arte da interrupção, a arte da dialética, “como os átomos,
como as células, como os sistemas solares, cada um tinha seu próprio centro: sem hierarquias,
estavam juntas umas das outras „em perfeita independência e intactas‟” (BUCK-MORSS,
2011, p.232)6.
Se inicialmente o tratado e o mosaico respondem materialmente à forma da
apreensão do fenômeno, no plano da configuração desses fenômenos, Benjamin toma a
constelação, não mais a estrela isolada (nem mesmo a estrela cadente), e sim um campo
celeste que as reúne e atribui-lhes uma forma, forma em formação, forma aberta, forma a
sustentar a singularidade, através de relações. O elemento em comum entre o tratado, o
mosaico e a constelação é a relação. É ela o operador dialético (mantém a distância enquanto
aproxima, aproxima pela distância), assumindo, na filosofia benjaminiana, a função de
conceito. Isso significa que a própria concepção do conceito não se mantém, quando pensado
como aquilo que diz, ou pergunta, sobre o ser do que deve ser definido. O conceito, pela
relação, assume uma nova postura. Ele é concebido constelarmente. Quer dizer: a constelação
aparece como conceito em relação e o conceito como relação constelar. O como dessa relação,
lembrando novamente Adorno, diz-nos de uma “quase correspondência”, mas nunca a
6
Tradução nossa.
31
Isso não significa não responder. A resposta não pode, simplesmente, ser unívoca,
única e unificadora. Mesmo a constelação, na possibilidade de uma resposta, está
condicionada às relações que cria para se poder dizer algo sobre ela. Como elemento singular,
da estrela, ela servia a um propósito ético-teológico, de maneira a marcar a suspensão de uma
aparência de reconciliação para rompê-la e daí tentar configurar um outro estado (verdadeiro)
da reconciliação. Ou seja, a estrela, em suas primeiras relações, aparecia como um elemento
de cesura no espaço do mito, fazendo-o abrir-se ao âmbito do divino, do sujeito ético. No
livro sobre o drama barroco, a constelação surge como um paradigma de conhecimento a
encontrar na arte sua forma de configuração: singularidades que se relacionam com um
dispositivo de verdade por meio de conceitos, esses não promotores de unificação dos
fenômenos, mas queimando-os até restar o que o possuem nos extremos (dialético) para fazê-
los adentrar na configuração do dispositivo, o qual, por sua vez, responde remodelando-se a
cada entrada, a cada nova relação, a cada novo salto realizado, tornando-se origem de novos
saberes e relações.
apenas uma configuração para estruturar os conceitos. Ela é, ao mesmo tempo, a estruturação
conceitual de sua configuração, uma forma que se forma junto com o conteúdo que mostra.
Ela é uma matriz relacional que se transforma na medida em que os conceitos a compõe. Por
sua vez, ela faz com que os conceitos, relacionando-se aí de maneira constelar com outros,
descubram também novas configurações possíveis para si, novas relações, sem, com isso,
perder suas singularidades.
A imagem, ou fisiognomonia, dessa proposta aparece na grande obra inacabada de
Benjamin: Passagens. A partir das relações, a constelação não é apenas um modo de construir
o saber, mas a forma mesma assumida, pela qual se mostra: uma gigantesca arquitetura
multifacetada de imagens, citações, formas e reflexões. É paradigma, forma de desvio que
mostra o verdadeiro, e também princípio, origem organizadora do fundamento que dá
inteligibilidade. É caminho desviante, ou seja, o próprio processo de sua configuração e é
estrutura temporal, associando passado, presente e porvir, numa “previsão do presente”. É
seu próprio uso, levantando questões seja quanto à teoria que tudo configura, seja quanto à
prática, uma técnica, tornando material a configuração e é sua cesura, constante por em ato a
própria perda da totalização, do desejo de unidade e síntese, em nome de um perpétuo
recomeçar e de um inacabamento a permitir outras configurações (espaciais, em lugares
diversos, próximos ou distantes, e temporais, tempos que demandam outras origens).
Passagens mostra as mais diversificadas relações com as quais a constelação pode
assumir novos usos e propósitos, pois além de seu caráter constelar, ela é uma obra que
atravessa o pensamento de Benjamin, iniciada pouco depois da obra sobre o barroco e
abandonada no ano de sua morte, para salvá-la, sem dúvidas. Ela está dividida em três fases,
pelas quais a constelação incorpora e é incorporada pelos paradigmas vigentes, sendo
reconfigurada à medida em que o paradigma dominante também o é. Por sua característica
relacional e múltipla, isso não significa a perda, uma perda de relação, todavia uma nova
composição que faz queimar e aparecer sentidos latentes, ou antes não sabidos, devido o
arranjo então elaborado. A configuração ganha uma nova formação, tornando-a capaz de
assumir uma outra imagem. A primeira vai de 1928 até junho de 1935; a segunda fase, de
junho de 1935 até dezembro de 1937, e; a última vai de 1937 até 1940. Tal divisão foi feita
pelos organizadores da obra, e não, necessariamente, pelo autor. Ela nos ajuda a compreender
o desdobramento dos usos, mas isso não significa uma progressão.
A aparição do termo predomina na fase intermediária. No arquivo “J21 a,1”
(BENJAMIN, 2009b, p.311), intitulado “Baudelarie”, o termo aparece como citação direta do
poeta, remetendo à ideia de “céu estrelado”, aparentemente longe da perspectiva de método.
34
Bem como em “R, 2,2” (idem, p.582), no arquivo R – “Espelhos” –, quando o termo refere-se
a uso estilìstico, que parece fazer sentido como “de forma diferente”, “em outra estrutura”,
uma espécie de jargão. O uso do termo, como termo configurador, aparece no arquivo “J
62a,2”, numa passagem em que o filósofo tenta dissociar dois tipos de constelação: aquela
que ele denomina “constelação cósmica” e outra “constelação cotidiana”, as quais estão
associadas à ideia do eterno retorno, à noção de repetição da condição material degradante das
“crises” e ao senso de hábito. Tais constelações surgem como configuradoras de um embate
material que acaba por afetar os embates espirituais, ou se quisermos, a possibilidade de ter
experiências. Disse Benjamin (2009b, p.386):
negado/negativo, ou confundindo-se com o saber claro, sabendo como tudo o que se faz no
subsolo, cobrar seu quinhão de participação naquilo que alimenta. A embriaguez era o
mecanismo de ligação a permitir a ambos manifestarem-se, servindo também como escape a
uma tensão que se mantém (não é abolida), mas ganha forma, é colocada em formação, como
na dança. Essa forma surgia em comunidade. Sem ela, cada fragmento, crendo-se como total,
arranja-se na medida da própria vontade, procurando, quando ao deparar-se com a falta
constitutiva, a tensão represada, qualquer gesto que a consuma, que a produza, que a expresse.
Sem a formação de uma forma, ela surge como uma captura do próprio corpo, individual e
coletivo, não mais se manifestando, como uma forma de arte, porém, consumindo a forma e o
corpo e a arte, como punição que só um mito engendra.
Tal constelação, ao invés de instaurar a abertura da crítica como forma de
fortalecimento, de armadura do hábito que se desfaz com as vivências, coloca em seu lugar a
“técnica”, como um fetiche moderno, pronto a realizar a tarefa que cabia à comunidade. Dois
textos de Benjamin nos ajudarão a compreender a assunção da técnica na estrutura de
constelação cósmica: “Teorias do fascismo alemão” (1930) e “A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica” (1936). Em ambos, no inìcio do primeiro (ibidem, 2012a, p.111) e
no final do segundo (ibidem, 2012b, p. 211), Benjamin assinalou a imaturidade da sociedade
moderna em lidar com a técnica, fazendo dela seu órgão, ao mesmo tempo em que, “não
estava suficientemente avançado para controlar as forças elementares da sociedade”. Para
isso, utilizavam-na para uma forma “antinatural”, isto é, para a guerra. Há também uma
discrepância, diz o autor, “entre a potencialidade dos meios técnicos e o esclarecimento moral
mìnimo desses meios”. Enquanto na embriaguez, a própria comunidade entrava em jogo, a
fim de responder à tensão entre a existência e o cosmos, na técnica, tal lugar recaí sobre o
dispêndio da produção técnica. Se a sociedade é incapaz de absorver essa potencialidade, ela
encontra algum meio de se realizar, para que o progresso possa ter continuidade.
O interessante é que essa manifestação da técnica na guerra serve a um propósito
político, alerta Benjamin: ela mantém as estruturas e a propriedade. Ela se manifesta para que
o corpo se mantenha inalterado. Talvez, na referência já presente no fragmento de Rua de mão
única, a felicidade do corpo epilético seja isto: o corpo colapsa para que se mantenha a mesma
estrutura, para que nada se altere7. Vem antes da verdadeira mudança, impedindo-a. É
7
Nesse sentido, Suely Rolnik em Esferas da insurreição (2018) é luminosa. Não apenas a estrutura se mantém,
quer dizer, a superestrutura, para utilizar um termo de Benjamin, como ela é capaz de cooptar e interiorizar como
desejo essa manutenção, ao ponto dos sujeitos lutarem contra o próprio “impulso vital”, isto é, ao invés de
buscarem uma saída para as questões que abalam suas existências, desejam manter a estrutura por medo da
mudança. E passam a desejar isso.
37
importante salientar que a técnica responde a tal tarefa na medida de seu uso, e não
simplesmente por ser um em-si, algo essencial8. Ela está apreendida na configuração da
constelação cósmica, elemento que se liga por baixo, por uma realização concreta (a guerra), a
qual visa, não dialeticamente, uma unidade violenta, nem que seja o tremor de todos os
membros em conjunto, abalando o corpo. Se os olhos se erguem nesse momento, eles não
buscam o céu tão somente; eles o encontram enquanto querem revirar-se em sua carne.
Vem juntar-se o corpo dessa constelação o “elemento de culto”, de uma guerra
“eterna”, recheada de “fraseados sobre valores eternos e primordiais” (ibidem, 2012a, p.114),
uma perigosa configuração que permitia aos alemães, segundo Benjamin, fazer de sua derrota
uma forma moral de vitória, isto é, recalcar o trauma da perda e converter essa perda num
objeto de desejo, deslocando a “luta para outra esfera” (ibidem, p.116). Esfera essa esvaziada,
na recusa do luto, de certa maneira. Ao recusar a derrota, os alemães prenderam-se ao culto
dessa guerra eterna com a qual haveriam de realizar seus destinos. A guerra torna-se um valor
de dignidade, pois seria ela a ter o poder de recuperar o espìrito do “povo alemão”. Contam-se
seus prodígios, pintam-se uma imagem angélica. Todos os elementos dessa constelação de
mão única dão aos conteúdos a forma de um ideal, de um absoluto, de um invisível. Se
Marinetti chega a esteticizar a guerra no sentido da glória técnica e triunfo da inteligência
humana, já está inscrita nessa configuração solar, ironicamente. A forma de abrir, ou fazer
cair, tal constelação, cada vez mais parecendo paralisar-se num ideal, é fazer voltarem-se às
coisas materiais, a partir de uma interrupção, no modo da recusa:
[m]as nós não vamos aceitar que alguém fale da guerra sem conhecer outra
coisa que não seja a guerra. Perguntaremos de forma radical, a o nosso
modo: De onde vêm vocês? E o que sabeis da paz? Já alguma vez deram
com a paz numa criança, numa árvore, num animal, como deram com os
postos avançados no campo de batalha? (ibidem, p. 118)
8
Discutimos mais longamente sobre essa questão em: ARAÚJO, MARINHO e BARBOSA, “Uma questão de
técnica em „A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica‟ de Walter Benjamin”. No prelo.
38
9
Para uma possível saída, já apontada por Benjamin, dessa forma ideal que cega e faz perder o luto, necessário à
vida mesma, há a “organização do pessimismo”. Desdobramos um pouco mais a questão em: MARINHO,
Clayton R. F. “A organização do pessimismo pelas imagens segundo Georges Didi-Huberman”, apresentado no
XVI Encontro da ANPOF, 2018. No prelo.
39
com a “magia do marxismo”. Tal constelação vem como imagem, o que adquirirá na obra de
Benjamin um alto valor político, um valor de incêndio. A sua recuperação significa uma
reordenação da constelação mais próxima, material que passa ao hábito, e não mais ao mito,
sua forma de abordagem. O que significa, todavia, tal perspectiva? A consideração de uma
forma de recepção passa ao largo da constelação cósmica unilateral: se, até então, cabia à
contemplação a função de determinar a forma de conhecer, recusando a participação e
envolvimento do corpo, elevar-se aos píncaros invisíveis do Ideal, ou da Pureza, a
configuração pelo hábito demanda justamente englobar a característica do tato, ou seja, a
recepção tátil como forma de aproximar o saber produzido, sempre em contato, e distanciar,
ao mesmo tempo, a fim de não destruir o próprio corpo.
Benjamin lembra dessa forma, conforme ele, pouco pensada pelos especialistas, à
partir da arquitetura (ibidem, 2012b, p.208-209), ou seja, talvez, a forma mais antiga da arte,
forma que sempre nos acompanha de alguma maneira. É curioso que a arte mais antiga seja
aquela a fornecer o elemento paradigmático da configuração da constelação. O hábito é,
então, o modo de apropriação e uso da recepção tátil. Falta ainda saber se isso, de fato, é
suficiente. O que podemos dizer aqui, por hora, é do hábito abrir-se na constelação como um
modo de relação a por em questão, a interromper os ideias “eternos” que os alemães têm da
guerra, guerra recusada. Um hábito operante pela recepção tátil dá à “magia marxista” uma
instância de luta. Ao abrir distância de tudo que surge com a contemplação – o corpo se
envolvendo na transformação da realidade, porque, pelo hábito, a realidade é descrita pela
experiência do próprio corpo – redefine-se, por sua vez, a própria recepção ótica a ela
atrelada, tal como a câmera faz no cinema, promovendo a extensão temporal dos movimentos
dos corpos a caminhar, revelando sua inconsciência ótica. Isso abre o próprio corpo, por
conseguinte, ao pensamento, e o pensamento ao corpo.
Abre-se aí a magia do cotidiano, na sua riqueza singular, e sempre concreta, e
abertamente comunitária, ou simplesmente comum. Ou seja, uma constelação com a potência
de arranjar sua configuração como um percurso da vida concreta, do cotidiano e, sobre, em
alguma medida, do que lhe é estranho, e mesmo deformado, mas sem, com isso, precipitar-se
no abismo do invisível, clamando por algum culto, ou numa generalização, a unificar
violentamente as singularidades, aquela que faz aparecer a “configuração abstrata das
histórias em „épocas‟” (ibidem, 2009b, “S1a, 3”, p.587). Paradoxalmente, uma metáfora
estelar surge como forma de salvar a concretude dos fenômenos, reorganizando-os numa
estrutura a permitir-lhes experenciar sua própria singularidade, na forma do conceito, e daí
elaborar inúmeras relações ao próprio tempo como está em igual medida virtualmente
40
presente a qualquer tempo que disso se aproxime e relacione-se. O elemento salvo, então,
torna-se sempre uma possibilidade de fazer entrar na história a dialética que a origina:
proximidade do tempo pela distância engendrada com outro tempo.
Assim, a constelação responde a um desejo de novidade e, ao mesmo tempo,
encontra uma semelhança com um tempo passado. Nesse sentido, a constelação figura e é
figurada. Ele não apenas contrapõe aquela cósmica e essa cotidiana. Elas são dialetizadas,
aparecem como extremos, a fim de abrir um espaço de crítica. Nós a encontramos tensionada
numa imagem. Com isso, ou justamente por isso, ficamos diante de um terceiro elemento a
compor a configuração da constelação (a constelação da constelação), qual seja: a
intermitência. Esse elemento aparece em “G, 19” (ibidem, 2009b, p.922) e em “H, 16”
(ibidem, p. 924), cujas considerações, ao invés de sintetizar a relação entre a constelação
cósmica e a constelação cotidiana, abre-a a uma nova possibilidade relacional:
inexistência ou espaço da agonia psìquica”, a qual permite, porém, “formular uma localidade
tópica de construção [...]” e o entre, uma “articulação”, isto é, “um ato de ruptura e de
diferença: perda, separação [...] É então a cesura [...] ato de disjunção e de desatamento”
(FÉDIDA, 2005, p. 342-344)10. Intermitência que pode justapor a outras intermitências, como
sucede ao jogador, quando nesse espaço e tempo do jogo, pode tentar compreender a trama,
os gestos e, assim, o momento oportuno para seu lance.
A intermitência é um terror, tempo infernal, para o contínuo. Uma parada em cena,
ou numa dança, rompendo e jogando os espectadores numa distância (de estranhamento) ou
numa proximidade, numa entrada em cena a ser marcada pelo tic-tac do relógio. O tempo
entra em choque: o presente é interrompido no seu mais-que-presente, no seu instante
capturado entre o passado imediato e o porvir vitualmente latente. Ele some: é passado ou
impossibilidade de futuro. Resta um traço aberto, inacabado, incompleto; quase-nada. Um
traço que, todavia, arrancado de sua linha e lançado num outro tempo, anacrônico até, no qual
se instalará como traço da diferença. A intermitência é o modo pelo qual a constelação
permite a percepção, apresentação e articulação da diferença. Esse elemento compositivo abre
as primeiras configurações ao espaço da diferença, pois dá azo à instauração de distâncias,
estranhamentos, saberes não resolvidos, sem aparente relação e seus entrecruzamentos, como
uma verdadeira encruzilhada, como encontra eco na obra de Marcel Proust:
10
Tradução nossa.
42
11
Encontraremos esse tipo de consideração ampliada em Aos nossos amigos: crise e insurreição (2016) do
Comitê Invisível, p.97-118, “O poder é logìstico. Bloqueemos tudo!”.
43
Tal arquivo guarda, por sua vez, uma “conexão subterrânea” (BRETAS, 2008, p. 20-
21) com o arquivo “K – Cidade de sonhos e morada de sonho, sonhos de futuro, niilismo
antropológico, Jung”. A constelação do despertar quer, então, a partir das imobilizações (do
saber, das imagens, dos pensamentos), servir para retirar os homens de seus desejos oníricos
(encontrando um exemplo em Aragon e seu Camponês de Paris), ou o que em Benjamin
significa o mesmo, de seus devaneios míticos. Porque, enquanto dormem, permanecem numa
inconsciência (idem, p.47) em relação à própria história, de modo que “o coletivo que sonha
ignora a história”12 (BENJAMIN, 2009b, p. 936). Nesse sonho, dicotomicamente, tudo lhe
parece “sempre novo” e “sempre idêntico”, assumindo a percepção de um “espaço de
superposição” (idem). Antes de voltarmo-nos a esse último arquivo M, remetido aos arquivos
“S 2,1” (ibidem, p. 588) e “K 2,5” (ibidem, p.437), detenhamo-nos um pouco mais nessas
considerações sobre o sonho. O interesse do filósofo pelo despertar está muito próximo da
experiência de Proust no Em busca do tempo perdido. A experiência aí surge como uma
intermitência, um limiar entre o sonho e a realidade. É aquele momento em que mesmo o
tempo é suspenso, embora nos permita tatear tudo ao seu redor, justapondo a experiência do
sonho ao espaço do quarto. Ou seja, ambos se chocam por um instante, entram em relação,
abrindo lugar a um instante de estranheza: “seria o despertar a sìntese da tese da consciência
onírica e da antítese da consciência do despertar? Nesse caso, o momento do despertar seria
idêntico ao agora de cognoscibilidade, no qual as coisas mostram seu rosto verdadeiro – o
surrealista” (ibidem, p.505).
No texto sobre o surrealismo (1929), Benjamin aborda uma experiência, já presente
em Nadja, de André Breton, que é aquela da associação de coisas distintas; a experiência da
colagem, colagem da realidade, a partir da qual as coisas mais antigas criam relação com as
12
Apesar do sentido que aqui assume, poderíamos colocá-lo em perspectiva com o primeiro capítulo do Usos do
corpo de Agamben, no sentido de que toda uma polìtica se faz com base no “homem livre” e não com base
naquele que ele denomina como “homem sem obra”, um outro paradigma para se pensar, o que está faltando, a
própria política. Assim, a frase de Benjamin poderia assumir, pelo menos, um caráter ambivalente, isto é, não
apenas fazer da ignorância da história um fator perverso, de certa maneira, mas uma outra coisa: ignorar, talvez,
no sentido de ignorar a história linear, a história que oprime, e fazer do sonho a esfera de outra possibilidade de
ação. Tendo, por exemplo, a abordagem em 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (Cosac&Naify, 2014),
Jonathan Crary mostra que o sonho é a última esfera de resistência ao capitalismo que tudo deseja dominar e
consumir. Uma barreira que se vem tentando eliminar. Quer dizer, o sonho é um campo de pensamento político
pouco explorado.
44
mais novas. Essa relação não é de uma ordem racional, mas do que o filósofo denomina
“iluminação profana”, da qual poderìamos dizer, talvez, jogo da imaginação. É essa a face
surrealista, face verdadeira, porque fora, arrancada do tempo, anacrônica, cuja possibilidade
de configuração dá-nos um modo de relação praticamente impossível pelo tempo contínuo,
recusando-a ou mesmo proibindo-a. O despertar, como esse modo de relação, faz ver “um
saber não consciente do ocorrido”, operando aí na forma da rememoração, da recuperação de
um passado esquecido, de um passado incrustrado no presente, embora não-sabido, ou mesmo
como não-saber (pois o “não consciente do ocorrido” pode referir-se, igualmente, ao não-
sabido). Nessa perspectiva o sonho não é simplesmente um estado puro do irracional, um
refugo da consciência, porém, muito mais um modo próprio de organização, capaz de
alcançar o coletivo. Mais uma vez, o que falta é o trabalho dialético, um modo que pode ser
também surrealista, no sonho, como a iluminação de suas “categorias polìtico-teológicas”
(ibidem, p.936).
tempo de coçar os olhos. Não apenas saber perceber o momento, mas entender que ele é
frágil, momentâneo, ainda que decisivo.
Essa perspectiva da constelação do despertar comporta, então, na sua configuração
um tempo perdido a precisar ser rememorado e isso significa lidar com tudo o que se perde
irremediavelmente, ou seja, um passado arruinado que só aparece como ruína. O seu processo
de montagem, por sua vez, implica tanto um saber rigoroso sobre aquilo que nos resta como
um trabalho de imaginação a fim de compor uma imagem, capaz de significar, por vezes,
precariamente, por alguns instantes, para alguns poucos. Se a experiência proustiana originada
(no sentido benjaminiano) por uma madeleine, certamente por muitos consumidos, mostra a
necessidade, então, de estar em alerta, de preparar-se, inclusive para estar diante do mais
estranho ou mesmo do mais insignificante. O rosto surrealista, como quer o filósofo alemão,
não surge dos grandes acontecimentos. Pelo contrário: pode ser uma singela coincidência,
uma associação abrupta ou mesmo absurda, um chiste. A possibilidade vem do acaso e recaí
no acaso, se alguém despreparado a recebe.
A constelação do despertar revela, assim, um conjunto de oportunidades perdidas, de
muitos “poderiam ter sido”, de muitos saberes não-sabidos (nem mesmo sabidos como não).
Se na relação constelação cósmica – constelação cotidiana, o não-sabido correspondia ao
invisível, ou ao sempre-o-mesmo, a um obscuro a esconder o mítico que nos aparta, aqui ele é
o extremo da configuração como potência, não-realizada, potência em potência, ainda assim.
Nesse sentido, tal constelação começa a transitar, ou, mais uma vez, a configurar-se, a de
doravante assumir um uso político, ser assumido no paradigma político que compõe a última
fase da obra benjaminiana. Para tanto, há de arcar com um conjunto de elementos carregados
com o despertar: a atenção, a reflexão (interpretação, ou seja, ação sobre o saber configurado,
configurar o con-figurado) e preparação, somado ao acaso e à dispersão como nos diz
Gagnebin (2014, p.111), fazendo disso uma técnica: “uma estratégia impertinente de
desatenção pelo caminho já traçado e de atenção por descaminhos que permitiriam, quem
sabe, vislumbrar outras viagens, „ouvir o inaudito‟, „tocar o intocado‟” como uma verdadeira
tática de desobediência, ou táticas de clandestinidade no pensamento.
O pensador, o historiador, o artista e quaisquer outros, nessa concepção, não podem
dar-se ao luxo de aguardar o acaso. Não se sabe quando a oportunidade surgirá, embora seja
possível saber que ele chega como um assaltante na estrada: é indispensável armar-se com
tudo que for possível para aproveitar o momento ou para se defender, mesmo quando, à noite,
seja quase impossível reconhecer aquilo que vem. Ou ainda, saber lidar com o que vem com
algo impossível de se conceber, de se pensar. Vem como o que não tem lugar. O que pode
46
parecer uma aporia de pensamento para tantos, desmobilizando uma vez mais a crítica, para
Benjamin não justifica a desistência, porque, ainda que impossível resistir ao que vem, pode-
se configurá-lo de tal forma a cristalizar o que aparece sem se revelar (ou se deixar
representar), com a disposição de preparar para outros, com os conceitos capazes, com os
instrumentos (mais) hábeis, os quais poderão dar a tal cristalização uma cognoscibilidade. De
certa forma, torna-se nossa tarefa salvar o impensado e o impensável como figura a ser
compreendida e utilizadas pelo por vir, para um tempo e uma história que dela necessite.
Desse modo, cada fragmento é importante, por mais insignificante que nos possa parecer.
Lidamos, assim, com a parte de não-saber que nos concerne. A constelação não é tão
somente uma forma de conhecer. Ela é agora uma forma política de organizar o saber, na
relação entre o saber e o não-saber. Ela figura naquilo que Benjamin denominou “imagem
dialética”, a concretização polìtica do que ele produzira na década de 1920, chamando então
de “imagem de pensamento”. A constelação é configurada novamente, de tal maneira a
produzir um sintoma, uma imagem cristalizada que, por não ser compreensível em seu tempo,
permanece como uma figura para o porvir, na medida em que se instala como uma aporia a
colocar em questão o próprio presente. Ela não só abalará o futuro que, talvez, a receba, a
descubra, encontre-se por acaso com ela, mas já abala como sem-expressão, o presente,
mostrando-lhe o que não é capaz de saber ou pensar.
Começa, então, uma espécie de transição, ou uma nova modulação dos elementos da
constelação, passando para esta configuração da imagem dialética, ao acentuar aí o caráter
polìtico dessa composição. No arquivo N, “N 2a, 3” (BENJAMIN, 2009b, p.504), o autor
assinalou:
Não é que o passado lança luz sobre seu presente ou que o presente lança sua
luz sobre o passado; mas a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o
agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a
imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente
com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com
o agora é dialética – não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta. –
Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não-arcaicas),
e o lugar onde as encontramos é a linguagem.
implica uma produção aquém ou além do pensamento. Porém, ela se produz na linguagem,
como imagem autêntica. Benjamin faz questão de frisar: não-arcaica. Primeiro, precisamos
compreender tal configuração da dialética capaz de produzir tal imagem. Sua noção está aqui
relacionada com a elaboração de uma imagem. O que significa para a dialética produzir, não
apenas uma imagem, mas produzí-la em lugar de uma progressão (síntese)? Podemos supor
que, ao invés de produzir um produto, um resultado (como numa conta aritmética), ela produz
um distúrbio, uma outra conta, talvez, mais complexa, um outro problema, ou mesmo a
própria suspensão da possibilidade de resultado. Produzir uma imagem, nesse sentido,
significa produzir algo de imprevisto e impensado, mas entrevisto e entrelaçado na relação
entre dois tempos que se chocam, ou que são iluminados por um terceiro, o lampejo que pode
ser de um incêndio ou de um cometa a lançar aos cacos a ordem da história.
Tal dialética é, pois, aberta, produtora de desvios. Para Benjamin, somente as
imagens daí surgidas são autênticas. Questão problemática: pensar uma imagem autêntica.
Está na ordem de um oximoro. Uma imagem, geralmente, é imagem de algo, ou poderia ser
uma imagem pura de si. Certamente, o filósofo tem em mente coisa distinta. Se “autêntico”
está relacionado, ora a algo verdadeiro ou único, ora a algo verificável (no tempo de sua
criação), fora da tradição (ao qual os três sentidos podem aportar, mais ou menos), podemos
pensar a hipótese de tal imagem ser autêntica no sentido de um destinatário (e não destino),
de um reporte para alguém ou alguma coisa. A imagem autêntica é aquela que leva para
alguém, para um outro tempo, mesmo para o próprio presente, a potência de um saber capaz
de dar a quem chega, ao tempo que vem, uma compreensão histórica; iluminar subitamente
uma possibilidade de conhecimento até então impossibilitada pela própria estrutura de saber
desse sujeito, ou desse tempo. A imagem autêntica é aquela que rompe a própria
configuração, colocando nesse lugar um conjunto de relações que fazem da história,
cognoscível.
Ela, porém, pode ser autêntica em outro sentido, naquele de nos fazer ver os limites
de um saber. Isso, para Benjamin, não é suficiente. Além de autêntica, ela deve ser não-
arcaica. Enquanto nos dois sentidos, a imagem é original, tanto se configurando como origem
de um saber e de um não-saber, quanto como originalidade nas relações formadas, a imagem
arcaica, ajuda-nos Didi-Huberman (2011a, p.192), é aquela que assume uma “„função
claramente regressiva‟, é buscar „uma pátria‟ no tempo passado. É portanto faltar a seu
propósito de originalidade; é deixar de produzir, não apenas a fulgurância do novo, mas
também a do próprio originário”. Tais imagens são nostálgicas de um passado idealmente
produzido, o que acaba por dirimir a própria potência de abertura do presente. Não basta ser
48
para a mesma atitude: encontrar novas formas, olhar a transformação da forma, abrir a própria
forma a contatos e planos inauditos.
Para a história e para a política, a configuração dessa constelação na forma da
imagem dialética tem consequências muito concretas. Para a primeira, podemos perguntar a
quem interessa imobilizar o contínuo e arrancar a história desse processo, ou, a quem
interessa produzir imagens dialéticas. Para o segundo, podemos pensar o que significa
organizar as visibilidades e legibilidades, no sentido de tornar presente as relações dialéticas,
ou conjugar um passado com o presente. Abrir a história significa romper com os modos de
representação, fazer aparecer a própria estrutura de poder que o sustenta e dar sentidos (não
importa quão frágeis ou momentâneos possam ser) aos períodos da história que parecem
fechados. Significa abrir o debate sobre o já estabelecido, colocar em questão as certezas,
fazer experiências com outras possibilidades recusadas, esquecidas, menores. Isso não vem
sem toda uma forma (e deformação) política, ou seja, sem questionar os espaços sociais, sem
repor o debate a considerar os excluídos, e mesmo aqueles sem parte alguma nisso tudo.
Significa saber a necessidade de lutar para abrir o possível no provável, o desvio no plano da
vida, de uma vida que poderia ter sido, de uma vida que poderia ser inteiramente outra, não
simplesmente uma utopia, mas potências, não-sabidas, ou impedidas pela estrutura que as
mantêm impensadas.
Com essa abordagem, a imagem dialética abre a história e a política à potência da
imaginação. Abre, mas não garante a abertura. É preciso haver o esforço, a luta, a crítica. A
catástrofe aparece sempre que uma oportunidade é perdida. A dificuldade inerente a tal
trabalho, a exigir tudo, está no espaço de Benjamin em tentar conhecer no passado “a
dinâmica do que nele está vivo” (KANGUSSU, 2014, p.32) e de poder, com isso, encontrar-
se com o esquecido, reclamante de sua redenção. Não é muito difícil de compreender isso: a
lei da anistia, no Brasil, garante legalmente o esquecimento (porque falta justiça) dos
torturadores e assassinos da ditadura civil-militar. Há corpos perdidos, famílias sem quaisquer
notícias do paradeiro de seus familiares e amigos, enquanto os opressores e assassinos seguem
livres ou nunca serão condenados porque morreram. Esta dor que lhes concerne é algo
participante de nossa memória. Ela está recalcada na memória; sua lembrança é
constantemente ameaçada (pela negação do acontecimento, pela recusa do direito de luta, pela
falta do processo de cura). Mas elas estão lá, como ocorrido não-sabido, passado represado,
voltando constantemente, por desvios, para nos assombrar por reparação. A forma mais
concreta dessas memórias continua sendo o sofrimento do que experimentaram, como
vítimas, ou seus parentes. Sem o luto, tal memória corre o risco de prender-se a uma perda;
50
perda, inclusive, do direito de chorar tal perda. Ficamos aprisionados de tal maneira a tal
passado, que, por sua vez, não nos permite conceber novos futuros.
A imagem dialética surge, então, nesses impasses, nessas aporias, e pode imobilizar
o passado recalcado e um presente desmobilizado, incapaz de desdobrar-se. Nesse
movimento, a imagem (habilidosa em torcer até mesmo a linguagem) cristaliza-se, na forma
de algo não-resolvido, não-processado. Já que não conseguimos dizer tal dor, ela se mostra,
aparece como uma mancha, ou um tique nervoso, no corpo. Ela se incorpora e torna-se uma
“memória de um esquecimento reivindicado” (DIDI-HUBERMAN, 2014a, p. 190). Até
encontrar seu agora e fazer-se cognoscível, a imagem dialética permanecerá em suspensão,
voltando a cada vez em que os limites das formas de saber são questionados. Ela se
transforma numa espécie de fantasma a percorrer os espaços (deixados) vazios, ou
abandonados, do conhecimento. Quem os investiga, corre o risco de deparar-se com esse
fantasma sussurrante, até que tenha a coragem de olhar diretamente para ele, não para
congelar-se de medo, como se estivesse diante da medusa, mas para ser capaz de devolver o
olhar daquela reivindicação que nos olha. Esse é o jogo da dialética. A imagem necessita de
alguém para olhá-la, a fim de cumprir seu papel. Ela não existe fora da relação. Não é uma
substância, mas o processo e o uso que se faz dela. Ela não é uma coisa; é um ato, diz Sartre
(2017, p. 137), acrescentando: “é um certo tipo de consciência. [...] A imagem é consciência
de alguma coisa”. Configurar como imagem quer dizer instalar-se num espaço do “trabalho da
figurabilidade” (DIDI-HUBERMAN, 2014a, p. 117) dessa consciência. Isso significa que não
há imagem dialética sem o trabalho de interpretação do pensador. Ambos se colocam numa
relação em que uma busca o agora da outra, a qual lhe figura, por sua parte, mostrando-lhe
uma experiência cristalizada do passado vivo, à espera daquele que a descubra, transformando
o mundo de quem consegue. Ela ilumina o caminho e o conhecimento do pensador, na medida
em que alcança seu agora, apresentando-se:
um momento crítico, a morte da intenção e o esforço de uma leitura. Tudo elaborado numa
imagem. Ela oferece à constelação justamente a coisa mais frágil a possuir, isto é, o tempo de
sua existência (efêmero, sem garantias, fragmentado) como uma forma de resistência contra
os “horizontes”. Assinala Didi-Huberman (2011a, p.85-87), enquanto o “horizonte promete a
grande e longínqua luz (luce) [...] a imagem é pouca coisa, resto ou fissura (fêlure)”. Está em
sua constituição esse caráter intermitente e, de certa forma, desvinculador de uma tradição
(nesse sentido, a imagem dialética pode responder a um tempo preciso, e ser, ao mesmo
tempo, anacrônico), ou de qualquer assegurador de valor da tradição. A imagem mostra muito
mais fissuras no tempo e no espaço do que horizontes de possibilidade. Por isso, ela está
sempre dependente, relacionada com um presente que a reivindique, feito uma estrela cadente.
Trata-se de um momento intenso de descoberta de uma verdade, apesar de passageira.
Se tomarmos o que o filósofo disse sobre o tratado no prefácio crítico-
epistemológico da obra sobre o barroco (1984, p.50), entenderemos que, na sua estrutura, a
imagem não tem qualquer intenção de ensinamento, mas de educação, não de demonstração
matemática, mas de citação autorizada através de sua apresentação. A imagem não é projeto,
nem tem propósito específico. Ela é um constante reformular-se a si mesma, estabelecer
conexões relacionais, aparecer quando o pensamento paralisa, alimentar o conhecimento do
pensador, no esforço de sua leitura. Ela conjuga o acaso e a necessidade de um tempo. Não
pode ser procurada, mas achada. Ela vem de um salto, logo não há como estabelecer qualquer
causalidade. É como uma estrela cadente que nos aparece, encontra um agora de sua
cognoscibilidade, condensa e explode nossos saberes constituídos sobre a história e se vai, ao
encontro possível de um outro capaz de utilizá-la, ou mesmo vagará, ou ainda se chocará num
lugar até então inexistente, ou, por fim, encontrará a extinção. Seu momento crítico está no
risco efetivo de seu desaparecimento, não só de nossas vistas, mas da própria história.
Nesse sentido, devemos lembrar: somos uma terra arrasada por pedaços de pedra;
temos apenas a marca de uma falta de não-se-sabe-o-que. Com a história é o mesmo: há
acontecimentos perdidos efetivamente, vestígios adulterados pelo tempo, objetos destruídos
ou mesmo soterrados, sem registros de sua localização. A imagem dialética dá à constelação a
ausência como parte integrante de sua composição. Ela pode ser elaborada tanto pelos
elementos que a compõem quanto por aquilo que lhe falta, faltas presentes a reconfigurar a
sua própria composição. Daí deparamo-nos com uma forma política: a constelação como
imagem dialética reivindicando um esquecimento e uma ausência constitutivos a partir da
própria configuração da história. Chegamos, aqui, ao último texto da obra benjaminiana, a
elaborar um programa político, com suas teses.
52
versão. O que parece ser uma antessala, de onde vemos a carruagem dourada carregar os
vitoriosos, deve ser o espaço, com técnicas e estratégias de luta. Há um esforço, disse
Benjamin, avassalador para apagar as chamas das lutas, quando a realidade é que “não há um
só instante que não carregue consigo a sua chance revolucionária – ela precisa apenas ser
definida como uma chance específica, ou seja, como chance de uma solução inteiramente
nova em face de uma tarefa inteiramente nova” (idem, p. 134), como vemos na tese XVIIa.
O que é isso senão o trabalho da crítica, em busca de um momento, conjugado a um
trabalho da imaginação? Simplesmente inventar novos mundos neste mundo, oferecer
inventivamente alternativas. A constelação coloca em jogo tais possibilidades, pois ela está na
linguagem, mas é também aparição da imagem, quando o pensamento não consegue seguir
adiante; ela é intermitência, onde se pode contemplar os detalhes em busca de um estilhaço,
mas também é acaso, como algo que passa ou cai iluminando feito relampado ou arrasando
como um meteoro; ela é dialética, compondo conceitos a partir dos extremos, mas é também
montagem, a apresentação do múltiplo em suas singularidades; ela é despertar, abrindo no
espaço dos mitos as sendas para a razão, com um machado afiado, mas é também a noite do
não-saber, sabendo lidar com o que lhe falta ou limita-lhe; ela é aquilo que se olha, exigindo a
capacidade de conhecimento do que cifra uma imagem, mas é também contato, a experiência
corporal, pela qual se faz experiência dos pensamentos; ela é uma configuração, fornecendo
certa estrutura para o pensamento compor com o que lhe escapa, mas é também desfiguração,
forma em movimento, operando por um princípio construtivo e relacional. E, em tudo isso,
momentânea, frágil, fissurada, paradoxal, sem garantia de horizontes, sem projeto, mas
política, aparecendo mesmo, ou justamente, nas margens, onde a grande luz não alcança,
naquele sujeito à beira da janela, esperando ansiosamente, talvez, a mensagem imperial que
jamais chegará. Anoitece, e talvez, reste-lhe a luz da chama do fogo a crepitar atrás de si,
vindo da cozinha. Provavelmente nada haja de muitos ensinamentos a dar, certezas a formular
e instituir, a não ser, talvez, alguns conselhos, uma história de vida a partilhar, preocupado
mais com a emancipação (o que passa de mão em mão) do que uma posse a aumentar a
fortuna. Nesse último ponto, tudo se articula a fim de permitir ao sujeito saber que seu tempo
está sempre aberto e inacabado, restando a ele o espaço para formular hipóteses de vida, com
a vida e jogar com as possibilidades. Nesses limiares, saberes e não-saberes, leis e exceções,
diferenciam-se, ou mesmo são suspensas, fazendo ver o sem-fundo com o qual se relacionam.
56
13
“[A] figura é algo real e histórico que anuncia alguma outra coisa que também é real e histórica”
(AUERBACH, 1997, p.27). A formação da figura, além de algo historicamente concreto, ocorre por meio da
“similaridade”, o que faz com que uma imagem prefigure outra. Essa segunda, por sua vez, “preencherá” a
primeira com o “significado”. Para descobrir a figura “temos de estar determinados a interpretar de um certo
modo” (idem). Auerbach denomina tal modo como “interpretação figural”, e deixa claro que essa maneira
dominou a forma de compreensão da Idade Média. Diz o autor: “A interpretação figural estabelece uma conexão
entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo, mas também o
segundo, enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois pólos da figura estão separados no tempo,
mas ambos sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica”
(ibidem, p.46).
14
“Os sistemas parecem ter sido criados, como os vermes, por uma generatio aequivoca, a partir de simples
confluência de conceitos reunidos, ao princìpio truncados e, com o tempo, completos” (KANT, 1997, p. 659).
57
15
Vale salientar que Panofsky acabou erigindo a perspectiva como ponto de dominação nos estudos de
representação visual. Porém, em contraposição, Massimo Scolari (2012) oferece alternativas capazes de abrir a
multiplicidade mais do que um ponto fixo. Ver: Oblique drawing: a history of anti-perspective. Massachusetts,
MIT Press, 2012.
58
16
Basta ver como, então, elas são capturadas e servem ao projeto de dominação de Estado. Para tanto, ver As
estrelas descem à terra de Theodor W. Adorno.
17
“Desse ponto de vista, a imobilidade a mais absoluta, a pura catatonia, fazem parte do vetor-velocidade,
apóiam-se nesse vetor que reúne a petrificação do gesto à precipitação do movimento” (DELEUZE E
GUATTARI, 2017b, p 84). Benjamin já desenvolveu ideia semelhante quando afirma que a imobilização não
significa a desmobilização. Didi-Huberman também não deixa passar tal dialética, com o passo (pas) de Israel
Galván e os estrelamentos de Hantaï. Mesmo o ponto de cesura, como já tratado anteriormente, funda mais um
contrarritmo que dá uma nova forma ao ritmo, do que, meramente, seu término.
18
“O paradigma é apenas um exemplo, um caso individual que, através de sua repetibilidade, adquire a
capacidade de modelar tacitamente o comportamento e as práticas de pesquisa dos cientistas [...] lógica
específica e singular do exemplo” (AGAMBEN, 2019, p.13), a qual é comparada pelo autor à alegoria (idem,
p.22). Na medida em que se dobra, a constelação não simplesmente repete para reiterar sua exemplariedade, mas
ao repetir diferencia-se. Nesse sentido, há um limite na noção agambiana, que não é o caso aqui. Nosso
“paradigma” aproxima-se muito mais de uma “máquina de guerra”, como mostram Deleuze e Guattari (2017) do
que do modelo do filósofo italiano, para quem mais vale o alcance da indiscernibilidade do que o da diferença.
19
Diz Deleuze (2012, p.51): “É preciso colocar o mundo no sujeito, a fim de que o sujeito seja para o mundo. É
essa torção que constitui a dobra do mundo e da alma e é ela que dá à expressão seu traço fundamental: a alma é
a expressão do mundo (atualidade), mas porque o mundo é o expresso pela alma (virtualidade)”. Nesse sentido, a
mônada aparece como uma “clausura”, a partir da qual, ao invés do sujeito separar-se do mundo, faz disso
“condição do ser para o mundo”. Seu enclausuramento, como diz o filósofo, é apenas “autonomia do interior”,
deixando, por sua vez, o exterior independente. É esse exterior que se abre e dobra-se “tão somente de fora e
para o fora”. A matéria, então, esboça “uma interiorização, mas relativa, sempre em curso e não acabada” (idem,
p.55). Porém, “a cisão entre o interior e o exterior remete”, no entanto, “à distinção dos dois andares, mas esta
remete à Dobra, que se atualiza nas sobras íntimas que a alma encerra no andar de cima e que se efetua nas
redobras que a matéria faz nascer umas das outras sempre no exterior, no andar de baixo. Assim, a dobra ideal é
Zwiefalt, dobra que diferencia e que se diferencia” (ibidem, p.58). A constelação opera em forma semelhante,
quando ela faz com que os conceitos dancem em torno de uma ideia, não como o que a define, mas a atualiza
imanentemente, sem, todavia, de fato, encerrar seus sentidos. A constelação, nesse sentido, dobra e desdobra-se,
alcançando melhor a multiplicidade de sua estrutura. “O múltiplo é não só o que tem muitas partes, mas o que é
59
Deleuze e Guattari (2017, p. 30-31), por sua vez, oferecem-nos os exemplos das
igrejas góticas e pontes, construções realizadas por agenciamentos, com cálculos surgidos de
“situações-problemas” e não determinados a priori. Tais construções acompanham o solo, que
os orienta. O solo figura o edifício e esse o realiza acompanhando-o, modificando-se a cada
momento, não meramente para corresponder, mas para criar sobre ele. O que surge não é da
ordem da mimese (no sentido de uma cópia platônica), nem da semelhança, pois carrega o
traço da criação, mas é a produção de um lugar, uma deambulação e uma heurística. Mais do
que organizar as formas e encontrar resultados, “o problemático permanece seu único modo”
(idem, p.44), fazendo de sua função, uma operação de “problemas-acontecimentos”. Trata-se,
então, mais de “seguir o fluxo de matéria, traçar e conectar o espaço liso”. Para Benjamin, a
questão não se conclui aí. É indispensável para ele, suspender e imobilizar, não para ordenar e
hierarquizar o pensamento, mas para dar conta de tais acontecimentos. A constelação, nesse
sentido, não se completa na sua função-fluxo, mas também na sua função-cesura: é aí que a
imagem aparece. Um fluxo que, na elaboração de seus traços, oferece-nos uma figura capaz
de apresentar a configuração do pensamento, do conceito, da matéria, e mesmo do próprio
fluxo, sem deixar que ela se petrifique. Um modo possível para ela pode ser visualizada no
esquema abaixo:
dobrado de muitas maneiras” (DELEUZE, 2012, p. 14), vale salientar, fazendo-se, pois, como potência na sua
“condição de variação” (idem, p.37)
60
domina o pensamento sobre a arquitetura, mas o percurso, isto é, a errância que engendra a
necessidade de espaços significantes. Como os dolmens e menires antigos, traços deixados
pelos percursos percorridos, traços arquitetônicos, estrelas na paisagem constelar do habitar o
mundo. Paisagem, não como representação figurada, mas figura figurante, acontecimento que
se instala e demanda sua apresentação. Paisagem em turbilhão. Paisagem de Paul Klee, aquela
para o qual o anjo de Benjamin olha de olhos arregalados – paisagem-ruína; paisagem de
Kafka, com o castelo ou o tribunal repleto de portas e janelas e salas e passagens – paisagem-
armadilha; paisagem de Walser, com suas insignificâncias, pequenas coisas apresentadas –
paisagem-nada; paisagem das vísceras de cordeiro, utilizadas para leituras divinatórias –
paisagem-monstra; paisagem da cor, com a relação que essa estabelece com os objetos, como
“meio”; paisagem-diáfano20. Traços e linhas que levantam e formam percursos, percursos que
vão do chão ao céu e de volta ao solo, remodelando e atribuindo sentidos a tudo a volta,
cruzando-se, dobrando-se e desdobrando-se. A constelação é a paisagem na qual as estrelas
percorrem suas linhas, cujas imagens permitem saber: paisagem-saber, saber-percurso.
Experimentação e invenção unindo-se na configuração do mundo, não na sua dominação. A
heurística configura-se, talvez melhor, constelarmente.
20
“Aristóteles, contudo, tenta compreender essa mistura introduzindo o „diáfano‟ como intermediário ativo entre
os fogos cruzados da luz do dia e do olho. Nada mais de partículas provindas do objeto, entrando, em escala
reduzida, no órgão da visão, mas uma teoria do „meio‟ capaz de homogeneizar esses dois semelhantes derivados
de fontes diferentes que são as duas radiações ìgneas” (CAUQUELIN, 2007, p.57-8).
62
PARTE I – HEURÍSTICA
[Método, constelação, origem, erística, arte da invenção, cólera]
Huberman, podemos levantar a hipótese de que ele também evita desde o início tal postura
diante do saber. E não só isso: evita, igualmente, a atitude como a do médico perante uma
histérica, ou um historicista perante o objeto histórico, ou seja, aquela de quem está acima,
contemplando impassivelmente, de longe, sem se envolver, sem ser envolvido. A postura do
francês, semelhante a do seu correspondente alemão numa fotografia na Biblioteca de Paris,
sentado e curvado sobre seus papeis, é a de quem se dobra diante do que está estudando:
dobra-se sobre, para olhar, e dobra-se com, envolvendo-se com aquilo que busca saber,
colocando o próprio corpo no jogo: corpo que se desdobra21. Há certa distância do olhar, mas
sem perder o comprometimento do contato, de poder descobrir-se em perigo ao realizar tal
atitude.
Didi-Huberman (2015b, p.15-16) não deixa de elaborar algo acerca disso, quando em
Pensar debruçado (publicado em 2014), escreveu: “não experimentamos a distância medindo-
a, mas nela penetrando de corpo e alma”. Porque, no cerne dessa questão está a capacidade de
envolver-se com a experiência de sofrimento do outro (da histérica, por exemplo), situação
que deveria ser acrescida à relação, ou operar como paradigma, com o intuito em evitar
“embelezá-lo” ou, talvez pior, “apaziguá-lo”, de tal modo a “extrair um pouco de verdade”
(idem, p. 13). A distância, então, desejante de uma neutralidade ou imparcialidade – no fim,
daquele que está seguro nessa distância e não pode ser atingido, ou possui poder para tanto –
não foi a postura de Benjamin e não parece ser a do filósofo francês. Debruçar-se sobre o
conhecimento, sobre os fenômenos, nesse sentido, compromete (à vista do desejo de
imparcialidade e abrangência universal) o próprio saber. Ele nunca é totalitário, nem perene.
Pode vir por fragmentos, do olhar por uma brecha, duma cela, como o faz Fontaine em Um
condenado à morte escapou (1956, direção e roteiro de Robert Bresson), ou mesmo do voo de
uma borboleta – esse é assinalado pelo próprio autor no final de Que emoção! Que emoção?,
ao tentar explicar sua postura epistêmica –, dos olhos marejados e embaçados pelas lágrimas,
de um grito de cólera a mobilizar alguma palavra.
Temos um saber que assume suas posições e sabe que, a partir daí, algo sempre se
perde. Por isso, está sempre em vista de uma perda, e/ou de uma dor (“como dar forma a uma
dor?”, coloca o autor, no inìcio de Invenção da histeria). Assim, que tipo de conhecimento
temos por essa abordagem? Se lembramos mais uma vez Benjamin, ainda no prefácio do
drama barroco, poderíamos assumir a proposição de dizer: busca uma educação, mas não um
21
Mas não naquela piada que Nietzsche faz sobre Hegel dobrando-se sobre seus papéis acreditando estar a
História dobrando-se sobre si mesma num momento de consciência da consciência, de forma absoluta, prestes a
encerrar-se finalmente, com a morte do filósofo alemão. A dobra está mais próxima da criação de multiplicidade
de que escreveu Deleuze, como o que se desdobra em muitas dobras, sem acabar nada.
64
Tal termo é, justamente, a forma com a qual Didi-Huberman empreende seu esforço
intelectual diante do saber e do não-saber. Dizemos forma, talvez, para simplificar aqui de
início. Mas, tal forma não obedece à estrutura hegemônica na qual foi pensada pela história da
filosofia. A decisão de operar pela constelação anteriormente serve como maneira de assinalar
a forma nessa perspectiva: uma função, uma paisagem, um mapa.
A forma é constelação. Isso significa que, para falar de heurística como paradigma
de conhecimento em Didi-Huberman, só pode ser operada constelarmente, como constelação,
a fim de evitar justamente a postura de Charcot diante do saber. Elaborar um esboço, ou
quadro, seria, assim, matar a heurística e fugiria a seu próprio princípio. Nossa opção foi,
então, apresentar a heurística constelarmente, nas relações que ele estabelece com outros
termos na obra do filósofo francês. Essas relações funcionam e operam como linhas que se
cruzam, que engendram seu tema na medida em que se forma. A constelação é uma forma em
formação, uma figura que se funda enquanto é figurante de sua própria figura. Ela cria linhas
que nem sempre serão levadas ao limite, mas que, talvez, tencionem algum limiar. Para tanto,
seguimos, de inìcio algumas “linhas”, palavras-guias, palavras-estrelas, certos percursos que
orientam essa pesquisa desde seu princípio, mas que estão por fundar um começo. São três as
linhas: (I) heurística-política-imagem, (II) política-comum-imagem, e (III) imagem-heurística-
exposição funcionando como planos de composição a atravessar as obras (temporalidades e
espaços) do autor francês. Por sua vez, a questão (IV) método-teoria do conhecimento-forma
opera como um plano transversal, sempre presente, sempre subjacente, sempre assaltante
desses três outros planos.
Se a definição do Cambridge Dictionary of Philosophy é insuficiente para pensar a
heurística, o que mais pode ela significar? Por hora, temos duas pistas, ou hipóteses de
trabalho: a primeira vem de Abbagnano (1998), para quem a heurística, originada do verbo
eúpíokto, significa “achar”, “pesquisa ou arte de pesquisa”, bem como estabelece uma
distinção com a erística, a arte de combater com palavras, vencendo nas discussões, onde
errar não é possível. Um sentido bem diverso daquele do dicionário inglês. Podemos pensar a
heurística, nesse campo, como oposição à retórica, ou à tradição de qualquer forma de
discurso com a finalidade de convencer. De certa maneira, então, a heurística aparece como o
espaço daquele que não tem interesse no embate discursivo, pelo menos não naquele com um
fim determinado, e como um espaço para a, ou mesmo da, dúvida, impedindo qualquer um de
afirmar qualquer certeza, porque ele pode, por exemplo, apresentar hipóteses. Também não é
o espaço da epoché, da suspensão da possibilidade do saber, mas a abertura à própria
possibilidade de saber. É um espaço, pois, de abertura, para o estudo, para a reflexão e, ao
66
mesmo tempo, uma arte dessa abertura. Então, ela opera uma abertura por imobilização da
certeza, a fim de colocá-lo a prova? Verificar seus limites? Criticá-los? Reelaborá-los? Talvez
a própria intenção, o propósito não seja a maior preocupação do estudioso, senão a
possibilidade aberta de jogar e criar hipóteses e verificá-las e, se necessário, recomeçar
novamente. Talvez seja, enfim a pesquisa da arte da pesquisa. Uma potência de potência. Por
isso, por um lado, não se pode conceber como discurso em vistas de uma finalidade (vitória),
mas, por outro lado, abre-se ao espaço dos erros, da sua possibilidade (o dicionário inglês
aponta algo nesse sentido), isto é, de uma arte errante.
A segunda vem do Littré, o qual traduz o mesmo termo por “a arte de encontrar” e “a
arte de inventar”, de fazer descobertas, termo que partilharia raiz com a palavra “heureca!”,
termo consagrado como interjeição da descoberta, ou melhor, uma iluminação que dá ao
descobridor o elemento (a ideia) de que necessitava para se chegar a uma solução, até então,
aparentemente sem solução, sem saída. Podemos supor que uma arte da pesquisa seja oposta a
uma arte de encontrar, quando não as elaboramos como arte do encontro, a arte do
relacionamento. Na segunda a potência encontra uma prática mais concreta e uma prática
mais próxima, ou própria, dos artistas; a arte de inventar que pode significar: criar uma ficção,
mentir e iludir, mas também relacionar, associar, criar e dar uma nova forma, reformular,
encontrar uma nova origem. Todas essas possibilidades se jogam na constelação da heurística.
Ela pode estar fortemente associada quando se parte da ideia de que conhecer é recordar o que
já se sabe. Nessa perspectiva, inventar é o mesmo que mentir ou iludir, de modo a dizer que,
pensar a perspectiva da heurística como paradigma de saber implica reelaborar os próprios
princípios.
O entusiasmo com tal alternativa estabeleceu-se, segundo Santos (2012) no período
do Renascimento, quando Francis Bacon elaborou suas “regras do método para descobrir o
desconhecido ou para inventar o novo”, abrindo-se a um páthos e interesse pela novidade.
Então, para tanto, formula uma “lógica nova”, contra a aristotélica e escolástica, até então
dominante, “acusadas de servir apenas para demonstrar o que já se sabe”. Essa nova forma
ficou conhecida como ars inveniendi, tendo, nos séculos XVII e XVIII, o impulso de novas
formulações (idem, p.59-60). Para Bacon, tais formulações buscavam “extrair regras da
própria experiência e do processo de invenção e descobertas” (ibidem)22. Nesse espírito,
22
Bacon (2014) em seu Novo Órganon elabora um grande processo e procedimento imanente, de modo a
conceber um método confiável para dar conta das descobertas. Começa, por exemplo, dizendo: “É preciso
sempre viajar através das florestas dos experimentos e das coisas particulares, sob a luz dos sentidos, que brilha
por vezes e se esconde em outros momentos” (p. 23). E mais a frente, não deixa de posicionar sua proposta: “o
objetivo que propomos para a nossa ciência é a descoberta das artes, não de argumentos, de princípios e não de
67
avançavam igualmente Descartes, quem desejou partir da arte da invenção para descobrir
novas formulações, tendo como base a geometria dos antigos, pelo qual chegou a ser acusado
de “romancear” os conhecimentos (ibidem, p.61), e Leibniz, que buscava nessa forma
“explicitar os „princìpios arquitetônicos‟”, além de estabelecer uma postura diante dos
fenômenos: buscar as definições em coisas semelhantes e semelhança entre coisas distintas.
Com tal arte, o filósofo queria “descobrir as causas dos fenômenos, ou as hipóteses
verdadeiras”, fazendo disso uma espécie de jogo, uma “arte de decifrar, onde frequentemente
uma engenhosa conjectura abrevia muito o caminho”. Tanto Descarte como Leibniz queriam,
enfim, algum princípio de uniformidade e de continuidade, e a arte da invenção serviu-lhes
como uma alternativa de desviar dos métodos usuais com vistas a alcançar, entretanto, os
mesmos objetivos (ibidem, p.61-63). Nesse sentido, o caminho que a heurística toma não está
distante daquela definição da Cambridge, mais especificamente.
Ainda seguindo Santos (2012, p.64), Wolff, discípulo de Leibniz, não acreditava que
o caminho traçado desde Bacon teria alcançado a força de tal perspectiva, não tendo sido, até
então, levado a cabo fora da área da Retórica e da Lógica. Ainda mais porque uma relação
crucial se manteve: entre a arte e o conhecimento. Wolff marca tal relação, reconhecendo que,
na arte de inventar há duas importantes faculdades, a perspicácia (acumen) e o gênio
(ingenium), comum tanto às artes como à filosofia. De certa forma, tal faculdade pode ser
resumida como uma faculdade da imaginação, capaz de fornecer e reconhecer “profundas
analogias entre o domìnio das artes e o domìnio das ciências e filosofia” (ibidem, p.64-65),
marcando, pois, um “parentesco estreito entre a Estética e a Heurìstica”, cuja primeira
formulação aparece nos escritos de Alexander Gottlieb Baumgarten. Inclusive, em sua
Estética, a heurística torna-se parte do que ele denominou “Estética teórica”, na qual é
responsável pelo conhecimento “sobre as coisas e sobre os pensamentos” (BAUMGARTEN,
inferências a partir de princìpios, de sinais e indicações de obras e não de raciocìnios não prováveis” (p.29). Isso
sem nunca esquecer o valor da técnica, na sua precisão para lidar com os experimentos: “a sutileza dos
experimentos é muito maior do que a dos próprios sentidos, mesmo quando auxiliados por instrumentos
cuidadosamente concebidos; falamos de experimentos criados e aplicados de forma específica para a questão sob
investigação com habilidade e boa técnica” (p.31). Ainda que busque a definição de axiomas, eles não
funcionam como formas fechadas: “Caso ele seja maior e mais amplo em escopo, temos de ver se, como uma
espécie de garantia, ele oferece a confirmação de seu escopo e amplitude, apontando para novos particulares; de
modo que não nos conformemos apenas às coisas que são conhecidas, nem, por outro lado, estendamos nosso
alcance demais e nos agarremos a formas abstratas e sombras e não às coisas sólidas [...]” (p.94). Através de um
processo de indução, Bacon apresenta vinte e sete instâncias, a fim de tornar o mais abrangente e capaz de
alcançar a sutileza e singularidade do fenômeno. Após se fazer o que ele denomina como “primeira colheita”,
passa-se a uma tabela de instâncias, as únicas apresentadas ao longo da obra, denominadas privilegiadas, a qual
se divide em, apenas alguns exemplos: solitárias, de transição, reveladoras, ocultas (ou clandestinas), de
relação, de semelhança, irregulares, de poder, limítrofes, desviantes etc (p.144-157). Uma verdadeira profusão
de instâncias com a capacidade de abordar um aspecto do fenômeno e permitir um conhecimento mais completo
e mais concreto, mostrando que a “ciência origina-se não apenas da natureza da mente, mas da natureza das
coisas” (p.225).
68
1993, p.98, §13). Nessa parte teórica temos ainda uma “metodologia” e uma “semiótica”.
Essa trata dos “signos do pensar de do ordenar de modo belo” e aquela da “ordenação lúcida”,
distinguindo-se, portanto, da primeira.
A heurística em Baumgarten aborda os conceitos e as definições, com vias a
constituir uma “ciência”. Nesse sentido, ela é uma arte da pesquisa. Tornou-se responsável
pela fundamentação teórica do saber, com a intenção de determinar o sistema de
representação, o qual permitiria definir a beleza, um conhecimento belo, a perfeição, a
imperfeição a definir, a partir daí, o espaço e limite desse saber. Tal sistema define, assim,
seus fundamentos, a fim de encontrar os princípios que moldariam a confusão em saber claro
e distinto. A heurística é a parte dedicada à fundamentação do saber, aqui do saber sobre a
Estética. Seu parentesco estaria, então, aí: na arte de inventar uma configuração sensível e
inteligível para o mundo. Como a arte, a heurística cria. Porém, na abordagem até aqui não há
correspondência exata: a heurística é a arte de inventar um modo novo, pelo qual se descobre
a unidade de tudo, enquanto à arte há a chance de alcançar o “disforme”, a partir do qual o
esteta, segundo Baumgarten (1993, p.99, §5-6) deve evitar tais manifestações em nome de
uma “beleza universal e geral”, isto é, o “consenso dos pensamentos em direção à unidade”
(idem, p.100, §18). A heurìstica seria, pois, uma espécie de “sagacidade”, a qual, assinala
Garve (apud SANTOS, 2012, p.65, grifo nosso), é uma “arte de adivinhar com felicidade
mediante a qual se prevê ideias distantes e consequências longínquas de verdades, sem
estarmos conscientes de todos os raciocìnios mediante os quais a elas se chega”.
Como arte da invenção, a heurística inventa princípios, pelos quais se configuram
novos conhecimentos e toda uma lógica, ou ela serve como uma iluminação a um
encantamento ou previsão do caminho a ser alcançado. Em ambos os casos, ela vai de mão
com a certeza de que seu único propósito é tornar claro, ou presente, saberes. Porém, no
segundo caso, por adiantar verdades das quais ainda não se está consciente, ela mostra sua
potência de abertura, e mesmo de limitação, dos saberes produzidos. Isto é, não se conhece
efetivamente sua potência porque não houve uma verdadeira elaboração racional disso que é
um saber, uma técnica, um gesto, uma emoção, uma aventura... O que podemos ver até aqui,
pelo que nos apresentou Santos (2012), é o esforço de trazer para a filosofia uma atitude
frente ao (ainda) desconhecido, mas que, mesmo não desejando o já sabido, almeja a unidade,
ainda que apresentada como uma novidade; procura uma continuidade, uma lei da causalidade
a tornar consciente (quer dizer: racionalizado, racionalizável) todos os elementos de uma
composição. A heurística torna-se a elaboração de uma arché, de um princípio de invenção,
mas invenção de uma ordem, ou melhor, da “beleza da ordem”, cuja elegância se encontra na
69
saberes. Benjamin não queria dar à arte um ar de ciência, mas mostrar no que a ciência tinha a
ganhar, aproximando-se mais da arte.
Didi-Huberman instala-se nessa categoria, mais próximo do saber, da sabedoria, da
sagacidade dos artistas, bem menos beatos do que os filósofos, sabendo reconhecer nas
imperfeições um espaço profícuo de investigação, sem com isso, procurar torná-los claros e
distintos, quando muito pensantes até certo limite, sem re-formá-los à ordem do esboço. Por
sua vez, isso não significa desligá-lo da tradição renascentista. É muito importante saber que o
filósofo francês recorre a uma alternativa que se inicia, justamente, no mesmo período em que
se instala sua crítica a certa história da arte, bem como saber que ela já apareceu naquele que
também deu início à disciplina da Estética. Seu uso é dialético, de certo modo: seria uma
heurística herética, para dizer de modo semelhante a como ele mesmo designa a dialética de
Bataille (em A semelhança informe). Herético no sentido de um desvio que é uma
desfiguração, ou seja, um trabalho de formação da própria forma, um por-em-choque formas,
e abrir, por aí, caminhos distintos, caminhos pelas diferenças. Se há uma proximidade, é
aquela da semelhança de um bicho-pau (phasme, em francês), animal que devora aquilo ao
qual se assemelha, pondo-se no seu lugar. A heurística de Didi-Huberman (2014b) poderia
funcionar dessa forma, devorando a tradição que a gerou, mas mantendo-se como uma besta,
o animal devorador do seu semelhante. Seu percurso inventivo, um marco de semelhança,
parece não procurar qualquer unidade ou continuidade, que não seja na base do choque, do
contato que desfigura, da relação de multiplicar-se em sintomas, bem como do inacabamento
que isso permite, tudo para ser capaz de fazer justiça ao que vive, ao devir, não a um ideal; ao
que sobrevive, não a um imortal; à diferença, não a um universal. Com ela, ele conseguiria,
talvez, porque não deixa de ser uma aposta, uma vontade de chance, abordar, aproximar a
distância delas, a fim de criar uma troca, uma relação, e não uma posse.
No conjunto que forma a obra de Didi-Huberman, cada tema por ele trabalhado
configura-se como uma constelação por si só. Como já vimos, a constelação pode funcionar
em várias dimensões. Ela pode cortar e atravessar os tempos e os espaços. Sua ordenação
importa mais pelas funções surgidas, desejadas, do que, necessariamente, pela organização
72
cronológica, pela confecção de um organon. Essa seria apenas uma das formações possíveis.
A constituição de uma constelação pode também trabalhar sobre planos. Um plano de
composição do pensamento do nosso autor, no qual podemos: conectar as temáticas com o
exterior e ver como se diferenciam dos muitos autores por ele operados.
Operar é o que Didi-Huberman faz. Ele não pratica uma simples (nada simples
assim, na verdade) interpretação do pensamento da multidão de filósofos, pensadores e
artistas. Ele opera com eles; faz com que seus pensamentos, conceitos e obras funcionem num
corpo a ser explorado, numa temática a ser tratada. Isso significa que nenhum pensamento,
conceito ou obra permanece incólume. Eles são alterados pela necessidade imanente de
compreender, de saber, no corpo de cada singularidade. O movimento mais correto,
provavelmente, a seguir deveria ser, então, o de mostrar o que muda quando se faz o retorno
do pensamento operado para os pensamento utilizados pelo autor23. O movimento dadá, por
exemplo, permanece basicamente incompreendido no corpo da história da arte, porque sempre
visou não este mundo, mas mundos possíveis ocultados (clandestinos) neste mundo; não outro
mundo, mas um mundo outro. Os historiadores parecem permanecer incompreensíveis, e
quase irrelevantes, diante de tal tarefa: escrever uma história (ou histórias) dos mundos
possíveis, porém irrealizados, pois, o que se pensa como fato histórico a fim de corroborar a
pesquisa não existe (para tal arte. Nesse sentido ela é “anti-arte”). Há, no entanto, vestìgios
(em forma de obras, por vezes); há ficções (os diários de Hugo Ball, o livro de Hans Richter,
o manifesto de Tzara); há os sonhos. O autor parece seguir esses vestígios, buscar essas
ficções, não como mera fantasia desprendida da realidade, mas como realidade desprendida
de seu organismo, de sua arquitetura paralizante.
Seguir o pensamento de Didi-Huberman para compor, ou decompor, uma genealogia,
ou uma história, perde sentido, porque desdobrar seu pensamento já é formular outros
pensamentos. Parece só haver o percurso da proliferação diferenciante. Retornar é seguir
outros percursos. Não existe retorno, senão da diferença, portanto. Ou, como o próprio autor
coloca a questão em Sobre o fio (publicação em 2019): qual o valor da digital deixada no
quadro Os arnolfini por Van Eyck? O que isso traria para a obra de arte de inquietante, de
verdadeiramente potente? É uma tarefa possível e realizável, sem dúvidas. Agita o mercado e
os especuladores. Elaborar a constelação da heurística em Didi-Huberman não funciona,
23
Isso certamente é um longo e importante trabalho a ser realizado. Porém, não é o foco do que propomos aqui,
o que não significa, quando necessário, estabelecer minimamente esses arranjos conceituais, mas, usualmente, de
modo secundário, nem que seja apontando a importância de tal movimento.
73
meramente, por aquilo que ele opera (uma possibilidade) de fora, mas, talvez melhor, como
opera dentro, movimentando-se, dobrando-se e desdobrando-se.
Com isso, a escolha quanto ao tratamento das obras fica pautada na composição de
um plano interno de composição do pensamento do autor. Isso significa, por sua vez, a clara
perda de elementos que adensariam e perturbariam a capacidade de interpretação da obra
dele. Porém, esse estudo não deseja ser um trabalho de interpretação. Buscamos mais operar o
pensamento de Didi-Huberman, na medida em que ele poderia fornecer um conjunto de
ferramentas, saberes e conceitos para pensar uma imagem. A primeira linha desse processo
perpassa, ou se cria, a partir da heurística, uma estrela-guia. O trajeto constelar que ela visa,
toma a teoria, a noção de finalidade, o saber e as relações criadas como composição de sua
figura. Nesse sentido, a heurística figura alterações nessas noções, na mesma medida em que
é alterada por elas. Para tanto, reunimos quatro obras do filósofo, onde essa constelação
adensa-se, opera seu contorno, cria funções, apresentando mais intensamente sua figura:
Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte (publicação em 1990),
O que vemos, o que nos olha (publicação em 1992), o terceiro volume da série L‟œil de
l‟histoire, Atlas ou le gai savoir inquiet (publicação em 2011) e o quinto volume da mesma
série, Passés cités par JLG (publicação em 2015). Em cada uma dessas obras, a questão é
levantada e reformulada; adquire uma formação que é singular de cada contexto. Ela não se
repete, meramente, mas entra em uma cadeia operatória inteiramente diferenciada, alterando-
se, ou mesmo, permanecendo em alteração – variação como natureza da heurística.
Em Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma história da arte
(publicação em 1990), no último capìtulo, “A imagem como rasgadura e a morte do deus
encarnado”, no qual o autor apresenta uma alternativa para o paradigma dominante da história
da arte e da relação com as imagens. Em revelia ao “tom kantiano” e à postura de Erwin
Panofsky (1892-1968) diante da história e das imagens da arte, o filósofo francês recorreu à
tradição cristã da encarnação e da psicanálise freudiana de A interpretação dos sonhos.
Estamos, pois, num momento de constelação e de busca de um novo paradigma. Nesse
contexto, o autor (2015c, p.243-244) escreveu: “[...] a exigência encarnacional conseguiu
provocar nas imagens a eclosão de uma dupla potência de imediatez visual e de elaboração
autêntica. Tal é a potência teórica – ou mesmo heurística – do sintoma”. Nessa passagem
temos uma verdadeira condensação do esforço didi-huberminiano em elaborar uma alternativa
à tradição hegemônica. A encarnação é o elemento que permite a proliferação das imagens
cristãs, não como o ideal do corpo divino, mas como o aparecer da chaga, feita para abrir o
corpo à possibilidade de salvação. O visual aqui se refere ao que aparece quando se abre o
74
visível, como uma espécie de latência não vista, fechada ou esquecida pelo dispositivo de
poder, sustentáculo da tradição contra a qual se põe a teoria do filósofo. Esse dispositivo é a
própria teoria. Recuperar a potência teórica significa abrir seu espaço fechado, colocar como
evidência não as evidências teóricas, mas a teoria ela mesma, a funcionar como sintoma. Se o
sintoma possui uma “potência”, é através dele que a teoria também devém potência, ou ainda,
sintomática.
Tal teoria é, então, um contra-movimento de qualquer invisível que se queira por no
lugar, como um inacessível, impronunciável e impensável. O embate do autor é também
contra a mitologização dos saberes e estabelecimento de zonas de pensamento e,
consequentemente, zonas de não-pensamento-impensável. A elaboração exegética a qual faz
referência, a seguir, diz justamente sobre o esforço de rompimento da barreira do visível, mas
não em busca daquele invisível, porém do reverso do próprio visível, como o reverso de uma
costura, para lembrar uma imagem benjaminiana, a qual oferece, não o ordenamento do que
aparece, mas a desordem que materialmente fundamenta-a. Tudo isso abre a teoria à potência,
isto é, a uma força que põe em movimento, capaz de liberar ou não, a guardar fortalecendo-se,
sem, contudo, relacionar-se simplesmente com o poder, podendo, inclusive, ser o seu
impedimento. É aí que Didi-Huberman busca reelaborar uma teoria para as imagens. Seu
paradigma é o sintoma. Ele, em várias oportunidades, afirmou não se tratar do sentido
estabelecido e razoavelmente assentado e estável de sintoma, especialmente no campo
médico, mas daquele metapsicológico, de uma ordem, ainda sem fundamento, ou mesmo
paradoxal; de uma estrutura de saber que diz sobre o que aparece enquanto aparece naquilo
que se manifesta em seu lugar. O sintoma de influência freudiana, e também lacaniana, está
mais aportada nas concepções de Pierre Fédida, a partir do qual assume uma configuração
inquietante e inquieta, proliferante, ambivalente, instável e difícil de dominar24.
A principal referência, a qual o autor repete em várias obras (Invenção da histeria,
Diante da imagem, O que vemos o que nos olha), como o “modelo” do sintoma, assinalado
por Freud, após uma aula de Charcot: uma histérica, durante um de seus ataques-encenação,
com uma mão puxava o vestido, enquanto com a outra o empurrava. Freud entendia isso
como uma mão operando como homem, querendo arrancar o vestido e a outra como sendo da
mulher a defender-se, isto é, uma encenação de uma possível tentativa de estupro, condensada
numa imagem plasmando seus contrários. Freud teria assinalado, entendeu Didi-Huberman, a
24
Apesar da clara necessidade de um estudo genealógico, epistemológico, ou mesmo icnográfico (para escapar
ao lógos), tal proposta escapa inteiramente ao escopo desse trabalho. Ele seria, certamente, de muita valia,
implicando, no entanto, um desvio sem retorno (isto é, outro trabalho) para os objetivos aqui pretendidos. Mais
uma vez estamos diante de uma perda, uma linha de fuga não traçada.
75
potência figural do sintoma: ambíguo e aparecendo como o que se ausenta. É tal perspectiva,
como um paradigma de conhecimento que o filósofo francês resolveu utilizá-lo, a fim de
reivindicar toda uma forma de resistência das imagens diante dos esforços de torná-las
legíveis, convertidas em textos. Toda uma teoria, por sua vez, capaz de ferir e abrir a teoria
existente, obediente a uma lógica aristotélica, ou mesmo kantiana. É nesse meio, como uma
espécie de adendo, ou intermitência em meio ao texto, que aparece a heurística. O autor diz,
assim, de uma “potência teórica – ou mesmo heurìstica” para referir-se ao sintoma,
relacionando, então, ambas, como já o fizera Baumgarten. É ela que pode ser de dois modos,
porque, ao usar o “ou mesmo” podemos ter uma compreensão de, “no lugar de”, “ou ainda”,
“e também”, de semelhança, mas não de exata correspondência. Poderìamos entender a teoria
aqui, qualificativo da potência, como o conteúdo a ser produzido, o saber a ser descoberto
com essa nova possibilidade de saber pelo sintoma. Aí, ela poderia estar em correspondência
com a heurística. Mas, lembremos, a heurística é também uma abertura para o erro, para a
possibilidade, de não apenas enganar-se, na formulação de uma hipótese, bem como de
instalar-se num não-saber, num lugar em que o saber entra em relação com sua virtualidade –
seu avesso. A teoria encontra-se, então, com seu não-teórico/teorizável (não traçado, sem
trajeto), ou seja, com aquilo que se manifesta quando ela não se manifesta.
Então, a heurística poderia apontar para uma abertura na potência teórica como um
contrarritmo dessa potência. Na perspectiva do sintoma, portanto, ela assumiria a distância
dessa mesma potência, como aquilo a abalar, fazendo entrar o não-teórico (a emoção, por
exemplo) na teoria. Uma potência, como colocou o próprio filósofo, pela exigência
encarnacional, provocaria tanto uma imediatez (da emoção) como uma elaboração exegética
(teórica). Tal intrusão pode parecer assaz patente na outra passagem, em que o termo aparece,
no início do apêndice, “Questão de detalhe, questão de trecho”, a partir do qual ele ofereceu
uma prática mais apropriada a sua abordagem: “[h]euristicamente falando, portanto, nunca se
saberá olhar um quadro. É que saber e olhar não tem absolutamente o mesmo modo de ser”
(idem, p. 299). Em seguida, escreve “perigo” e “escapar a integralidade de sua significância”.
A heurística serve, com isso, como uma função teórica, uma função atitudinal diante da teoria
e diante da pintura, a mostrar tudo ao mesmo tempo, separando o olhar do saber como dois
modos de ser distintos. Por essa via, olhar não é saber. Olhar implica por-se diante da obra,
entrar em contato com ela, na multiplicidade de seus sentidos. E saber não é olhar, pois saber
implica por-se diante do olhado, estabelecer contato com tal experiência, na variação dos
sentidos. Em A pintura encarnada, o autor (2012a, p.19) apresenta três sentidos, os quais
inexistem independentemente uns dos outros, estando atravessando-se mutuamente,
76
25
“O tema do sujeito autônomo e autotélico, de sentidos mortos, e por esta mesmo razão um criador viril, com
auto-arranque (a self-starter), bastando-se sublimemente a si mesmo, aparece ao longo do século dezenove –
bem como a associação da „estética‟ deste criador com o guerreiro, e daì com a guerra. No final do século, com
Nietzsche, há uma nova afirmação do corpo, mas este permanece auto-suficiente, extraindo o máximo de prazer
das suas próprias emanações biofísicas. O ideal nietzschiano do artista-filósofo, a encarnação da Vontade de
Poder, manifesta os valores elitistas do guerreiro, talvez, „tão distante de outros homens a ponto de os poder
formar‟. Esta combinação de sexualidade autoerótica e poder governante sobre os outros constitui o que
Heidegger chama a „Mannesaesthetik‟ de Nietzsche” (BUCK-MORSS, 1996, p.18). Não a toa, diz a autora há
toda uma ojeriza não apenas contra a feminilidade e o feminino, mas “de fato, a sexualidade homoerótica pode
ter sido até mais ameaçadora para a psique modernista emergente do que a sexualidade reprodutiva das
mulheres” (idem, p. 17). A filósofa, no fim, restabelece os laços entre os sentidos e mostra a complexidade de
sua abordagem, para além dessa possibilidade ascética e fálica da experiência estética.
77
no “perigo” de que falar pode significar, pode levar a fechar definitivamente a imagem à
experiência; torná-la opaca, cada vez mais opaca quanto mais se tenta fechá-la num sentido;
tentar saber totalmente. Torna-se necessário refundar a teoria na queda – a queda como teoria,
uma queda na teoria, mas não uma queda teórica. Pela heurística, os modos de ser aparecem
marcando a distância, como o sem-expressão rompe com a falsa unidade ideal da obra. Ela
não dispõe dos modos de ser, senão pondo sua relação em planos espaciais distintos: enquanto
saber significar “ver em detalhes”, olhar significará tomar distância, afastando-se e abrindo
espaço para abarcar o conjunto, tudo de uma vez, mesmo ao custo de perder esses detalhes.
Mesmo a relação temporal também será aí distinta: ao tudo olhar de uma vez, ao mesmo
tempo, para saber seria preciso ver uma coisa antes da outra, criar uma continuidade ou
causalidade, distinguindo-se cada elemento, e, talvez, no fim do percurso, relacionar uma à
outra, enquanto que, ao olhar sem procurar saber os detalhes, tem-se grandes trechos, tomados
a esmo, os quais podem abarcar elementos heterogêneos, a partir de que se pensa algo. Na
primeira procurar-se-ia um centro de atenção e daí se partiria a fim de constituir a história do
quadro.
O exemplo de “A rendeira” de Johannes Vermeer pode nos servir aqui. Por essa
última perspectiva, diríamos que a moça se dobra sobre seu trabalho, concentra-se nele, na
“agulha” e na “linha” que usa para tecer. Justamente tal tarefa está no centro da tela e tudo
parece convergir para ela. Daí é que se partiria para o que lhe cerca: um tecido, a janela acima
de onde vem a luz, a “linha emaranhada” abaixo. Sua história tornar-se-ia legível (a legenda
parece apenas redundar o que se vê). Pela perspectiva do trecho, porém, perguntar-se-ia o que
se olha: linhas finíssimas, talvez feita com o pincel mais fino existente, uma branca e outra
vermelha, com uma grande mancha vermelha ao lado; mancha que atraí o olhar,
descentralizando a obra. Afastando-se ver-se-ia que, apesar da iluminação, um terço da tela é
negra – uma grande mancha ocupando a tela, já avançando sobre os panos do vestido. Uma
forma de olhar que não constitui um saber certo, ou um saber a priori a determinar o que
olhar, mas um conjunto de hipóteses e observações, os quais mostram mais uma afiliação a
um não-saber, o qual instiga e inquieta o contemplador, a despeito de qualquer certeza
pressuposta. Nesse sentido, a heurística afirma a incompletude do sentido-somà, o qual
aparece sempre em relação com os outros, partindo da experiência desses outros sentidos. Tal
termo, porque aqui ele ainda não assume claramente uma função, aparece para perturbar a
ordenação e instaurar um caminho de hipóteses, para um saber por vir, fazendo experiência,
justamente, dessa perturbação. Ela busca um novo que é, por seu lado, a deformação do já
78
instituído, isto é, não apenas proporcionar a aventura de novas descobertas, mas realizá-la.
Igualmente, dentro do já-sabido, de suas próprias demonstrações.
O que está em jogo não é, então, aprender a distinguir o detalhe (saber) do trecho
(páthos), mas colocar em relação ambos. Didi-Huberman, ao retomar esse trabalho, mostra,
de um lado, como o dispositivo teórico baseado no detalhe faz com que, paradoxalmente,
muito seja deixado de lado, de ser visto. Mergulhar no detalhe, fazer dele ponto acaba por
torná-lo independente da tela da qual, obviamente, faz parte. Tal parte fecha-se numa forma
totalitária e estática; um elemento do esboço a ser perspectivado num ponto, a partir do qual
todo o resto será deformado (proporcionalizado) para significar. Colocar tal proximidade
(pontual) em relação com a distância (paisagem, linhas, manchas, trechos...) faz com que a
relação, a con-figuração restabeleça-se. Isso, por sua vez, faz com que todos os detalhes
retornem ao jogo, reforça-se a composição ferida, não para se constituir uma unidade
arquitetônica, mas para fazer de cada elemento função operatória, dobrando-se sobre o todo.
O que era uma linha de rendar devém emaranhado, um corpo em variação (trecho) sem ponto
de perspectiva (ao invés, superfície), mas plano de composição no qual o sentido-semá (linha
de rendar) torna-se uma multidão de dobras (uma forma vaga, capaz de adquirir variados
sentidos: tinta, borrão, fibra, mancha, sangue, ferida...). O semà é lançado sobre si mesmo,
obrigando-se a desdobrar-se, fazer-se multiplicidade. Aqui, não é mais o olhar que opera
79
como não-saber somente, mas a própria teoria devém não-saber, convoca-o para continuar
saber. Didi-Huberman recorre a tal trecho na obra de Vermeer para nos mostrar como uma
obra consagrada ainda possui espaços não traçados, como ainda pode estar oculto sob
demasiados holofotes. O sentido-aisthesis ressurge nesse trecho, colocando a teoria em
questão. Porém, e quando todos os sentidos estão em apuros? Quando não há nem sentido-
semà constituído, nem sentido-páthos elaborado nem sequer sentido-aisthesis experenciado?
Quando tudo parece barrado, ou mesmo quando a experiência dos dois últimos sentidos é
demasiado para se chegar ao primeiro. Podemos, então, inverter o trabalho do pensador.
Diante de uma obra tomada pela teoria, podemos pensar uma obra tomada pela sensibilização
(ainda que invocada para silenciar, justamente para calar...)
heurística. É ela que dá ao exame singular de cada experiência a abertura para outras
possibilidades – a se propagarem pela noite. Nesse sentido, a heurística marca o gesto de
investigar no já dado uma outra possibilidade de forma; ela abre a forma ao gesto de sua
própria formação. Vejamos, então, que a relação sujeito-objeto não participa desse processo.
É a própria forma que se compõe como sujeito e tema (sujet) de si, tornando-se o invólucro de
seu próprio saber. O sentido-semà toma lugar aqui como trabalho de forma, trabalho sobre e a
partir da forma, forma que vai operando como teoria, diferenciando-se na medida em que
sabe. Uma experiência de repetição como diferença, do jogo da própria forma que, sem
destruí-la, como uma “criança engenhosa”, elabora uma profusão de jogos com a forma, a dar,
enfim, outras faces dessa forma, do tipo que se joga com a face da noite, descobrindo a
própria noite:
Para entendermos, talvez, o que significa essa heurística imaginária operante aqui,
precisemos recorrer a um caso, citado por Didi-Huberman, pelo menos duas vezes (ibidem, p.
85-87 e ibidem, 2017b, p.289), descrito por Fédida em L‟absence (2005, p. 198): duas irmãs,
uma de quatro e outra de seis anos brincam com um lençol (drap de lit) após o enterro da
mãe. A mais velha finge-se de morta, cobrindo-se com o lençol e permanecendo imóvel. Após
a menor começar a chorar, ela ressurge, mostrando-se viva e encoraja a outra a imitá-la,
fazendo-se igualmente de morta sob o pano. Não muito tempo depois o lençol torna-se
vestido, casa, bandeira (drapeau), rasgando-se ao fim, entre gargalhadas, numa espécie de
ritual a envolver o sacrifìcio de um bichinho de pelúcia, ao que o Fédida acrescenta: “o luto
põe o mundo em movimento. Ele inspira esse jogo fantástico [...] que cria a festa da morte”26
(idem). Essa é a forma da experiência do luto. Aí, liberam-se, diz Didi-Huberman (2014b)
imagens e palavras que põem em jogo os sentidos do próprio objeto. Como bandeira
(drapeau), diz o autor, a imitação exata da mortalha (suaire) é lançada fora, na abertura ao
que denomina poderes da figurabilidade, mantendo-se, porém, certa “transparência da
representatividade” [drap, drapeau]. Quando, por sua vez, o lençol torna-se vestido (robe) ou
26
Tradução nossa.
82
casa (maison), então, tal transparência “abre-se inteiramente”. Torna-se imprevisto o que
poderá vir a ser – o não-saber participando do saber. A ordem dos sentidos, da imitação e da
representação são abandonadas, porque limitam e não mais servem ao jogo – a teoria deve ser
de outra ordem.. – Outra coisa surge no lugar: coisa que poderia ser nomeado de “poder de
alteração” (DIDI-HUBERMAN, 2014b, p. 81). Um poder que altera e altera-se no seu jogo.
Qual sentido-semà surge por essa abordagem: uma casuísta sem fim, baseado num
poder de alteração? Se pensarmos a teoria como uma espécie de sedimentação, ou mesmo a
redução a uma determinação encerrada em si (como uma caixa, por exemplo), então, ao invés
de alterar-se, ela procura unificar e tornar reconhecível. Nesse caminho, o paradigma acaba
destacando-se como exemplaridade, como caso singular, um aparente contraponto à teoria-
claustro, por assim chamar. Se ela, porém, parte da alteração, configura-se com tal poder, de
tal modo que, a teoria originada daí pode ainda corresponder a uma caixa, para ficarmos no
nosso exemplo, mas agora sendo tocada e configurada pela noite – pela noite do não-saber.
Ela pode até simular um fechamento e unificação, mas para expandir-se – concentrar-se numa
mônada e, depois, lançar-se em suas linhas; para projetar-se como corpo desconhecido e
assombrar-nos. Se o Cubo (Die, em inglês) de Tony Smith aparece como essa primeira
formulação, ainda no âmbito do semà-semelhança, ele rapidamente degringolará para outra
modalidade de semà, no corpo dessa nova teoria, um sema-alteração, tendo como linha
possível o Cubo de Giacometti. Porém, como princípio, a alteração já está entranhada desde o
início. É a função heurística operando aí.
Na configuração de seu cubo, Tony Smith opera em duas vertentes: é inerte por ser
capaz de formular-se infinitamente, até se consumir, talvez; é proliferante como uma doença,
ao ponto de não se conseguir parar até o esgotamento das possibilidades, que na verdade, são
inesgotáveis. A heurística joga com a imitação, por um lado, com o intuito de largá-la (o
lençol que ganha alguma pele e se torna bandeira) e rompe com as ordens de representação,
colocando-se como possibilidade de tornar-se qualquer coisa até sua destruição alegre –
destruição do sentido único, pelo menos. Não é a toa que a passagem de Fédida encontra-se
logo no início de Levantes (2017b), como um por em movimento do desejo. Nesse sentido, a
heurística é uma figura de desejo, um por em movimento, um desencadeamento de desejos em
imagens, um jogo que se joga também com a perda: perda de sentidos, perda de referências,
perda de fins instalados na obra e no pensamento, para encontrar a forma que se repete – a
forma em formação. Porém, “a repetição em obra não significa mais exatamente o controle
social, mas a inquietude heurística – ou o heurístico inquieto – em torno de uma perda”
(ibidem, 2014b, p.119). Cada forma formada de cada experiência não é integrante de uma
83
série no sentido de uma cópia reproduzida. Cada uma é um ensaio exemplar que tem por
desejo por em jogo esse próprio desejo. Cada obra é a (re)produção desse jogo, resultando
numa semelhança, mas abrindo aí uma diferença que modifica (ainda que pouco ou quase-
nada) a obra (re)produzida, como deixa evidente na referência ao trabalho de Sol LeWitte:
“Há a heurìstica sem fim [...] sobre as mil maneiras de esvaziar um cubo, de „abri-lo‟ ou de
votá-lo à incompletness, como ele próprio diz” (ibidem, p.132-138). Cada objeto é a origem
de uma nova forma de experiência, mas que ocorre no corpo de uma forma (morphé, lembra o
filósofo, num sentido que se aproxima daquele de molde, do qual saem as moldagens,
variações dessa forma). Isto é, não visa um estatuto de cópia, mas de contato com o molde
que forma o objeto. A heurística é sem fim, rompe os sistemas de representação e abandona o
estatuto da imitação, mas isso não significa a ausência de forma, senão o seu jogo proliferante
de formação, deformação, transformação e performação.
Figura 7 – Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Die, 1962 (Tony Smith),
(fonte: whitney.org), The cube (1934), Alberto Giacometti, (fonte: Claude Germain,
arquivos Saint-Paul de Vence.), Incomplete open cubes, 1974 (Sol LeWitt) e Casulos,
1959 (Lygia Clark).
Alia-se, então, no corpo dessa teoria, a alteração, uma casuísta sem fim (não apenas
infinita, mas que se dobra e desdobra em variação infinita, como acontece com os cubos de
Sol LeWitt, ou mesmo com os “Casulos” de Lygia Clark), como também opera por uma
função que não é a do regime da cópia, da imitação. Vejamos o caso dos Casulos: eles se
84
dobram e desdobram inumeráveis vezes, podendo, inclusive articular-se com outras formas,
acrescentando e retirando. Cada nova dobradura do mesmo obtém uma singularidade, cada
repetição pode gerar uma diferença. Não há meramente cópia, mas a infindável possibilidade
de variar em cada caso. Então, em qual regime, inscrever-se-ia uma teoria heurística e uma
heurística teórica? Didi-Huberman respondeu com o gaio saber, saber alegre27. Essa
abordagem do saber, não apenas coloca em questão o modo (a alteração), a finalidade
(casuística sem fim), como também a matéria (conteúdo) e a forma (expessão assumida por
essa modalidade de saber). Nessa última, então, entra primeiro uma relação de distância e de
proximidade, na qual se tramam olhante e olhado. A partir de uma obra (Sem título, 1968-9),
de Robert Morris, a aura (benjaminiana) assenta-se sobre o vapor emitido, aparecendo aí
“essa heurìstica da impossìvel distância: obra sem perto nem longe, obra perfeitamente
intangível e que no entanto acariciava todo corpo e seu espectador, obra sem ponto de vista
definido, sem perto nem longe repito, portanto sem detalhe nem moldura” (DIDI-
HUBERMAN, 2014b, p.166), em referência a uma obra de 1968-9 de Robert Morris,
composta basicamente de um vapor levantando-se do chão.
Tal relação põe em movimento a própria forma: ela não está ainda cristalizada numa
imagem-representação, não eliminando, por sua vez, o ótico28; a forma de aproximação
ocorre no distanciamento, numa forma de relação tátil, cujos desdobramentos criam
espaçamentos, instalando-se e dando a perceber daì, como espaços que envolvem. A “forma
heurìstica”, assim, torna-se essa relação de “próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante
em sua proximidade”, como uma “forma de varredura de ir e vir incessante [...] na qual as
27
“A alegria é a prova dos nove”, já disse muito tempo antes, Oswald de Andrade no seu manifesto antropófago.
28
Deleuze e Guattari (2017) chamam essa conjunção de háptico.
85
[...] toda imagem poderia ser dita, não apenas estruturada como um limiar,
mas também estruturada como uma cripta aberta: cripta que abre seu fundo,
mas retirando-o, retirando-se, e atraindo-nos a ele. E nele fazendo juntar-se,
no exercício do olhar, um luto e um desejo. Ou seja, uma fantasmática –
como se diria uma heurística – do tempo: um tempo para olhar as coisas que
se afastam até perder de vista (como o mar afastando-se diante de Stephen
Dedalus, como a interminável cor luminosa afastando-se atrás da porta
kafkiana); um tempo para sentir perder o tempo, até o tempo de ter nascido
(como Stephen Dedalus olhando por sua mãe que se extingue, como o herói
kafkiano que acaba por experimentar diante de sua porta a verdadeira lei da
expectativa); um tempo, enfim, para perder-se a si mesmo (como na „chaga
viva‟ de Stephen Dedalus, como na extenuação do herói kafkiano diante de
sua porta) (ibidem, p.254-255, grifos do autor).
A heurística configura uma abertura, a arte de abrir e fazer a forma inquietar-se, por-
se em contato, dando um novo sentido ao “exercìcio do olhar” como exercìcio de perda, o
qual é um exercício de abertura, de não tão somente configurar um limiar, mas de instalar-se e
abrir tal limiar ao tempo de perder: perder de vista, no movimento de sustentar o olhar sobre
algo; perder tempo na errância naquilo que inquieta, e; perder a si mesmo, fazer de si uma
hipótese, ser capaz de experimentar-se como um ser sem obra, logo aberto a qualquer
possibilidade, aberto como potência a operar em outras categorias, a buscar sentido a partir de
suas próprias experiências, das relações e das ausências, dando uma forma a isso (ainda que
provisória, sempre provisória), deformando, reformando e transformando o que está dado no
mundo em mundo, um mundo-outro. A heurística funciona como uma capacidade de
invenção, porque imaginária, de por-se no mundo, de fazer o corpo envolver-se e ser
86
envolvido nas coisas, mas dando-lhes forma, produzindo conceitos, criando obras – mantendo
distância. Uma máquina. É, talvez, a abertura da forma à sua potência, seja de figurar novas
intensidades de formas, seja de criar distâncias em relação ao mundo, não para se afastar dele,
mas para desdobrá-lo, como disse o autor a respeito de Frenhofer, quem teria encontrado na
forma uma “fertilidade inapreensìvel da redobra”, pela qual acessava a “imensa e profusa
topologia” do visìvel, fazendo dos interstìcios “de algum modo portador da diferença, do
sentido” (ibidem, 2012a, p.46). Nesse sentido, é uma legítima arte de pesquisa, mas que não
está limitada a uma estrutura ou mesmo método. Ela parece mais a intrusão na estrutura ou no
método, através da qual revela uma outra relação estrutural, um outro método de investigação.
Uma função, como o objeto aurático, imanente ao próprio objeto.
A possibilidade de se estabelecer uma configuração está na exploração e no jogo
engenhoso com o próprio objeto. É dele que se chegará a uma casuística, a uma experiência
que, como queria Benjamin, não deixa posses, mas vai sendo moldada de mão em mão, como
o vaso de cerâmica na mão do oleiro. Como na constelação, a heurística volta-se, debruça-se,
sobre a singularidade e dela elabora, dialeticamente, um sistema de imagens encadeadas e de
experiências de choque, proliferando, na perspectiva do sintoma, suas dobras, sua rede. Um
exemplo dessa desdobra (e da redobra) pode ser encontrado num livro, publicado no mesmo
ano de O que vemos, o que nos olha, o qual, por sua vez deixa sua marca na pesquisa sobre a
obra do artista suíço Alberto Giacometti (1901-1966), The cube and the face: around a
sculpture by Alberto Giacometti29, a partir do exame do caso, que parece singular, na sua
produção artística: The cube (1934), o qual possui, na verdade, doze faces (treze, segundo
Didi-Huberman, lembrando aquela face sempre oculta, sustentando as demais), sendo, pois,
uma forma de enigma, destoante em relação às outras obras. O que o autor realiza é um
verdadeiro debruçamento sobre todas as obras e escritos e histórias desse artista, a fim de, não
se chegar a um estado final do conhecimento possível sobre a obra (seja através da vida dele,
seja através das pistas deixadas), mas, talvez, formular algumas hipóteses, recorrendo, então,
aos poderes de alteração e de figuração e mesmo, ainda, de distância.
Enquanto para pensar a função heurística no Cubo de Smith a partir de uma abertura
ao objeto formulado pelo artista, a casuística sem fim de sua formulação, Didi-Huberman
encontra nos cubos de Sol LeWitt uma manifestação do poder de alteração, desse poder em
movimento. Podemos dizer que, o Cubo de Giacometti, com todas as condições aventadas
29
Tivemos acesso apenas à versão em inglês do livro “Le cube et le visage”. Todas as traduções das citações
utilizadas são nossas.
87
pelo autor 30 parece mais o vestígio presente de uma questão a soar, do que uma resposta dada
e final. No plano de composição da obra do autor, esse cubo assinala o trabalho de aleração da
própria questão, questão que pode desdobrar nos Casulos (1959) de Lygia Clark. Não se trata
mais de um simples processo sequer de contemplação. Há a necessidade háptica, visão e tato
conjugados, para formar, formular, ou melhor, performar esses objetos neoconcretos. Os
primeiros cubos são pretos, operando como caixas fechadas, no qual o exterior está
30
Seu intuito é tentar formar algum saber a partir dessa obra. Ela, elemento principal da investigação, apresenta-
se para o filósofo através de seus lados (ou faces, ambiguidade presente tanto em português como no inglês.
Poderíamos dizer lado ou face do cubo), pelos quais tentará formular uma hipótese: face queimada, face de
orientação, que não pode ser encontrada, face do desenho que procura seu volume, face da cela e a transparência
do cristal (aqui os sentidos começam a proliferar, abrindo seus elementos de representação), face dos corpos que
se separam, face da impossível dimensão, face das cabeças mortas, face perdida, face do pai, face da opacidade e
o cristal cego, face da sombra e espaçamento, face melancólica, face do desenho que procura seu entalhe, face
para acabar com o objeto. Muitas faces que ora se aproximam (o volume, a opacidade, mesmo o cristal), ora se
afastam de tal forma a desorientar (face da cabeça, cela, espaçamento, pai). Para Didi-Huberman (2015d), está
muito mais em jogo, a proliferação de sentidos que se aproximam afastando-se e afastam-se aproximando a fim
de fazer ver muito mais o próprio processo de criação, que propriamente o sentido. Para tanto, vejamos como ele
procede: volta aos escritos do artista, compara com vários desenhos e esquemas, detalhes em fotografias
realizadas no ateliê de Giacometti, onde aparece um estranho objeto que se assemelha com a obra referida,
compara com outras obras, busca escritos de terceiros (próximos ou não) sobre o artista, tenta chegar às
referências utilizadas, recorre à história da arte, vai no mais longínquo das manifestações (colossos egípcios,
esculturas congolesas), uma pintura de túmulo de Fra Angelico (1395-1455), esquemas de desenhos de Albrecht
Dürer (1471-1528), num esforço para constituir hipóteses e tentar verificá-las, sem garantir com isso, alguma
“vitória” do sentido. Porque, sabe bem Didi-Huberman, que o cubo de Giacometti está, igualmente, repleto de
páthos, de um sentido perdido (a morte do pai, a experiência vivenciada quando criança), uma perda que só pode
aparecer na sua ausência. Mas, também, deixa claro ele: tenta aproximar de um esforço de experimentação da
própria obra. Se ele não encerra o sentido do cubo é porque seu foco era seu processo. Diz o autor: “De fato,
durante aqueles anos – em torno de dez anos antes do Cubo – os desenhos de Giacometti tendiam para a
construção de suas „figuras‟ conforme uma fórmula heurìstica ou pesquisa experimental por polígonos
complexos [...]” (ibidem, 2015d, p.29). Há um maior interesse no processo que no produto resultante. Seu intuito
é tentar formar algum saber a partir dessa obra. Ela, elemento principal da investigação, apresenta-se para o
filósofo através de seus lados (ou faces, ambiguidade presente tanto em português como no inglês. Poderíamos
dizer lado ou face do cubo), pelos quais tentará formular uma hipótese: face queimada, face de orientação, que
não pode ser encontrada, face do desenho que procura seu volume, face da cela e a transparência do cristal (aqui
os sentidos começam a proliferar, abrindo seus elementos de representação), face dos corpos que se separam,
face da impossível dimensão, face das cabeças mortas, face perdida, face do pai, face da opacidade e o cristal
cego, face da sombra e espaçamento, face melancólica, face do desenho que procura seu entalhe, face para
acabar com o objeto. Muitas faces que ora se aproximam (o volume, a opacidade, mesmo o cristal), ora se
afastam de tal forma a desorientar (face da cabeça, cela, espaçamento, pai). Para Didi-Huberman (2015d), está
muito mais em jogo, a proliferação de sentidos que se aproximam afastando-se e afastam-se aproximando a fim
de fazer ver muito mais o próprio processo de criação, que propriamente o sentido. Para tanto, vejamos como ele
procede: volta aos escritos do artista, compara com vários desenhos e esquemas, detalhes em fotografias
realizadas no ateliê de Giacometti, onde aparece um estranho objeto que se assemelha com a obra referida,
compara com outras obras, busca escritos de terceiros (próximos ou não) sobre o artista, tenta chegar às
referências utilizadas, recorre à história da arte, vai no mais longínquo das manifestações (colossos egípcios,
esculturas congolesas), uma pintura de túmulo de Fra Angelico (1395-1455), esquemas de desenhos de Albrecht
Dürer (1471-1528), num esforço para constituir hipóteses e tentar verificá-las, sem garantir com isso, alguma
“vitória” do sentido. Porque, sabe bem Didi-Huberman, que o cubo de Giacometti está, igualmente, repleto de
páthos, de um sentido perdido (a morte do pai, a experiência vivenciada quando criança), uma perda que só pode
aparecer na sua ausência. Mas, também, deixa claro ele: tenta aproximar de um esforço de experimentação da
própria obra. Se ele não encerra o sentido do cubo é porque seu foco era seu processo. Diz o autor: “De fato,
durante aqueles anos – em torno de dez anos antes do Cubo – os desenhos de Giacometti tendiam para a
construção de suas „figuras‟ conforme uma fórmula heurìstica ou pesquisa experimental por polígonos
complexos [...]” (ibidem, 2015d, p.29). Há um maior interesse no processo que no produto resultante.
88
continuamente repelindo quem olha, na medida em que mantém seu interior funcionando (o
véu que atiça o olhar do homem chama-se mistério). No caso de LeWitt, o fundo é o que
abarca o movimento de alteração. No de Clark, essa noite está na obra como “casulo”. O que
ela gesta no seu “interior”? Seu interior poderia estar fora. Ela não se dobra interiormente,
mas faz do exterior (virtualmente) aquilo tudo que seria, e talvez será (a potência)
encapsulado – a couraça da noite. Todas as formulações realizadas servem mais para abrir as
possibilidades de aproximação ao enigma em obra do que alcançar alguma claridade (nem
mesmo a de um cristal). O cubo dobra-se de um a outro, e seu processo não pode ser
meramente revertido (uma engenharia reversa capaz de reconstituir os passos). A investigação
heurística forma a figura desses cubos desfigurados. Como então, retornar do Cubo de
Giacometti, do casulo de Clark ao cubo de Tony Smith ou aos de Sol Lewitt? Como dar-se-ia
tal “retorno”? O de Giacometti já cria e aponta para diversas manifestações e teorias
inexistentes no de Smith; são as linhas criadas pelo filósofo, levando a outras linhas, e dessas,
a outras composições31. Se pudermos traçar uma linha, pelo menos, entre esses objetos, é esta:
o que em jogo aí é a formulação da ruptura. A heurística aqui se torna a formulação dessa
ruptura. É por ela que se vai além e aquém das formas instituídas, ou canônicas, ao ponto de
serem consideradas abstratas32.
A abstração não é simplesmente um oposto, uma negação melhor dizendo, da figura
e do figurativo, mas sim sua distância, a qual permite instituir uma “genuìna função aurática,
o que quer dizer, uma economia de fantasias, conferindo ao objeto alguma coisa como um
poder do olhar, uma eficácia destinal” (ibidem, p.177). Quer dizer: o objeto adquire a
possibilidade de estabelecer uma relação com quem olha, através de uma distância (temporal,
espacial e figural), o qual, ao invés de procurar uma identidade ou um ideal, escapa a tais
formulações e se reformula sob o trabalho da forma, sob seu processo. O nome, por sua vez,
continua como elemento de ligação, marca da distância que estranha, mas que permanece
como vestìgio da passagem, ou melhor, do contato entre os “cubos”. “Ainda o status desta
heurística dos volumes dos desenhos – afirma o autor – permanece problemática”, porque a
31
Didi-Huberman (2015d) preocupa-se pelo que ele procura, pelo que busca, pelo que falta, pelo que perde,
pelo que desloca (o volume, o espaço, o sentido). A obra surge como um momento, uma hipótese lançada, desse
processo inacabado, o qual o autor agora parece continuar, tomando e levando adiante, quando compara, por
exemplo, com a fotografia de Michel Leris, publicada em Documents, consistindo numa face com uma máscara
preta de couro, o que simplifica ou reduz (como o Cubo) os traços dessa cabeça. A obra está inserida, então, num
esforço de experimentos, cuja ruptura com as formas de representação estão em jogo.
32
Para o filósofo francês, ao se recuperar os sentidos das palavras, a fim de fazê-las desdobrarem-se sobre si
mesmas, pode-se encontrar sentidos esquecidos, mas que dão maior concretude, como ao lembrar que abstrato
significa um ato de separação ou afastamento de algo ou alguém para longe de um outro, ou seja, “o ato de
confiar a relação aos poderes da ausência” (ibidem, p.180).
89
formas são sempre em formação, de modo que aquilo com que nos deparamos é um instante
desse processo. Não somos tempo suficiente para ver, muitas vezes, suas alterações no
processo, ao qual se integram o que olhamos dela, o que fazemos para conservá-la, o lugar
onde está, tudo que se escreveu sobre ela.
Ela constituiu uma genuína constelação a iluminar, como o fogo de uma fogueira,
por um tempo, fazendo-nos ver algumas coisas, escondendo outras e mudando ao sabor do
vento da inventividade e suas associações particulares. Percebemos, nessa perspectiva, o
quanto o trabalho do crítico faz-se necessário e, ao mesmo tempo, o quanto ele está limitado
ao sabor desse crítico. De que modo serve a heurística a esse crítico, que parece escavá-lo até
alcançar um sentido? Tal como faz o filósofo com a obra de Giacometti: ele a olha, levanta
hipóteses, pesquisa, compara, olha novamente a partir do que aprendeu, formula novas
hipóteses, busca mais, cava mais, olha ainda mais, distancia-se. Ele parece a cada vez inquirir
“quais são suas possibilidades? O que posso ver? O que você quer me mostrar? Você quer
alguma coisa?” e não “qual é o seu sentido?”. Parece que, ao invés de procurar o sentido, ele o
retira dessa obra, não sem trabalho, nunca sem perda. Lembremos o que ele diz, em Diante
da imagem, a respeito do acesso ao objeto, a partir da compreensão de Benjamin: o trabalho
do historiador é escavar a terra onde o objeto descansa na escuridão. Porém, uma vez
trazendo-o à “luz do dia”, a terra que o guardava está revolvida. Não é mais a mesma.
Ficamos com vestígios; o como foi perdeu-se. Ficamos apenas com o que é-agora-para-nós.
Seria nessa perspectiva que o objeto deveria ser pensado: fora de seu tempo, porque arruinado
pelo próprio trabalho. Para o crítico não seria diferente: procurar o objeto será retirá-lo de seu
tempo, arruinar seu contexto e perder alguma coisa. Dar um sentido único à obra é uma forma
de violentá-la mitificando-a. O trabalho, em tal precariedade, deveria, todavia, consistir em
retirar sentidos. Re-tirar, tirar uma vez mais; fazer o trabalho novamente, não como uma
primeira vez (quem teria sido a(o) primeira(o)? A(O) artista? O próprio objeto? O tempo? –
Didi-huberman, nesse caminho, aponta para o tempo e para a natureza como os primeiros
formadores... – O sentido?) Retirar e lançar para onde? Se tirar o que resta? Acaba-se o
objeto? Acaba porque ele perde sua posse. Retirar sentido poderia ser tomar a posse, fazê-la
perder-se para se ganhar outra coisa? Retirar para por em movimento? Levar a outro lugar, a
outro sujeito, a outro objeto? Fazer relações? Fazer funcionar de maneira distinta? Retirar
para criar outras coisas?
33
Outro contraponto poderia ser dado entre o jogo go e o xadrez, como apontam Deleuze e Guattari (2017), no
quinto volume de Mil Platôs. No atlas, então, temos uma função situadora, agenciando suas relações num plano
liso, onde são criadas e recriadas, formadas e transformadas, através de linhas de lugares diferentes, chocando-
se. E, no dicionário, a estrutura estriada das posições e sentidos determinados. Por mais que uma possa devir a
93
quanto heterogêneo. “Ele não é mais do que uma superfície de encontros e de disposições
passageiras” capaz, mesmo assim, de definir “a tábua ela mesma como recurso de belezas ou
de conhecimentos” (ibidem, p.18). Belezas, define mais precisamente o filósofo como beleza-
cristal, uma “beleza fixada como um troféu” e beleza-fratura, “indefinidamente movente”;
uma vertical e outra horizontal, cruzando-se nos planos, constituindo o suporte desses
encontros, a fim de colocar em forma a riqueza das possibilidades sabidas e por saber.
Numa espécie de tradição, indo desde os dadaístas, contando com Christian
Boltanski (1944-) e Sol LeWitt até Hans-Peter Feldmann (1941-), Aby Warburg aparece com
seu Atlas Mnemosyne como um verdadeiro objeto pensado como uma “aposta”: “aposta de
que as imagens, juntas de uma certa maneira, oferecer-nos-ia a possibilidade – ou melhor, o
recurso inesgotável – de uma releitura do mundo”, operando a partir de heranças, estética ao
inventar “uma nova maneira de dispor as imagens entre elas” e epistêmica ao inaugurar “um
novo gênero de saber” (ibidem, p.20). De que forma se deu isso? Com seu atlas, Warburg
tentou colocar o pensamento em movimento, “lá mesmo onde a história parou, lá mesmo onde
as palavras faltavam ainda”. Ele, como sua forma de configuração, conseguiu montar um
caráter de permutabilidade dessas configurações. Warburg mantinha suas tábuas onde
organizava, dependendo do tema, da característica, do acaso, um conjunto de imagens,
servindo a um propósito naquele momento, devido às relações possíveis, e depois uma mesma
imagem poderia aparecer em outra constelação, assinalando a “fecundidade heurìstica e a
desrazão intrìnseca de um tal projeto” (ibidem, p.21). Fecundidade heurística pela
incomensurável colocação em forma das possibilidades; desrazão pela mesma
incomensurabilidade de saber por produzir, muito superior a de que um único homem seria
capaz, e ainda vários. O altas Mnemosyne é uma fonte inesgotável e torrencial de saber. Nesse
sentido, ele se mostra capaz de configurar não apenas o sabido, mas o não-saber, e tudo aquilo
por ser inventado, compondo tudo isso, por um lado, sem se prender a uma ordem fixa: ele
“delega à montagem a capacidade de produzir, pelos encontros de imagens, um conhecimento
dialético da cultura ocidental, essa tragédia sempre reconduzida – sem síntese, então – entre
razão e desrazão” (ibidem, p.22). A forma que configura o saber e o saber que expressa a
forma devem à proliferação a condição de sua possibilidade. Parece que o efeito de verdade,
ou mesmo de justiça (uma vontade ética de nada desconsiderar), só existe na proliferação, na
fecundidade. Tal situação é importante, pois, significa, no fundo, escapar à paralisação, à
chegada de uma forma supostamente definitiva. Significa fugir. Proliferar e fugir, como
outra, o atlas possa estriar espaços e o dicionário possa devir num plano liso, percebemos a potência, ou potência
de função do atlas em jogo aqui.
94
do estabelecimento de relações com o mundo fez proliferar e surgir relações imaginárias com
um mundo que não havia antes. Ver não é suficiente. A própria visão do que se está diante
não é mais suficiente para o homem criar formas. É preciso configurar de outro modo. A
adivinhação é uma primeira figura da montagem34.
Estar diante do fígado do animal implica, não apenas em ver o que se apresenta, ou
ver o que não se apresenta. O ato de ver deve, também, ser de outro tipo: “O adivinho vê bem
– e mesmo „contempla‟ com uma atenção particular – o fìgado animal posto sobre sua „mesa
de dissecação‟. Mas ele não faz mais que ver e o „bem‟ ver: ele vê outramente”. Ele toma
aquele objeto como um outro, uma outra estrutura com uma série de “relações ìntimas e
secretas [...] correspondências e analogias”, abrindo, para tanto, “um sistema de múltiplas
relações figurais, onde tudo que é visto não é senão por desvios, conexões, correspondências
e analogias” (ibidem, p.47). Por seu lado, deve-se pensar, então, que tais relações não são
confusas ou irracionais, em oposição às “distinções conceituais”. O operador dessas relações,
esta encruzilhada, é a imaginação, entre o sensível e o inteligível, conjugando numa cadeia
operatória entre elementos efetivos e cognitivos, através de um trabalho de montagem e
desmontagem, pela fragmentação e dispersão, tornando capaz a sua multiplicação (ibidem,
p.49-51). O nome, lembrado pelo autor, para esse processo é bricolagem, o qual, utilizando-se
de “certos dispositivos”, continua, “cria o laço necessário entre o corpo e o pensamento, os
34
Se o fígado aparece como o órgão (organon) capaz de conjugar o visceral e o sideral, suas possibilidades de
associações não se encerram aí. Se a adivinhação vai perdendo terreno, os seus saberes e mesmo suas formas
sobrevivem. O fígado deixou, então, de ser o instrumento divinatório e passou a ser o centro do corpo, onde “se
fabrica as substâncias da vida (o sangue), como aqueles da paixão (a bile)”, com os gregos (ibidem, p.35), sendo,
inclusive, preferìvel ao coração, por exemplo. Para Platão, o “fundador de nosso racionalismo ocidental”, afirma
Didi-Huberman (2011b, p.37), o fígado, sendo o órgão de ligação do corpo com a alma, acaba no Timeu (71 a-d),
como um “receptáculo de imagens”, ou seja, “um tipo de tábua de imagens: um plano de inscrições erráticas, ou
como disse Platão, um „espelho brilhante e nìtido‟ [...] capaz de acolher e de refletir as „impressões‟ e os
fantasmas que lhe chegam”. Um autêntico “órgão do desejo e da imaginação”, pelo qual Warburg teria guardado
interesse, pois aì conseguiu perceber que “as imagens dão figura, não apenas às coisas e aos espaços, mas aos
tempos eles mesmos: as imagens configuram os tempos da memória e do desejo ao mesmo tempo. Elas têm um
caráter tanto corporal quanto mnemotécnico e votivo” (ibidem, p.38). Isso significaria, entre outras coisas, dizer
que todo caráter ideal, ou de pureza, da imagem é um esforço de empobrecê-la, sem com isso, torná-la sagrada,
isto é, um elemento separado, perdendo sua potência ao perder suas relações.
A imagem configura o tempo, porque é capaz de mostrar os vestígios de sua passagem, a sobreposição de traços
de tempos distintos, convivendo em tensão, num mesmo plano. Lembremos do sentido, na ichtologia, dessa
perspectiva. Didi-Huberman (2011b, p.38-39) assinala ainda a existência, em Platão, de uma “tradição ou
intuição” das imagens, como capazes de “preverem os tempos através do exercício mesmo de montagens entre
coisas incomensuráveis, tal qual em formação dos sonhadores inspirados ou dos oráculos „entusiasmados‟”.
Porém, permanece certa suspeita de que as imagens guardam “esta inquietude da razão diante dos poderes da
imaginação”. Por um lado, elas parecem, segundo a razão, próximas do erro e da ilusão. Por outro lado, pode a
imaginação “revelar as razões que a razão ignora”, de tal modo que “vaidade e loucura não são tão
incomensuráveis como os dualismos tradicionais querem bem nos fazer crer” (ibidem, p.39). Entre ambos,
descobrimos “saberes inconscientes” (Freud) e “saberes sobreviventes” (Warburg); aprendemos não apenas a
“ver apenas as coisas que se apresentam a nós, mas para entrever e prever as coisas que nos escapa também”
(ibidem, p.44). Ficam a cargo das correspondências, do estabelecimento de relações, entre coisas distintas, ou
mesmo entre coisas incomensuráveis.
99
35
Com isso, Warburg foi capaz de mostrar a relação entre o “fìgado divinatório etrusco” e as Lições de
anatomia de Rembrandt, entre os “sarcófagos romanos” e o “Déjeuner sur l‟herbe de [Édouard] Manet‟, coisa
muito distante de qualquer busca de um ideal a animar tais obras, desmontando as suas certezas, inclusive
temporais. Se a composição da obra moderna de Manet (1832-1883) subitamente torna-se a sobrevivência de
uma imagem reproduzida no sarcófago, sua modernidade diluí-se, torna-se outra coisa que não a criação de uma
novidade, como categoria de ruptura com a tradição: “Manet falou de Giorgione, mas não chamou – não com
palavras – a escultura dos antigos e de Rafael para ajudá-lo a combater os filisteus. Gustav Pauli comprovou que
o grupo que desjejua sobre a grama forma aparentemente tão descontraída se vincula de modo tão preciso aos
traços do estilo italiano classicizante que é possível identificar, com uma exatidão raramente desfrutada pela
ciência da arte, o modelo na Antiguidade e seu mediador italiano: trata-se de um Julgamento de Páris desenhado
por Rafael a partir de um relevo de um sarcófago antigo, que ainda hoje pode ser visto em Roma encrustado na
fachada da Villa Medici, onde agora é a Academia Francesa de Arte. O desenho foi gravado pro Marcantonio
Raimondi, e no seu canto inferior direito se encontram três semideuses presos à terra, pousados e nus, que
deram, no modo como estão situados uns em relação aos outros, o contorno do movimento das figuras que
desjejuam na pintura de Manet” (WARBURG, 2015, p.350). A temporalidade dessa história da arte vê-se
perturbada por um elemento anacrônico, colocando em tensão, em contato o que parecia vanguarda de uma
época. A obra, agora impura, complexifica-se, abre-se à uma infinidade de problemas, por vezes mais materiais e
patéticas, do que ideais e racionais. Se a mesa abre a organização, apresenta-se com seus fragmentos, nada
impede seu lançamento ao ar, seu configurar sem um princípio comum que não seja a anarquia.
101
desconjuntadas, uma tão informe que mais se assemelha a uma pilha de roupas amassadas.
Não é possível sequer dizer se estão brincando ou se as crianças estão mortas, fazendo do ato
uma bizarrice macabra. No alto, no levante, tudo que parece bem articulado, desarticula-se.
Cada parte parece independente do outro, fazendo forma apenas consigo mesmo. No
conjunto, porque as partes se tocam, o resultado é uma forma em movimento, um informe.
Ou, como prefere nomear Didi-Huberman (2011b), uma heterotopia, “um campo operatório”
que faz “cintilar os fragmentos” em seu conjunto, na “dimensão do heteróclito”. Isso
significa, por sua vez, “minar a linguagem”, porque ela adquire uma ambiguidade de, dizendo
tanto isso quanto aquilo “partindo os nomes comuns ou confundindo-os”, abrindo espaço a
um “pensamento inventivo” de correspondências, associações e contatos (ibidem, p.69-70).
Compreende-se, a partir de Mnemosyne, que “as imagens são menos consideradas como
monumentos do que como documentos, e menos fecundos, como documentos do que como
cenários conectados entre eles por vias „superficiais‟ (visìveis, históricos) e „subterrâneas‟
(sintomais, arqueológicas) de uma vez” (ibidem, p.70-71).
Didi-Huberman (2011b), dizer que esse saber se configura, pois, como “saber trágico, um
saber por contato e por dor”, isto é, „saber impuro‟ e mesmo „funesto‟ [...] que „conhece, do
mar inteiro, os abismos que vela [...] sobre as altas colunas que guardam, afastando da terra o
céu” (ibidem, p.94). Aqui, não se deve esquecer: a relação do Mnemosyne com a figura mítica
de Atlas, aquele punido a carregar o peso do mundo nos ombros. E, também, que tal relação
trágica faz do saber produzido, um saber abissal e, por sua vez, proliferante. Ele alcança
ainda a condição de saber de revolta, de resistência e de levante.
Pela heurística de sua configuração, feita de relações, o saber se torna irascível e
mesmo indômito, incapaz de ser controlado, adquirindo força na medida em que se prolifera e
articula relações. Permanecer estanque ou esquematizado enfraquece esse tipo de saber. Resta
ao fraco dominar o ainda mais fraco e, para isso, não basta simplesmente ao fraco fortalecer
sua força, mas, muito mais, enfraquecer o que é forte e o que é ainda mais fraco. Nada disso
tem a ver, essencialmente, com a fragilidade. O saber proliferante é abissal e pode ser frágil,
no sentido de não ser possível manter, sustentar por muito tempo sua configuração. Sua
estabilidade, seus princípios e relações são, dessa forma, frágeis. Contudo, a potência de sua
mobilidade e seus elementos formadores tornam-na uma força incomensurável. “Um
organismo para sustentar, trazer ou dispor conjuntamente todo um saber em sofrimento que a
noção de Nachleben designa tanto como potência da memória como potencialidades do
desejo”, operando tanto como um labor que faz do “castigo algo como um tesouro de saber e
do saber algo como um destino feito de infinita paciência”, quanto um jogo, aquele com a
“capacidade de colocar em relação as ordens de realidades incomensuráveis [...] de redispor
espacialmente o mundo [...]” (ibidem, p.108). Entre o trabalho e o jogo, o atlas abre-nos ao
gaio saber, pelo que se conhece “no saber uma força” capaz não apenas de libertar-nos das
gaiolas do pensamento, como não ter a intenção de fazer do pensamento uma gaiola (ibidem,
p.110).
Essa forma de saber (o gaio saber) faz com que ethos e páthos relacionem-se, “como
se a experiência adquirida no conhecimento das coisas não fosse sem uma experimentação
sobre si mesmo (seu próprio olhar, sua própria capacidade de compreender, sua própria
conexão com o sofrimento)” (ibidem, p.113). Essa experimentação garante a materialidade da
experiência, na mesma medida em que, a partir do saber de si mesmo, do saber-sofrimento, o
sujeito seja capaz de articular uma hipótese de trabalho, a fim de dar-lhe uma forma possível,
pela qual conseguiria comunicar, não o resultado da experiência, necessariamente, mas, antes,
a força dessa experiência, isto é, o páthos que a envolveu e o ethos que a permitiu comunicar,
reelaborando a um nível impessoal, por meio da linguagem, pelos gestos e/ou por imagens.
104
Como Goya, na série de esboços para a produção de Capricho 43, O sonho da razão produz
monstros, para o qual ele fez um
Percebemos aqui ser todo esse esforço de Goya não uma mera contemplação. Há
sempre um risco em implicar-se. Por isso, poucos conheciam essas gravuras dos Disparates.
Tal conhecimento visual crítico poderia significar sua morte. Mesmo escondendo, ele não
deixou de produzi-las. E fazendo isso, não se eximiu de particularizar, deixar a subjetividade
participar, o quer dizer, não deixou de tomar posição diante do que registrava. Se ele
criticava, em suas obras, a guerra, não deixava, por sua vez, de apontar os problemas da
própria população: sua selvageria, seu fremir com a violência, seu desejo de oprimir os ainda
mais fracos. Se a heurística, por vezes, assoma-se ao lado da corveia, isso não significa abrir
mão de seu olhar crítico sobre toda e qualquer manifestação humana – sua torpeza. Tudo que
feche, tudo que violente a liberdade, tudo que estacione ou impeça de saber, toda
possibilidade de colocar em hipótese, de criar movimento e relação, enfim, tudo que impeça o
florescimento da potência não é da parte da heurística, mas da deusa da discórdia e da
vingança, e de qualquer partido desmobilizador. É importante destacar o esforço técnico do
artista para levar a cabo seu plano de trabalho: centenas de gravuras, os mais diversificados
temas e um esforço cênico para mostrá-los. Quer dizer, o enquadramento trabalhando com a
fantasia, mostrando o corpo em sofrimento, lutas desiguais, a população no seu cotidiano, o
fracasso e horror da guerra. Um monumental conjunto de obras a figurar-nos a
inesgotabilidade da força humana para matar e de uma força ainda maior para resistir: no fim,
com os próprios corpos. Em ambas as imagens de Goya, a teoria permite a contemplação, mas
106
ela coloca e é colocada em jogo. Não são apenas os corpos dos meninos que se desfiguram: a
teoria e nós mesmos somos desfigurados igualmente. Estamos implicados nessa processão,
tornamo-nos parte dela.
Outro grande artista a reconhecer a importância da relação da razão com a
imaginação foi Goethe, quem, diz-nos Didi-Huberman (2011b, p.137), se assentava numa
“dupla posição assumida de poeta e de sábio, posição ela mesma apoiada por uma teoria da
imaginação que era também uma teoria do saber”, cujo intuito era criar “„linhas de sutura‟,
„pontos de junção‟ ou „conexões ìntimas e secretas entre as coisas‟”. Para o poeta alemão,
havia a necessidade de completar a crìtica da razão kantiana com uma “crìtica dos sentidos”,
pois, para ele, esses enganavam menos que o julgamento: “o saber é claramente necessário,
mas ele permanece inoperante sem o pensamento, ele mesmo, inoperante, diz Goethe, quando
se encontra desencarnado, desligado do olhar”. Ao invés, então, de contentar-se como “belas
formas”, ele preferia “forjar uma forma de conhecimento, um estilo heurístico que fosse
operatório no campo da beleza como naquele da verdade” (ibidem, p.138). Para tanto, deveria
ser capaz de jogar dialeticamente com o caos e com a possibilidade de retirar uma amostra
desse caos. Lembremos, por exemplo, a compreensão de Benjamin sobre o poeta como um
configurador do caos num instante. Isto é, a capacidade de fazer uma amostra do caos uma
forma configurada, um objeto visível e, com isso, partícipe de uma certa ordenação, ainda que
não permanente, senão suspensa por um instante. Sem essa capacidade do artista, o caos
retornaria e nada poderíamos conhecer (ibidem, p.139). Isso, porém, não leva a uma redução
das possibilidades, mas à elaboração de hipóteses, pelas quais aparece um produto, pronto a
fazer-se nova hipótese.
Dessa maneira, ele se coloca não numa “posição especulativa, mas resolutamente
concreta, heurìstica, operatória e plena de tato ou „ternura‟ [...]”. Não se trata, pois, de uma
série de elaborações, no sentido de gerar hipóteses do que poderia ser, uma diferença sensível
a aproximar mais da concretude heurística, simplesmente, mas hipóteses que variam os
próprios experimentos, do tipo de compilação da variedade do que existe, sem uma definição
ou objetivo determinado a priori. Nesse campo, a postura de Goethe diferencia-se da de
107
Duchamp. Enquanto esse espera pelo ver o que dá com seus experimentos, aquele busca outro
modo, ver a pluralidade do que está aí. O autor do Fausto observa atentamente o mundo,
enquanto Duchamp coloca o mundo em abertura observada. Para esse se trata de elaborar um
procedimento, no qual as relações aparecem. Para o outro trata-se de elaborar um
procedimento, no qual as relações são percebidas. No final, há todo um processo de criação,
mas no caso de Goethe, essa criação responde a um saber apreendido da natureza. Didi-
Huberman (2011b, p.141) esquematiza esse procedimento do poeta alemão: observar com
paciência, desenhar (isto é, aparelhar suas observações), e, enfim, colecionar (isto é,
aparelhar os resultados de suas observações)”, seu modo, pois, de engajar-se “no coração dos
fenômenos, com toda a „ternura empìrica‟ do „sábio amador‟, como ele gostava de definir-se”.
O primeiro, observar com paciência, leva o observador a não meramente observar
(como se contemplasse), mas fazê-lo com paciência, a atitude de quem espera por alguma
coisa e está pronto a olhá-la. Anotar sobre qualquer coisa, o mais insignificante. Depois,
aparelhar suas observações, permite encontrar nesses fenômenos aquilo que condensa,
tenciona e mostra; permite definir quadros, tentar encontrar os elementos mais expressivos e
já formular suas hipóteses, com cada traço configurando o saber. Por fim, colecionar, isto é,
capturar fragmentos, objetos singulares, uma série de variações de uma mesma coisa; juntá-
los, compará-los, associa-los e diferencia-los; elaborar uma configuração que dê um
vislumbre da ideia sem perder a singularidade. Elaborar um mosaico. Para Goethe, tratava-se,
então, de enquadrar e dar precisão poética. Para isso, servia-lhe o desenho: “desenhar, para
Goethe, não foi um gesto „artìstico‟, senão para dobrar-se primeiro às condições „cientìficas‟
da observação experimental”, ou seja, uma forma de elaborar “amostragens de fenômenos,
para recolher, tão precisamente quanto possível, a fascinante diversidade do mundo” (ibidem,
p.143-144). Goethe sabia, com tal procedimento, não apenas que “cada fenômeno supõe
„milhões de casos‟ conectados, mas também que cada caso implica que a forma ali seja
operatória em inúmeros níveis de potência de atualização”. Para ele, estaríamos diante
sempre de um “trabalho das formas latentes e manifestas, em potência e em ato” (ibidem,
p.145).
Nessa perspectiva, nenhuma obra está plenamente acabada, ou fechada em si mesma,
e está sempre apontando um outro de si mesmo, a possibilidade de variar, de tornar-se um
outro, abandonando seu instante e entrando mais uma vez em movimento. Como pensar,
então, uma obra imortal, uma obra morta e eternizada? Como um tipo de suspensão, a forma
está aberta aí, àquilo que a formou nesse instante (um passado) e a um porvir por formá-la
ainda. Como potencialidade de seus casos, ela acaba sendo parte de uma série ou cadeia
108
Sicília, sua terra de origem abandonada. Vale salientar a lembrança do autor do fato desses
filmes estarem constantemente disponíveis dada a presença numerosa de descendentes
italianos e a baixa quantidade de programas na época (de certa forma, uma série invasiva de
contingências). Tudo isso, sob a ótica de um diretor consagrado, vai retornando aos filmes que
vira nesse período e que o marcaram. Da emoção de descrever como era assistir um filme
numa velha tv, com imagem em baixa qualidade, ou ver como reagiam seus familiares diante
da tela, passa-se à reflexão histórica de como o laço familiar se tornara o elemento mais
precioso de seu povo, como uma sobrevivência às experiências de subjugamento a poderes
estrangeiros, fez do sangue o único depósito de alguma confiança. De uma condição afetiva
muito particular vai-se a uma situação social e daí aos problemas que afligiram a muitos,
desde a sobrevivência, a fuga, a resistência, o sofrimento pelos que pereceram, de uma vida a
uma época e a uma história contada com corpos. Não contente com contemplar o que assistia,
Scorsese lembra de desenhar, fazer histórias em quadrinhos do que via, ou do que lia dos
resumos dos filmes que não conseguira ver. Tal como Goethe fez, não deixou de utilizar o
desenho para aparelhar suas observações.
Um conjunto de observações a fim de fazer da forma uma forma em formação.
“Toda forma seria, então, o trabalho dialético, duplamente orientado, de um aspecto manifesto
e de suas solicitações latentes”, na articulação de uma dinâmica que faz do gesto produzido,
uma “dupla ação”, do presente “uma potência do tempo onde agitam juntos o antecedente e o
consequente, a memória e a protensão”, da presença “uma luta com as eficazes ausências”
(ibidem, p.146). O desenho em Goethe assume essa espécie de “drama de forças e formas”,
operando como uma “dialética de potências e atos, latências invisìveis e aspectos sensìveis”.
O desenho, pois, aparelha as observações, mas o faz com a intervenção da imaginação, “essa
capacidade de agenciar todas as imagens singulares [...] em constelações, em remontagens da
realidade. Proceder, por consequência, a uma operação transterritorial sobre os domínios
observados, uma operação anacrônica sobre os presentes observados”. Ele o faz a partir da
“superposição de várias espacialidades e de várias temporalidades heterogêneas”, buscando
sua “gênese”, que não é histórica, mas muito mais próxima da acepção de origem, orientada
por Benjamin. Com isso Goethe busca mais “ler as formas distantes umas das outras exibindo
sua incessante mediação”, naquilo que Didi-Huberman (2011b, p.148) denomina, mais
adiante, como “disposição sinóptica das formas”, capazes de revelar “nas suas diferenças
como nas suas afinidades, o princípio mesmo de suas metamorfoses”. Lembrando que a
metamorfose configura-se como um procedimento do informe, podemos considerar, nesse
âmbito, que o poeta alemão mantinha o esforço de abertura das formas à dinâmica de suas
110
a eles, o que faz tal saber parecer desfigurado e desfigurador, quando, de fato, são as
comportas da hierarquia e da desmobilização que fazem desse saber uma força avassaladora,
logo, destrutiva. O que ela destrói senão o que a impedia de se configurar?
Tal saber que, então, não elege outra forma senão a dessemelhança “como objeto de
conhecimento [...] ou como objeto de amor [...] A afinidade eletiva seria, então, antes de
qualquer coisa, amar sua dessemelhança e querer conhecê-la por „constelações‟, montagens
ou atlas interpostos”. Todavia, alerta Didi-Huberman (2011b, p.165), a afinidade “impõe a
esse belo risco do heterogêneo e da heterotopia sua contraparte de sofrimento, de páthos
inelutável. A afinidade transgride as fronteiras mas não as abole”. Da mesma forma como o
informe não abole a forma, a afinidade coloca as fronteiras em jogo, transformando-as, talvez,
em limiares, ou seja, lugares não mais de mera passagem, e sim de habitação e experiência.
Duas coisas encontram-se nesses limiares e estabelecem suas relações, ao custo de ferir a
estrutura, ou de se ver condenadas por tal relação. Por sua vez, isso pode significar a
impossibilidade mesma de se ver conhecido nos enquadramentos constituídos, um ruído
impossível de ser ouvido, senão como ruído, um corpo impossível de mobilizar o luto do
outro, um saber fora de alguma possibilidade de ser refletido, tornar-se uma corrente de
pensamento, ou meramente de ser cognoscível. Nesse campo, tais afinidades produzem um
saber que, caso resista e perdure, encontraria sua bandeira em outro tempo. Elas, então,
figuram e são figuradas, abrem o tempo mostrando seu traço em movimento, em direção
àquilo que ainda não veio a aparecer no tempo, mas irradia sua possibilidade, ou aquilo que se
perdeu no passado e, por um salto ao presente, reivindica sua memória, seus gestos, suas
palavras, seus saberes. O saber como acontecimento.
Isso está fora do tempo e é, ao mesmo tempo, seu dessemelhante. As afinidades são
afins, na medida em que entram em contato, mas um tato dialético, pelos limiares em
conexão. Ligam-se como imagens dialéticas, numa tensão de tempos distintos, o Outrora com
o Agora, num choque a condensar o tempo, abrindo-o às intensidades de seus movimentos36.
36
Semelhante à imagem dialética, a heurística torna-se um método crítico, um método que se abre à crítica, e na
medida em que se abre, cria para si um novo método crítico. Como dialética está sempre em relação com a
distância (para a crítica) e a aproximação (para crise). Assim é também uma questão do tempo, do uso e da
relação com o tempo; não um tempo estático, datado, que trata da gênese do objeto e de seu fim. É muito mais
um tempo processual, daquele em que as coisas (os conteúdos, as formas) estão em formação, ou seja, quando
aparece a nós como “formas plásticas em perpétua transformação. Imaginemos, antes, instrumentos maleáveis,
instrumentos de cera dúctil que, em cada mão e sobre cada material a instrumentalizar, tomam uma forma, uma
significação e um valor de uso diferente” (ibidem, p.23). Percebemos o quanto tal cenário parece mais realista,
porque mais próximo de nós e, ao mesmo tempo, mais crítico, capaz de tomar distância sem perder o rigor da
reflexão. A teoria, baseada em axiomas, usualmente define seu objeto e o avalia, realiza suas considerações
naquele dado momento, quando não isolado de outras variáveis. Tendo hipóteses, eles acabam procurando um
método, de preferência um já embasado e com princípios definidos. Por melhor que possa ser tal intenção, o
113
próprio objeto, senão for mutilado irrevogavelmente, estará morto, estratificado e esquematizado, incapaz de
captar as deformações, ou seja, o próprio movimento da forma. Acontece o mesmo com o método. Se ele é
simplesmente um aparato hábil a procurar e atribuir valores e significados, então perde o próprio movimento,
podendo ser descartado como refugo, ou ignorado como ruído, desvio do padrão.
A heurística instaura-se, justamente, nesse espaço, abre um lugar e põe em movimento, não apenas o objeto, ao
custo da perda de nitidez e clareza da descrição, como também o próprio método, plasmando-se à medida em
que se coloca em uso. Seria como elaborar um instrumento cirúrgico capaz de se adaptar inteiramente ao
organismo, especialmente aquele que está no desvio do normal, uma anomalia, por exemplo. Todo o processo de
elaboração, as tentativas e falhas, as hipóteses e invenções tornam-se o mais importante elemento do conjunto e
não somente o instrumento produzido. Porque, no processo, estão em jogo tanto a sua composição quanto um
emaranhado de tempos a conjugarem-se aí, de tal modo a aparecer uma ordem de acontecimento cujo esforço de
cognoscibilidade será exigido, ao ponto de sofrer a possibilidade mesma de enquadramento e casuística dessa
nova ordem ao ponto de ser decifrada, permitindo formular axiomas, ou, construir um outro paradigma. Didi-
Huberman (2015f) recorre ao anacronismo no esforço de evidenciar a apropriação de um fenômeno que é
heurístico, portanto, algo que prescinde de uma axiomática, e que é capaz, simultaneamente, de colocar em
questão a própria ordem (do tempo e da causa). O anacronismo aparece ao autor como uma forma necessária,
“interna aos objetos” para tratar de sua singularidade sem cair em simplificações, “a sìntese abstrata, a
denegação da carne das coisas” (ibidem, p.20). Primeiro, porque precisamos aceitar o fato doloroso para muitos,
prossegue, de que os objetos e imagens, diante dos quais nos pomos, são os elementos de duração, enquanto nós
somos os elementos passageiros. Eles vieram antes de nós e talvez nos sobreviva.
Nosso encontro com tais elementos, então, está fora de sua contemporaneidade, mas não da nossa. Somos nós os
contemporâneos, não os objetos e as imagens. Eles atravessaram muitas contemporaneidades, com seu
anacronismo (ibidem, p.21). Essa forma temporal permite aos objetos exprimirem sua “exuberância,
complexidade e sobredeterminação”, podendo, inclusive, estarem configuradas com base em dissimilitudes, em
relação, especialmente, às teorias que tentam constituí-los como um tempo encadeado, ou elemento essencial a
revelar o espírito puro de um tempo. O tempo do anacronismo, por sua vez, é impuro, “montagem de tempos
heterogêneos formando anacronismos” (ibidem, p.22-23). Recorrer a isso significa “interrogar a plasticidade
fundamental e, com ela, a mistura, tão difícil de analisar das diferenciais de tempo” (ibidem). A imagem
apresenta-se aqui como o principal representante dessa plasticidade temporal. Mostrando tudo ao mesmo tempo,
ela se torna “altamente sobredeterminada”, abrindo “várias frentes, poderìamos dizer ao mesmo tempo”, não
apenas carregando consigo o cristal de sua gênese, mas alterando no sentido de formação da forma, o próprio
tempo, servindo tanto aos poderes para legitimarem-se quanto para trabalhar em prol da dissolução dessa
mesmas forças dominantes. Um retrato de um determinado rei, constituído num determinado tempo, permanece,
passado esse tempo, um elemento de composição de uma história que o traí. Antes um ser glorioso, hoje
partícipe de uma corrente, resto de um tempo violento, rodeado pelas imagens e histórias dos sofrimentos
causados pelo retratado. No anacronismo, diz Didi-Huberman (2015f), há uma “certa dinâmica da memória”,
porque, antes de ser parte dessa memória, as imagens a produziram. Isso nos leva a pensar que tais imagens estão
ligadas ao presente tanto quanto ao passado de onde vieram e ao qual sobreviveram. Interrogar presentemente
tais imagens, ou seu próprio mecanismo de formação de memória, permite abri-las à fecundidade de sua
potência.
As imagens não se tornam meramente ornamentos de histórias e tradições constituídas. Elas ingressam num
outro regime: aquele que lhes dá a possibilidade de compor a história do presente com as perturbações críticas
dessas histórias. Como anacronismos, as imagens perturbam a ordem: dos discursos, das histórias, das tradições,
de seu próprio passado: “É preciso o mais-que-presente de um ato reminiscente: um choque, um rasgar de véu,
uma irrupção ou aparição do tempo, tudo o que Proust e Benjamin disseram tão bem sobre a „memória
involuntária‟” (ibidem, p.26). Haveria, então, um “momento anacrônico”, algo que o filósofo toma como um
sintoma “no saber histórico”, a partir do qual emergiria “novos objetos a ver, novos problemas para a história da
arte”. É nessa concepção que o anacronismo se torna uma “abordagem heurìstica”, como um método a produzir
novos objetos. Com tal abertura, mais do que contínuo, tal abordagem estende-se mais sobre “proximidades
empáticas, intempestivas e inverificáveis com os momentos de recuos crìticos” (ibidem, p.28), junto a tudo
aquilo que perturba e desconserta, com aparência de duvidoso ou mesmo em vias de desaparecer, decadente ou
elemento de refugo. Um trabalho difícil, a exigir reconhecer, pois, as configurações temporais misturadas ao
momento de sua formação, além de uma elaboração arqueológica do discurso dessa modalidade.
Implica, por exemplo, ter a competência para reconhecer num objeto de cerâmica vendido numa feira,
encontrado por acaso, os resquícios de uma pequena escultura de um povo já extinto, escavado em algum lugar,
considerado como elemento integrante de um ritual de culto ou adivinhação, exposto hoje num museu. A
distância que as separa intensifica-se nesse ponto de encontro, permitindo, assim, reconhecer, e mesmo remontar,
no que é possível, a manifestação anacrônica daquele objeto aparentemente banal, manifestação na sua
sobrevivência no trabalho artesanal, que agora possui outro fim, outro uso.
114
sua exclusão, não esqueçamos. É esse paradigma o que está mais próximo do que aqui se
desdobra. Um paradigma instituìdo a partir de um “baixo materialismo”37.
“Maneira de dizer que o que ecoa o nosso Atlas moderno será, doravante, a
exuberância do mundo apreendido do ponto de vista da pobreza”, de modo que, tal
personagem será “o pária por excelência”, aquele que erra pelos caminhos, cruzando lugares,
inventando rotas, descobrindo ligações, mesmo que subterrâneas, de acesso de um lugar ao
outro, aparentemente impossíveis (ibidem, p.168). Não é à toa que, num momento dramático
em que Benjamin constata a “pobreza de experiência”, experiência imanente, ele, por outro
lado, sugere fazer uma “experiência da pobreza: para constituir a amostragem do caos
histórico moderno a partir de seus resíduos, ou mesmo de seus detritos” (ibidem, p.171)38.
Isso significa investir, por sua vez, nosso pensamento da capacidade de buscar no mais
irrisório, no mais ínfimo e, principalmente, no que é considerado sem-valor (onde se descobre
o sem-sentido desse valor) e está fora dos holofotes e horizontes dos saberes dominantes.
Significa também saber investir o próprio corpo nas experiências do mundo, aquelas que só se
faz arriscando-se, como qualquer pobre ao simplesmente viver. É descobrir em todo esse
processo tratar-se, na mesma medida, de uma forma de vida. Saber aí nunca se desvincula de
viver, ou de assumir um uso muito particular disso.
Pensemos, por exemplo, em Um condenado à morte escapou, filme já citado.
Pensemos em como, numa situação de perigo, tendo muito pouco, Fontaine teve de inventar
objetos, dar novos usos aos já existentes, fazer de tudo uma arma e um instrumento com a
única finalidade de escapar. Nada passou incólume a seu olhar, nem mesmo a latrina. Outro
exemplo, Estamira (2004) de Marcos Prado, uma mulher que apenas retira sua subsistência de
um lixão, como inventa maneiras de contatar os astra. Mesmo seu mais intenso delírio,
causado por profundos sofrimentos físicos, escapa por instantes quando cria (seus objetos,
37
“Se consideramos um objeto particular, é fácil de distinguir a matéria da forma e uma distinção análoga pode
ser feita no que concerne aos seres orgânicos, a forma tomando dessa vez o valor de unidade do ser e de sua
existência individual. Mas se o consideramos junto de coisas, as distinções dessa ordem transposta torna-se
arbitrárias e mesmo ininteligível. Forma-se assim duas entidades verbais, que se explicam unicamente por seu
valor construtivo na ordem social, Deus abstrato (ou simplesmente ideia) e matéria abstrata, o guardião-chefe e
os muros da prisão. As variantes dessas elaborações metafísicas não tem mais interesse que os diferentes estilos
da arquitetura. Agitávamo-nos por saber se a prisão procedia do guarda ou o guarda da prisão: bem que essa
agitação tinha historicamente uma importância primordial, ela se arrisca hoje de provocar um espanto tardio, não
sendo isso mais que em razão da desproporção entre as consequências do debate e sua insignificância radical”.
(BATAILLE, 1970, p.220, tradução nossa), e, em outra parte: e: “As coisas passam-se, com efeito, como se as
formas do corpo, bem como as formas sociais ou as formas do pensamento tendessem para uma sorte de
perfeição ideal do qual todo valor procederia, como se a organização progressiva dessas formas buscassem
satisfazer pouco a pouco à harmonia e à hierarquia imutáveis que a filosofia grega tendia a dar às ideias
exteriormente, aos fatos concretos [...] os corpos horrendos ou cômicos da aranha ou do hipopótamo não teriam
respondido a essa elevação do espìrito” (ibidem, p.161, tradução nossa).
38
Abordamos detidamente esse aspecto, por assim dizer, no último capítulo da dissertação citada: Marinho
(2015, p.125-166).
116
39
Temos um corpo de textos que abordam, em diversas maneiras essa questão. Lembramos alguns: Como viver
junto de Roland Barthes, A comunidade inoperada de Jean-Luc Nancy, A comunidade inconfessável de Maurice
Blachot.
117
saberes, as medidas e os corpos desdobram-se naquilo que podem. E o que podem, pertence a
sua “substância”, aquilo que compõe suas existências.
Substancial, para ficarmos com esse termo, ainda que à revelia de seu sentido
consumado, é aqui o uso. O que se abre à configuração da heurística nessa altura é a
possibilidade de pensá-la como um uso adjetivado: como uso heurístico, isto é, não qualquer
forma de uso, mas o uso que busca abrir à inventividade aquilo que se usa, ao que se dá em
uso, e provavelmente, ao próprio uso. Não é em Didi-Huberman, que o uso aparece como
questão filosófica de superfície. Aqui, mais do que tentar explicar conforme seu pensamento a
importância desse termo, preferimos realizar uma espécie de cesura, a fim de tentar
desdobrar, agora no campo do pensamento de Agamben, uma sucinta elaboração deste
conceito do uso, senão de sua forma de operação. Para tanto, recorremos a dois livros do
conjunto da obra magna Homo Sacer, para ajudar-nos nesse processo. São eles: Altíssima
pobreza, no seu capìtulo final, “Altìssima Pobreza e uso” e no último volume da coleção, O
uso dos corpos, no seu primeiro capìtulo, “O uso dos corpos”. Ambos os livros se seguem,
sendo o primeiro o volume IV,1 e o segundo IV,2, dessa obra abandonada. Segundo
Agamben (2014a, p.127), o uso aparece para caracterizar a vida franciscana, e aí, o termo é
utilizado em oposição à noção de propriedade: “A lei natural [...] prescreve aos homens que
tenham o uso das coisas necessárias para sua conservação, mas não os obriga de modo
nenhum à propriedade” (idem). Depois, cabe a Boaventura (1221-1274) estabelecer “quatro
possíveis relações com as coisas temporais: a propriedade, a posse, o usufruto e o simples uso
[...] Destes, só o uso é absolutamente necessário para a vida dos homens e, como tal, é
irrenunciável”.
Sabendo, porém, que a propriedade não se separa do uso, prossegue o filósofo
italiano sua busca, agora em Gregório IX (1145-1241), para a devida consideração que
separava um do outro, “mantendo para si e para a Igreja a propriedade e concedendo o uso
para a necessidade dos frades” (ibidem, p.128), divisão capaz de levar os estudiosos a se
perguntarem se o “simples uso” não seria “parecido com um direito real”, chegando à
percepção de que mais do que algo que desativa o direito, é, “por uma prática [...] que o
direito não produz mas reconhece como externa a si”. Com Nicolau III (1216-1280), tal
simples uso torna-se “simples uso de fato” e adiciona uma “nova figura: o direito de uso”.
Enquanto no primeiro, o fato de usar não “oferece aos que usam nada de jurìdico”, uma
contraposição, agora com o segundo, instala-se no interior do uso. O interessante, observa
Agamben (2014a, p.129-130) é que, aqui, fato e jurídico distanciam-se, de modo que é
preciso uma caracterização mais especìfica para que um fato possa “corresponder a
118
determinado caso jurìdico”. Por exemplo, o fato de beber e comer é “puramente fatual e isenta
de qualquer implicação jurìdica”. Não se demora até o uso implicar um caráter negativo da
propriedade, e não somente seu oposto: o uso é a renúncia da propriedade. Na tentativa de
minimizar essa negatividade, o uso assume “dois atos positivos: „querer não ter nada como
próprio quando ao ato interior, e usar a coisa como não própria quanto ao ato exterior”
(ibidem, p.131).
A fim de suavizar ainda mais o uso não próprio, Ubertino (1259-1329) chega,
esclarece o autor, à noção de uso pobre, o qual, invocando Aristóteles, definiu tal uso como
uma operação em relação ao hábito, ou ainda, em outro exemplo, o “uso pobre está para a
renúncia, como a forma está para a matéria”, tornando-se, então, condição necessária para a
renúncia à propriedade. Isto é, não basta usar a propriedade sem possuí-la. É preciso que se
faça dela um uso pobre (ibidem, p.132). A partir de João XXII (1244-1334), a distinção que
marcaria um dos pressupostos dos franciscanos, vê-se anulada, especialmente na esfera do
consumo: naquilo que é consumido pelo uso, não haveria distinção desse com a propriedade.
“O problema, genuinamente ontológico, é se um uso que consiste apenas em abuso (ou seja,
em uma destruição) possa existir e ser possuído de uma forma que não seja como direito de
propriedade [...]”, o que, na visão de Agamben (2014a, p.134-135), profetiza um “paradigma
da impossibilidade de usar”, a ser encontrado na “sociedade de consumo”. Ele diz ainda: “Um
uso que nunca é possível ter um abuso que sempre implica um direito de propriedade e é,
portanto, sempre próprio, definem o cânone do consumo de massa”. Mas, ao profetizar isso, o
papa estaria, por outro lado, revelando que “a verdadeira natureza da propriedade, se afirma
com a máxima intensidade no momento em que coincide com o consumo da coisa”, isto é,
com seu abuso. As respostas dos teóricos franciscanos à bula de João XXII esforçam-se por
lembrar que, “na vida dos apóstolos, comum não era a propriedade, mas apenas o uso [...]” e
de que, “no estado paradisìaco, o mandamento divino de comer das árvores do jardim [...]
fosse comum não a propriedade, mas o uso [...]” de maneira que “o uso comum das coisas
precede também, genealogicamente, a propriedade comum ou partilhada [...]” (ibidem, p.135).
Coube, afirma Agamben (2014a, p.136-137), a Francisco de Ascoli, as objeções à
bula papal, na qual ele elaborou uma “verdadeira ontologia do uso, na qual ser e devir,
existência e tempo parecem coincidir”. O primeiro é o “uso dos bens consumìveis”,
denominado também como “uso corpóreo”, pertencente às “coisas „sucessivas‟”, de maneira
tal que, como esses bens existem em devir “assim também seu uso está em devir e é
sucessivo”, isto é, “o uso aparece nesse caso como um ser feito de tempo”, recuperando, por
certo, a diferença que marcara o início do debate. O filósofo italiano lembra o surgimento do
119
discurso como uma posição franciscana diante à insistência, como “estratégia defensiva”
contra a Cúria, a fim de afirmar sua pobreza e recusa à propriedade como pressupostos de sua
forma de vida. Desse modo, a discussão sobre o uso surge em perspectiva, justamente, à
pobreza, como forma de sustentá-la. Nesse âmbito, ele permite à pobreza adquirir um “caráter
expropiador”, a ajudar na caracterização da “altìssima pobreza”, que, por um lado, tentasse
estabelecer uma forma de vida fora do direito e, por outro lado, inaugurasse a noção de “modo
de inapropriabilidade”, fundadora do “direito subjetivo” (ibidem, p. 142-143). O uso aí deixa,
então, de ser uma mera renúncia para constituir tal renúncia como “uma forma e um modo de
vida” (ibidem, p.144).
Se tal forma e modo são o “último modus”, depois do qual não é mais possìvel a
realização histórica múltipla dos modi vivendi, não nos interessa particularmente (ibidem,
p.146). O que nos abre aqui é a pergunta feita no limiar, na qual o autor, coloca a questão
sobre o que seria uma “forma de vida que faz uso das coisas sem nunca se apropriar delas”, no
sentido de que o uso é o operador dessa relação. O que podemos retirar disso até o momento é
a característica do uso como um modo, capaz de dar uma forma, marcada pela pobreza, à
renúncia de qualquer posse. O uso não apenas configura um devir em relação à coisa usada,
como pode engendrar uma tal relação fora do consumo dessa mesma coisa. Lembramos a essa
altura ser tal possibilidade, ou tal modo, o mesmo que o autor toma em relação ao jogo em
“Elogio da Profanação”. Jogar é um modo de não abusar das coisas, isto é, uma forma de uso.
As noções de profanação e de inoperosidade estão inscritas nessa constelação do jogo,
mostrando a importância de tal questão. Concluindo o texto com essa questão, o livro seguinte
abre-se, em seu prefácio, com um texto sobre Guy Debord (1931-1994), seu impulso
autobiográfico e sua “vida privada clandestina”, na qual, assinala Agamben (2017), ele, de
certa forma, mostra a existência de uma cisão e, ao mesmo tempo, uma inseparabilidade entre
a vida histórica e a vida privada/clandestina. Se Debord lutou para pensar uma forma
autêntica de vida incapturável pela sociedade do espetáculo, isso só teria lugar nessa relação
“obscura” entre vida qualificada (vida pública) e vida nua (vida privada). Os termos do
confronto de Debord recorrem muito mais à noção de apossar-se ou “tornar-se patrão” da
própria vida, uma “vida mais intensa”.
Para tanto, ele adota como palíndromo uma frase referida, segundo Agamben, às
falenas, emblema usual da “paixão amorosa”, isto é, podemos dizer, de um consumo e perda
nessa paixão. Na perspectiva do filósofo italiano, então, não seria difícil conceber tal ação
como uma forma de abuso. O que Debord buscou, ao instaurar tal dicotomia tencionada da
vida, senão a sua consumação numa intensidade? Será que Agamben não percebeu que tal
120
tomada de posição configurar-se-ia como o oposto do uso, no sentido do comum? Diz o autor:
na ligação mostrada, mesmo que inconscientemente, por Debord entre as duas formas,
permite o (re)conhecimento do “elemento genuinamente polìtico” da vida clandestina. O que
o francês fez foi inscrever tal possibilidade num campo da posse, de forma que indicar não
significa, de fato, encontrar. Por isso, Agamben (2017, p.13-17) chama um pensamento capaz
de fazê-lo, e só o fará pelo uso comum, de tal modo que “a polìtica poderá sair de seu
mutismo, e a biografia individual, de sua idiotice”. A perspectiva apresentada, então, parece
abrir o debate sobre o uso, devidamente relacionada, por sua vez, com a forma e com a vida, o
que, talvez, exija perguntarmo-nos como e onde essas coisas se separaram e juntaram-se.
O primeiro capítulo desse segundo livro, título homônimo à capa, inicia com uma
questão aristotélica: o homem sem obra. O uso do corpo aparece, pela primeira vez, como
forma de definir o escravo, numa relação que é doméstica e não política. A obra desse sujeito
é, precisamente, o uso de seu corpo (idem, p. 22). Acrescenta ainda: “Os escravos representam
a emergência de uma dimensão do humano em que a obra melhor [...] não é ser-em-obra
(energeia) da alma segundo o logos, mas algo para que Aristóteles encontra outra definição, o
„uso do corpo‟”. Segundo o autor, nessa acepção, ser-em-obra e uso (chresis) justapõem-se
“como psychè e somà, alma e corpo” (ibidem, p.23), ou ainda, como aquilo que originalmente
opunha-se à energeia, depois sendo substituída pela oposição conhecida entre energia e
dynamis, ato e potência. Em Protético, assinala Agamben (2017, p.24), está presente não só a
primeira oposição, como Aristóteles ainda tenta esclarecer o sentido de uso, marcando aí
“uma conotação ética e não apenas ontológica em sentido técnico”. Escreve o estagirita (apud
AGAMBEN, 2017, p.24): “Deve-se, portanto, dizer que usa quem usa corretamente, pois para
quem usa corretamente está presente tanto a finalidade quanto a conformidade com a
natureza”. O que está em jogo aqui é a constituição da relação do uso, não como aquilo que
possui uma essência, mas como aquilo que aparece numa relação econômica, isto é, numa
relação doméstica entre o senhor e o escravo. Tanto que, assumindo uma posição contrária ao
que comumente utiliza Aristóteles, perguntando sobre o ser da coisa para depois definí-la,
nessa relação em particular, ele primeiro define para depois perguntar-se sobre seu ser.
Conforme aponta o filósofo italiano, a investigação cai sobre uma “investigação
fìsica” e não ontológica, tratando-se muito mais de uma “diferença corpórea”, a qual acabará
por fundar um estatuto ontológico a garantir a escravidão no sistema aristotélico
(AGAMBEN, 2017, p.26). Diferença essa em relação ao corpo do homem livre, como se a
esse pertencesse o direito do livre uso do corpo do escravo, entendido como parte do corpo
daquele. O escravo aparece, então, como um paradigma para o homem livre grego, paradigma
121
que serve, por sua vez, como forma de reelaboração de uma outra ética, o que exige, estipula
Agamben (2017) novas dimensões para os sentidos de virtude (arète) e prática (práxis). O uso
do corpo coloca-se aqui como um “sintagma” para um nome possìvel à “dimensão muito
singular do humano”, em se tratando da escravidão. Uma dimensão aberta às noções de
instrumento, mobília e móvel, acepções fora de qualquer conotação jurídica, escapando ainda
a qualquer intenção de produção. Como a cama, o corpo do escravo esgota-se no seu uso e seu
uso é aquilo que surge da relação (idem, p.28-29). Chegamos, pois, a um momento
importante: o uso aparece aì como algo com um “sentido não produtivo, mas prático,
independentemente de uma finalidade” (ibidem, p.30).
O escravo é, igualmente, parte do órgão (organon) do senhor, de modo que, quando
o escravo usa seu corpo é o senhor, na verdade, que se utiliza desse corpo. É isso que permite
a Aristóteles afirmar que o escravo é um ser sem obras. Porém, diz ainda ele: “naqueles em
que não há obras além do ser-em-obra (energeia), nelas reside o ser-em-obra”, como se
permanecesse uma potência que não se realiza, como quando se está dormindo. Isto significa
que aquilo que o escravo faz não participa da felicidade. O escravo está, portanto, excluído
dessa possibilidade, o que limitaria, segundo Agamben (2017, p.31) o alcance da ética. Vale
ainda dizer que, nessa relação, o “uso mercantil” também está excluìdo. Foi necessário a
juridicização da vida e a divisão entre dois tipos de uso, para o que o uso do corpo do escravo
pudesse, também, significar o uso comercial. Todavia, isso já significava uma perversão e
conversão da escravidão em instituição social (ibidem, p.32-34). O uso do corpo do escravo
incluiria também o uso de suas partes sexuais, não sendo considerada nenhuma forma de
abuso (ibidem, p.35). Tal separação permitiu aos gregos fundarem sua noção de liberdade em
dialética com a possibilidade de existirem escravos. Para que houvesse homens livres, deveria
haver aqueles que se constituiriam como homens sem obras, realizando o trabalho produtor.
“O ideal do homem livre é ser usuário, e nunca produtor”. Porém, mesmo a atividade do
escravo aparece, pelo paradigma do uso, como algo “não redutìvel ao trabalho, à produção ou
práxis” (ibidem, p.38). Sendo o escravo um “limiar entre a physis e o nomos, zòe e bios”
(ibidem, p.39), isto é, vida nua, ele retorna como o “recalcado”, forma com a qual a ética não
consegue lidar, já que, diz ainda o filósofo, ela se fundamenta sobre o homem livre.
Faltar-nos-ia, portanto, uma ética fraturada, como o humanismo fraturado de
Bataille, porque lhe faltaria a “„hormè‟, o impulso ou conatus” (ibidem, p.39-40), ou seja,
“uma ética que não quer excluir uma parte da vida deverá ser capaz não só de definir um
conatus e uma arète da vida como tal, mas também de pensar desde o princípio os próprios
conceitos de „impulso‟ e de „virtude‟” (ibidem, p.40-41). Agamben chega, nesse momento, a
122
tentar “fixar uma série de teses”, o que Aristóteles teria definido como uso do corpo:
“atividade improdutiva (argos, „inoperosa‟)”, “zona de indiferença entre corpo próprio e
corpo do outro”, entre “instrumento artificial e corpo vivo”, tal uso não sendo “nem poiesis
nem práxis” e, o escravo como “o homem sem obra que torna possìvel a realização da obra do
homem”, abrindo, ao final, a hipótese para uma investigação do “uso como categoria polìtica
fundamental” (ibidem, p.41-42). É importante ressaltar que isso só se faz possível pelo
paradigma do escravo, e não do homem livre, daquele que é uma espécie de negatividade, de
abertura da possibilidade, ou mesmo de afetividade, mas não da negação do homem, seu
enclausuramento ou ação. Segundo Agamben (2017), a própria noção de uso está numa
espécie de conformidade com tal afetividade.
No capítulo que se segue ao uso do corpo do escravo, o autor ingressa no sentido
epistemológico desse termo que diz o uso, chresis. Utilizando-se dos trabalhos, primeiro de
Georges Redard (1922-2005) e depois Émile Benveniste (1902-1976), ele nos mostra a
condição peculiar do termo. Com o primeiro dos autores, percebemos a importância da
relação para a determinação do sentido da palavra: “o fato é que o verbo em questão parece
obter seu significado do termo que o acompanha” (ibidem, p.43). Mesmo o termo latino que
corresponde ao grego, uti, segue, conforme Agamben (2017, p.44-45), a situação da relação:
“trata-se todas as vezes de uma relação com algo, mas a natureza dessa relação é pelo menos
aparentemente, tão indeterminada que parece impossível definir um sentido unitário do
termo”, o suficiente para levar Redard a noção errônea, diz o autor, de ter visto o objeto como
existente fora do sujeito. Para ele, os exemplos oferecidos pelo linguista da École Practique
de Hautes Études, contradizem tal perspectiva:
Quer dizer, o termo chrestai não apenas estabelece intimamente uma relação, como
tal relação afeta o sujeito e o objeto ao ponto da indeterminação. É no segundo autor em quem
o filósofo italiano encontra uma possibilidade de compreensão da particularidade do uso
(chresis, uti). Seguindo Benveniste, o autor nota e faz notar que o verbo nem é ativo nem é
passivo, mas se encontra naquele espaço por ele designado, a partir desse linguista francês, de
123
“diátese média”, de tal maneira que, nesse modo do verbo “o sujeito é interior ao processo”,
de forma que ele “realiza algo que se realiza nele”. Para tanto, o pensador ilustra algum desses
verbos: nascer, morrer, jazer, sofrer, falar, etc (ibidem, p.46). Nessa concepção, o sujeito
tornar-se lugar e agente, ele implica e afeta a si mesmo, na medida em que se constitui o lugar
de seu acontecer, criando, então, essa “zona de indeterminação entre sujeito e objeto”, como
se pode entender nos exemplos “ele dorme”, “ele goza”. “Esclarece-se também, por essa
perspectiva „medial‟, por que o objeto do verbo chrestai não pode estar no acusativo, por que
sempre está no dativo ou genitivo”, de tal modo que o seu processo “não transita de um
sujeito ativo para o objeto separado da ação, mas envolve em si o sujeito na medida em que
este está implicado no objeto e „se dá a ele‟”, permitindo a Agamben (2017, p.47), doravante,
tentar definir o termo, como aquilo que “expressa a relação que se tem consigo, a afeição que
se recebe enquanto se está em relação com determinado ente”.
Com essa elaboração, o filósofo consegue agora estabelecer uma nova possibilidade
de compreensão para o que significaria “usar o corpo”, sendo, pois, uma “afeição que se
recebe enquanto se está em relação com um ou mais corpos”, o que, segundo ele, configura
um paradigma do uso, na “esfera da ação sobre si mesmo”, correspondente, afirma, a uma
“ontologia da imanência, ao movimento da autoconstituição e da autoapresentação do ser, em
que não só é impossível distinguir entre agente e paciente, como também sujeito e objeto,
constituinte e constituìdo se indeterminam”, sendo essa a “natureza singular do processo que
denominamos „uso‟” (ibidem, p.48). A afeição, presente no uso, torna-se, então, uma “nova
figura na prática humana”, de modo que “à afeição que o agente recebe de sua ação
corresponde a afeição que o paciente recebe de sua paixão”, fazendo com que o uso desative e
“torne inoperosa” o sujeito e o objeto. “No uso, homem e mundo estão em relação de absoluta
e recìproca imanência: ao usar algo, o que está em jogo é o ser do próprio usante” (ibidem,
p.49). Até aqui parece ser o necessário para recompor a noção de uso heurístico, do qual falou
Didi-Huberman (2011c), em que tratando da experimentação e da invenção. A partir de
Agamben (2017), pudemos ver como o uso inaugura toda uma prática política e ética,
consoante com a afeição e, disso também, com o modo da relação, como aquilo a afetar e ser
afetado na colocação em relação.
Se isso surge do paradigma do escravo, aquele sem obra, cuja atividade é o uso de
seu corpo, ainda teremos de investigar sua heurística, por assim dizer, em outro momento. O
que essa abordagem, agora, permite-nos dizer é a relação do uso com uma prática que escapa
à propriedade e funda-se sobre uma relação afetiva, de constituição e constituído, de jogo
imanente, no qual quem usa afeta a si mesmo no uso. Há aí uma impureza intrínseca: quem
124
usa, altera o objeto, altera-se e altera a própria relação. O uso heurístico pode significar, nesse
campo, a abertura, não apenas no saber, dos objetos, mas de seus usantes, num modo em que
ele não possui o que está em uso, ao ponto do abuso, mas se relaciona afetivamente; uso a
incorporar a abertura, a inventividade e a experimentação de si em relação com as coisas e
com o mundo. Nada disso está fundamentado, necessariamente, nem na propriedade nem
numa questão jurídica (de direito) a garantir tal propriedade (não apenas como posse, mas
como característica qualificadora da relação), mas, pelo contrário, num jogo íntimo, ou
doméstico (econômico) que faz aparecer a potência da relação à qual o sujeito e o objeto se
colocam em indeterminação, ou talvez, um nome mais apropriado, em movimento40.
O jogo que o uso permite constitui-se como uma espécie de função, capaz de colocar
em relação aquilo que parecia separado, mas não para criar uma harmonia apta a satisfazer o
entendimento, como na forma do juízo kantiano. Trata-se muito mais de um romper e
friccionar dos elementos, ao ponto de um atravessar o outro, constituir-se no outro, produzir
algo diferente desses dois pelo contato. Tal modo de relação é uma forma alterante, afetiva.
Um envolvimento capaz de lançar o mais íntimo (oikos, a vida privada) no espaço da
qualificação política (a vida pública), sem, todavia, deixar-se consumir nessa. O contato é
relacional, na forma do uso, uma usando a outra, fazendo as vezes da outra. Lembremos do
altas Mnemosyne de Warburg ou mesmo do ABC da guerra de Brecht, do conjunto de obras
em miniatura de Duchamp, das Passagens de Benjamin e percebamos, como cada um, em sua
particular maneira, foram capazes de fazer dos usos (das imagens, dos textos, da sua situação
psíquica e política) um operador capaz de abrir o impessoal, o transbordamento de si em
direção ao mundo, na mesma medida em que o mundo é reconfigurado, desmontando-se e
sendo remontado. Na medida em que criam, fazendo uso, afetam a compreensão e são
afetados pelo que criam. E todos, de alguma maneira, proliferam essas formas, como
sintomas, a aparecer do entrelaçamento do órgão e do instrumento, não para meramente
fecharem-se e fecharem as possibilidades de pensar e usar, mas sim abri-las à multiplicidade e
diversidade incomensurável das relações. Ou seja, uma relação fora de qualquer noção de
posse.
Não é gratuita, pois, a distância da noção de propriedade fazer da noção de fronteira,
de um lado, uma absurdidade material, e, de outro lado, ganhar importância estratégica na
formulação do pensamento desses autores: fazer da fronteira limiar, torná-la porosa, rompê-
la, lembrar daqueles que vivem às margens. No “paradigma do escravo”, os refugiados e toda
40
É impressionante como tudo isso já está profundamente arraigado em muitas culturas indígenas, a exemplo do
que dizem Els Lagrou em Arte Indígena no Brasil e Viveiros de Castro em Metafísicas Canibais.
125
aquela e aquele que se esforça por atravessar fronteiras são seres-sem-obra, a não ser, como
aqueles que usam seus corpos e colocam-se em relação afetiva no processo de atravessar esses
limites. Nada mais imanente que corpos rompendo grades e barreiras, ou pulando muros e
esquivando-se por brechas. Isso transforma o próprio processo de elaboração do saber. Como
tomar posse de um saber se isso, inevitavelmente levaria à constituição de barreiras, por um
lado, e a falsa percepção de que ele tem determinadas propriedades que o constitui como
próprio? Warburg, por exemplo, mostra com seu atlas certa impropriedade das imagens por
ele usadas, isto é, a inexistência de uma essência apropriadora, a qual, inclusive, garantiria
posse do sujeito, do especialista, agora constantemente contestada pelos usos que se fazem
delas. Sua impropriedade surge da maneira como elas significam na relação e não numa
suposta essência, ou ideal.
Se o atlas evoca a deusa da memória como matrona de seu procedimento e desejos,
não dá para olhar para a questão colocada como tão somente a do grande arquivo dos
documentos da humanidade, mas também como tudo aquilo que aparece como não-saber, os
arquivos soterrados e mesmo destruídos, ou simplesmente esquecidos, perto de tornarem-se
poeira, bem como as impossibilidades de serem criados. Poderíamos dizer que toda essa obra
“desenvolve-se de uma maneira dialética, sempre sobre dois planos heterogêneos,
conflitantes, que não cessam, no entanto, de se reencontrar o não-saber e o saber, o páthos e o
logos” (DIDI-HUBERMAN, 2011b, p.246), coisa a permitir ter um “teor heurìstico aberto e
teoricamente tão inovador” do seu Mnemosyne (idem, p.247). Seu trabalho consistiria em
mostrar o “conhecimento do sofredor”, uma forma polìtica de reformular a inquietude mesma
diante do saber, prometedor da liberdade humana, e incapaz de impedir o sofrimento de
tantos. Se Atlas, o titã castigado pelos deuses, é o modelo, e, por sua vez, não difere – ou se
inscreve na constelação oriunda – do paradigma do escravo (ibidem, p.248), o que significa
dizer que a história será pensada do ponto de vista dos corpos sofridos, dos marginalizados,
do povo que falta ou que não tem parte na partilha, isso não significa agarrar-se à fraqueza, ou
aos afetos tristes e ao ressentimento como elemento de operação dessa perspectiva. Trata-se,
sim, muito mais de um abrir-se à atividade afirmativa e alegre, sabendo que a constituição da
situação de exclusão pode ser, justamente, a arma dos ressentidos e controladores.
É essa abertura que o teor heurístico permite: não apenas as possibilidades de
elaborar novos sentidos, mas de fazer com que tais possibilidades se apresentem como a
aparição de corpos, povos e memórias esquecidas ou recalcadas. O atlas de Warburg serve,
nesse sentido, como uma “tábua de orientação”, de maneira tal a “formar constelações nas
quais ele poderia encontrar uma orientação para seu pensamento” (ibidem, p.250). Coisa
126
assemelhada aos fígados (uma forma de sua sobrevivência?): uma base fragmentada e
múltipla de orientação, embora não necessariamente de determinação. “Uma tábua de
orientação, no sentido divinatório do termo, supõe a circulação constante dos espaços
maléficos e benéficos, então, dos momentos melancólicos (quedas no tempo) e maníacos
(triunfos sobre o destino)” (ibidem, p.251). Ou seja, diz o autor, entre “hostilidades” e
“familiaridades”, entre aquilo que nos ameaça (por sua grandiosidade, pela dimensão do
tempo) e aquilo que reconhecemos (pela repetição, pelo hábito). Um processo de orientação
em vistas da desorientação, a fim de constituir, atravessar ou expandir um campo de
experiências, no qual se orientar novamente em direção de uma nova desorientação. Todo um
processo para descobertas, aos desdobramentos do que parece o mesmo (a diferença na
repetição), ou ainda àquilo que sequer imaginava-se (não-saber). “A memória seria, pois, de
uma vez, isso que fixou Warburg à parte funesta dos irremissíveis monstra e que lhe permitia
visar a parte benéfica dos astra numa „tentativa de autoliberação pela lembrança‟ [...]”
(ibidem, p.252), o que lhe possibilitaria, então, “compreender a grande „psicomaquia‟
ocidental segundo o jogo destinal da pars hostilis das imagens e de sua capacidade de vir,
apesar de tudo, encenar plenamente seu papel na pars familiaris de nosso pensamento”
(ibidem, p.253).
O objetivo de Warburg consistiria em tomar esses fragmentos, entre sua hostilidade
(imaginemos os cadáveres nos campos de concentração) e sua familiaridade (imaginemos o
sofrimento desses mesmos corpos), a fim de elaborar uma nova montagem, para tornar
possìvel, apesar de tudo, saber. “Mnemosyne terá tido por ambição remontar um mundo
desmontado pelos desastres da história, de renovar os fios memoriais, além de seus episódios,
de renovar a cosmografia intelectual [...]” (ibidem, p.254). Todavia, tal remontagem não
poderia jamais corresponder a uma reconstituição de todo o programa que levou ao desmonte.
Não se trata, jamais, de um renascimento, mas de um “dispositivo experimental [...] um
laboratório capaz de inventar, permanentemente, aparelhos para ver o tempo em obra nas
palavras, nas imagens e nos gestos humanos”. Incluir, justamente, e não somente como
exclusão, um centro destituidor de toda a humanidade esquecida. Fazer tudo isso, remontar a
partir da inquietude e da “problemática dos materiais acumulados” revelariam ao historiador
esta “fecundidade heurìstica até então desapercebida”, as quais dependem, não apenas das
“cabeças dos sábios”, mas também de “aparelhos de memória”, ou seja, de elaboração de
formas, processos e procedimentos capazes de abrir as lembranças ao seu não-saber (ibidem,
p.255). A heurística assume aqui sua face mais ética até então, sem, com isso, deixar de
remontar a uma perspectiva estética: ela faz aparecer os povos que estão em vias de
127
desaparecer ou aqueles que sobrevivem de alguma maneira, como fragmento, como apesar de
tudo, como resistência feita vaga-lumes, nas fronteiras, tantos dos territórios, como do
pensamento.
Não é à toa que, sintomaticamente, em Warburg, expor um argumento significava
expor uma imagem, de modo que eles se interconectassem, mas não como essa
exemplificando o discurso do outro, senão de ambas em relação, interpenetrando-se
mutuamente (ibidem, p.259-260), a fim de fazerem-se hábeis a “recolher bem o que as
fronteiras disciplinares têm o costume de separar”, recolher, nem para unificar nem para
constituir uma totalidade, mas para abrir as fronteiras, até o incomensurável das relações
possíveis, e com isso, dos sentidos por descobrir (ibidem, p.263). Não só criar sentidos. Isso
ainda seria limitado. Mnemosyne perturba nosso olhar e linguagem que as “sustentam e
minam de uma vez, pelo qual se apoiam e onde elas se modificam de uma vez” (ibidem,
p.264). Formulando essa colocação, em crise, o atlas warburguiano faz das imagens uma
forma de crítica, cuja aparição e montagem põem em crise a “explicabilidade erudita”,
constituindo-se como uma “instalação visual”, a funcionar como imagens dialéticas, a fim de
compor “uma vista justa do mundo” (ibidem, p.269). Ele não elabora, pois, um conjunto de
explicações, passando mais para uma “apresentação comparativa” capaz de honrar as
singularidades sem eliminar os estranhamentos (ibidem, p.271). Como nas imagens dialéticas
benjaminianas, o atlas torna possível tal tensão, a convivência dos extremos entre si, pela sua
habilidade de formar constelações heterogêneas, cuja forma admite possibilidades de
cognoscibilidade, sem com isso eliminar as diferenças, constituindo aí uma verdade da
“capacidade heurìstica de suscitar comparações” (ibidem, p.272).
A elaboração das montagens, o que permite a confecção de comparações, coloca sob
a relação o fundamento do que se poderia observar nas imagens. Como já dissemos, isso
permite a liberdade dessas imagens, não a uma determinação fechada, ou propriedade para
definir seu lugar específico, e sim à possibilidade de seu uso, e, com ele, a fundação, a
invenção, de novas abordagens e conceitos para a existência das imagens. Elas encontram um
novo paradigma a partir do qual experimentarem e constituírem hipóteses, em suas relações,
novas possibilidades de uso, isto é, de afetar e serem afetados pelos olhares a elas dirigidas e,
consequentemente, o que elas olham de volta em nós. No uso, as imagens não apenas são
objetos de nossos olhares. Elas afetam e recriam esses olhares a cada vez que tornamos a
olhar. Nosso olhar não é mais o mesmo e está, na afetividade, servindo às imagens para
afetarem o mundo a sua volta. Integramos, assim, a montagem; tornamo-nos extensões dessas
imagens, reinventando o mundo a partir delas, ampliando seu campo de exibição e indo até o
128
não-saber da imagem e ao nosso, por associação. Tudo isso, a fim de alcançar, ou pelo menos
de por em forma uma possibilidade de emancipação. Didi-Huberman (2010, p.131) não deixa
escapar essa noção, quando tenta conceituar esse termo:
A noção de propriedade é abolida, mas isso não significa acabar com a posse. A
partir do filósofo francês é possível dizer que há outra forma de posse, como que uma forma
de potência, que deve ser considerada. Afinal, ser guiado e guiar ainda demandam uma
relação, pelo menos de transmissor. A figura de Atlas, nesse sentido, mostra-se propícia.
Temos aqui uma modalidade de posse que não implica, necessariamente, uma
propriedade, a não ser se pensada como história e experiência vivida corporalmente e, por sua
vez, constituída como um saber próprio, ao qual o vencido e o escravo, tem acesso, na medida
em que portam, como saberes provenientes dos usos de seus corpos. A emancipação, nesse
caso, não vai sem o saber próprio dessa forma de posse, ou potência de portador, com o qual,
pela transmissão, poder-se-ia reduzir o fardo, não acrescentando almofadas aos ombros a fim
de tornar mais confortável o fardo suportado, mas partilhando esse peso, como peso em
comum, passando de mão em mão, ou de ombro em ombro. O uso e fecundidade heurísticos
desdobram-se aqui nesta tarefa: emancipar os sujeitos proliferando a partilha do porte do peso
que se carrega, que é viver.
129
41
“Tecer e cantar são duas atividades produtivas, constitutivas do cotidiano kaxinawa, cuja estética consiste em
uma arte de produzir a vida de modo próprio, kuin [...]” (LAGROU, 2009, p. 18).
42
“O conservadorismo estilìstico deste grupo de lìngua karib lembra o dos Wauja [...] no sentido de que ambos
acreditam que a relação intrínseca entre o modelo e sua cópia torna a produção artesanal uma empreitada
arriscada. No caso wauja, o ser parcialmente reproduzido no artefato pode se vingar se a confecção foi
artisticamente mal feita, enquanto entre os Wayana existe o risco de a tradução do ser em artefato tornar-se tão
completa que ele ganhe agência e vida próprias” (LAGROU, 2009, p.23).
43
“É o experimento que produz o evento e assim o mundo é feito de semelhanças que produzem diferenças”
(LAGROU, 2009, p.26), e “Um dos aspectos principais da concepção amerìndia sobre a corporalidade, que
concebe o corpo como fabricado pelos pais e pela comunidade e não como uma entidade biológica que cresce
automaticamente segundo uma forma predefinida pela herança genética [...]” (idem, p.39).
44
“um objeto é um sujeito incompletamente interpretado. Aqui, é preciso saber personificar, porque é preciso
personificar para saber” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.52).
45
“[...] os europeus nunca duvidaram de que os ìndios tivessem corpo (os animais também os têm); os ìndios
nunca duvidaram de que os europeus tivessem alma (os animais e os espectros dos mortos também as têm”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.37).
46
Tanto Viveiros de Castro (2015), a partir da noção, tanto de equivocidade, como de perspectivismo, quanto
Descolas (2016) mostram que as “traduções” dessas culturas sofrem o processo de adequação às nossas
categorias de pensamento. Os indígenas, por vezes, recorrem à língua do inimigo para saber agenciar seu próprio
pensamento em prol de suas necessidades. Nesse último, por exemplo, o caso dos aborígenes australianos da
tribo anangu, onde um sítio, conhecido por eles como Ayer‟s Rock, é o local totêmico, em que os espìritos dos
130
importância do valor de uso do que é produzido. Produzir, para esses indígenas, é também
produzir-se. Quando se pintam ou mesmo pintam os artefatos, eles não estão simplesmente
decorando seus corpos e objetos, estão alterando-os e alterando-se47. Temos, aqui, então, uma
operação na produção do corpo que não é tão somente biológico, mas também cultural. Um
não vem sem o outro. As pinturas e desenhos têm a função de reestruturar física e
simbolicamente os corpos e o mundo desses sujeitos, seja tornando-os mais belo, não pela
beleza em si, mas por sua capacidade agentiva, seja protegendo-os de maus espíritos48.
Temos aí todo um paradigma estético de existência não explorado pela filosofia de
Giorgio Agamben, que mais preferiu remoer os dispositivos ontológicos de Aristóteles e de
Heidegger, do que se cercar do que poderia lhe permitir destituir tais dispositivos, ou ainda
transformá-los em máquinas de guerra, nos termos de Deleuze e Guattari (2014), capazes de
destruir a própria possibilidade de criação de novos dispositivos dicotômicos, com sua
operação de exclusão e submissão. A questão da “ética dos escravos”, nesse dispositivo, perde
terreno para o discurso ontológico. A cosmologia ameríndia poderia ter-lhe fornecido a arma
possível, aquela que destruiria sem substituir os dispositivos, porque ela revolveria a terra,
arrancaria as raízes e fundaria desde o subterrâneo os povos e pensamentos por vir. Claro, isso
significaria repensar essa forma de vida que não teve espaço concreto no trabalho do filósofo
italiano, mas que pouco foi lembrando também por Didi-Huberman49.
O uso não é mais uma possibilidade. Ele é o elemento operatório do dispositivo
cosmológico desses grupos. É por ele que as formas-de-vida estruturam-se e, é por ele que
elas são alteradas. De certa forma, o uso faz com que a variação se apresente como
natureza50e aí se descubra que a variação seja a própria natureza e não que a natureza varia
sem, verdadeiramente, alterar-se. Porque, não há uma determinação ideal dessa estrutura. O
que há são os usos e as funções assumidas. O mundo não se reproduz platonicamente, mas
prolifera-se em suas variações de formas por que está, continuamente, alterando sua própria
animais, protótipos a serem assumidos pelos sujeitos, descansam. Os aborígenes podem, então, adotar um
discurso de proteção do meio-ambiente, código reconhecível pelo Ocidente, a fim de proteger o que para eles é
muito mais singular do que isso. Integra a própria existência desse povo, define suas identidades (DESCOLAS,
2016, p.20-21).
47
“A lição metodológica tirada desta constatação é a impossibilidade de isolar a forma do sentido e o sentido da
capacidade agentiva; o sentido e efeito das imagens e artefatos mudam conforme o contexto em que estes se
inserem [...] A forma não precisa ser bela, nem precisa representar uma realidade além dela mesma, ela age sobre
o mundo a sua maneira e surte efeitos. Deste modo ela ajuda a fabricar o mundo no qual vivemos” (LAGROU,
2009, p.31).
48
“O desenho abria a pele para uma intervenção ritual e coletiva, sobre o corpo da criança, que estava sendo
moldado, fabricado, transformado” (LAGROU, 2009, p.35).
49
Apesar do trabalho de André Bazin citado por Didi-Huberman abrir espaço para tais indagações, teríamos de
experimentá-los, por exemplo, à luz das fotografias de Claudia Andujar.
50
“o multinaturalismo amazônico não afirma uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação, a
variação como natureza” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.69).
131
existência e fecundando as formas com tais alterações (como os fungos e as bactérias) – uma
imensa experimentadora de si, em que esse “si” desfigura-se até a perda. A Terra aí assume
ainda mais seu caráter heurístico, coisa que o próprio Kant (2016) reconhecia, apesar de
desejar fundar seu sistema sob pressupostos unificadores e universalizantes, a fim de tentar
dominar esse “caos” que a natureza parecia assumir, sem deixar espaço nenhum às influências
e às determinações da razão humana51. Tão fecunda e tão indiferente a nós. Não à toa que
parece sempre ter amedrontado o caro senhor filósofo. Enquanto ele (re)fundara a categoria
do sublime para nos permitir olhar (e apreciar) o mundo – olho de cima, como senhor, que
fique claro –, o belo funcionaria como o dispositivo para encontrar em nós mesmos a razão do
contentamento em existir nesse mundo tão inumano.
Ambos foram pensados para reestabelecer um parâmetro antropocêntrico a fim de
fazer do mundo um mundo humano. Para algumas culturas indígenas, no entanto, quanto mais
perigosos e mais colossais, com mais beleza as entidades extra-humanas são representadas52.
Aliás, a representação imagética, isto é, o esforço de torná-los sensíveis, garante-lhes o bem-
estar do grupo53. O sublime e belo encontram-se e tomam uma mesma função: fazer imagens
do mundo, não à semelhança do homem, mas à semelhança do cosmos, do próprio mundo
(visível e invisível) - por isso seu caráter “abstrato”, termo que não deixa claro o elemento
alterante, isto é, esforço em direção ao outro; alteridade. A experiência estética, longe dos
termos correspondentes do Ocidente e no pensamento, filosofia e arte ocidentais, está no
conhecimento da função de cada coisa (saber fazer) e de cada um, nos estabelecimentos de
relações e contrarrelações do que na autocomiseração e gozo de si. A satisfação, ou
comprazimento, não se funda na descida à própria subjetividade, na determinação de si na
experiência de sua própria consciência, ou na conscientização racional do ser-aí. Ela aparece
numa espécie de encontro na constelação de existência, onde buscar sua função, ou
corresponder ao uso, significa participar do mundo, “introduzindo agência e eficácia onde a
definição clássica só permite contemplação” (LAGROU, 2009, p.34) – a forma última da
liberdade em Aristóteles, por exemplo.
51
Ver, por exemplo, Valentim (2018, p.19-23), no qual o “mundo vai deixando de ser kantiano”, isto é, exigindo
de nós, cada vez mais, um posicionamento diante do mundo, com vista não a possui-lo, dominá-lo, e sim a lidar
com a insustentável condição de vida, restabelecendo os laços entre “o tempo histórico‟ e o “tempo fìsico”, a fim
de lutar contra a fundação da filosofia transcendental que vem de Kant, não só pela “conformidade a fins”, bem
como pela “hipótese da aniquilação do mundo”, do qual se salvaria o ser, concebendo uma noção de
“neutralidade” que mais assumiu uma posição de submissão dos povos do que efetivamente lutou pela liberdade.
52
“Beleza e perigo andam juntos, para os Wayana, e quanto mais monstruoso o ser mais este será decorado e
belo” (LAGROU, 2009, p.78).
53
“A imagem está no âmago da relação dos Wauja com o além, para os quais a presentificação visual dos seres
invisíveis assegura o bem-estar do indivíduo e da coletividade” (LAGROU, 2009, p.79).
132
54
“Falta ao pensamento ocidental sobre o ser, em suas vertentes hegemônicas, um conceito de sentido capaz de
operar além da perspectiva antropocêntrica, em registro „animista‟, solidário à possibilidade de uma „ontologia
que postula[sse] o caráter social das relações entre as séries humanas e não-humanas‟” (VALENTIM, 2018,
p.159).
133
relação. Esse conectivo não anula as obras, mas inscreve a negatividade relacional nesse ser,
como uma cesura. A obra é a retirada do ser, colocando-o em estado de demonstração. O que
vai caracterizar o ser, a atividade livre do sujeito, é justamente a negatividade que abre esse
ser à afetividade – uma passividade que altera sem mover, sem agir. Trata-se mais de uma
inoperatividade, uma inoperância. O escravizado é função de negação, e também de afeto, do
estatuto da liberdade que se faz, da atividade não-produtora do escravizador – a positividade
obnubiladora (como a luz de deus era para o barroco uma fonte de obscuridade, porque
cegava e impedia de ver).
O que o escravizado faz, muito mais, uma obra sem ser, uma obra que não é fim em
si mesma (a liberdade), mas algo em função, algo produzido para o uso, algo não apenas em
relação, mas para a própria relação55. Ela se volta para si (como o I would prefer not to not
to... de que tratou Agamben a respeito de Batleby) e dobra-se sobre si mesma, multiplicando-
se. Pode não ser uma atividade libertadora no sentido de uma atividade dirigida para um fim –
atividade viril (véritas, verdadeira porque viril, viril e verdadeira, guerreira – nunca uma sem
a outra?, como nos lembra Buck-Morss [1996]). Pode, de outra parte, configurar-se como
agência afetiva, agenciamento de afetos, desdobrando-se e remontando à própria produção,
não em vista de uma propriedade, de um próprio, mas de uma impropriedade, de um
impessoal56. Não há ser, mas há a heurística; há esse trabalho e operação de experimentação,
ainda que por via da reprodução, da produção do mesmo e da manutenção do cotidiano57.
55
“[...] a própria natureza do homem, que se apresenta como o vivente sem obra, isto é, privado de uma natureza
e de uma vocação especifica. Faltando-lhe um ergon próprio, o homem não teria nem sequer uma energeia, um
ser em ato que poderia definir sua essência: ele seria, assim, um ser de pura potência, que nenhuma identidade e
nenhuma obra poderiam esgotar” (AGAMBEN, 2015b, p.321).
56
Podemos pensar também que essa impropriedade ou impessoalidade também signifique a elaboração de uma
obra sem rastros, sem traços, como os pássaros, segundo Ailton Krenak: "um pássaro voa e não deixa nenhuma
marca no ar. As pessoas deveriam passar pela terra também sem deixar sinais", em entrevista no Canal Curta!
Uma forma que usa a terra, mas pelo que ela deixa (o caso dos Despossuídos de Karl Marx) gratuitamente, e não
pelo que tomamos ou nos apossamos dela.
57
Parecia estranho que o último livro de Agamben, do conjunto do Homo Sacer, começasse com um problema, a
partir de Debord, sobre a relação entre a vida pública e a vida privada. Porém, é preciso pensar que a questão
doméstica (o oikos problematizado pelo autor em O reino e a glória) não foi considerada em todos os campos.
Quem de fato chama a atenção para essa questão, tornando-a política são as mulheres. Silvia Federici em O
feminismo e as políticas do comum chama a atenção para o fato das mulheres serem responsáveis pela maior
parte da produção alimentícia, bem como estiveram, como afirma em Calibã e a bruxa, no front da luta contra o
cercamentos de terra e foram as mais aguerridas na defesa das culturas comunais, de modo que a questão
oiconômica, econômica e doméstica, não pode ser simplesmente a transição de um dispositivo para o âmbito
social. A casa é já um campo de batalhas. Por sua vez, Virginia Woolf, também, afirma Louro (2019, p. 142),
nunca deixou de remeter a tal problemática: “Segundo ela, haveria um fio quase imperceptível – mas efetivo –
entre os tiranos que ameaçam os povos e os tiranos que atuam no interior das famílias. O repúdio que,
clamorosamente, é feito aos primeiros, não costuma, no entanto, se estender aos do mundo doméstico. Muito
pelo contrário, a fora dos costumes e da tradição reitera o poder desses pequenos tiranos, o poder dos pais, dos
maridos e dos irmãos sobre as mulheres da casa. A crítica de Virginia à violência e às guerras funda-se na sua
crìtica ao patriarcado”, encontrando em Ao farol, a encarnação dessa “tirania doméstica”. Ou seja, o cotidiano
134
não apenas precisa ser repolitizado, pelo menos, à luz do pensamento, como também serão necessárias outras
categorias para tal.
58
“A câmera segue [suit] o ser filmado, até perder a possibilidade de enquadrar seu rosto, seu em-face. Ela se
recusa a antecipar ou a comandar o que seja. Ela não „toma‟ nem „capta‟: simplesmente segue [suit]. O que,
graça à riqueza desse verbo em francês, indica-nos, talvez, que não compreenderemos jamais o outro („eu te
sigo‟, no sentido de: „eu compreendo a direção de teu pensamento‟) sem acompanhar, sem respeitar fisicamente,
mesmo ficando para trás, recuando, a cada movimento e cada temporalidade especìficos de seu corpo” (DIDI-
HUBERMAN, 2012b, p.237).
59
“Uma rota. Ao longe, as casas: nós não estamos fora do mundo dos homens. Escutamos algumas vezes o
barulho dos tratores que passam fora-de-campo. A extraterritorialidade do „homem sem nome‟ não é aquela do
ensimesmamento como redobra eremítica, à maneira de santo Antônio, ou como uma ilha deserta, à maneira de
Robinson Crusoë: é uma extraterritorialidade que toca de perto a sociedade inteiramente” (DIDI-HUBERMAN,
2012b, p.238).
60
“Seria falso ver no „homem sem nome‟ um homem abstrato, alegórico, genérico e fora do mundo, ao invés de
reconhecer em seus gestos fatigados – ainda incompreensíveis para nós – a mecânica esgotada do sem-sentido”
(DIDI-HUBERMAN, 2012b, p.239).
61
Por acaso, tratamos detidamente essa relação em Marinho (2015, p.125-166).
135
em relação, e na relação, sempre varia, altera-se, ou mesmo deforma-se – não com fim, nem
meio, mas em função, talvez, paradigmática, o que vai ao lado. Nesse sentido, não é um
poder, em uma atividade, mas sim a possibilidade de um afeto. A virtude como princípio e
orientadora da atividade do homem livre, precisa operar sobre outra modalidade, capaz de
abarcar a vida e as obras desse sujeito-assujeitado. No fim, para que seja capaz também de dar
conta de todas aquelas e aqueles que vivem, não como livres, mas assujeitados e massacrados.
Precisamos, assim, de uma ética em vista do oprimido62, mas uma ética que não procure
torná-lo semelhante, meramente, ao homem livre. Ao invés disso, precisamos de uma ética
que, não esquecendo o sofrimento perpetrado, seja capaz de fazer justiça. E, aí, encontrar
outra condição, categoria ou regime para pensar o próprio ser humano. Agamben nos diz que,
ao questionar-se sobre o “ser” do homem, a resposta de Aristóteles teria sido rápida demais,
como se sentisse a necessidade de preencher o vazio desse pensamento.
A política (ou o discurso, o direito de fala) ser o ser do homem funcionaria como
uma espécie de gambiarra para essa situação: a de uma obra sem ser produzida por um
homem igualmente sem ser. Fazer do homem um “animal polìtico” significa, se pensarmos
com Rancière (2014, p.32), despolitizar, abrir ainda mais o homem ao sem: nem ao ser nem à
obra. Segundo o autor, cabe ao filósofo da Política, o pensamento de que ele poderia ser, ao
invés de um ser, uma “arte da vida em comum” (idem, p.51), encontrando na amizade o
elemento de operação, de tal modo a desmanchar “a unilateralidade caracterìstica de cada um
dos elementos constitutivos da polìtica”, podendo fazer o “jogo do outro” sem abrir mão do
próprio jogo; sem, com isso, constituir unidades. O ser desse homem deixa de ser, tão
somente a liberdade, para abrir-se a um jogo de afetividade, ou seja, à operação ou cálculo da
afetação sobre o outro e sobre si mesmo. Uma obra sem ser torna-se, então, uma obra em
relação, uma obra de heurística. Trata-se antes do uso dessas obras, da destinação dada a elas
e do que formam nesse processo, do que a procura de uma autonomia ascética. A política está
mais próxima disso que provavelmente do que gostariam os filósofos 63. “A polìtica não tem
arkhé. Ela é, em sentido estrito, anárquica” (ibidem, p.69). Ao invés de um ser, ela passa a se
fazer com um topos, um “lugar de uma subjetivação num procedimento de argumentação”
62
“A determinação aristotélica da obra do homem implica, pois, duas teses sobre a polìtica: 1) na medida em que
se define em relação a uma ergon, a política é política da operosidade e não da inoperosidade, do ato e não da
potência, 2) esse ergon é, porém, em última análise, „uma certa vida‟, que se define em primeiro lugar através da
exclusão do simples fato de viver, da vida nua” (AGAMBEN, 2015b, p.324). E, mais a frente acrescenta: “O
político, como obra do homem enquanto homem, é extraído do ser vivo através da exclusão de uma parte de sua
atividade vital como impolìtica” (idem).
63
Hannah Arendt (1993) afirmou que os filósofos deixavam o povo de lado, bem como a capacidade afetiva
desses, nas determinações das discussões políticas da cidade e do Estado. Houve sempre uma desconfiança em
torno da massa.
136
(ibidem, p.71), no qual essa „uma” da subjetivação aparece como “a relação de um si com um
outro” (ibidem, p.72), cujas determinações perpassam por, diz o autor: (i) a recusa de uma
identidade imposta pelo outro; (ii) uma demonstração que sempre supõe um outro,
constituindo aì um “lugar comum” (não se tratando, necessariamente, de consenso), e; (iii)
por fim, de uma “lógica de subjetivação” capaz de comportar “uma identificação impossìvel”
(ibidem, p.73-74).
Essa forma da política encontra, então, na constituição de intervalos (entre voz e
corpo, entre lugares, entre quem pode e quem não pode falar, entre corpos, entre imagens,
entre histórias...) o seu espaço mais próprio, ou melhor, mais fecundo de se fazer. A obra por
realizar dessa política sem ser, dessa política heurística, e mesmo heurística política, é a da
constituição desses intervalos (e sua abertura: à impropriedade; à impossibilidade; à distância;
à extraterritorialidade; à desterritorialização...), em vista de suas funções, isto é, da alteridade
como elemento a partir do qual funciona a política (Tipo: f(p) → a, em que: f = função, p =
política, a=alteridade, na qual a “igualdade” dessa função é sempre uma diferença, do tipo:
f(p) ≠ ~a). No pensamento de Didi-Huberman, a heurística adquire contornos políticos, ou
melhor, inscreve-se numa constelação política, a encontrar no comum a possibilidade de
redefinição de suas formas, a fim de criar relações capazes de responder, não como resultado
ou saída do impasse, mas como colocação da problemática, sem perder a dimensão da
problematização da colocação. Nesse processo, percebemos, estar relacionado é uma
condição necessária da função, o que significa dizer que a noção mesma de liberdade deveria
ser reformulada: não mais na autonomia, ou na construção de uma obra do ser (livre); não
mais uma atividade livre do espírito e a construção de uma unidade universal. Ela precisaria
atravessar um outro topos: o da heteronomia, mas operada como demonstração; a constituição
de obras sem ser em relação, o processo da afetividade (outra modalidade de agir, estabelecer
agenciamentos afetivos e de afetos...) como configuradora da “prática” polìtica, implicando os
corpos, fazendo-os dobrar e debruçar-se sobre tais fazeres e seus saberes constituídos, para,
com isso, elaborar um comum como lugar conjunto (solitário, inoperante, impossível...) para o
aparecimento da diferença. Operação e uso heurísticos da política e de seus afetos implicados
e lançados.
137
PARTE II – POLÍTICA
[empatia, faculdade da imaginação, tomada de posição, restituição do comum]
volume dessa mesma coleção, Peuples exposés, peuples figurants (publicação em 2012),
obras em que a política, a forma política ganha mais importância, torna-se questão central no
plano de composição do pensamento do autor.
64
Nessa perspectiva temos, por exemplo, o documentário profundamente perturbador de Gabriel Mascaro Um
lugar ao sol (2009), no qual ele entrevistou donos de luxuosas coberturas em cidades do país, moradores que
marcam sua distância (desejada) do restante do mundo, como forma de aquisição de status, e, ao mesmo tempo
alienam-se de tal forma nisso que, segundo diz uma das donas, estarem mais “próximas de deus”; há também
outro documentário do mesmo diretor, Doméstica (2012), no qual ele, provendo câmeras para as crianças e
adolescentes da casa, utiliza as filmagens do dia-a-dia feito por eles em relação às trabalhadoras do lar em suas
residências. Isso é o suficiente para perturbar e revelar a violência velada e relações de poder entre patrão e
empregado. Uma questão doméstica.
139
abrirmos os olhos, veremos que algo aparece: saberes aprendidos que os ajudam a sobreviver;
carregam determinados objetos imprescindíveis; sabem como se comportar em determinados
espaços, adotando uma linguagem corporal e mesmo de fala para tanto, a que tipo de pessoa
recorrer e quando. Saber encontrar e manter o alimento, criar seus próprios utensílios e
equipamentos. Produzir, enfim, uma prática que é saber e saber para sobreviver. Quando
somos capazes de olhar dessa maneira, olhar verdadeiramente, conseguimos saber melhor e
manter esse saber aberto, porque, antes de tudo, tal saber prescinde de axiomas e está
intimamente relacionado com a vida.
Podemos dizer, a partir disso, no campo de uma abordagem no qual a sobreviência
torna-se linha de trajeto, que a heurística é a relação das formas com a vida, não como
produção de ideais e esquemas, mas como uma dança, na qual corpos se tocam e produzem
gestos, emoções, prazeres, choques, feridas, interrupções, movimentos65. Nessa abordagem,
como conceber saberes para especialistas? Como separá-los em campos distintos, sem
relações? E, como estabelecer uma política a partir daí? Em que essa noção se altera, é
alterada? Da mesma forma como Didi-Huberman (2013b, p.31) fala de Aby Warburg,
podemos tentar elaborar uma hipótese a respeito da política à obra do autor: é um “fogo-fátuo,
ou melhor, o atravessa-paredes da história da arte”. Esse historiador da arte, defensor de uma
“Ciência da arte” (Kunstwissenschaft) ajuda-nos a configurar mais uma vez a constelação da
política. Ele faz entrar nela o elemento da sobrevivência, o elemento que resiste ao tempo,
mas que para resistir transforma-se; encontrar qualquer brecha que a salve. Nessa concepção,
é preciso reconhecer, então, o milagre que acontece quando algo (um objeto, uma imagem,
uma pessoa, um saber) sobrevive. Estarmos diante desse sobrevivente significa estar na
presença de uma conjunção de tempos: o tempo de sua criação, o tempo de sua tentativa de
destruição, o tempo de sua transformação e o tempo de sua sobrevivência. Sobreviver não é
apenas sobrevida, mas a constituição de estratégias e procedimentos com vias a resistir à
destruição. Ela pode vir, por exemplo, na forma do Muselmann nos campos de concentração,
onde tudo se embaralha; pode vir na forma do artista que não pode senão continuar a produzir
sua obra (quando pode) e pode vir na forma da luta clandestina, quando esconder(-se) é a
65
Com Le danseur des solitudes (publicação em 2005), Didi-Huberman (2013d) encontra na dança de Israel
Galván (1973-), o baile jondo, um momento em que o corpo coloca em jogo a heurística, na medida em que abre
para si uma forma dialética de implicar o corpo nesse jogo, um ritmo. O que pode um corpo que dança, o que
pode um corpo que pode arte? A tal questão, o autor poderia responder: “dança-se para estar juntos”. Dança-se
para se tocar, como numa festa; dança-se para se por em ordem, como numa parada militar; dança-se para se
esfregar, para se desejar, como no sexo (ibidem, p.9). Então, continua, com a dança “pode-se descobrir um povo”
(ibidem, p.10) e, a partir disso, elaborar uma antropologia da própria condição humana.
140
única forma possível de continuar no mundo. Cada um demandará duas formas e estratégias
específicas de formulação política.
Warburg desejava uma espécie de desterritorialização do saber sobre as imagens,
envolvendo desde um saber despregado do comum, até a relação com a imagem, como se ela
fosse um mero objeto, cujo frêmito pelo desvendamento a reduz a detalhes, incorporados em
significados claros e distintos. Estar diante de uma imagem para esse historiador significava
estar “diante de um tempo complexo, o tempo provisoriamente configurado, dinâmico, desses
próprios movimentos”, de modo a entender ser o “tempo das imagens diferente do tempo da
história” (ibidem, p.33-34). Para tanto, ter-se-ia de retardar o tempo, “levar o tempo
necessário”, revirando os tempos instituìdos historicamente, estabelecendo relações novas,
atravessando campos tradicionais, investigando em arquivos, tudo que pudesse ajudar a
compreender a complexidade dessas imagens. Ao fazer isso, diz o filósofo francês, em A
imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg
(publicação em 2002), Warburg estaria abrindo a história para a arte, e com tal abertura
mostrando-nos a sobrevivência das formas. Para tal trabalho, o historiador levantou para si e
para quem o seguisse uma monumental biblioteca, um “espaço rizomático”, uma working
library, pela qual seu criador “procurava estabelecer ligações” (ibidem, p.35).
Havia, aí, prossegue o autor, “uma atitude heurística – isto é, uma experiência de
pensamento não precedida pelo axioma de seu resultado – [que] guiava o trabalho incessante
de sua recomposição” (ibidem, p. 36). Tal empreitada demandava uma “difìcil conjunção de
engrenagens” que impunham uma “espécie de situação aporética”: considerar todas as
aberturas, “investir o tempo para levar tudo em consideração: loucura” (ibidem, p.36-37).
Porém, há outra maneira de considerar o trabalho: “é agir de forma oblìqua, por impulso. É
bifurcar de repente. Não adiar mais nada. Ir direto ao encontro das diferenças. É partir para o
campo”. E, bifurcar significa aqui “mover-se em direção ao terreno [...] aceitar a experiência
existencial das perguntas que alguém formula a si mesmo” (ibidem, p.37). Uma política da
deriva. Temos, assim, de um lado, a tarefa infinita e louca de tudo considerar, de tudo por em
jogo, e, de outro lado, uma espécie de salto, um impulso, que não é simplesmente racional (ou
causal), mas um impulso do desejo de ver como uma coisa se relaciona com outra na
diferença; o que se é capaz de saber disso. Tal relação não implica em resultado (nem explica
o resultado), ou seja, em um saber instituído que parece satisfazer as exigências, no caso de
Warburg, das imagens. O pensamento relaciona-se com as coisas, dá-lhe atenção, busca
aquilo que a coisa devolve, coloca em relação com outras, pela imaginação, por exemplo,
através de associações e comparações, semelhanças e dessemelhanças, podendo repor e dispor
141
as perguntas. Como atitude, a heurística é o que põe em movimento, o próprio impulso pela
descoberta, mas não necessariamente pelo que poderia encontrar como resposta:
A heurística serve como forma, atitude e princípio para se retornar aos fenômenos
em suas singularidades, nem sempre puras e ideais, mas, muitas vezes, tal como o fetichista,
numa relação corporal, afetiva, impulsiva, aquém da própria razão, até onde ela não chega
mais, ou seja, impureza. Isso faz com que a política fundada, ou pelo menos atravessada por
esse paradigma teórico necessite refazer seus próprios pressupostos. Observar as
singularidades exigirá abrir mão de qualquer princípio universal. Mesmo o princípio precisará
ser reformulado a cada vez. A ideia de um espaço próprio do homem livre também deverá ser
colocado em questão, ou mesmo a ideia dessa “prática” como atividade Temos, então, de
pensar a política no terreno de uma forma afetiva. Warburg possui uma denominação própria
para esse exercício, o qual se conjuga com o afeto, com o páthos, para ser mais preciso:
Pathosformel, ou “fórmulas de Páthos”, pressupondo, pelo menos, afirma Didi-Huberman
(2013b, p.177ss), “três tomadas de posição” para compreender “o processo de „marca corporal
de tempo sobrevivente‟”: a primeira é filosófica, “para problematizar os próprios termos
„fórmula‟ e „páthos‟, a segunda é histórica, “para fazer emergir a genealogia dos objetos” e a
terceira é antropológica, “para dar conta das relações culturais que esses objetos
estabelecem”. Para tanto, faz-se necessário acabar com algumas precondições, quais sejam: na
tomada de posição filosófica, isso significa colocar em questão o sentido privativo ou
negativo de páthos, tradicionalmente oposto à “ação [poiein], à substância [ousia, em virtude
da qual a paixão se aproxima ontologicamente do conceito de acidente], à impassibilidade
[apatheia] e, portanto, à sapiência [sophia]”. Apenas uma posição dialética pode vir a
“reconhecer o essencial, a plasticidade positiva do paradigma patético”, pelo qual surgiria um
novo modo de ser, o “ser pathetikos, o ser a quem pode suceder qualquer coisa, não seria
capaz de transformar sua fraqueza (abrir, dar o flanco) em força (abrir o campo do
possìvel)?”, pergunta o autor, no qual descobre a “própria riqueza de um poder de figurar”.
Todo esse esforço aparece no seio de um questionamento maior, a questão da expressão, ou
142
seja, dos modos pelos quais uma imagem, ou um corpo, consegue apresentar-se, fazer-se
presente no mundo, uma questão de potência, uma questão política.
Se, por um lado, “as fórmulas de páthos” colocam questões próprias das “filosofias
da imanência”, por outro lado, acerca da tradição, colocam igualmente questões cuja
denominação utilizada por Didi-Huberman (2013b) é “filosofias do sìmbolo” ou “filosofias da
fórmula”. Ambas, nas suas denominações, implicam-se, o que autores como Gottlob Frege
(contemporâneo de Warburg) e Ernst Cassirer (quase-discípulo) pareciam evitar, ou caso o
fizessem seria com o esforço de evitar uma “história da subjetividade”. Porque, recorrer ao
páthos, para o historiador alemão, significava, por sua vez, o reconhecimento de que ele não
“se dava sem o recurso poético, teatral e, é claro, figural”. Isto é, sem seu caráter expressivo, o
que constituía parte de uma filosofia da arte, ao qual Warbug teve acesso para poder
distanciar-se, configurando, assim, uma política não apenas afetiva, como também artística,
ou seja, um regime estético da política. Com Schiller, o historiador alemão retorna à “audácia
„verdadeira, aberta, desavergonhada‟, dos grandes trágicos gregos”. Com Goethe, ele aprende
a “contemplar a forma”, e “contemplar o tempo”, reconhecendo aì o “momento-intervalo, o
momento que não é a posição de frente nem a de trás; o momento de não estase que se lembra
das estases passadas e futuras e as antecipa, é isso que dá ao páthos uma chance de encontrar
sua formulação mais radical” e, por fim, “contemplando o próprio olhar” a fim de “vivenciar
melhor a verdade estética de seu movimento e seu momento” (ibidem, p.180-181). – Goethe
sugeria fechar os olhos diante da obra do Laocoonte, depois abri-los e tornar a fechá-los.
Sugeria ainda fazer tal experiência à luz de tochas. Uma acepção que faz da arte e a política
modos de constituir “intervalos”. Rancière (2014) já mostrou que a polìtica é a existência do
intervalo entre a política, espaço impróprio do dissenso, e a polícia, força desejnte de
unificação.
Nesse jogo, a criação de trajetos, a relação entre eles e a cesura são os elementos que
operam na experiência. Ele envolve um conjunto de tempos e uma fenomenologia que impede
a estabilização da obra, ainda que para haver a suspensão em obra, indo assim, “para além da
iconografia”, abrindo-se, então, a uma “heurística do movimento – três estados corporais, três
possibilidades de resposta a uma mesma situação – que dá à escultura sua verdade
fundamental: patética, pulsional” e a “heurística do tempo móvel, uma montagem sutil de,
pelo menos, três momentos, três movimentos patéticos diferentes” (ibidem, p.182). Tanto pelo
movimento quanto pelo tempo, não se conseguiria, aqui, elaborar um esboço, ou uma
axiomática, visto que o que se apreende, acontece no movimento, na passagem ou na
transformação de uma coisa, de um tempo, em outra. O que se apreende depende do impulso,
143
àquela experiência corporal e pulsional, a qual não produz uma prática necessariamente, mas
invade a teoria com os gestos e a emoção de um atravessamento, ou de uma queda. Ou ainda,
não apenas abre a prática, como também o sujeito à afetividade, pondo em movimento seus
próprios afetos e sua própria condição de sujeito lançado à subjetividade, ao ponto de sentir-se
possuído, invadido por uma estranheza que não é mais individual, e sim impessoal, patética.
Tudo atravessado e atravessando o tempo, não na forma de uma continuidade histórica, mas
naquela da sobrevivência. Isto é, a aparição e associação imediata, em tempos distintos,
através das insurgências. É o gesto de erguer o punho que se realiza hoje, que se encontra hoje
numa foto recentíssima de uma manifestação e, subitamente, pode ser associado ao gesto de
uma gravura de Goya, implicando e intensificando o próprio tempo. É um páthos, a aparição
desse impulso a conectar-se aos momentos abertos e intensificados pelo tempo e pelo
movimento, os quais perturbam a ordem de uma certa história, para mostrar-se como a
sobrevivência de uma vontade, de uma forma, a montagem dessas formas, formas intensas.
Tal perturbação, como uma espécie de paradigma, desorienta de toda maneira as
práticas políticas pensadas como elaboração racional, como discurso coerente e
argumentativo, em busca de identificação e reconhecimento, como no campo estético fere o
estatuto do “bom gosto”, e suas elaborações axiomáticas. Se o gosto estético se torna o
esforço de uma determinidade, a visar o repouso do olhar e a consequente conformidade do
sentimento, então, política patética, no campo do pensamento warburguiano, torna-se a ruína
do gosto e do sentido de beleza a ele involucrado. Didi-Huberman (2013b) disse-nos das
variadas censuras à aparente ausência de “sensibilidade” do historiador diante da beleza das
obras que estudara. Todavia, pergunta mais adiante, como não conceber tal influência diante
das ninfas que tanto o obsedaram? A diferença resta no fato de que, para ele, Warburg “nunca
contemplou as imagens no repouso de uma simples admiração”, pois, para ele, a imagem só
oferece “sua graça presente no instante do gesto percebido”, no qual ele descobrira que a
imagem “sofre de reminiscências”, de maneira que “o gesto faz subir uma memória
inconsciente „das profundezas do tempo‟” (idem, p.277). Nesse sentido, a graça tem para o
historiador alemão uma dupla tensão: “com respeito ao futuro, pelos desejos que convoca, e
com respeito ao passado, pelas sobrevivências que evoca”. Trata-se, assim, de um movimento
configurado no presente do momento daquela imagem olhada. Isso, por sua vez, pode
significar um trabalho fissurado de interpretação dessa figura, como os saberes e não-saber
gerados, a apresentarem-se historicamente a nós. Para compreender tal modelo, Didi-
Huberman (2013b, p.277-278) vale-se do modelo freudiano do sintoma: “não é a simples
beleza, não é a rememoração como tal – muito menos a coleção de lembranças infantis da arte
145
destino das imagens” (ibidem, p.281). O destino aqui aparece como categoria temporal, de
modo que a repetição trabalha no tempo das pulsões, isto é, como contrarritmo, como as
sobrevivências trabalham no tempo dessa forma política, que também opera fortemente junto
às imagens: o anacronismo que retorna, que volta uma vez mais, “intrincação inevitável do
páthos com o pseudos que „postula a repetição como deslocamento e disfarce‟; e estatuto
diferenciador – portanto, inquietante, sempre em movimento – da própria repetição” (ibidem,
p.282), do qual, diz o filósofo, recorrendo novamente a Deleuze: “só a diferença se repete na
memória inconsciente. Isso também quer dizer que a repetição difere, nem que seja quando
interrompe – com sintomas, com sobrevivências – o escoar sucessivo de um devir histórico”
(ibidem)66. A sobrevivência retorna porque opera como uma compulsão, a convocar uma
necessidade de compreensão e expressão. A sobrevivência, com seu paradigma sintomal,
transforma a própria prática política. Tal política que aqui se mostra torna-se um contrarritmo
a demandar a interrupção das práticas de significação e figuração do saber e das ações, na
medida em que, ao invés de formular estratégias extensivas, opera por compulsão intensiva.
Suas ações passam a fazer aparecer aquilo que parece recalcado. Como pensar essa política do
que poderia ter sido? No sentido das teses benjaminianas sobre a história, isso aí, seria,
basicamente, a noção de política. São atividades do destino que só visam uma coisa: a culpa.
Diante da política da culpa, ou da culpa como agente de controle político, Didi-Huberman
oferece, através do pensamento de Warburg, uma política da diferença, que é, por sua vez,
uma política da fecundidade, capaz não apenas de proliferar a riqueza do saber heurístico,
bem como de interromper-se, a fim de elaborar e expressar as sobrevivências e os sintomas.
Nesse sentido, parece indispensável pensar a aparição dessa modalidade de política,
bem como a abertura que ela promove, como aquilo que se volta contra a própria vontade,
volta como sofrimento recalcado, desejoso de se manifestar. Por isso, trata-se de um trabalho,
trabalho doloroso de acesso, não somente ao que se sabe, mas ao que se ignora ou ao que se
gostaria de não saber, e mesmo ao não-saber não sabido; trata-se de produzir uma prática e de
produzir, conjuntamente, uma forma para essa prática, capaz de expressá-la alterando-a.
Manter a abertura, ou ainda abrir-se, é uma atividade patética, pois nunca vem sem uma dor.
66
Rosalind Krauss (2015, p.40, tradução nossa) nomeia essa forma de investigação como etiologia, pela qual “se
investiga as condições que determinam que se produza uma mudança específica – uma doença. [...] Para traçar a
etiologia de uma neurose devemos tomar a „história‟ do indivìduo e explorar o que determinou a formação da
estrutura neurótica; mas uma vez que se há configurado a neurose, não podemos pensar em termo de „evolução‟,
mas de repetição”. Podemos pensar que a repetição não produz, por sua vez, uma “história”, no seu sentido
evolutivo, capaz de descrever uma sequência de fatos concatenados. Aqui, a história é a da própria interrupção,
da neurose que se repete, das intensidades de sua repetição. Uma repetição que difere, isto é, que abre uma
diferença em relação ao curso contínuo do próprio corpo. Sua compreensão não passa apenas pela gênese da
doença, mas pelo páthos que a acompanha, que a forma, que se instaura como não-saber na estrutura corporal.
147
Em tal concepção, tal política pode se tornar um desespero. Entretanto, a energia que se
desprende a fim de manter o fechamento converte-se, cada vez mais, em um perigo, tal como
esperar tapar um vulcão em vias de explodir ou represar uma correnteza marítima. As
rachaduras acabam por aparecer na estrutura, como marca de um choque. Ali onde os
sintomas aparecem, teremos lampejos do que aparece – nas partes mais sensíveis, mais frágeis
–, repetindo-se, ainda que se disfarçando por outra coisa, diferenciando-se, a partir do qual
seria possível dar um destino, ainda que isso signifique abrir as comportas ou destapar o
vulcão. Benjamin nos lembra que é preciso aprender a política como uma técnica – não no
sentido vulgar, mas naquele que encabeça o esforço de dar uma forma, de criar um
procedimento, tal como concebido por Duchamp, por exemplo (DIDI-HUBERMAN, 2008) –
capaz de se configurar com o páthos, a fim de encontrar uma forma, informe, em movimento,
hábil o suficiente para fazer jus ao que aparece e não a encerrar numa caixa fortificada para
ser esquecida – uma prática policialesca. Não se trata, portanto, de abrir novamente para
melhor fechar. Warburg teria encontrado uma forma na queda, numa “provocação psíquica
para que o olhar próximo se tornasse um conhecimento, uma „visão de conjunto‟” (ibidem,
p.315).
Cabe, então, ao historiador fazer de sua “contorção” uma “construção”, até conseguir
elaborar um “conhecimento: conhecimento de um novo estilo [...] que tirou do fato de estar
em perigo os fundamentos se sua eficácia. Conhecimento [Erkenntnis] capaz de transformar
[...] um páthos (ou um sintoma) em teoria cultural do páthos (ou do sintoma)” (ibidem,
p.318). Nesse movimento, com o suporte de Ludwig Binswanger (1881-1966), quem
conseguiu inverter “o sintoma do pensamento” em “pensamento do sintoma”, na obra do
historiador, Warburg expande a própria noção de sintoma, como um “sinal de doença” para
uma “estrutura da experiência fundamental”, interrogando-o como a “expressão de uma
função total do organismo” (ibidem, p.327). Um deslocamento capaz de transformar a
recepção do termo e de abraçar o conhecimento do que, ainda que venha como um mal, uma
doença, um sofrimento, liga-se irremediavelmente com a vida, encontrando uma forma,
devido ao seu exuberante poder de plasticidade. Basta lembrarmos das histéricas de
Salpêtrière, as quais, nas agonias de seus ataques, nunca deixaram de assumir uma forma, de
encontrar uma forma de expressão, mesmo que ao custo de muito dor, quando, por exemplo,
uma se retorce e assume uma posição durante a qual foi possível produzir uma fotografia
nìtida da sua posição. Nesse campo, diz o autor: “Warburg e Binswanger pensaram em
conjunto sobre o estilo e o sintoma, porque, de acordo com eles, toda esquize do ser sabe
tomar forma, e toda forma tem um pôr em jogo, num ou noutro momento, o campo estético
148
como tal, a construção de um estilo” (ibidem, p.332-333). Por outro lado, pensavam ambos, a
arte era capaz de curar, “uma transfiguração do sintoma”, abrindo aì “uma dialética do páthos
e do éthos” (ibidem, p.333), uma dialética das práticas e das poéticas.
O estilo aqui urdido até então parece advir da compreensão de Binswanger, que o
entendia como “uma forma de vivência estética”, afirma Didi-Huberman (2013b, p.332), ou
seja, concebido como uma forma para a existência, especialmente, dos sintomas, uma forma
que traz à existência sua expressão, uma apresentabilidade a carregar consigo a sua verdade,
uma maneira de colocar no mundo, alterando-o e alterando-se. Pensar a relação entre estilo e
sintoma, diz o filósofo, permitiu a Warburg “reinventar a história da arte”, mais como uma
patologia, pela qual se pode na “construção na loucura” dar lugar à “fundação de um saber
rigoroso sobre a cultura e as formas da sua historicidade” (ibidem, p.334), formulando, assim,
um “estilo epistêmico”, permitindo-lhe ensaiar uma “retração de qualquer afirmação do „eu‟”
e, ao mesmo tempo, reconhecer o “elo fundador entre „conhecimento‟ [Erkenntnis] e
„confissão‟ [Bekenntnis]67” (ibidem). Isto é, a maneira mais própria, ou mais próxima de fazer
a razão e o discurso não esquecerem o páthos (o sintoma) está em engendrar uma maneira de
conhecer falando junto e, ao mesmo tempo, falando com afeto, elaborando um estilo, uma
maneira de olhar o mundo a partir do próprio páthos que é, ao mesmo tempo, uma maneira
impessoal de olhar, confessando-se sem dizer „eu‟”. Confessa-se, poderíamos dizer, pela
emoção (Didi-Huberman, 2013c, mais uma vez, tomando Deleuze, lembra que a “emoção não
diz „eu”), ou seja, por uma comoção (um movimento que se faz junto), que traz sempre algo
ou alguém a mais, caindo juntos até. Ou, como diria Rancière (2014), fazendo uma
demonstração, noção própria de sua política, criando formas coletivas de enunciação.
Nessa perspectiva, o páthos constitui-se como um estilo para a política. Ela se
expressa apresentando-se e alterando-se, na configuração de um saber, pela maneira de olhar
do sintoma. O que ela adquire com isso é um saber mais rigoroso sobre a história e suas
formas de aparição, sempre atravessadas pelas experiências de provação, colocando em jogo
também a própria experiência. A isso Warburg deu o nome de empatia [Einfühlung], uma
maneira de “aproximar o inorgânico [o estranho] de seu próprio organismo, até incorporá-lo a
este” (ibidem, p.337), constituindo uma forma de conhecer que o homem possui, forma esta
que lança mão do tocar, usar e transformar. Empatia, então, designa um processo no qual
formas inorgânicas são incorporadas às formas orgânicas, nas quais a “vida” seria projetada
67
O termo traduz o latim cofessio, “e o verbo de que deriva, confiteor, indica qualquer tipo de pronunciamento
público (cum + fateri, literalmente „falar com‟, „falar junto‟)”. Mas também pode significar uma forma de
agradecimento, ou de louvor. (MAMMÌ, 2017, p.13-14, “Prefácio”, Em: AGOSTINHO. Confissões. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.)
149
68
Didi-Huberman (2003, p.63) ainda diz da empatia como um “certo agir do reconhecimento”.
150
69
Poderíamos aí ver uma relação com a própria noção de força na Fenomenologia do Espírito de Hegel.
Enquanto nessa obra a força opera em prol do Entendimento, a fim de constituir uma unidade suprassensível da
dicotomia deixada pela percepção, entre o Uno e o Múltiplo, aqui, a força, diferentemente está em prol da
própria Sensação (numa espécie de dobra, ou regressão se pensarmos na perspectiva hegeliana), não apenas
como aquela que visa o objeto, mas como aquela que, empaticamente, constitui um saber, por vezes, um saber
corporal, no qual há compreensão, diferentemente do que se dá no capítulo hegeliano. Compreensão da
multiplicidade na multiplicidade e não na possibilidade de um vazio a espera de um preenchimento, ainda que
fosse com devaneios.
151
Temos aí, então, uma espécie de função política da heurística da relação entre saber
e padecer: saber para melhor fazer jus à memória de dor, padecer para melhor fazer jus ao
conhecimento surgido, sem com isso, procurar estetizá-lo, ou melhor, criar representações e
axiomas (do tipo: isto ou aquilo é inimaginável, ou impensável ou inapresentável etc). Saber
apesar do sofrimento é uma forma de conhecer e fazer do saber uma intensidade apesar do
padecer é uma forma de alcançar “um pouco de verdade” desse conhecimento. Tal verdade
não passa por uma idealização ou distanciamento (ao desaparecimento do laço) da dor que
engendra um saber, uma medição dessa distância, “mas nela penetrando de corpo e alma”
(ibidem, p.15-16). Daí a importância da empatia como processo de penetração no
conhecimento. A compreensão, que poderia passar pelo entendimento, é tomada, incorporada,
pela sensibilidade, alterando seu modo, pelo qual, ao invés de constituir um esquema de
representação dos elementos apreendidos, toca-os, entra em relação com eles, manipulando-
os, fazendo da própria experiência um campo aberto possível de ser atravessado pelos mais
diversos fenômenos. Ao invés de capturá-los, experimenta-os como distâncias, como
profundidade e espaço a cercá-los, um trabalho corporal de saìda e contato: “as formas só
existem impuras, isto é, emaranhadas na rede de tudo aquilo a que a filosofia acadêmica
pretende opô-las: as „matérias‟, os „conteúdos‟, os „sentidos‟, as „expressões‟, as „funções‟”
(ibidem, 2013c, p.355). Ao invés de representações, tal modo é produtora de símbolos,
pensado, diz o filósofo francês, por Warburg na perspectiva de Robert Vischer (1847-1933)
como “Proteus multiformes”. Segundo o autor haveria um problema na “inadequação
constitutiva do sìmbolo”. Porém, “onde Hegel via uma falha [...] Vischer veria uma
oportunidade heurística: uma condição de multiplicidade, exuberância, invenção, em suma, de
estilo e historicidade”, constituindo aì sua força (idem, p.356), força política.
A obscuridade que os símbolos podem, então, criar é, justamente, aquilo o que nos
cativa. É pela empatia que entramos em relação com os símbolos, porque esses dão um
“caráter vital” às coisas inorgânicas e aquela faz da relação com tais coisas uma “experiência
estética vivida no presente”. Por isso, “cabe desde então compreender a experiência empática
– esse momento sintomático – como um „contato‟ com os sìmbolos, apreendidos em sua
densidade temporal e seu poder de obsedar e de reaparecer” (ibidem, p.357). A partir dessa
dinâmica, a empatia, como “força formadora do estilo equivalia [...] a pensar nela como força
sobrevivente dos símbolos” (ibidem). Ela é tal força que se movimenta em nós, cativa-nos e
nos coloca no processo de saber, porque já é uma forma de conhecer, mas força heurística da
política, isto é, uma emoção pela descoberta, por buscar o que não sabemos, poder nos
depararmos com não se sabe o que, nem temos intenção de definir (a fim de que o cativar seja
152
superior ao cativeiro) uma norma, um imperativo universal qualquer, a fim de aprender a lidar
com tal obscuridade, ou com tal padecimento, cuja aparição pode vir a nos obsedar. Seguimos
essa imagem (ou objeto), porque nossa compreensão nos lançou nele de corpo, porque
experimentamos a distância, dando profundidade ao nosso pensamento e à relação com o
objeto de cativo. Nesse processo, assumimos sua dor, fazemos do nosso corpo lugar de tal dor
a gemer em silêncio, forma-se em símbolo, inadequado e ambíguo, de uma vida diáfana, ou
seja, um ar que nos atinge da superfície e arrepia nossa pele, ou nos faz chorar. Ainda é uma
obscuridade; é algo que se apresentou, a expressão de uma vida numa forma.
Não há representações nem axiomas suficientes, capazes de dizer ou mostrar um
pouco a verdade do objeto, da imagem. Temos tão somente a dor e a empatia com a dor,
criando suas formas, seus símbolos e apresentando-se a nós, vibrando em busca de uma
cognoscibilidade, pedindo, então, restituição, tanto delas quanto de toda uma história. Elas
nos tocam pela comoção e toca-nos, igualmente, pela sobrevivência dessa dor que é a dor de
muitos, um sìmbolo. “A heurìstica do sìmbolo age em todas as escalas da empatia, tal como a
heurística da empatia age em todos os registros do sìmbolo” (ibidem, p.363). Entre ambos está
a política. É ela que faz desse princípio de abertura e multiplicação, configurador e delirante,
formador e suspensivo, o elemento da operação, do qual poderemos retirar um saber,
encontrar uma verdade, formular hipóteses a fim de nos pôr em movimento. Tal política
configura a heurística como exercício crítico em direção a um modo relacional, à constituição
de uma constelação de conhecimentos, técnicas, atitudes e afetos, operando em conjunto, a
fim de torná-los cognoscíveis, cognoscentes e partilháveis. Enfim, operatórios. É assim que se
torna possìvel trabalhar, como o sìmbolo, “oscilando entre a „apreensão‟ e a „compreensão‟ à
distância. É assim que se chocam – se tocam e se opõem – o empático e o semiótico [...]”
(ibidem, p.366-367). É como ela abre o sentido: significado, sensação e sentimento,
atravessando-se mutuamente, incorporando-se por vezes, chocando-se ao ponto do desgaste
ou da destruição, de tal maneira a produzir uma forma, carregando consigo, pois, o pavor de
sua formulação. Como nos lembra o filósofo, as imagens, repletas de reminiscências, trazem
consigo os pavores sobreviventes, contaminando os símbolos e, consequentemente, os
conhecimentos originados deles. A política configura-se como a forma de fazer justiça a tais
imagens.
Toda essa abertura e multiplicidade, exuberante na sua capacidade de inventar
formas, ganha mais corpo quando, pensando em Warburg, recordamos o seu Altas
Mnemosyne, uma gigantesca constelação de imagens e textos, distribuídos em pranchas, a
partir da qual era possível permutar a disposição de todas elas, a fim de descobrir novas
153
relações impensadas, práticas esquecidas, capazes, por sua vez, de reformular o próprio
pensamento a partir da abertura a novos campos de atividade e novas formas de vida:
“Warburg havia compreendido que devia renunciar a fixar as imagens, assim como um
filósofo precisa saber renunciar a fixar suas opiniões. O pensamento é uma questão de
plasticidade, de mobilidade, de metamorfose”. O atlas aparece-nos como um verdadeiro
“projeto aberto”, a buscar, antes de qualquer coisa, um “desapossamento do pensar”, a fim de
“circunscrever com eles um campo a ser pensado” (ibidem, p.389-391). Cada imagem, cada
objeto torna-se, então, nessa postura heurística, um começo a partir do qual tentamos pensar,
tateando as possibilidades originadas das relações provocadas ou contingenciais. É importante
percebermos que tal trabalho não tem finalidade causal: ele pode surgir de uma queda, de uma
dor, de uma cesura, de um lampejo, de um instante decisivo (para o qual se preparou durante
longo tempo, a exemplo de Proust), de um salto. O “salto é um método: deve-se interpretar o
„encadeamento [manìaco] das ideias‟, em primeiro lugar, como uma heurìstica” (ibidem,
p.396).
Esse tipo de pensamento pode ser tão fugidio, ou veloz, de modo que o que mais
predomina é a “imaginação [...] que o único conhecimento de que ele é capaz – mas no qual é
um mestre rematado – concerne às imagens: é, nas palavras de Binswanger, um conhecimento
estético [...]” (ibidem, p.397), no qual prossegue Didi-Huberman (2013c), a “vida espiritual”
intrinca-se na “vida pulsional”. As imagens fornecem, então, o corpo mais próprio de um
saber patético, porque elas são capazes de gravar um saber fugidio, ou como chamava
Benjamin, configurar o caos num instante e mostrá-lo na sua tensão, no momento mais
perigoso, breve e revelador desse saber, sem com isso reduzi-lo a um significado ou
representação. Ele pode sobreviver na imagem expressamente apresentado em um estilo, mas
não determinado em categorias e axiomas fechados. A imagem permite ao saber sobreviver
em sua abertura, como abertura. A imagem corporifica a política. A heurística, por sua vez, dá
profundidade à imagem; abre nela um lugar para saber e para o saber, enquanto tal saber
ganha o mundo nas relações afetivas e de enunciação surgidas do desenvolvimento de práticas
e formas de alterar e estar no mundo. “Toda imagem parte do corpo e volta para o corpo”
(idem, 2013b, p.346), modo de dizer que a imagem liga-se à política como seu meio de devir-
mundo e, dele é que é capaz de constituir-se, sem, com isso, fechar-se – função da heurística.
imagens” e “voltar a pensar a história” (ibidem, p. 310)70 e voltar a fazer política71. Outro
artista que elaborou pensamento semelhante foi Francisco de Goya (1746-1828), para quem a
imaginação, aliada à razão, seria capaz de produzir suas inquietudes sem abandonar-se ao
“seu pior”, a ignorância e o interesse. Convocar tal relação permite, por sua vez, pensar a
imaginação como ferramenta – “aparelhada, tecnicamente elaborada, filosoficamente
construída – de um verdadeiro conhecimento crítico do corpo e do espìrito humanos” (ibidem,
2011b, p.130-131)72. Como faculdade e como ferramenta, a imaginação aparece como um
modo de conhecer, modo imanente, é preciso dizer, modo heurístico, capaz de ir até os limites
das possibilidades humanas sem com isso produzir um transcendental. “A imaginação não
está abandonada às miragens de um só reflexo, como se crê demasiado frequentemente, mas é
construção e montagem de formas plurais postas em correspondência”, de maneira que, para o
autor, ela não seria um “privilégio de artistas ou pura legitimação subjetivista”, porém, “parte
integrante do conhecimento” (ibidem, 2003, p.151)73.
No corpo dessa vertente, não há como esquecer Kant, para quem a própria noção de
juízo, faculdade própria do âmbito do sensível, não corresponde, não leva a produção de
conhecimento. “A faculdade de julgar estética [...] não contribui em nada para o
conhecimento de seus objetos e, portanto, somente deve ser contada como parte da crítica do
sujeito que julga” (KANT, 2016, p.95). Apesar mesmo desse filósofo propor a
esquematização das formas do juízo de gosto, ele admite a possibilidade de um juízo
determinante (semelhante à faculdade de conhecer) na faculdade de julgar. Porém, isso só se
torna possível a partir de pressuposições. Se tomarmos os autores do início desse trabalho,
instigadores da “arte da invenção”, veremos neles a noção de que, como parte do processo de
conhecimento, há a possibilidade de pressupor certos saberes, ainda que, por hora, não possa
prová-los, ou mesmo demonstrar como se chegou a tais saberes – trata-se de um salto sobre a
causalidade como condição primária para determinar o saber. Isto é, tais saberes foram
figurantes (fizeram figura) de um saber ainda não alcançado, por encontrar sua própria figura
(talvez, uma forma de dizer acaso). A pressuposição é ainda mais determinante em Kant,
porque ela dá azo, não somente à criação de uma técnica da natureza (muito abordada na
primeira introdução, praticamente ausente na segunda e no corpo do texto), ressurgida como
70
Essa citação e a anterior são provenientes do livro Cuando las imagenes tomán posicíon, el ojo de la história,
1, do qual trataremos mais tarde. Traduções nossas.
71
“A imaginação, a montadora por excelência, desmonta a continuidade das coisas, somente para melhor fazer
surgir „afinidades eletivas‟” (DIDI-HUBERMAN, 2015f, p.135, tradução nossa)
72
Essa citação é proveniente do livro Atlas ou le gai savoir inquiet, l‟œil de l‟histoire, 3, do qual trataremos mais
tarde. Tradução nossa.
73
Tradução nossa.
156
74
Vale dizer que tal precaução é o que da filosofia kantiana uma filosofia transcendental e não uma metafísica.
75
“sentimento de inadequação”, diz Kant (2016, p.149).
76
“[...] formulamos essas questões – tais como: qual a finalidade da natureza? – apenas porque nós mesmos
somos seres dotados de finalidade que constantemente designam-se metas e fins, pertencendo, como seres
intencionais, à natureza” (ARENDT, 1993, p.20).
77
“sua superabundante opulência” (KANT, 2016, p.139).
157
trata da espécie. Apenas com a terceira é que surge o sujeito, singular, em relação, não sendo
apenas um tratado sobre outra faculdade, como também um tratado sobre a “sociabilidade”.
Ao introduzir um princípio teleológico a partir da faculdade de julgar, Kant faz entrar aí
também o “princìpio heurìstico” (idem, p.22). Nessa modalidade, um tal princípio regula, mas
nada constitui (KANT, 2016, p.275). A filósofa aponta, aì, uma “eminente significação
polìtica” nessa perspectiva kantiana: ao propor uma faculdade estética potencialmente
universalizante, ainda que não constituidora de saber, para qualquer ser humano, ele estaria
abrindo a filosofia polìtica ao povo. “Como poderia o „prazer contemplativo e a satisfação
inativa‟ ter algo a ver com a prática?, pergunta a pensadora (1993, p.23), mostrando que tal
problemática teria acompanhado Kant até o fim de sua vida. Ao contrário de muitos filósofos,
os quais tentaram sempre eliminar a política do corpo do povo, Kant estaria realizando o
movimento restitutivo, pressupondo a participação integral, e de certa forma, sensível, o que
faz da Crítica da Faculdade de Julgar a experimentação (a prova) de que é possível encontrar
um comum (pressuposto), a partir de que seria possível constituir comunidade78. A terceira
crítica funciona, não apenas como intermédio entre a forma de saber o universal e a forma da
prática moral particular, criando uma parte entre ambas, mas também como lugar de
sociabilidade entre os seres humanos79, lugar de experiência e experimentação do comum da
existência, pelo prazer ou desprazer e, especialmente, pela imaginação80.
78
“Kant declara que a tarefa de avaliar a vida com relação ao prazer e ao desprazer – tarefa que Platão e outros
pretenderam que fosse apenas do filósofo, sustentando que a maioria está bastante satisfeita com a vida como ela
é – pode ser desempenhada por todo homem comum, de bom senso, que tenha refletido sobre a vida”
(ARENDT, 1993, p.39).
79
“no juìzo estético de reflexão é a sensação produzida no sujeito pelo jogo harmônico das duas faculdades
cognitivas da faculdade de julgar, a imaginação e o entendimento [...] constituindo uma relação [...]” (KANT,
2016, p.39)
80
“É preciso observar que, de um modo que nos é inteiramente incompreensível, a imaginação pode não apenas
rememorar ocasionalmente, mesmo depois de um longo tempo, os signos relativos a certos conceitos, mas
também reproduzir a imagem e a figura do objeto a partir de um inexprimível número de objetos de diversas
espécies [...] e quando a mente se pões a fazer comparações, ela pode até, ao que tudo indica efetivamente
(mesmo que insuficientemente par a consciência) superpor uma imagem à outra e, através da congruência de
muitas da mesma espécie, obter um meio-termo que sirva de medida comum a todas” define Kant (2016, p.130,
grifos nossos). Nesse sentido, mostra Mora (2001, p.1445), o filósofo vai além do “reino da razão teórica”,
produzindo uma síntese entre o diverso da intuição para a possibilidade de conhecer, sem ser o próprio
conhecimento. Nesse sentido, ela está além das noções de Bacon e Descartes, por exemplo, associada mais à
fantasia e à memória. Voltaire (2015, p.337), define a imaginação como “o poder que todo ser sensìvel
experimenta em si de representar em seu espírito coisas sensíveis. Essa faculdade depende da memória”. Ela
seria ainda, o que permitiria o homem a “compor ideias”, ao figurar o que não está presente,sendo dividida em
duas: uma passiva, funcionando para “reter impressões” e outra ativa, unida ao entendimento pelo esforço da
reflexão (idem, 339). O excesso em Kant descansa, então, na possibilidade de realizar comparações para criar
uma medida comum. Percebamos que a definição kantiana assemelha-se muito às práticas desenvolvidas pela
frenologia. O exemplo dado por Kant da “estatura do homem belo”, mostra que a imaginação é concebida como
uma média idêntica das diferenças; pelo que, tocando na semelhança, descarta a diferença. Sartre (2017, p.19),
por sua vez, faz da imaginação “um ato sintético que une um saber concreto, que não tem caráter de imagem, a
elementos mais propriamente representativos”, sem constituir, para tanto em intermediário. Ela mais se liga às
imagens, que são coisas concretas no mundo, “consciência de alguma coisa” (idem, p.137).
158
81
Todas as citações são traduções nossas.
82
O autor retorna a esse problema, na sua obra Cascas (publicação em 2017a), partindo de restos retorna a
Auschwitz, mais precisamente a Birkenau, onde ficava um dos crematórios. O que encontra, além de um
trabalho do tempo sobre si mesmo, são flores, cascas, alguns vestígios de construção, a cerca nova...
160
Tudo isso, por sua vez, também nos previne a uma tentativa de sacrificar o saber às
“falsas divindades”, tornando-as fetiches. Ao invés disso, devemos tomá-las como fatos, isto
é, “gesto concreto, político, ato de fazer cladestinamente, desde o interior do campo, quatro
fotografias do extermínio para transmiti-las ao exterior”, fazendo delas tentativas de
representação visual (ibidem, p.96). Isso faz com que, no lugar de pensarmos as imagens
como “substitutos atraentes” do extermìnio, possamos tomá-las como “pontos de contato”.
No fim, isso significa que seu “valor de verdade” está atrelado a seu “valor de uso”, ou seja,
as imagens não são, intrinsecamente, nem fetiches nem meros fatos (ibidem, p.98). O apesar
de tudo coloca-as, portanto, no plano da relação, ligando-as à história e ao pensamento e, ao
mesmo tempo, impedindo-as de uma postura, ou uso, totalitário, fazendo delas “imagens-
fratura”: “elas nem são a ilusão pura, nem a verdade toda, mas este embate dialético que agita
junto o véu com sua fratura” (ibidem, p.103). A pulsação dialética de tal imagem-fratura
rompe os limites, porque, como uma brecha, produz uma “perturbação dos territórios”, aquele
em que não se poderia dizer ou olhar, do indizível e do inimaginável (ibidem, p.105). As
imagens fraturam, adentram esse território, põem questões, fazem ver alguma coisa, mesmo
que não seja tudo. Essa imagem total não existe realmente. Porém, as quatros fotografias não
procuraram ser tudo, “mas se se olha apesar de tudo um pouco mais atenciosamente, então,
„esses grãos são interessantes [...]isto é, que a fotografia pode perturbar em nós a percepção
164
que temos do real, da história e da existência‟” (ibidem, p.107). O apesar de tudo dispõe-nos,
por sua vez, a duas posturas: a de um “saber sem fim: interminável aproximação do evento, e
não sua apreensão numa certeza revelada” (ibidem, p.109); também, a de uma heurística, pela
qual “resiste a esse poder [de encontrar uma resposta] pela única potência heurística do
singular” (ibidem, p.225).
Nem certeza revelada nem resposta encontrada, mas um constante aproximar e por
em processo o saber, pois “nada podemos aprender de um olhar paralisado e petrificado, de
uma „imagem absoluta‟”. O que podemos fazer é aprender a lidar com o dispositivo “para
saber o que fazer com nosso ver e como nossa memória” (ibidem, p.222). Podemos construir
imagens-escudos, isto é, aprender a relacionar esses fragmentos, elaborar montagens para
aprender a proteger-nos, preparando-nos criticamente e criando imagens que nos ajudem a
ver, ou seja, máquinas de olhar para saber, e para saber lutar contra os absolutos paralisantes.
Imagem-movimento, imagem-fratura, imagem-sintoma, imagem-malícia, imagem-crítica,
uma proliferação de imagens e formas em processo, imagens que se abrem e que liberam a
atitude heurística. Enfim, imagens imageantes, imagens que proliferam a imaginação, essa
faculdade de saber, potência heurística, a nada revelar nem resposta encontrar, mas capaz de
associar, comparar, tornar-se empática, implicar-se corporalmente com a liberdade de criar, de
relacionar, sem fundamentos axiomáticos. “Imaginar apesar de tudo”, diz Didi-Huberman
(2003, p.225), ou seja, fazer da resistência e da potência os valores do movimento do saber.
Aqui a heurística aproxima-se muito de uma constelação política, operando tanto como uma
vontade de saber quanto como resistência para saber e do saber. Isso não deixa de
reivindicar para si uma plasticidade (a potência de se formar), uma figurabilidade (a potência
de apresentar-se carregada de tempo histórico a fim de conectar-se com o agora) e de uma
situação (potência de um tempo presente pela qual se intensifica a fim de exigir restituição). E
ela o faz pela imaginação, com tudo aquilo que lhe concerne na qualidade de faculdade,
prontas a colocar em questão as ordenações, os próprios saberes instituídos (a tradição) e os
sentidos surgidos das relações. Para quem luta, talvez, formar imagens, escrever poesia,
imaginar outros usos seja o que se possa emitir ao mundo, salvando sua existência, um pedaço
dela, numa ardente imagem cuja fragilidade desafia, muitas vezes, a aposta realizada.
Como configurar uma política, no corpo dos textos didi-hubermianos, que exige, por
sua parte, a empatia, uma forma de compreensão patética, ou seja, não desconsidera o páthos
165
a envolver o próprio sujeito. Diz o pensador, por exemplo: “[...] questão epistemológica: não
se separa a observação do observador ele mesmo” (DIDI-HUBERMAN, 2003, p.198). A
empatia abre o próprio saber às implicações do envolvimento dos corpos dos sujeitos. A
sobrevivência aparece aí como problema político de transmissão. A faculdade da imaginação,
por sua vez, abre o saber ao ainda não, ou ao poderia ter sido desse saber, não ao que e como
conheceu ou ao era, mas à potência do saber diante da possibilidade de desaparecer. Como
Kant já estabeleceu, o sensível é condição a priori dessa faculdade. Ela existe nesse plano de
composição; a sensibilidade, o sentido e o sentimento são seu território, o campo e fonte de
trajetos. A resistência é o modo de operação nesse plano. Sobrevivência e resistência
configuram a constelação da política no plano de superfície, como a empatia a faculdade da
imaginação configuram o plano subterrâneo dessa mesma configuração. A heurística aparece
aí como o princípio, a noite a envolver esse plano. É o que faz com que as estrelas se
destaquem, o fundo que lhe dá e garante a profundidade e a distâncias necessárias para
formarem-se. Na composição dessa constelação política, um novo elemento ingressa, sem
perder sua relação de aprofundamento com a heurística. A tomada de posição configura o
plano subterrâneo sobre o qual se processará a montagem. Trataremos, a partir desse
momento, a refletir sobre esse subterrâneo, por assim dizer, a partir do conjunto de ensaios
intitulado L‟œil de l‟historie, até o momento composto por seis volumes, o conjunto mais
visivelmente implicado politicamente. Desses seis tivemos acesso a cinco, o que comporá o
corpus desse capítulo. O primeiro da série é Quand les images prennent position, L‟œil de
l‟historie 183, (publicação em 2008), dedicado a Bertolt Brecht. Aqui, interessa-nos a situação
peculiar do dramaturgo alemão e a forma como isso implicou a sua produção, durante os anos
de exílio.
A tomada de posição aparece nesse texto como a heurística na constelação política,
tanto como potência de saber quanto como um procedimento e processo desse mesmo saber,
mais do que um mero princípio, isto é, como uma atitude aberta, capaz de colocar um ato
diante da potência de saber, um ato em relação a essa potência, desdobrando-a. A tomada de
posição em Didi-Huberman (2008b) adquire um sentido muito próximo disso, na medida em
que “para saber há de se tomar posição”. Temos, então, um deslocamento, mais do que uma
parada: significa “afrontar algo”, o que já torna qualquer posição “relativa”. Porém, prossegue
o autor, “devemos contar com tudo aquilo de que nos aportamos, o fora-de-campo que existe
atrás de nós, que quiçá negamos, mas que, em grande parte, condiciona nossos movimentos,
83
No nosso caso, tivemos acesso à versão, na época de redação, em espanhol: Cuando las imágenes tomán
posicion, el ojo de la historia 1. Todas as citações são traduções nossas.
166
portanto nossa posição” (ibidem, p.11). Posicionar-se é determinar um lugar, sem esquecer
sua relação com outro lugar. Tomar posição é, igualmente ainda, “situar-se no tempo [...], é
desejar, é exigir algo, é situar-se no presente e aspirar a um futuro”. Sem esquecer, é
importante dizer, que há um “fundo de uma temporalidade que nos precede, nos engloba,
apela a nossa memória até em nossas tentativas do olvido, de ruptura, de novidade absoluta”.
Tomar posição, no espaço e no tempo, pode ser, ao mesmo tempo, a operação de um acaso
(digamos um golpe a ameaçar a vida de quem se vê obrigado a exilar-se) e de uma precisão
(digamos fazer do lugar do exílio a exata distância para permitir ver a história desdobrar-se no
pior, a partir do que se pode realizar uma crítica virulenta e sagaz), mas também significa de
uma resistência: uma “vontade polìtica de romper barreiras”, e “uma propensão a erigir novas
barreiras”, todas em relação ao nosso desejo de saber” (ibidem, p.11-12). Acumula-se, então,
uma contingência (não requisitada, até mesmo perigosa), uma atenção (reconhecimento do
tempo oportuno aliado a um saber [-fazer]) e uma prática (para encontrar ou criar
saídas/rupturas).
A tomada de posição é também diante do saber, o que nos leva a “implicar” em dois
espaços e duas temporalidades: em relação ao primeiro, pode-se estar muito perto, ao ponto
de aproximar-se, ou muito longe, ao ponto de uma separação, o que supõe “mover-se e
assumir constantemente a responsabilidade de tal movimento [...] supõe um contato, mas
supondo-o interrompido”. Quanto ao segundo, trata-se de “implicar-se”, isto é, de “apontar, ir
ao miolo, não andar com arrodeios” e “apartar-se”, isto é, para “saber como vai seu trabalho”,
ainda que violentamente ou semelhante a um pintor, momentaneamente, para ver a obra antes
de continuar, ou como uma dança, um ritmo84. Uma verdadeira dialética, em que tomar
posição e saber se instauram, na perspectiva aberta de estabelecer um procedimento e um
processo para saber. Essa era a situação de Brecht, levado ao exílio, onde encontrou a
distância necessária para se aproximar criticamente e implicar-se nesse processo. “Apesar das
dificuldades, incluídas as tragédias cotidianas, [Brecht] conseguiu fazer de sua posição de
exílio um trabalho de escritura e de pensamento, uma heurística da situação pela qual
atravessava” (ibidem, p.14). A heurística aqui empregada faz da posição (esse lugar de
84
“Rhythmós: liga-se a rheîn [escorrer, fluir] (o que é morfologicamente justo, mas por um atalho semântico
inadmissìvel, que Benvenistes desmistifica): „movimento regular das ondas‟! Ora, a história da palavra é bem
diferente. Origem: antiga filosofia jônica, Leucipo, Demócrito, criadores do atomismo: palavra técnica da
doutrina [grifo nosso]. Até o período ático, rhythmós não significa nunca „ritmo‟, não é aplicado ao movimento
regular das ondas. O sentido é: forma distintiva, figura proporcionada, disposição; muito próximo e diferente de
schêma. Schêma = forma fixa, realizada, colocada como um objeto (estátua, orador, figura coreográfica). Schêma
≠ forma, no instante em que ela é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluìdo, forma daquilo que não
tem consistência orgânica. Rhythmós = modelo de um elemento fluido (letra, peplo [túnica], humor), forma
improvisada modificável.” (BARTHES, 2013, p.15)
167
85
Noção duchampiana de uma passagem decisiva mas imperceptível; um passo que decide entre a vida e a
morte, a exemplo do passo do toureiro. Ver texto sobre Israel Galván em Didi-Huberman (2013d).
168
que se há padecido, como constituir um logos – o fazer-se uma categoria de espécie, uma
ideia, um eidos – com o próprio páthos do momento?”, pergunta o filósofo (2008b, p.30) –
questão que o obseda sempre, desde Invenção da histeria (como dar uma forma à dor? Como
fazer da dor uma forma?) e atravessa toda sua obra, até no ensaio seguinte de L‟œil de
l‟histoire, ele busca um modo de elevar a cólera ao pensamento e esse à altura daquele.
Como dar uma forma a um páthos, sem, com isso, reduzir sua potência subversiva e
padecida, ou seja, afetiva? Como fazer isso com ética, enfim? Em Pensar debruçado, tal
condição se materializa. Se a montagem de imagens e textos aparece como uma alternativa
possível, precisamos pensar tal uso. Se em Que emoção! Que emoção?, o filósofo levanta a
questão do uso política das emoções, podemos nos interrogar, antes, sobre o uso das emoções
como política. Em um documentário meio-biográfico, meio-impessoal (isto é,
historiográfico), Walter Sales (de família de banqueiros rentistas no nosso país, não nos
esqueçamos), no final de No intenso agora (2017), mostra três velórios, todos em 1968: um
na Paris dos levantes de maio, onde um estudante morreu em decorrência de um acidente,
única morte registrada; um na antiga Tchecoslováquia (hoje, República Checa), de um rapaz
vítima do regime de repressão, e; um no Brasil, de outro estudante, vítima da ditadura civil-
militar. Duas coisas chamam a atenção do documentarista: primeiro, a rápida associação
dessas mortes às bandeiras dos movimentos políticos de cada país e, nos casos francês e
brasileiro, o fato de não aparecer ninguém chorando a morte dos rapazes (no caso brasileiro,
na verdade, destaca Sales, no canto da cena da gravação havia uma moça que logo desaparece
do foco; no caso francês, ninguém). Associar a morte de alguém a um movimento significa,
continua o cineasta, a possibilidade de uma segunda morte em caso de fracasso do
movimento. Significa, também uma apropriação indevida de uma singularidade em nome de
um valor político facilmente cooptado pelo espetáculo (generalização, desencarnação,
conversão numa frase, pensamos) – a morte passa a ser espetacularizada pela apropriação do
discurso político que se faz dela, por melhor que possam ser as intenções. Nesse sentido,
podemos pensar que, para Sales, há um excesso de algumas experiências que só podem
aparecer (fazer sua aparição) e manter-se livre da captura pela sociedade do espetáculo se for
capaz de exceder e romper o discurso.
A emoção parece ser esse modo. Como enquadrar um choro86, como fazer discurso
de alguém que, mesmo diante da câmera, chora, comove-se com a dor do outro, incapaz de
articular qualquer discurso, mas ser já a própria aparição de um dizer, de uma linguagem a
86
Barthes (2013, p.238) escreveu, por exemplo, em nota de rodapé: “Quem escreverá a história das lágrimas?”,
acrescentado ao que disse no corpo do texto: “Falta-nos uma história dos corpos”.
170
qual a todos comunica? E pode comunicar a dor, o desespero e o horror? O choro, no caso, do
jovem tcheco, a comoção com sua morte, politicamente, foi mais eficiente do que os discursos
articulados, ainda que revoltados, dos franceses e brasileiros. Como bem nos ensinou Butler
(2015), o luto é parte da nossa constituição de sujeito, tanto individual quanto social. Sem
esse ritual, sem esse direito, qual valor assumiria essa vida? Seguindo Sales, as mortes do
francês e do brasileiro foram claramente diminuídas pela associação, promovendo mesmo
uma espécie de segunda morta, graças à apropriação de suas mortes pelo espetáculo e pela
ausência do processo de luto. A preocupação de Didi-Huberman (2008b) é assaz legítima. A
possibilidade de que as emoções, a dor, o sofrimento do outro, tornem-se um espetáculo vazio
de uma distância a alentar-nos (“ufa! Não fui eu, não foi minha pele, meu gênero, meu lugar,
meu desejo...”) diante dessas mortes. A elaboração, então, de uma forma perpassa um trabalho
ético de abertura e debruçamento, isto é, de envolvimento do próprio corpo no processo de
saber. Brecht está numa posição, nesse aspecto, singular: um exilado, ou seja, um
estrangeiro/estranho no país de outros, constantemente lembrado de sua condição (basta
lermos Conversa de refugiados), mas que, justamente por isso, permite-lhe desenvolver
técnicas e aprender determinadas coisas que o permitiriam sobreviver e resistir, sem esquecer
o sofrimento de todo esse processo de saber – no fundo a atenção à insignificância revela-nos
que cada uma delas é um enigma mortal. Quem não enxerga é por que a criou ou mesmo já
está submetido/acostumado. O diário parece, então, providencial. É, ao mesmo tempo, uma
forma particular de posicionar-se no mundo e uma forma de particularizar o mundo no qual
se toma posição. Ele é tanto um trabalho, consistindo em montar os textos e imagens “que
recorta e pega, aqui e ali, no corpo e fluxo de seu pensamento associativo”, quanto uma
cesura, consistindo em desmontar as associações usuais dos textos e imagens tomadas no
diário. Poderíamos dizer, política heurística, com
que é mostrada e, talvez, mostre-se. Tratava-se de um esforço contínuo e preciso para saber o
máximo possível, a partir do qual poderia tomar posição, tornar-se crìtico. “Em resumo se
nunca trabalhava sem tomar posição, nunca tomava posição sem buscar saber, nunca buscava
saber sem ter diante dos olhos os documentos que lhe pareciam apropriados”. Um processo
que não concluía aí numa modulação da contemplação. “Porém, não via nada sem
desconstruir e logo remontar por sua própria conta, para expor melhor o material visual que
havia escolhido examinar” (ibidem, p.34). Um movimento aqui é muito importante para o
saber e, por sua vez, para a política no corpo desse processo: não há saber verdadeiro, saber
concreto, ou talvez melhor, saber capaz de fazer justiça ao sofrimento de uma guerra, senão
pela investida no processo de saber. Saber não apenas como contemplação, mas saber como
produção, e aqui, mais próximo, saber como poiesis, como poética. De alguma maneira, todos
os que buscam saber, acabam por elaborar uma poética do saber, uma produção de saber sem
fim para um resultado determinado, que não, talvez, a da potência desse saber e de saber.
Nessa poética, não apenas o discurso (o racional) toma parte, mas integra-o à própria
imaginação, a fim de que sua elaboração seja também uma “antecipação”.
Ora, lembrando Bacon mais uma vez, junto a seus aliados no início desse capítulo,
antecipar as coisas é uma das características da heurística, dessa arte da invenção. Antecipa,
não como uma “palavra profética”, mas sim como alcance da própria razão, uma razão
poética. Em Brecht, tal procedimento é a montagem de imagens. Sua escolha pelas imagens
não é casual: “um documento é mais difìcil de refutar que um discurso de opinião” e, nesse
processo, não esquecia o mote pregado em seu quarto: “a verdade é concreta”, de maneira
que, “para saber há que saber ver” (ibidem, p.41). Nesse âmbito, ver não é simplesmente por
diante dos olhos. “Um documento encerra, ao menos, duas verdades, a primeira das quais
sempre resulta insuficiente”. A segunda, todavia, é mais profunda. Tal processo funda-se
sobre uma “arte da memória” (ibidem, 41-43). Quer dizer, o trabalho de Brecht, com o diário,
e depois com o ABC da guerra, tornaram-se um “trabalho de anamnese” (ibidem, p.40) – a
própria relação da imaginação com a memória é retomada no autor. Aqui, a obra do
dramaturgo está mais próxima da perspectiva platônica do que da arte da invenção de Bacon,
uma tentativa, justamente, de escapar àquela abordagem. Talvez, o que marque uma diferença
em Brecht, de modo a abrir a relação, seja pensar tal trabalho de rememoração no sentido
freudiano de reminiscência, como um resto presente a determinar, por intensidades, o valor do
que chega do passado, na urgência de dar sentidos presentes – um trabalho de figurabilidade.
Isto é, “uma polìtica no presente, embora seja construção do porvir, não poderá saltar o
passado que repete ou rechaça (as duas coisas costumam ir juntas)” (ibidem, p.43). Não se
172
trata meramente de uma recordação do que foi, uma lembrança do que já se sabia, mas de um
rememorar a fim de compreender o próprio presente, a partir do que se pode tomar uma
posição mais precisa. Criar figuras figurantes capazes de atualizar e transmitir essas
memórias. Uma política das imagens como processo da política.
Então, em seu trabalho, o artista elabora uma “dupla propedêutica: ler o tempo e ler
as imagens, donde o tempo tem uma oportunidade de ser decifrado”, na mesma medida em
que se elaborava um esforço de “legibilidade das imagens”, isto é, distanciá-las dos seus
“clichês tanto linguísticos quanto visuais” (ibidem, p.43-44). O esforço de abrir as
possibilidades de olhar e analisar as imagens fez com que Brecht montasse-as, recortando e
juntando a elas um “comentário tanto paradoxal quanto poético”, a fim de “desconstruir a
evidência visual ou o estereótipo” (ibidem, p.45). Nesse sentido, sua tomada de posição torna-
se uma recomposição formal no seu trabalho – uma não vai, não funciona sem a outra. A
montagem não apenas aparece como uma “linguagem em imagem do acontecimento” como
também “interroga nossa capacidade para saber ver hoje os documentos de nossa história”
(ibidem). Interroga, então, nossa capacidade e forma de saber. Os documentos e imagens
sozinhos não são capazes de nos mostrar, ou melhor, de nos fazer saber a história, não porque
sejam únicos ou fragmentados, mas porque não nos oferece a possibilidade dialética de vê-los
em relação, em choque com outros documentos e imagens. Pois, há um saber possível aí, um
saber da relação, um saber dessas imagens no mundo. Isso não elimina nem é necessariamente
mais profundo do que uma imagem sozinha é capaz de dar se a olhamos verdadeiramente. Ela
apenas aparece entretecida numa cadeia operatória a colocá-la num movimento de saber que
permite desdobrar seu não-saber e de levá-la a outras relações insuspeitadas, como se a
imagem entrasse em vertigem, desorientada de si, e reorientada pelo entorno que a envolve.
Uma tomada de posição, assim dialética, implica a exigência de haver alguma outra
coisa, para que haja relação. Em Brecht, uma tomada de posição implica também uma tomada
de palavra, o que implica em saber escolher também o que e o como dizer, a fim de responder
a uma questão ética: “Como não ser imoral em sua poesia, „quando a moral de uma sociedade
se torna (tão) associal?”. Para responder a tal questão, o poeta alemão resolve retroceder,
numa espécie de “anamnese estilìstica”, ao fazer uso da epigrama para provocar em “cada
placa [do ABC da guerra] um surpreendente conflito temporal”. A epigrama, utilizada pelos
gregos, é um “estilo funerário”, um conjunto de versos gravados no mármore das sepulturas,
de modo que “só cobra seu sentido em seu valor ético”, operando juntamente “simplicidade e
variação”, o que, para Brecht, permitia a acuidade com a palavra, transformando-a em “força
de concentração” e em “„caráter portátil que a convertia em arma‟, uma verdadeira arma
173
poética contra toda política das armas” (ibidem, p. 52-53). A epigrama alcança, diz Didi-
Huberman (2008b, p.54), ainda um “valor dialético”, isto é, “um processo poético de espera e
esclarecimento, de significado em suspenso e explicação adjunta” na época da ilustração, de
forma a estar “articulado na história”. Então, conjugado às imagens, a epigrama lançou a
relação no tempo, fazendo do tempo o modo valorativo de sua relação, lembrando que a
imagem ali é a memória de uma morte a conclamar seu significado, seu sentido e, ao mesmo
tempo, faz a elegia dessa memória como presente reminiscente ainda não esclarecido.
A montagem torna-se, assim, a suspensão temporal desse sentido e desse mesmo
tempo: uma imagem dialética. Isso significa, por sua vez, a abertura desse sentido e desse
tempo à reflexão; a capacidade de fazer da imagem uma experiência temporal aberta ao jogo
das possibilidades de sentidos surgidos das relações entre as imagens e os textos respectivos,
mas também das imagens com as outras imagens e dos textos com os outros textos. O ABC da
guerra torna-se, então, um “informe poético”, podendo ser pensado sobre seus dois registros:
o informe que informa, a informação sobre a guerra, e também, o informe que coloca a forma
em movimento87. Informação e deformação, informação e transformação; uma “travessia
cronológica” e uma travessia no próprio corpo do tempo (ibidem, p.55). Tal obra adquire, por
um lado, um “valor acusador” daquele que denuncia o horror, não só da guerra mas aqueles
que a promovem (os “todo-poderosos, polìticos, ditadores”), como adquire, por outro lado,
um valor de “empatia”, a de “situarmos cara a cara com a história atroz de uma destruição
organizada” (ibidem, p.57-58). Nesse sentido, Brecht conseguiu ferir os enquadramentos,
verdadeiros clichês visuais e linguìsticos, de uma “guerra gloriosa”, de uma guerra com seus
heróis. Nesse âmbito, Susan Sontag (2003) em Diante da dor dos outros presta-nos um
valoroso esclarecimento formal. As imagens que nos chegaram de tantas guerras, usualmente
mostravam os aliados em situação de vitória para regozijo de sua população, ou em
sofrimento quando queria alcançar o suporte moral e comoção de toda nação. Elas eram
utilizadas a partir de um certo clichê – uma função determinada unicamente com vistas a um
fim – para alcançar um sentido determinado, o que, por um lado, fez com que nos chegassem,
cada vez mais imagens dos horrores, e, por outro lado, nos faltassem cada vez mais imagens
desses mesmos horrores. Isto é, adquirimos acesso incomensurável a muitos clichês e, ao
mesmo tempo, somos privados de imagens que os contradigam, capazes de contar outra coisa.
Os clichês embotam a riqueza das imagens. Com suas representações já instituídas e
domadas, a princípio, pois nada é totalitário quando alguém se dispõe a olhar com atenção e
87
Ver Didi-Huberman (2015e) na parte III desse trabalho.
174
calma, mesmo esses clichês. Sempre houve um gigantesco esforço em controlar, espacial (a
circulação das imagens) e temporalmente (a velocidade de acesso), as imagens e textos que
confrontam os clichês. Um exemplo recente são as imagens vazadas de Abu Ghraib,
sistematicamente desmentidas, quando não limitadas às atividades de alguns indivíduos
“desajustados”. Além de um controle, ainda se intenta numa profunda desmobilização da
capacidade de olhar, fazendo com que, quando tais imagens nos chegam, nada consigamos
dizer, paralisando-nos como o olhar da Medusa. Todo um procedimento de desmobilização.
Brecht e Didi-Huberman respondem com uma mobilização do trabalho sobre os
procedimentos. É preciso transformá-los em máquinas de guerra, a exemplo do que faz
Harum Farocki88. Brecht mostra, contudo, que, a depender de um trabalho diante das imagens
(mesmo aquelas que nos parecem as mais inofensivas), toda imagem tem a potência política
de perturbação. No final, qualquer imagem, dando-lhe tempo, é perturbadora. Basta ser capaz
de elaborar “uma forma de expor como certos espaços constroem certos poderes, destinados a
destruir outros espaços” (ibidem, p.60-61). Com isso, todas as imagens convertem-se,
mostrando ou não, relacionada diretamente ou não, em “um poema em imagem desse cìrculo
infernal”. O sem-sentido disso parecia tão evidente, a ponto de Brecht ter decidido incorporar
à obra uma imagem com a “função de documento do sem-sentido, o encontro sobre uma mesa
qualquer, de um guarda-chuvas e duas muletas, uma roda gasta e uma prótese de perna, um
moedor de café e algumas granadas”, juntamente com sua epigrama, sem transformá-lo em
poesia (ibidem, p.65-67).
O princípio da montagem opera, assim, na imagem, a fim de colocar em relação
“imagens mais esperadas (Hitler em companhia de Goebbels e de Göring) junto com as mais
inesperadas (documentos do sem-sentido)” (ibidem, p.66). Nesse conjunto trabalha a “forma
épica”, uma forma que aì serve como “princìpio heurìstico” e “modo de observação”
histórico, pois, com tal forma Brecht “não se contenta com seguir os acontecimentos da
guerra tomados cronologicamente de seu desdobramento”. Ele pensa, muito mais, na criação
de uma “rede de relações escondidas por trás de tais acontecimentos, “uma extensão virtual
que pede ao observador, simplesmente – apesar de nada haver de simples nesta tarefa –
multiplicar heuristicamente seus pontos de vista”, ou seja, tal rede torna capaz de fazer dessas
imagens e textos “um vasto território móvel, um labirinto a céu aberto de desvios e limiares”
(ibidem, p.69-70). Se, continua Didi-Huberman (2008b, p.70-71), a forma épica “expõe as
transformações “em curvas” a montagem “revela as descontinuidades que operam dentro de
88
Didi-Huberman (2012d e 2015i)
175
todo acontecimento histórico”. Uma obra, portanto, de desvios e descontinuidades, uma rede
relacional a tornar suas possibilidades de sentido polivalentes e diversificadas. Isto é, todo um
plano de tomadas de posição, não somente quanto ao conteúdo (imagem e epigrama), mas,
igualmente, quanto à forma (épica e montagem). Para o dramaturgo, a forma épica
funcionaria como uma “tomada de posição na história das formas porque articula
explicitamente uma tradição antiga com as mais recentes técnicas de montagem
cinematográfica, radiofônica e teatral” (ibidem, p.71), ou seja, fazer chocarem-se os tempos
para produzir novos sentidos, ou mesmo rememorar aqueles forçosamente abandonados.
Nessa perspectiva, tomar posição significaria, “tomar consciência” e “tomar forma”, através
de um sistema de interrupções, a fim de “desatar as articulações até o limite do possìvel”, a
operação de uma atitude política diante dos quadros históricos e das próprias formas artísticas,
bem como diante do próprio tempo (ibidem, p.72).
Cada elemento aí presente faz com que a própria noção de princípio seja perturbada
– nada orienta, nada aponta, nada funda por si mesma ou apresentam uma origem comum.
Qualquer finalidade pode ser concebida a partir da função de cada objeto em relação aos
demais e ao todo (incluìdos aì tìtulo e nome do autor). Mesmo “Brecht” como elemento
constitutivo da montagem adquire um valor anárquico, porque também sem fundamento. Ele
está na mesma posição que os demais – inclusive cada uma das letras das palavras nada
176
garantem, apenas funcionam, ainda que seja esse nome a forma um plano de composição
celeste arregimentador da composição dos demais, articulando-os numa formação que dá
novas funções e sentidos aos objetos. O fundo não é a noite, mas a própria mesa de
montagem, com suas penumbras – o que sustenta e dá corpo (peso) aos elementos como
fundo, ainda que tudo parece sustentado sobre o abismo.
Essa atitude seria aquela da desmontagem-remontagem, numa postura imanente,
“cujos elementos tomados do real induzem [...] um efeito de conhecimento novo”, não
encontrado nem na “atemporal ficção” nem na “factualidade cronológica dos feitos da
realidade”, operando com “condições de experimentação”, cuja “impureza inata” revela “a
incompletude, o „caráter contraditório‟” da própria historicidade (ibidem, p.73-74) – trabalho
semelhante ao de Eisenstein, para quem a factualidade não era suficiente. Sempre seria
preciso o trabalho de (re)construção dos fatos, em vista de funções (tomadas de posição, de
consciência, páthos...). A impureza aqui, bem própria dessa política da tomada de posição,
leva-nos a conceber as relações formadas como um trabalho contra qualquer intenção de
hierarquização, sacralização e ascese da história e do próprio saber. Tomar posição é
envolver-se num lugar a partir do qual pontos de fuga se formarão; fronteiras e limiares serão
formulados e caminhos traçados. Lugares de passagem, lugares por onde se movimentar,
ainda que se habite neles. A tomada de posição significa a posição como movimento no
sentido de tomar de assalto, ocupar e resistir às investidas contra a retomada. A própria
experiência está imiscuída nessa relação. Isso, porém, não significa a determinação perene de
um axioma, porque o lugar está relacionado com uma decisão, com um aspecto patético de
sua determinação. Ou seja, a cada vez que o sujeito busca conhecer é preciso determinar um
novo lugar, um novo aspecto, uma nova posição. No movimento mesmo em que a montagem
coloca o montador, a tomada de posição pode ser exigida a cada novo elemento, a cada novo
conhecimento inventado numa relação. Esse processo demanda do sujeito a capacidade de
saber olhar, e mesmo, de aguçar seu olhar para saber. Mas nunca o livra do risco de ser
tomado nesse processo.
A fim de abarcar toda a complexidade, Brecht opera por uma tomada de distância.
Segundo ele, é preciso distanciar-se para mostrar. Mas, não para se colocar a salvo da situação
e sim para “dar-nos acesso às diferenças” (ibidem, p.76). O distanciamento buscado torna-se,
pois, um efeito: “se tratava, antes de tudo, de construir os meios estéticos de uma crítica da
ilusão, quer dizer, abrir no campo dramatúrgico o mesmo gênero da crise da representação”
que já se achava em tantas obras da época, de Eisenstein a James Joyce. Criticar a crise não é
simplesmente reaver o lugar do que está em crise, mas aprofundar a crise, a qual, para o
177
dramaturgo alemão, só acontecia pela distância, que mostra (ibidem). “Mostrar que se mostra
não é mentir sobre o estatuto epistêmico da representação: é fazer da imagem uma questão de
conhecimento e não de ilusão” (ibidem, p.77). Fazer da imagem questão de conhecimento não
quer dizer, necessariamente, torná-la legível, convertê-la em texto ou discurso, mas muito
mais, fazer dela um paradigma de saber, isto é, olhá-la como uma forma a ensinar-nos a saber,
e uma disposição de conteúdo que nos olha como a convivência, ainda que tensionada, de
saberes e não-saber; um plano, ou um conjunto de camadas, repleta de dobras, redobras e
desdobramentos, sujeitos a nosso olhar, mas também lançar a abater-nos quando menos
esperamos, tocando-nos ao ponto de uma paralisia, à emoção, à razão. Como questão de
conhecimento, ela nos pergunta sobre o que vale a pena conhecer e o faz, afirma o filósofo
francês, sobre um duplo aspecto: uma “arte da observação” capaz de realizar aì uma “crìtica
da identificação”, uma forma de desocultar aquele processo a fazer com que alguém se
identifique com um ditador, por exemplo; segundo, uma “arte da historicização”, capaz de
distanciar-se, isto é, romper com a continuidade das narrações, “extraindo-lhe as diferenças
para recompondo-as, restituir o valor essencialmente „crìtico‟ de toda historicidade” (ibidem,
p.78). Se a historicização aparece como um “gesto social”, o distanciamento, como operação
de conhecimento, abre o saber à potência da estranheza, à possibilidade de fazer das relações,
formulações críticas para saber.
Nessa concepção, as relações tornam-se inevidências, como aquilo que não acontece
naturalmente, por assim dizer. Todas elas “então, estranhadas, passam pela „criação de
intervalos‟, a partir dos quais se conjugam novas „ordens de realidade‟” (ibidem, p.80).
Pensemos, por exemplo, no filme O eclipse de Michelangelo Antonioni, centrado, em larga
medida, nos encontros entre duas pessoas, Vittoria e Piero, os quais, marcando um encontro, a
fim de levar a possibilidade de um relacionamento adiante, faltam ambos. Intervalada tal
relação, o diretor passa a mostrar o espaço onde os dois passavam frequentemente.
Subitamente o cenário torna-se a personagem, a própria cena, com suas tomadas nos mais
diversos recortes e ângulos, como um por em ato do que sucede quando a história, para a qual
dirigíamos o olhar, é suspendida. Não é nada que aparece. É todo o entorno dessa história, que
é, igualmente, história, mas mal vista, para a qual não olhávamos. O diretor nos obriga a isso.
Vejamos, por exemplo, o recorte muito próximo da orelha de uma pessoa, não sabemos quem
exatamente. Depois, afastando-se um pouco, descobrimos ser parte de um senhor, o qual é
tomado ainda mais a distância, esperando-o atravessar a rua e sair de cena. Vemos as casas, a
água que escorre por um orifício, o poste que se acende logo após escurecer. São os objetos e
as pessoas apresentadas como cenas montadas da história que se desenrolava. A vida em suas
178
natureza do pensamento; exercício não muito distinto do que aconselhou Leibniz, a partir do
que se chegaria, não a uma lei, mas a uma encruzilhada, tornando-se, daí, novo ponto de
partida. Ou seja, uma maneira de dispor as coisas, os saberes, as imagens. Dispô-las, não
obstante, dialeticamente. E aqui, assinala Didi-Huberman (2008b, p. 104), onde devemos
pensar o sentido mais antigo desse termos que há tanto seguimos, dialegestai, como aquilo
que “introduz uma diferença (dia) no discurso (logos)” ou mesmo confronta: “enquanto
confrontação de opiniões divergentes com o fim de lograr um acordo sobre um sentido
mutuamente admitido como verdadeiro”, isto é, um “método de verdade”, a partir do qual o
pensamento só consegue “orientar-se [...] confrontando diferentes pontos de vista sobre uma
mesma questão”. Para Brecht, afirma o autor, a filosofia operaria como teatro, a partir de que,
pela confrontação, seria capaz de elevar-se à verdade. Nessa perspectiva, nenhuma posição
estética vem sem uma posição polìtica, da mesma forma que o dramaturgo alemão não lia “a
Estética hegeliana sem sua Filosofia da história” (ibidem, p.104-105), o que significava
elaborar um distanciamento capaz de diferir ambos os elementos, cujas soluções seriam
encontradas. Diferir, pois, dispondo-as numa montagem, já que, como o mosaico, ela
aproxima os elementos sem reduzir suas singularidades, coloca-os em relação, a mesma que,
na distância, permite expor as “interrupções, os contrastes e anacronismos”. Nessa
perspectiva, utilizando-se de correspondências e afinidades, alcançar-se-ia uma disposição da
verdade. Lembremos como tal operação assemelha-se à noção de imaginação baudelairiana.
Quer dizer, um método de verdade a operar pela imaginação, criando correspondências que o
entendimento não alcança prontamente, como um “salto do tigre”.
Todo esse método em Brecht, mas também em Didi-Huberman, lança a política a
uma senda que não é fácil de investigar. A relação potência-ato e a elaboração de práticas
ficam profundamente comprometidas. Ela primeiro funciona numa perspectiva estética, a
qual, por sua vez, não possui arkhé. Os sentidos não são “categorias”. Se lembrarmos de
Hume, veremos que a verdade é uma condição elementar de qualquer sentimento e sensação.
Podemos nos enganar a respeito das causas e dos significados desses sentidos, mas, jamais, de
tê-los sentido (as histéricas, recordemos com Didi-Huberman, talvez fossem capazes de
simular certos sintomas, sua figura, mas nunca o que sentiam sobre como sentiam). Seria
preciso buscar em outro lugar. Normalmente a razão. Porém, como elaborar uma política sem
cair sob o domínio racional? Um livre jogo, no qual a política expressaria as regras desses
jogos, sabendo, sem dúvidas, a constante possibilidade de alterá-las, ou mesmo do sujeito
desacreditá-las (decidir não mais seguir as regras)? Como experimentação do pensamento no
âmbito da política, o funcionamento dela num campo aporético, ou ainda de dobras, num
180
plano de composição, faz com que a própria política seja lançada aos dados, faça-se uma
aposta, decida-se pela chance: chance a abater sobre qualquer um, como num acidente de
carro: alguém morre, alguém se fere gravemente, ficando entre a vida e a morte, alguém se
livra, mas profundamente atordoado e alguém vê de longe e escreve sobre isso, adiantando a
figura da chance. A ordem e a disposição das coisas é chance. Estamos aqui e poderíamos não
estar. O saber atravessado pelo não-saber. A política atravessada pela impolítica. Talvez só
seja política dessa forma: com tudo o que atordoa, desfaz, refaz o determinado da partilha e da
demonstração; o que a imobiliza e para para experimentar – Um jogo de irresponsáveis e
vagabundos... que só se faz junto.
Estamos diante de uma política, aberta heuristicamente, por um método estético. Tal
método trabalharia dialeticamente para, assim, não operar por sìnteses, mas pela “infernal
reativação das contradições e, portanto, da fatalidade de uma não-síntese” (ibidem, p.109).
Não se trata de criar condições para decisões, mas de implicar a possibilidade em cada
decisão tomada. De certa forma, fazer sangrar por cada gesto, palavra e pensamento. Como
exemplo, o autor não se exime de recordar Documents, a partir da qual retoma Brecht, para
quem “a verdade é concreta”, quer dizer, existe no mundo como relação, em relação às coisas
e com os outros. Apartar, separar e ascender são maneiras de sacralização, o que tira das mãos
do ser humano o direito de uso e de decisão. O esforço de Brecht está em tentar reaver, apesar
de tudo, o mínimo aparato e saber necessário para poder tomar uma posição. Sua posição de
exilado, não esqueçamos, permitiu-lhe encontrar uma “potência visual”, particularmente
aguçada quando às contradições históricas, para o qual toda sua obra já o tinha, consciente e
inconscientemente preparada, por meio da qual, nessa sensibilidade sismográfica, foi capaz de
registrar os abalos, para saber e saber sobre compor suas forças, com o intuito de “voltar a
mostrar a polìtica” (ibidem, p.119). Para esse poeta, isso o lançava à elaboração de uma arte
realista. Essa realidade, contudo, não era meramente “o reconhecimento da realidade
representada”, mas um “domìnio da realidade”, ou seja, o trabalho de “produção de sentido
[...] o sentido polìtico inerente”: das partilhas, dos usos, dos lugares, das palavras89. Depois,
também, o trabalho de uma “questão de fórmula, quer dizer, de uma produção de forma”
(ibidem, p.121). Aqui, parece que o dramaturgo está operando de forma formalista, embora
indo num caminho distinto. Ao invés de pensar em “novas formas para um conteúdo
constante”, ele, revertendo a situação, pensa em buscar “formas antigas para conteúdos
89
“É preciso se perguntar sempre: por minha linguagem, quais são as linguagens que eu rejeito?” (BARTHES,
2013, p.195). Nesse aspecto, é preciso ver também, até para compara a perspectiva de Deleuze e Guattari sobre a
linguagem menor, sempre política, em Kafka: por uma literatura menor.
181
novos” (ibidem, p.122), o que lhe permite criar o choque (a aproximação das distâncias) a
habilitar a obra para produzir estranhamentos (distâncias das aproximações).
Com a montagem, tal busca por um realismo leva a abrir mão (e criticar) de qualquer
forma totalitária de apreensão e concepção da realidade, renunciando ao “reflexo objetivo”.
Tal forma, fragmentária, tenta muito mais, “dispor e recompor, portanto, interpretar por
fragmentos, no lugar de crer explicar a totalidade. Mostrar as brechas profundas em lugar das
coerências de superfìcie”, bem como, “mostrar as coisas em suas agitações globais: descrever
os torvelinhos do rio, ao invés da direção de seu curso geral” (ibidem, p.127). Na perspectiva
heurística, então, esse trabalho alcança um valor político, “mais modesto e, todavia, mais
radical, porque é mais experimental”, qual seja: “tomar posição sobre o real modificando,
justamente, de maneira crìtica, as posições respectivas das coisas, dos discursos, das imagens”
(ibidem, p.128). Em tal abordagem, podemos notar, o realismo observado por Brecht não é
aquele da representação da realidade da maneira como nos apareceria. A realidade é uma
construção, um trabalho concreto de elaboração de sentidos, incluídos aí a própria noção e
percepção, seja do espaço, seja do tempo. Porque, no fim, tais noções naturalizadas não
passam, elas também de trabalho humano determinado, com o intuito de fortalecer o poder já
instituído. Pela montagem, a realidade torna-se mais plástica, isto é, mais democrática,
passível de experimentações que escapam da dominação da representação, buscando muito
mais suas apresentações, que qualquer meio de imposição. Numa abertura dessas, tudo que
foi silenciado no campo da representação, aparece e faz, muitas vezes, como um cometa:
arrasando o campo, abalando e rompendo a superfície, até instalar-se no fundo, ainda ardente,
com os rostos de sua aparição ao redor, processando seu evento para outros corpos, até tocar
aquilo que o elege como imagem, ou o pensamento que o levante como bandeira, ou como o
corpo em resistência, como forma-de-vida ou como um texto a reverberar em alguns corações
solitários, com a dor a ser assumida ou como a força ativa do esquecimento.
Nesse sentido, assinalou Didi-Huberman (2008b, p.130): “não há realismo crìtico
sem crise do realismo e sem dar forma à forma mesma desta crise”. Uma tomada de posição
não acontece sem uma tomada estética, ou seja, uma elaboração artística que dê forma,
alcance seu agora de cognoscibilidade, de modo a tornar compreensível a não importa quem,
sem perder, com isso, seu caráter concreto, o que mobiliza o esforço. As imagens sozinhas
não conseguem revelar o horror da guerra e nem as epigramas sozinhas conseguem conectar-
se com esse presente. Quando juntas, porém, num trabalho de montagem, quando colocadas
em relação, então, elas abrem a realidade, tocam o real, mostram a complexidade não-
idealizada, não-idealizável da realidade, mas a figuram, fazem-na aparecer sob uma forma
182
capaz de interpretação, fremindo por outra figura, no passado ou no por vir que revelará seu
sentido histórico, político e mesmo artístico. Elas sustentam como tensão o fato histórico e a
potência heurística de sua interpretação. Há um custo para isso: abrir mão do poder, em nome
da potência significa, por vezes, ficar fora do instituído para instituir outra coisa. Pode-se dar
o nome a esse ato de “violência”, e aì o poder reage com a polícia, ou, talvez pior, que se faz
torna-se incompreendido, logo deixado de fora dos quadros e discursos. Pode ainda converter-
se em bibelô incômodo a agradar a alguns marginalizados. Porém, são materialmente reais e
potencialmente anacrônicas – podem ingressar no tempo como instante de verdade e podem
atravessá-lo como acontecimentos tão perturbadores, ao ponto de serem negados. Aí reside
sua força. Elas guardam ensinamentos, memórias e narrativas, capazes de ensinar a quem se
põe diante delas e em relação com elas, pedindo apenas empatia. O que o capitalismo faz,
todas as estratégias e ferramentas que cria, visa, antes de qualquer coisa, acabar com a
empatia. Em seu lugar oferece uma ilusória, porém eficiente, sociabilidade, de modo que a
questão kantiana que fundamenta o valor político de seu pensamento, para Hannah Arendt
(1993), precisa ser repensado.
Elaborar o ABC da guerra não permitiu a Brecht tão somente “mostrar a polìtica”
(ibidem, p.131), como também criar uma obra anacrônica, apta a compor e dialetizar com
qualquer tempo, com o tempo que impõe um poder redutor, seja o do passado da Arcádia, seja
o por vir do progresso. Ele está fora do tempo contínuo, para se colocar como cesura de todo
tempo, ao ponto, mais uma vez, de ser ou incompreendido ou inútil ou um fantasma a
atormentar a muitos, poderosos especialmente. O realismo torna-se, pois, um “método de
combate” e a dialética o “fundamento estratégico e a dobradiça epistemológica” (ibidem,
p.132). É preciso fazer isso para “extrair o componente polìtico”. Podemos pensar a partir
disso que a política não é apenas um conjunto de decisões profissionais, elaboradas por
especialistas em lugares determinados. Ela é um componente, uma engrenagem, um elemento
de composição produzido por um procedimento, tanto metódico quanto epistêmico. Não é o
que dá início ao processo, mas o que pode resultar dele.
Essa forma política, ou forma adjetiva, como coloca o Comitê Invisível (2017),
encontra-se aí com sua potência como potência. A política, nessa acepção, deixa de ser o ato
que caracteriza a obra do ser humano, para tornar-se a potência que coloca em obra o que
pensamos como ser humano. Indo um pouco mais longe, talvez, poderíamos pensar como o
diáfano, aquilo que entra em contato com nossa pele e atravessa nossa carne, sem perder seu
caráter de potência. Por aí, como a pintura, a política toca-nos, envolve-nos, até pode
consumir-nos, por dentro de longe, desdobrando-se em nós, mas como aquilo que diz respeito
183
a um impessoal, como aquilo que nos arrasta num nós, maior e mais expressivo e expansivo
que cada eu. Não é a natureza do ser humano que é política, mas a humanidade como natureza
que faz política em cada um. A arte nessa conjugação serve para mostrar ser possível realizar
isso, sem abrir mão da singularidade, ainda que à despesa de uma maior e mais aberta
fragilização do esforço, um abrir mão das totalidades para agarrar fragmentos com os quais
vemos menos, apesar de nos colocar em perspectiva. O tipo de política que se faz, nessa
perspectiva do pensamento de Didi-Huberman, é muito mais, então, uma política da
exposição, no qual o sentido é alcançado quando “os rituais da exposição polìtica” dão lugar,
abrem espaço “a uma produção polìtica da exposição, que seja capaz de reconstruir a
intimidação inerente tanto aos parâmetros religiosos do político como aos parâmetros mágicos
da imagem artìstica” (DIDI-HUBERMAN, 2008b, p.146-147). Primeiro expõe-se as formas
de paralisação do saber e o olhar, para, em seguida, produzir, (re)criar outras formas de
exposição, capazes de fazer justiça. Tomar posição está muito mais ligado a posicionar-se
num lugar e tempo limitados, o qual fornecerá tanto um horizonte interpelador quanto uma
perspectiva para lidar com esse confronto. A partir desse lugar, uma encruzilhada, qualquer
direção é possível, qualquer corrente de ar pode determinar o caminho, uma nuvem pode ser o
princípio de uma aventura. Obviamente que esse não era o caso de Brecht, quem foi obrigado
a fugir para viver. Seu lugar seria aquele que o permitisse viver. Mas, desse lugar de acaso,
ele refez seus caminhos e encontrou uma alternativa: não meramente de saída, mas de
elaboração de novo modo de estar e de viver quando e se lhe fosse possível regressar. Porque
aprender certas coisas, experimentar certos lugares e posições significa abrir-se a outras
formas de desdobrar-se.
Entre uma “liberdade ameaçada” e “liberdade confortável porém autovigiada do
poeta oficial da RDA”, ele foi capaz de encontrar um “valor de dizer”, isto é, “alguém que
deve dizer o indizível, que deve não permanecer silencioso nas circunstâncias em que todos
estão, e que de feito deve ter cuidado para não falar em demasia, de coisas que todo mundo
fala” (ibidem, p.139). Deve, portanto, perceber que suas palavras são posições e que sua
posição implica palavras. Então, elas devem ser cuidadosamente escolhidas, ainda que não
possa garantir seus desdobramentos e eficiência. Pode-se, todavia, estabelecer algumas
relações, e mesmo a possibilidade de colocar-se em relação. A montagem retorna, assim,
como o modo de constituir posição, mantendo uma potência em cada relação surgida, ao invés
de encerrar-se num partido, na escolha de uma parte tão somente das possibilidades, por meio
da qual tudo soa ou torna-se necessário. A montagem permite tomar posição em relação à
cada imagem em relação com as outras, mas ela o faz, colocando a imaginação como
184
operação, isto é, como elemento ativo a abrir uma “imaginação polìtica”, algo que, segundo
Didi-Huberman (2008b), extrapolaria o tipo kantiano de imaginação, porque “desemboca na
„coragem de julgar‟: julgar sem compromisso, mas sem prejuìzo, julgar sem pretender excluir
a alteridade, sem ignorar que outras combinações sempre poderiam ter sido possìveis”
(ARENDT apud DIDI-HUBERMAN, 2008b, p.141). Julgar sem compromisso, uma forma de
dizer dar-se ao trabalho de não tomar partido, de não se comprometer com um dever, nem
mesmo como suposição, o que leva a não tomar posse e também sem se comprometer com um
universal, sentido da faculdade de julgar kantiana; sem excluir a alteridade, quer dizer, sem
abrir mão da diferença, do outro, ainda que seu contrário, ser capaz de considerar a
heterogeneidade, isto é, julgar imaginando julgamentos distintos. Cada julgamento é
particular, no fim, e não universal (O sentido comum seria encontrado onde, então?); sem
ignorar outras combinações, isto é, sem perder a potência, sem fechar, mas também sem
decidir plenamente por um caminho, sem fim teleológico.
O que é toda essa forma de julgamento senão, podemos denominar, um juízo
heurístico? Se voltarmos um instante ao começo desse capítulo, veremos que, uma das
características da heurística estaria, por seu caráter aberto, em não realizar juízos, ou seja,
decidir, e em sentido kantiano, definir um dever, ou mesmo categorizar. Como se pode chegar
a um juízo quando não se tem as informações, ou os saberes? ou mesmo como se chegou a tal
saber? A imaginação, agora como uma operação, não apenas como o que “coloca em jogo as
faculdades”, mas como o que define os procedimentos, realiza o processo e produz saber, ela
pode chegar a determinadas considerações que, lembrando Bataille com as imagens, levam a
sentidos a serem retirados e não dados. O juízo do tipo heurístico, pois, retira sentidos das
relações surgidas e não determina um sentido, lançando numa determinada categoria. Então,
como a tomada de posição, operando por meio da imaginação, elaboraria um juízo não-
determinante? Ou melhor, aonde nos leva isso? Didi-Huberman (2008b, p.145) responde: “Aì
onde o partido impõe a condição preeminente de uma parte em detrimento das outras, a
posição supõe uma co-presença eficaz e conflitiva, uma dialética das multiplicidades entre
elas”. A retirada de sentido, uma forma de saber que parte da relação só é possível havendo a
co-presença, a co-existência, o com-partilhamento de um comum que toca a todas as partes.
Nesse sentido, o juízo surge do que toca, do que choca, entre diferenças, de uma dialética
entre elas, e não das coisas mesmas. Desse modo, havendo uma nova relação, alterando-se
qualquer dos elementos, o juízo será inteiramente outro. Ele não pode, não consegue, com
isso, chegar a uma determinação, quando muito uma consideração aberta, apta a pesar a
possibilidade. Considerando-se a montagem nesse processo, o juízo formulado das relações
185
acaba sendo, ele também, uma possibilidade destrutiva. Quer dizer, tal como se dá com a
montagem, na medida em que cria relações, aproxima heterogeneidades, ela também cria
“vazios, suspenses, intervalos que funcionam como vias abertas, caminhos até uma nova
maneira de pensar a história dos homens e a disposição das coisas” (ibidem). Esse caráter
destrutivo está, então, imbricado nessa tarefa. Um juízo retirado – isto é, um juízo do qual o
objeto toma posição – pode ser um juízo destrutivo de uma relação, de uma determinação, de
uma razão. Entretanto, ele mesmo está imiscuído nessa relação, depende dela para se fazer
possível.
Talvez nos reste ainda fazer uma espécie de crítica da razão carnada, que só se torna
possível nos jogos políticos, isto é, na história. Como a montagem: uma operação com a força
de “romper essas barreiras entre forças de produção”, adquirindo aì uma “função polìtica”,
qual seja, a de “recompor as forças e os terrenos de produção, por exemplo, o terreno da
imagem frente ao texto” (ibidem, p.148-149). Recompor, remontar e realizar uma nova
composição possível é uma forma de tomar posição, ao mesmo tempo em que se criam
“formas eficazes” (o artista com a arte) e “choques eficazes” (a montagem), a partir dos quais
se descobre numa imagem uma “centelha de verdade”, abrindo-nos, também, ao “inconsciente
visual”, isto é, o lado não dominado pelas estruturas de representação, não-sabidas, das
imagens, mas também das relações oriundas pelas montagens (ibidem, p.150-151). “A
montagem estaria para as formas como a polìtica para os atos”, diz-nos Didi-Huberman
(2008b, p.153), um “excesso de energias” com suas “estratégias dos lugares”, “a loucura da
transgressão e a sabedoria da posição”. A montagem, como a política aqui, apresenta-se
como esse espaço da potência, em que as coisas se apresentam, mostrando-se, em sua
possibilidade aberta de sentido. Dessa forma, ela é um procedimento por excelência da
potência da potência, por meio de que formas surgirão, serão criadas, sem esquecer, porém,
sua cadeia operatória originária. Tomando de empréstimo um exemplo benjaminiano, a
montagem funcionaria como a mãe faústica circundada por suas filhas, as formas. Ela permite
o surgimento dessas, mas sem a estrutura dominante de uma identidade determinante. Essas
formas, no máximo, reconhecem-se pelos seus limiares, quando compõem uma constelação
imageante, imagem mostrada e imaginação como configuração da sua estrutura. A política,
por sua vez, desvincula-se da acepção vulgar de partido, adquirindo seu caráter de com-
partilha, isto é, de colocação em relação a partilha dos atos, a energia a designar os modos
como os lugares, em cada ato, serão definidos e significados.
Ambas, montagem e política, aparecem numa relação paradigmática, com a tomada
de posição: a montagem implica uma montagem temporal e a política implica uma montagem
186
espacial, a composição dos tempos, pela qual adquire um “valor alegórico”, relação entre
“visibilidade e legibilidade” (ibidem, p.176-179) e a composição dos lugares, pelo qual
adquire uma “interposição entre tempos”, a partir de que os conflitos são expostos, abrindo-se
“campos heterogêneos nesses tempos” (ibidem, p.166-167). Num tal escopo, a montagem
acaba colocando em crise “a mensagem que se supõe dever veicular” (ibidem, p.182),
utilizando para tanto uma “alegorização do documento”, apelando à “ambiguidade” desse
documento, a fim de confrontar sua “crueldade” (ibidem, p.183). Em Benjamin (2005, p.70),
por exemplo, uma influência para Brecht, encontramos a famosa expressão nas Teses sobre o
conceito de história, na sua sétima tese, de que “nunca há um documento de cultura que não
seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. Mas, antes mesmo dessa elaboração, em
Origem do drama trágico alemão, o filósofo alemão já deixava evidente o sentido de alegoria
como forma dialética, e podemos acrescentar, sintomática:
que fundamentou o esforço do dramaturgo alemão na criação de seu ABC da guerra: “Brecht
utiliza sua documentação iconográfica da guerra presente como uma mesa de montagem, um
atlas onde localizar e reconstituir os movimentos geográficos e históricos do gesto e afeto
humanos politicamente suscitados no corpo de cada um” (ibidem, p.198). Colocando em
tensão o páthos e as fórmulas, a “empatia do trágico” e o “distanciamento do épico”, Brecht
conseguiu fazer de tais documentos não simples objetos com uma “função histórica”, mas
também com “um aspecto heurìstico destinado a retomar o enfoque teatral e lírico da dor do
mundo” (ibidem, p.200), isto é, fazer aparecer a singularidade na sua potência impessoal de
dizer para cada um a verdade dessa dor, sem com isso, estetizá-la ao ponto de tornar-se objeto
de consumo:
É certo que toda piedade será „enganosa‟ se não sabe tornar-se em „vermelha
ira‟. Uma maneira de dizer que o páthos e o sentimento de piedade nunca
são suficientes do ponto de vista da ação real em sua necessidade política.
Mas, dizer que o páthos deve transformar-se, prolongar-se em ethos, não
quer dizer que esteja fora de jogo político (ibidem, p.202-203).
90
Em “sofro pelo outro”, escreveu Barthes (1981, p.49): “Sofrerei portanto com o outro, mas sem me apoiar. A
essa conduta, ao mesmo tempo muito afetiva e muito vigiada, muito amorosa e muito policiada, pode-se dar um
nome: é a delicadeza: ela é como a forma „sã‟ (civilizada, artìstica) da compaixão”.
189
91
“[...] uma emoção não seria uma e-moção, quer dizer, uma moção, um movimento que consiste em nos pôr
para fora (e-, ex) de nós mesmos? Mas se a emoção é um movimento, ela é, portanto, uma ação: algo como um
gesto ao mesmo tempo exterior e interior, pois, quando a emoção nos atravessa, nossa alma se move, treme, se
agita, e o nosso corpo faz uma série de coisas que nem sequer imaginamos. [...] Ela está em mim, mas fora de
mim” (DIDI-HUBERMAN, 2016, p.24-26). A partir daì, lembrando Deleuze, diz: “a emoção não diz eu [...] A
emoção não é da ordem do eu, mas do evento” (idem, p.29), a partir do qual seria possível constituir, então, um
“uso ético” de nossas emoções, através da sua exposição (ibidem, p.30).
190
de subjetivação que não é “eu”92. Por isso, talvez, seja tão embaraçoso, uma vergonha, saber e
ser mostrado (mais que mostrar) que não nos “controlamos”; que há uma força atravessando-
nos direto para a verdade (páthos). Da mesma forma, ocorre com o pensamento. Não
pensamos simplesmente. Somos tomados pelos pensamentos. Nossa subjetividade é mais
impessoal (não necessariamente inconsciente) do que supúnhamos. E isso é um terror.
Essa memória é, no esteio de Warburg, uma forma de saber, portanto. Saber patético
com suas fórmulas. Saber lírico produtor de um “lirismo documental” a guardar sua
“necessidade profunda” na tentativa de “não deixar mudo o inaudito da história” (ibidem,
p.209). Isso nos leva, em seguida, a uma necessária “tomada de palavra”, para “afrontar a
questão” estilìstica e polìtica, a fim de compreender que palavra saberá responder à nova
visibilidade dos acontecimentos históricos, isto é, qual palavra tornará cognoscível a
experiência do “inimaginável”. Sua possibilidade acontece graças à lìrica, que é capaz de uma
verdadeira “polifonia”, capaz de ressurgir, ou seja, sobreviver em qualquer tempo (ibidem,
p.210), como reconhece mesmo Hegel (2014). Portanto, impessoal – Impessoal não apenas
como ausência de subjetividade, mas como formas de subjetivação, a cortar-nos, atravessar-
nos, a fazer-se entre os sujeitos; relacional, heurístico, incontrolável, ingovernável.
Tomar93 a palavra para sustentar o “valor de nomear”, buscando tanto “afrontar o
presente em sua dimensão de memória” como “afrontar o real em sua dimensão de imagem”
(DIDI-HUBERMAN, 2008b, p.211), um trabalho semelhante ao dos poetas, o de remontar a
história. Trata-se, enfim, de levar o pensamento ao páthos e o páthos ao pensamento, no
intuito de tornar a história uma multiplicidade de vozes, a partir da qual se elaboraria a
montagem, apta a apresentar a tensão entre o que se mostra e o que se diz, ambos atravessados
pela memória do sofrimento e pela força para transformar o presente, em busca da
“construção do tempo” (ibidem, p.213). Tempo esse mais próximo do aoristo, “processo puro
e simples, abstraindo-se de toda consideração de duração, um pouco como nosso uso do
imperfeito94, em francês, quando contamos os „puros processos‟ de nossos sonhos
(„Caminhava sem fim...‟)”, isto é, “processos expostos em seu devir e não em sua
cronologia”. O aoristo trata, avança um pouco mais, de uma incidência, de algo que atinge,
acontece, cai sobre (cai junto com?) o sujeito. Uma memória opera mais nessa acepção do que
92
“A consciência emocional é, em primeiro lugar, consciência do mundo” (SARTRE, 2008, p.56).
93
Tomar como quem toma de assalto, ou ainda como quem se segura em algo, que nos movimenta e leva-nos a
outro lugar, como “tomar um ônibus”.
94
Em português corresponderia ao pretérito perfeito (eu falei, ele disse, eu caminhei), ou ainda na junção de um
gerúndio com o particípio passado (tendo feito, tendo sido, tendo pensado).
191
como algo que estaria diante do sujeito. A memória incide, como incidem os saberes, como
incide a tomada de posição (ibidem, p.214). A palavra tornar-se, então, epos e não logos:
ali onde o logos promove o nome como simples parte do discurso, o epos o
faz surgir como intensidade concreta, verdadeiro „lugar da linguagem‟; ali
onde o logos encontra o princípio de seu desvanecimento na dialética [...] o
epos encontra na reminiscência, ali onde o logos manipula seus elementos
como signos, o epos os constrói como formas em perpétua formação. E é por
isso que o ato de palavra no relato épico, não é separável nem do fazer-
imagem (Bilden), nem do fazer-poema (Dichten) [...] nem do fazer-pensar
(Denken) (ibidem, p.215).
sua palavra poética, sua capacidade de dirigir-se e de invocações polìticas” (poderia ter sido
assim..., bem como foi de forma diferente disto...). E isso só se dá no confronto, dialetizando-
os, o que em Brecht significa que “não há escritura enfrentada, se não produzindo formas
abertas, formas onde a interrogação sobrevive à afirmação ou à exclamação” (ibidem, p.218-
219), formas repletas de páthos (efusão, empatia, emoção), mas também repletas de fórmulas,
uma lógica, uma “harmonia” que torna apta a decidir (ibidem, p.220). Decidir não no sentido
da tomada de partido, uma espécie de atravessamento, mas no sentido da tomada de posição,
bifurcando-se e proliferando, apelando, por vezes, à “cesura do especulativo” (ibidem, p.222-
223). Do ponto de vista do político, a tomada de posição funcionaria como uma heurística da
mesma forma que a tomada de partido funcionaria como uma erística. Esta desdobra toda sua
força a fim de realizar os projetos da parte tomada, formulando sua doutrina e operando
sempre em prol do projeto, do contrato definido. Enquanto isso, a outra desdobra sua potência
a fim de colocar-se novos processos, elaborar novas questões, repor os problemas, cindir a
estrutura para olhar sua configuração; configurar-se como uma cadeia operatória de um
tempo sem fim, o qual segue incidindo e arrancando os objetos de seus tempos para fazê-los
compor com uma heterogeneidade, a partir dos quais não mais se revela sua historicidade (sua
gênese e sua teleologia), porém sua aspectualidade (sua origem e sua relação), abrindo suas
maneiras de devir no mundo, compondo-se como uma aparição em seu próprio presente, na
medida em que se faz ver. Nessa perspectiva, a tomada de posição torna-se o modo de
apresentação e, ao mesmo tempo, a expressão no mundo, o como teceremos o processo da
experiência, em busca não de uma finalidade, mas do ar que atravessa as relações surgidas,
aquilo que nos toca como fenômeno, na medida em que aparece, na medida em que se
relaciona conosco e nós com ela.
De que serve, para que serve, tal possibilidade? O que pode essa forma de relacionar-
se com o mundo e com o saber, que não surge de uma determinação partidária, mas que não
significa a falta de partilha? Se tal questão deve ser um elemento de crítica constante, com o
intuito de manter os fundamentos sem transformá-los em axiomas, ela também se mostra mais
forte em períodos de crise, em tempos sombrios, de forma a restituir ou instituir uma
disposição ética, do pensar, do saber e do fazer. Brecht não deixa de fazer o mesmo com a
poesia, não para censurá-la, e sim para torná-la uma forma pedagógica, porque ela é capaz de
transmitir emoções e, também, de fazer pensar (ibidem, p.229), sabendo, todavia, ser a
pedagogia um “campo de batalhas”, a buscar “despertar seu leitor”, ensinando-lhe algo
(ibidem, p.230-231). Essa forma de ensino, porém, difere das maneiras habituais, isto é, de um
processo de posse do saber, no qual quem ensina detém um saber que, talvez, passará ao
193
outro. Pensemos outra alternativa: aquele de já falou Benjamin no prefácio e que foi lembrado
em outra oportunidade, a da propedêutica do tratado, uma base a fornecer as condições
necessárias para a emancipação, que ele chama de escapar à autoridade da citação. Podemos
pensar ainda na perspectiva do mestre ignorante, aquele que ensina o que não sabe, porque o
que ele ensina é a emancipação. Deixando um pouco de lado os desenvolvimentos de Jacques
Rancière, pensemos o seguinte: o que pode o ensino de emancipação, senão a liberdade de
aprender aquilo que se deseja, a experimentar as possibilidades que se deseja, apesar de ter
como orientação a própria emancipação dos demais? Não se aprende simplesmente não
importa o que, mas se aprende sempre aquilo que funciona como emancipadora de qualquer
um. Que tipo de orientação encontra o sujeito dessa forma, senão a heurística? Orienta a ter a
possibilidade de considerar variadas alternativas, a não hierarquizar o saber, a proliferar os
experimentos, a constituir cadeias operatórias entre forma de saber e os sujeitos de saber, a
tomar posição na perspectiva de ampliar os sentidos: “aprender a ver abismos onde há lugares
comuns”, isto é, aprender a “arte de transformar e multiplicar seus próprios meios” (ibidem,
p.234). A heurística aparece aí como uma forma realista, ou capaz de tocar o real, tecer seu
tecido a fim de poder mudá-lo. Ela não produz (nem chega a fim), ela prolifera meios
(técnicas, processos, procedimentos, estratégias, ofícios, saber-fazer...). Aparece, parece, uma
inversão da própria noção (grega, primeiramente, mas, provavelmente moderna também) de
liberdade, não como o que fazemos autonomamente em vista de fins, mas sim o que fazemos
para aprender a fazer fecundando os meios (os entremeios, os limiares, as margens, as
periferias). Nesse sentido, a heurística não é método, na noção corriqueira. Ela é aquilo que
antecipa o que vem mais tarde, uma miragem como nos diz Barthes (2013, p.267). Ou
mesmo, a criação e abertura da possibilidade do atraso dessa chegada, desse mais tarde, até
um salto, num tarde demais (já não necessitamos disso que esperávamos).
O abecedário de Brecht, como poesia, aparece como uma “colocação lúdica”,
imaginária de aproximar-se até o contato da realidade, embora se apresente como “um
verdadeiro instrumento de erudição” (ibidem, p.237). Tal forma ensina, sobretudo a “aprender
apesar de tudo”, o esforço para nunca, custe o que custar, “desaprender a aprender” (ibidem,
p.240). Tudo que favoreça essa instância torna-se válida. E o dramaturgo alemão não abrirá
mão de tudo aquilo que faça do saber um desejo de saber: teatralização, simbolização,
utilização de imagens. O abecedário consegue, unindo texto e imagem, jogo lúdico e erudição,
realizar tal tarefa. Ele cria com suas montagens um jogo de relações entre visibilidades e
legibilidades, entre os objetos montados, os elementos combinatórios e suas concatenações de
sentidos (ibidem, p.242-243). Cria-se aì, então, uma autêntica “tensão interna de toda tentativa
194
95
Ver, por exemplo, em “O espìrito moderno e o jogo das transposições”, 2018, p. 250, no qual, Bataille ainda
afirma: “o que realmente amamos, amamos sobretudo na vergonha, e desafio qualquer amador de pintura a amar
uma tela tanto quanto um fetichista ama um sapato”.
196
operador, juízo e posição diante do poder instituído, dos dominadores e vencedores. Trata-se,
enfim, de uma ferramenta concreta de emancipação, ferramenta que, como a dança, altera o
próprio corpo, os movimentos e o que produz.
Em todo esse processo, traçado a partir de Brecht por Didi-Huberman, uma questão
torna-se incontornável: de que tipo de política está tratando o autor, quando convoca uma
série de procedimentos, formas e paradigmas, notadamente um que faz participar o páthos,
desde o processo de saber (empatia, ingenuidade, compaixão) até a percepção desse saber
como processo (heurístico do atlas, do abecedário e do diário), a tornar ainda mais complexa
a relação entre arte e política, a poiesis e a práxis? O que, talvez, fique patente no corpo dessa
constelação seja o esforço constante desses pensadores em elaborar formas de mostrar, de
fazer presente, figurante, aquilo que usualmente não tem espaço. Tomar posição é, antes de
tudo, abrir um espaço no qual seja possível figurar o que está fora (do partido, dos lugares,
dos discursos). Isto é, vemos desenhar-se, traçar-se uma política da exposição na obra de
Didi-Huberman – o éthos das imagens.
imobilização; para dar corpo à memória e tornar presente o que nunca saiu inteiramente de
cena – um sussurro do tempo perdido.
Realizar tal tarefa está sempre em vista dos vivos, dos que resistem. É para e por
essas pessoas que o pensamento do filósofo sempre se voltou, ao qual se dobrou, a fim de, não
apenas fazer-lhes justiça, como bem oferecer ferramentas, conceitos, palavras, lembrar-lhes a
capacidade de imaginar para se mostrarem, para aparecerem, para tomar a palavra, mesmo
que tal uma fraca luz ofuscada pelos holofotes, apesar disso. O quarto volume do conjunto de
ensaios da coleção L‟œil de l‟histoire, Peuples exposés, peuples figurants (publicação em
2012)96 tenta tratar, precisamente, da questão da exposição dos povos. Uma exposição, diz o
autor, a aumentar, mas que não significa uma melhor representação: “os povos são expostos
quando são, justamente, ameaçados na sua representação – política, estética –, ou mesmo,
como aquela que chega demasiadamente frequente na sua existência mesma” (DIDI-
HUBERMAN, 2012b, p.11). Isto é, tais povos estão “expostos à desaparição”. O autor coloca
uma questão: que fazer? Como fazer para que se exponham a si mesmos e não à desaparição?
E, talvez, uma mais central: “Por que os povos aparecem e tomam figura?”. Para responder a
isso, ele lembra que aparecer significa, “ser – nascer ou renovar – sob o olhar dos outros”,
como se “esperar para ver um homem” constituìsse a “possibilidade mesma de fazer povo”.
(idem). Isto é, a própria noção de aparecer chama pelo outro, para que veja o que aparece. O
aparecer (aparência) constitui um modo de relação, um modo a significar, na inexistência de
qualquer essência, que as imagens (as quais foram vítimas de desconfiança por não serem)
nunca encontrariam lugar numa filosofia do ser senão na sua forma-morta: representação,
ilusão, cópia. Que quer dizer, então, esperar ver um homem, esperar que um povo apareça?
Para o filósofo isso significa, pelo menos, duas coisas: “dar direito à palavra” e
“poder falar a partir do impossìvel”. Para isso, uma necessidade se instaura, qual seja, a de
“recolocar em jogo a necessidade de um reconhecimento do outro, esse que supõe de
reconhecer tanto como semelhante quanto como falante” (ibidem, p.13). Nem que para isso se
recorra à “imaginação”, buscar reconhecer o homem lá onde viceja a inumanidade, ainda que,
para isso se tenha de recorrer a uma “interrogação cruel” à história do que o “homem faz ao
homem” (ibidem, p.14). O exemplo de Frenhofer parece-nos útil: a interrogação, ingênua e
cruel, do jovem pintor, faz com que suas certezas desabem. No entanto, isso o obriga, mesmo
no auge de sua emoção, reconhecer um pé, e apenas um pé. O suficiente para dar-lhe um
ponto de partida. Porém, lembra Didi-Huberman a respeito de Bataille, que esse também,
96
Todas as citações são traduções nossas.
199
certa vez, deparara-se com um pé, e apenas um pé, no meio de destroços – questão de
perturbação. Toda a humanidade reconhecida no fragmento de um corpo.
A exposição aqui se desdobra numa multiplicidade de perspectivas: expor(-se)
significar aparecer e poder ser reconhecido por si e pelos outros. Significa também estar
exposto à desaparição, seja não tendo acesso à palavra, seja não conseguindo figurar-se uma
imagem. A isso, acrescenta o autor, expor pode significar ser subexposto “na sombra de sua
colocação sob censura”, ou seja, impede-se ou limita-se as possibilidades de aparição, logo de
reconhecimento; ou superexposto “na luz de sua colocação em espetáculo”, daquele tipo
denunciado por Debord, ao ponto de “privar-nos dos meios para ver” (ibidem, p.15). Se a
subexposição mina as chances de figurar de um povo, a superexposição mina suas
possibilidades de ver. A política, aqui, busca, nesse campo, estabelecer tempos e espaços
justos de exposição.
Se a falta de imagem, por sua vez, prejudica a exposição, o excesso também não
garante justiça. Adiciona-se a isso os discursos possìveis sobre tais povos: “se os povos estão
expostos ao desaparecimento, é também que os discursos se formam para que, nada vendo
mais, possa ainda crer que tudo permanece acessìvel, que tudo resta visìvel e „sob controle‟”
(ibidem, p.17). De certa forma, as imagens, nesse campo, nada garantem da exposição dos
povos, da possibilidade de fazê-los reconhecidos pelos outros. Sem um trabalho crítico, então,
temos, ora a censura ora o espetáculo. A questão torna-se, assim, uma questão de “lisibilidade
das imagens”, conforme diz o autor. As imagens estão implicadas numa relação com a
linguagem, o que dá como corolário duas posturas: a primeira, não tomar a lisibilidade como
um processo de decifração, ou seja, da redução da imagem a um discurso, a fim de “dar às
palavras a última palavra sobre a imagem”; a segunda, colocar em relação uma e outra, a fim
de inquietar, reformular, de recolocar em questão “tanto a imagem quanto a palavra”
(ibidem). Trata-se, portanto, de abrir as possibilidades de exposição, às imagens e às palavras.
Empreender a lisibilidade deve ser mais do que procurar elaborar uma “construção
discursiva”, uma “restituição do sentido”. Ela busca, mais amplamente, “conferir às palavras
elas mesmas sua lisibilidade despercebida”, sua parcela de não-saber (ibidem, p.18-19).
É preciso ver, por exemplo, que na palavra povo há uma diversidade possível de
sentidos e de percepções. De que povo falamos quando dizemos povo? Devemos, pois,
“desconfiar das palavras”, como tão facilmente desconfiamos das imagens. Há o povo como
soberano de um país (todo poder emana do povo) e há o povo real excluído desse poder; há o
povo dos direitos humanos, com seus direitos consagrados e há o povo encarcerado e
refugiado ao qual tais direitos não se aplicam; há o povo da “democracia” e há o povo a ser
200
combatido em nome dessa suposta democracia; há o povo que se apresenta nos lugares e há o
povo que falta; há o povo que é mostrado, que vê sua face na mídia, nas propagandas, no
cinema, etc, e há o povo sem parte, como negação do que é povo; há o povo a decidir e a
participar do poder e há o povo que deve aceitar e obedecer. Nessa abordagem, pergunta Didi-
Huberman (2012b, p.20): uma imagem do povo “não começa a ser interessante, senão se
dando como uma imagem do outro?”. Tal como as palavras (e é importante nunca as
esquecer, nunca as tomar como dadas e cristalinas nos seus sentidos), as imagens funcionam
também como “armas e dispõem-se como campos de conflitos. Reconhecê-las, criticá-las,
tentar conhecê-las o mais precisamente possível, eis, talvez, uma primeira responsabilidade
política que o historiador, o filósofo ou o artista deve assumir os riscos e a paciência” (ibidem,
p.21). Porque, tanto imagens como palavras podem participar de uma verdadeira “lìngua de
algoz que se insinua por tantas expressões” (ibidem) – A questão que citamos, expressa por
Barthes: o que minha linguagem rejeita das outras? Línguas maiores, línguas do poder,
línguas da lei, línguas que negam.
Para Didi-Huberman (2012b, p.22), devemos buscar, então, “resistir a essas lìnguas”,
o que significa não sair delas, mas “resistir na lìngua a esses usos da lìngua”. Não abandonar
ao inimigo a palavra – isto é, a ideia, o território, a possibilidade – na qual ele tenta apropriar-
se de [...] sua significação”. Isso se faz problematizando, relançando as questões,
considerando as perguntas. Buscando a aparição dos povos, por meio de sua aparência,
afirma ainda o autor, e não uma “essência”, uma “entidade a propósito da qual se poderia
glosar sobre sua forma una, inteligìvel e verdadeira”, mas pela sua manifestação “múltipla,
sensível e factìvel”, isto é, pensar tais povos “como desses „vis objetos‟”, complementa
(ibidem, p.23). Não se trata da procura dessa essência, e sim do aparecer desses povos,
enquanto figuram e tomam a palavra. “Ser e aparecer são realmente uma mesma coisa”, de tal
modo que “a polìtica está sempre do lado do que se apresenta”, configurando, assim, um
“aparecer polìtico” baseado, prossegue, orientado tanto por Étienne Tassin (1955-2018)
quanto por Hannah Arendt (1906-1975), em “quatro paradigmas: rostos, multiplicidade,
diferenças, intervalos”. Nessa composição, os povos aparecem como “corpos falantes e
agentes”, não a partir de um rosto comum, de uma sìntese, e sim de uma “gente inumerável de
singularidades”, o que obriga a pluralizar (não se pode falar mais o povo, mas os povos, a
multiplicidade dessas singularidades).
É aì que “repousa a polìtica”. Aparecer, então, torna-se o “aparecer de diferenças”, o
que, por sua vez, demanda “pensar o espaço polìtico como a rede de intervalos que juntam as
diferenças entre elas” (ibidem, p.24-25). Podemos, nesse sentido, pensar o caso particular de
201
Kafka, nas visões de Deleuze e Guattari (2014), aquela que faz uso, como minoria, da língua
maior. As três caracterìsticas apontadas pelos filósofos, “desterritorialização da lìngua,
ligação do individual no imediato-polìtico e o agenciamento coletivo de enunciação” (idem,
p.39), servem para expor o povo de Kafka, o judeu tcheco obrigado a usar o alemão, e nunca
reduzir sua singularidade ao “bloco” da “grande literatura” (ibidem, p.36). Kafka, ao
desterritorializar a língua faz aparecer seu povo para si, o que liga sua atividade à
coletividade, pois “o que o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum e o que ele diz
ou faz é necessariamente polìtico” (ibidem, p.37). Isso cria um intervalo a partir do qual a
singularidade é irredutível, ao ponto de torcer a própria língua. Uma que carrega consigo a
língua do algoz é, para usar um termo de Agamben, tornado inoperante, ao ponto de sustar o
próprio dispositivo e dar outros usos a ele, como tornar-se máquina de guerra contra a própria
língua no seu uso coercitivo ou opressor. O povo aí aparece, mas não aparece como censura
ou espetáculo, mas sim como um povo a expor a si e para si, uma autocompreensão e uma
possibilidade de reconhecimento, a partir das diferenças, implicando uma distância. Não é no
“fazer bloco” que as diferenças podem ser consideradas, mas no intervalo, à distância.
Nessa perspectiva, a exposição dos povos não vai sem a exposição de parcelas da
humanidade que, usualmente, não possuem espaço. Trata-se de uma dialética que, como já
vimos, partilha a própria exposição: fazer aparecer o que está desaparecendo, algo que o
próprio autor mostra mais nitidamente em Sobrevivência dos vaga-lumes, o que quer dizer:
organizar tal exposição apesar de tudo, como o fez Eisenstein em Outubro (1927), diz o
filósofo, numa abordagem que, para Benjamin levaria a evitar a confusão em assemelhar a
história dos povos com uma “história universal” (idem, p.30-33). Todo esse problema com o
“universal” (poderìamos dizer ainda “ideal”, “essencial” ou “puro”), discutido mais
longamente em Didi-Huberman (2015d), deixa-nos, então, com uma noção de universal como
o esforço de homogeneizar e reduzir as diferenças, expulsando o que não se ajusta e
delimitando o espaço do possível. A história dos povos precisa ser como a literatura menor de
Deleuze e Guattari (2014), a partir da distância e dos usos inoperantes da língua e da própria
história. Escrever apesar de tudo, enfim, significa um “ato de resistência”, na medida em que
202
parte de uma decisão, a de “operar nas condições mesmas, incitando ao pessimismo, porque
vemos bem os povos expostos apesar de nós ao desaparecimento”, operando em suas duas
maneiras perversas, “primeiro na subexposição, a censura, o abandono, o desprezo, em
segundo, na superexposição, o espetáculo, a piedade mal compreendida, o humanitarismo
cinicamente gerido” (DIDI-HUBERMAN, 2012b, p.35).
Visualmente, Didi-Huberman (2012b) fornece-nos como exemplo a série fotográfica
de Philippe Bazin (1954-), intitulada Faces, a partir da qual redigiu sua tese. Vemos aí
imagens de rostos de idosos, bem como os espaços onde habitam, seus quartos, marcando
seus “aspectos humanos”, o que significou, para fazer isso, “passar tempo para melhor olhar”,
fazer da visita uma sessão. Tal trabalho envolveu, pois, a atenção ao que se olha e tempo para
olhar. Apenas assim se alcançou algo mais material e singular do que qualquer universalidade.
Como disse Bataille (2018, p.177), só se toma o sol como ideia, quem nunca olhou para ele, e
percebeu que ele feria e queimava e machucava. Sua singularidade mais marcante. Nossa pele
é um quadro do seu contato e nós pouco percebemos. O aparelho fotográfico de Bazin
constituiu-se como uma “experimentação” capaz de fazer de um “gesto técnico” um “olho a
escuta”. Com esse exercìcio, ele tornou possìvel conhecer “duas dimensões diferentes em sua
experiência: de uma parte, um estado dos lugares (é a dureza do espaço institucional), de
outra parte, um estado do tempo (é a fragilidade de uma pele, o traço de uma ruga, a crispação
de uma mão, a fadiga ou a intensidade de um olhar)” (ibidem, p.35-40).Tudo, do descanso dos
idosos aos equipamentos do asilo onde estavam essas pessoas, torna-se materialmente
político; parecem pulular no desejo de significar, de expor a todos nós o que é a dor, o que é
envelhecer, não a partir de um ideal, mas da fragilidade do desaparecimento dessas pessoas.
Tudo é político ali, e o menor gesto é irredutível a qualquer enunciação, a qualquer discurso.
As palavras são perturbadas, arrastadas para os interstícios das rugas de um rosto e não
deixam de cair aí para poderem dizer algo. Deve, certamente, haver o esforço de enunciação:
cria-se um regime de enunciação não apenas individual (o sentimentalismo que mais engana
do que cria empatia), mas que diga de uma distância impessoal (para todos, na direção de
qualquer e mesmo apesar de todos). Uma dialética frágil de encontrar a medida.
A partir disso, o filósofo francês mostra que há, então, duas maneiras diferentes de
expor a humanidade como parcela: “tanto como resíduo exposto ao desaparecimento como
resistência ou sobrevivência votada a manter, apesar de tudo, seu projeto vital”. Ao primeiro,
caberia um “estado alargado”, estado dos lugares, o que “permite uma sorte de montagem: ela
mostra, com efeito, o conflito da humanidade como „parcela‟”, configurando o esquema de
um “quadro institucional”. Ao segundo, caberia um “quadro estreito”, no qual o que “se
203
mostra, então, é o conflito intrínseco à humanidade como resíduo, mas também como força –
ela mesma exaustiva – de resistência”, abrindo espaço para dois tempos, “movimento do
tempo que passa (chronos)” e “aquele do tempo que resiste (aiôn)”, um que está “a beira de
reduzir a face ao ponto de lançá-lo no lixo” e aquele que “não para de endereçar sua questão,
sua súplica, sua cólera, sua recusa, sua energia de sobrevida” (ibidem, p.40-41). O que Didi-
Huberman parece mostrar é a própria questão de se elaborar um procedimento capaz, não tão
somente de expor, mas de, ao expor, configurá-lo num plano de profundidade no qual os
elementos criam linhas de uma parte a outra, não para chegar a um resultado ideal, mas para
dissolver tal ideal numa operação heurística, a por em movimento as formas (no tempo e no
espaço). Constituição, enfim, de uma paisagem relacional e coletiva de exposição. As
imagens abrem esse espaço no tempo: aquele que passa e aquele que resiste, um que nos
mostra estarmos caminhando para a morte e outro a mostrar-nos que “nossa vida é uma
resistência a morrer”. O autor ainda caracteriza tais tempos: um “tempo da história” ao
primeiro e uma “tempo do devir” ao segundo (ibidem, p.41-42).
entreaberta (outro buraco negro), uma linha que corta horizontalmente a imagem, lembrando
da profundidade que poder consumir a superfície. Todo um trecho enrugado da boca ao
queixo contraposto ao liso das bochechas juntam-se às dobras das sobrancelhas, ondas
revoltas até à testa – muitas dobras, muitas texturas.
No plano temporal, a confrontação desses dois tempos faz com que o resíduo e a
resistência entrelacem-se, “como se a vida residual e enrolada se tornasse, na operação
fotográfica, uma vida reendereçada que se impõe a nós na sua frontalidade, sua precisão, sua
dimensão”. Isso significa: em sua dimensão mais concreta, porque a mais singular (por vezes
na condição mais solitária), tais faces, tais vidas, começam aí a fazer-nos face, a expor-se
diante de nós, como que a partir de um poder, “poder de fazer face”, diz Didi-Huberman
(2012b, p.42), indicando, pois, “a dimensão de uma possibilidade de palavra” (ibidem p.43).
Aparece nesse plano de superfície a composição (complexa) de um jogo que não é apenas do
olhar tocante, dos planos que se entrelaçam entre a imagem e nós, repercutindo, soando,
vibrando – tal imagem não exige palavras... –. Essa composição está mais, parece mais,
disposta ao olhar, e mesmo a outras imagens, prolongando-se do corpo de quem olha, pelas
emoções a suscitar, pela afetividade modificadora do que às palavras explicadoras. Porém,
elas são necessárias, mas como relação de apresentabilidade do que pela mera aplicabilidade
do discurso. Porque expor é, então, expor à possibilidade de tomar palavra. Quando, nessa
exposição, tomar a palavra é negada, tal exposição é censurada, convertendo-se em
subexposição. Não há exposição sem a tomada de palavra.
Porém, pergunta o filósofo, numa perspectiva ética que jamais pode ser esquecida,
não seria uma obscenidade mostrar tais pessoas em situação de fragilidade, isto é, com seu
sofrimento? Para ele, devemos pensar: o que acompanha tais imagens é da ordem do páthos, o
que deve ser concebido, não na perspectiva psicológica, mas “no sentido mais antigo, mais
realmente trágico, de um corpo-mostrado nas tomadas com o tempo, com o sofrimento – o
padecer, a paciência – fundamental a todo ser-no-mundo”. Porém, tais tomadas devem ser
tomadas friamente: “colocadas à distância pelo seu enquadramento, sua precisão mesmo e sua
condição de luminosidade”. Isto é, construir algo entre o páthos e a frieza, de tal maneira a
tornar possìvel “construir algo como uma visão polìtica do „aspecto humano‟ exposto a seu
próprio destino genérico e genealógico, social e histórico: seu destino de espécie humana”
(ibidem, p.46-47), um destino que é partilhado por todos e, por mais pessoal e próprio que
seja, encontra sua parcela de impessoal, compartilhável e comum.
Nesse sentido, poderíamos também lembrar as fotografias de Nan Goldin (1953-),
dela mesma espancada e, depois de seus amigos naquela parcela da existência da comunidade
205
sem visibilidade e, assim, sem direito e sem poder para tomar a palavra: travestis,
homossexuais e os doentes com AIDS, todos elementos das margens, lançados à
subexposição. Eles aparecem constituídos como sujeitos dessas margens; são expostos como
sem partes, sem direito à partilha, mas, pelo qual, revelando uma alegria capaz de constranger
os ascetas e o povo de dentro, fazendo do lugar e do tempo onde estão, sua referência e,
consequentemente, sua resistência, afirmando mesmo as tragédias que os abarcam. A força, a
exuberância com que mostram de dentro é inegável: corpos a resistirem, vidas sobreviventes,
apesar de tudo. Corpos que mesmo sozinhos, como o da artista, já carregam consigo a
imagem de um povo, de um povo menor. Povo, percebamos, destinado aos outros. Nan
Goldin não expõe esses sujeitos e a si mesma para serem lembrados meramente, ou para que
se apiedem de suas condições (a delicadeza é a uma forma, mas não a única, nem a principal)
Ela é bastante severa no que expõe, mesmo nos gestos de ternura - a exemplo de dois amigos
numa banheira (uma intimidade escanteada), ou de suas amigas trans no banheiro (a vida
clandestina), da foto de um de seus amigos despedindo-se do companheiro (estamos diante de
um corpo despedaçado pela doença). Há emoção aí, certamente, mas de uma forma
“objetiva”, isto é, com o sofrimento envolvido nesses registros, em espaços ìntimos e/ou
fechados. São expostas finalmente como forma de mostrar o outrem do outro que nega a
possibilidade. Ela mostra cruamente e cruelmente, mas sempre de forma justa – talvez a única
justiça a receberem nesse mundo –, porque expõe sempre em relação (a amizade, o amor, o
segredo). Baixo materialismo de Bataille.
Didi-Huberman (2012b) toma também fotos de grupos, as quais, segundo ele, já
revelam, já mostram um fremir de sua dimensão histórica. É revelando essa dimensão que a
humanidade se apreende, quer dizer, dá um passo em direção ao que antecede e funda, talvez,
a possibilidade mesma de compreensão. Para tanto, faz-se preciso “restituir à singularidade a
clareza de seu aspecto, reunir em séries as „parcelas da humanidade‟ ainda expostas” e
elaborar uma espécie de “comunidade de rostos” (ibidem, p.51), o que significa, certamente,
abrir esse retrato da espécie a seu páthos: as vidas marginalizadas e censuradas em nome de
uma “paz social”, o controle dos corpos e das relações possìveis entre eles (ibidem, p.51-52).
Constituir e expor os povos que falta. Uma forma desse controle está na despersonalização
das singularidades, até o alcance de uma “impessoalidade”, objetivamente cruel. Apenas pelo
páthos, isto é, por um trabalho de tratar o “aspecto humano” a partir de uma aproximação, “no
perigo ìntimo” correndo o “risco de empatia aos corpos confrontados”, pode fazer dessa
distância aparatada uma perspectiva combatida. Lembremos, porém, da demanda dialética
costumeiramente adotada por Didi-Huberman: a aproximação para não perder a importância e
206
implicação do páthos e a distância para ser capaz de refletir sobre isso, sem, no entanto,
apartar-se, ao ponto de sentir-se seguro, ou acreditar olhar do alto o que se passa ao longe.
Um trabalho de precisão, sem dúvidas, precisão infrafina, precisão de passo, precisão de
quadro, a fim de poder estabelecer que
esses são os povos que é preciso expor e não os „eus‟. Mas esses são os
corpos singulares dos quais é preciso se aproximar pra expor os povos numa
construção – uma série, uma montagem – capaz de sustentar seus rostos
livres em sua sorte de seres livres em relação aos outros, na aflição da
alienação ou na felicidade do encontro (ibidem, p.54-55).
Coloca-se, então, o problema de como expor esses povos sem recair naquilo que o
filósofo denomina “o retrato antigo e humanista”, pois ele “recusa duas vezes em figurar os
povos”, diz o autor (2012b, p.56): “uma primeira vez no que se funda sobre uma hierarquia
social e uma linha de partilha onde os homens do poder têm, sozinhos, o privilégio de
existirem em imagens”. Um exemplo são as pessoas (people) das revistas, funcionando como
uma “sobrevivência dessa linha”. As pessoas enfrentam diante delas, com isso, “uma
representação à qual não tem o direito como sujeitos”. Tal representação é a da face soberana,
a qual, da imago romana aos retratos dos marchands florentinos, configura o espaço tornando
a representação da soberania a soberania da representação (ibidem, p.57). A partir de um
“culto da personalidade”, o retrato antigo recusa, a segunda vez, “ao povo a soberania da face
[...] fixando-se sobre a interioridade psicológica do ser individual” (ibidem, p.57-59). Como
se passasse de um extremo ao outro: do soberano personalizado como figura do poder ao
sujeito individual como figura soberana personalizada97. Nesse sentido, quando os povos
começam a ser representados, fazem-nos em “grupos”, grupos de notáveis, ora numa
“dimensão religiosa”, ora numa “dimensão cìvica” (ibidem, p.61). Há sempre um esforço de
captura da potencialidade da imagem num sistema que o categoriza e o fecha para que não se
encontre outra função. Há também uma certa constituição ética aí: aquela do regime
97
Única possibilidade de progresso e valor para Hegel, uma forma de assegurar o aparecimento do espírito, o
que faz da pintura romântica superior mesmo até às esculturas gregas: “O que o indivìduo é não é sustentado e
suportado pelo substancial, pelo que é em si mesmo legítimo de seu conteúdo, mas pela mera subjetividade do
caráter, a qual, por conseguinte, em vez de repousar sobre seu conteúdo e sobre o páthos para si mesmo firme,
apenas repousa formalmente sobre sua própria autonomia individual” (HEGEL, 2000, p.312). A pintura
romântica, de sua parte deve ser capaz de expressar exatamente esse caráter da subjetividade: “[...] a pintura tem
de apreender preferencialmente aquilo cuja exposição ela pode garantir por meio da forma exterior [...] Isto é a
concentração do espírito em si mesmo que fica vedada à escultura exprimir, ao passo que a música novamente
não pode se deslocar para o exterior da aparição do interior e a poesia mesma apenas pode fornecer uma intuição
incompleta do corporal” (idem, 2002, p.211).
207
rancieriano, qual seja, da que a arte seja sempre algo além dela mesma. Uma insuficiência
embaraçosa configura-se, então.
Rembrandt (1606-1669) foi, diz Didi-Huberman (2012b, p.63), um daqueles que
conseguiu fazer o jogo, de tal maneira a subvertê-lo, ao ponto de mostrar mais do que se
gostaria. Com A lição de anatomia do doutor Nicolaes Tulp (1632), encontra-se “qualquer
coisa de suas fragilidades, de sua nudez, de sua vocação ao tormento (na maneira singular
com o qual Rembrandt aproxima a textura dos rostos tomados entre carne, luz e sombra)”. A
fragilidade, nudez e vocação dos rostos que aí se apresentam. Além disso, esses sujeitos estão
expostos e confrontados com a “cruel singularidade da carne (o cadáver anatomizado)”, ao
qual assevera: “é apenas, então, que podemos contemplar, num mesmo espaço, a vida ética e a
vida nua”. É também, apenas aì, nessa relação mostrada, que “o quadro busca instaurar a
dimensão tátil [...] ligada ao desafio, para toda pintura, de figurar o encarnado, a pele, o
contato [...]” (ibidem). Encontramo-nos nessa dimensão no “domìnio bem mais inquieto de
um encontro sempre problemático entre a psyché do rosto e o somà de sua nudez”. Se o grupo
de Rembrandt ainda figura um grupo de poder (quem é o morto, essa carne, que se mostra
quase obscenamente, lembrando o interior de qualquer um?), revela-se, igualmente, como um
“olho da história” a tornar-se “um olho que tudo questiona, um olho tomado numa tensão
perpétua entre isolação do rosto singular e sua fusão no grupo [...]”. Tal olhar por Rembrandt
revelado, capaz de fazer coincidir um “olhar clìnico” com um “olhar artìstico”, consegue “pôr
a questão humanidade compreendida tanto como singularidade quanto como espécie” (ibidem,
p.63-64).
No plano inferior, o corpo (a espécie) é exposto aberto duas vezes: a iluminação que
destaca todo o trecho e, mais profunda ainda na superfície, porque cruel, a carne do corpo (o
outro da pele, já o disse Didi-Huberman) como um fora a perturbar a composição. Quantos
olham verdadeiramente? Dois, talvez. Apenas um aproxima-se para ver melhor, dá atenção. A
espécie talvez o interesse mais. Os outros, por sua vez, posam, expõem suas singularidades,
ainda que reguladas, a fim de deixarem suas marcas: gestos comedidos, posição estática (as
mãos do médico, quase canônicas, poderiam estar segurando um bebê-Jesus). Tudo se revolve
num plano de fundo negro. Um se volta, mas também se distancia do outro. Uma constelação
da face sobre uma mesa de dissecação (mesa de montagem, segundo quadro, mesa de
adivinhação – corpo sem órgão?): Astra e monstra. Um corpo, fonte de conhecimento, e, ao
mesmo tempo, um espelho, no qual o que reflete o faz de maneira alterada, ou seja, o que se
sabe atravessado pelo não-saber. Poderíamos comparar à obra O perverso (2006) de Adriana
Varejão. Tudo que se encontra dentro é reflexo distorcido. As linhas dobram, como dobram as
camadas de pele. O que se vê não é do âmbito do agradável, mas é o que une a todos. As
bordas, que apontam para as estrelas, um conjunto de constelação cerca isso que se aprende.
A piscina reflete em sua superfície o dentro – que é a superfície alterada e, junto, expõe o que
liga toda a humanidade e o que, principalmente, está para além dela.
das fotografias das histéricas de Salpêtrière e constatar que tais regras se apresentam ali: a
paciente dominada por amarras ou à mercê (por hipnose) dos médicos e fotógrafos, a
esquematização dos registros e repetição das poses, a fim de mostrar o ciclo completo do
Grande ataque e depois o uso de cortinas, determinados objetos (camas, cadeiras, camisas de
força, camisolas) e posicionamento para dar uma forma estética (espetacular até) controlada
daquelas imagens. “O ideal é submeter o grupo sob a autoridade do Mesmo ou do Uno:
mesmidade de cada um para formar um único todo social, unidade da regra que reúne
socialmente cada um com todos” (ibidem). Por isso, o fascínio e a demonstração de força com
fotografias de grupos articulados e coreografados como os grupos das forças armadas, ou
mesmo de uma grande massa de corpos reunidos. “Numa tal perspectiva, o grupo é pensado,
no pior como rebanho, no melhor como um grupo ou bando” (ibidem).
Tal opção pela regra permitia a criação de variados quadros sinópticos, de frenologia
(que Balzac tanto apreciava e não deixava de utilizar como recurso para construir suas
personagens), fazendo do grupo um grupo de suspeitos, com uma fisionomia semelhante, ao
ponto de regular tipos de criminosos (ibidem, p.67), ao ponto de elaborar-se quadros de
orientação de identificação de “suspeitos” (pela raça, pela orientação sexual, pela fisionomia,
pela localização, pela classe...). “Os totalitarismos da raça ou da classe acabam sempre por
submeter a espécie humana a uma regra do aspecto humano. Ao invés do rebanho, a tropa
representa seus ideais, e se mostra sempre „em formação‟, sempre orientada por sua vontade
de vitória ou de glória” (ibidem, p.68). Quer dizer, formou-se um grande aparato de guerra
contra a exposição dos povos, o que significa impedir a proliferação de sua inquietação, entre
apresentar um povo em suas singularidades, sem determinar uma forma e uma regulação. A
noção mesmo de humanidade é constantemente e contumazmente enquadrada e limitada a um
aspecto, a privilegiar os poderosos, as celebridades e cada rosto representante da própria
vacuidade em qualquer forma de reconhecimento, a não ser a da exclusão dos rostos. Sontag
(2003), de sua parte, esclarece-nos que todo esse processo pode ser mais sutil porque mais
inconsciente. Os fotógrafos, que foram registrar as guerras, desejavam mostrar, expor,
cruamente e cruelmente (duas formas plásticas da “objetividade”), o que ali se passava.
Porém, eles não deixavam de apresentar de tal forma a subexpor os “inimigos” em prol dos
aliados. Ou mesmo, a percepção de tal perturbação já era o suficiente para que não se
mostrassem tais imagens. Quando escapam ao enquadramento, ou retornam a ele ou são
destruídas. Até hoje a estratégia se repete: as imagens estão sempre acompanhadas de
palavras, de textos e discursos. Harun Farocki, para falar do napalm utilizado pelos Estados
Unidos da América na guerra fria (Inextinguishable fire, 1969), recorreu ao subterfúgio de
210
queimar a própria mão com um cigarro (o qual possui uma intensidade centenas de vezes
menor que a da bomba). Nesse momento preciso, ele nada fala; apenas expõe e dá tempo à
exposição. Expor de forma que as pessoas não fechassem os olhos.
O próprio projeto, repleto de regras para não ver, em larga medida universalizante,
torna-se, por sua vez, totalitário: em lugar de abarcar a diversidade das possibilidades, aberta
aí à própria possibilidade de (re)configuração e (re)partilha dessa divisão, encontra somente a
esquematização em vias de um enquadramento, no qual a limitação, a posse e o domínio
tomam o processo de assalto, interrompendo-o, não como faz a imagem dialética para abrir o
movimento à reflexão, mas para impedir esse momento – parafraseando Benjamin, ainda não
vivemos uma verdadeira revolução porque elas foram interrompidas antes de terem chance. O
projeto, nesse sentido, foi sequestrado, ao ponto de desenvolver uma síndrome de Estocolmo.
O trabalho, então, consistiria em retomar e restituir os afetos próprios de um tal projeto:
universalizar na implicação das diferenças; elaborar a constelação da humanidade a partir das
diferenças em suas distâncias próprias. Tudo isso, certamente, passa pelo aparelho, passa
pelas limitações e impossibilidades do aparelho. Mas isso não significa abrir mão da
possibilidade de jogar com ele. Como fez Duchamp, por exemplo, a trabalhar com precisão,
com paciência; trabalho igualmente nas próprias ferramentas, jogando com o acaso como
forma e confrontar os aparelhos e ampliar os pontos de vistas possíveis. Pois, sabia ele, os
próprios aparelhos estavam condicionados por um “aparelho de poder”, capaz de fazer do
visível um determinado e do impensado um esquecido forçosamente recusado, porque tais
aparelhos estavam enredados nos “jogos do desejo e desafios polìticos de todos aqueles que
„demandam ver‟, de todos aqueles que suscitam o visìvel ou fazem uso das imagens” (ibidem,
p.71).
O trabalho está em fazer jogar contra esses desejos e desafios, torná-los um esforço
de singularização, o que significa lidar com os enquadramentos desse aparelho: aproximar ao
ponto de contato; afastar ao ponto da estranheza de uma estrutura ferida e aberta. Não se trata,
por exemplo, de fazer como Eugene O. Goldbeck (1892-1986), que, com suas fotografias, faz
corpos reproduzirem a insígnia de uma base militar. Tais corpos docilizados (apesar de fremir
de desejo de destruir e, muito provavelmente, de matar), na imagem são reduzidos a pontos
indiferenciados, na composição de uma forma, numa coesão tanto formal quando social. Para
romper isso seria preciso aproximar, mudar o enquadramento, ver os rostos dissolvidos no
emblema, ver cada rosto, reconhecer cada singularidade, perceber que alguém olha para um
lado, que outro abaixa a cabeça, e que, talvez, um terceiro sorri. Porém, não se trata de um
“olhar clìnico”, como se cada uma dessas singularidades fosse enunciável e “todo visìvel
211
Figura 18 - Lackland Air Base San Antonio (Eugene O. Goldbeck, 1947), com detalhe ao lado.
Fonte: encurtador.com.br/lAIT1 e encurtador.com.br/tyR02
Isso, diz o autor, exige uma espécie de “gesto transgressivo”, de tal modo a não ser o
bastante que um corpo, ou um rosto, “apareça como outro diante de nós, não é suficiente que
seja captado: é preciso ainda que emerja, que coloque em questão a superfície mesma e o
espaço da representação”. Para tanto, o rigor, ao ponto infrafino, é indispensável. Ele garante
a aproximação capaz de criar contato, capaz de criar uma “experiência intersubjetiva [...]
próxima da auscultação”, ou seja, “escutar o corpo do outro [...] Mas auscultar significa que
tocamos com o tato, que olhamos escutando, que apalpamos sem ímpeto, sem rasgar, sem
esvair a ìntima dor do outro” (ibidem, p.80-81). O tato surge aqui como uma possibilidade de
contato, que mais do que comprometer a aproximação, abre a própria possibilidade de olhar.
O tato implementa uma “fenomenologia” capaz de nos fazer compreender a dor do outro, na
medida em que ela nos concerne dessa distância. A dor do outro nos toca nessa distância, ao
arrepio da pele, ou ao tremor da carne. Toca-nos justamente como distância, colocando,
assim, o saber produzido em perspectiva dessa distância que é dor. As imagens podem, nesse
interim, assumir “qualidades táteis”, a partir de “acidentes de textura, dos grãos de pele das
rugas, dos pelos que, às vezes, produzem sobre a imagem um efeito incômodo, cruel de saída
de fora do plano” (ibidem, p.82). Essas possibilidades chamam ao contato, enquanto o
enquadramento pode, seguindo o modelo, desencarnar e afastar.
Uma verdadeira dialética com a exigência de encontrar o melhor espaço possível (o
justo espaço) do que seja possível falar e fazer ver os povos (e os rostos) que desaparecem (o
espaço justo). “Esse movimento complexo, onde jogam [...] o espaço e a espécie, aparece-nos
213
como polìtica em seu fundo”, uma polìtica no fundo intratável “enquanto resistência do
aspecto humano [...] ao Todo de seu „tratamento‟ institucional” (ibidem, p.83). Segundo Didi-
Huberman (2012b), tal abordagem leva a uma “perpétua construção dos aspectos humanos
confrontados às condições históricas de sua existência”, fazendo da exposição uma “tarefa
infinita”, exigindo, num termo cunhado por Goethe, “um empirismo cheio de tato” (ibidem,
p.84-85). Processo, construção, especulação, experimentação, isto é, termos que habitam a
constelação da heurística, no sentido muito concreto de escapar, lutar, resistir a toda
possibilidade de fechamento: de sentido, de poder e de domínio. Vemos, a partir das
fotografias, todo o projeto humanista tornar-se uma jaula, servindo para censurar ou
espetacularizar os povos, duas formas extremas e não-dialéticas de expor os povos, seja ao
desaparecimento, por negar-lhes a imagem e a palavra, seja por tomá-las como totalmente
enunciáveis, logo sem qualquer chance de invenção, de abertura, de não-saber, fundantes da
possibilidade mesma de devir e reconhecer-se como povo na própria experimentação.
É nessa perspectiva que o filósofo tomará como potência heurística, isto é, o trabalho
de expor os povos “como uma construção poética, uma fábula, e como uma autêntica
observação da realidade” (ibidem, p.210). A heurística funciona como plano operatório paras
se observar a realidade, não apenas autenticamente no sentido do procedimento, mas também
da própria realidade. Todo o dispositivo apresentado mostra os esforços, justamente, de
controlar o que ele diz captar realmente: não a representação do soberano como soberania da
representação, não a regulação, a regularidade e o regulamento do processo de representação,
não a escolha de rosto a representar o “comum” (no fim, apenas uma determinada
representação de uma identidade, acachapante da diferença). Trata-se de um trabalho do olhar
em relação à aparição dessas coisas, buscando meios capazes de fazer jus ao que aparece,
tornando-o cognoscível e não, simplesmente, redutível a um discurso. Algo como disse
Benjamin sobre a constelação, ou mesmo a perspectiva de Adorno a respeito do ensaio. A
heurística compõe-se desses elementos, ampliando seu campo ao ponto em que, como uma
segunda pele, entra em contato com o real, não para corresponder a ele, mas para dobrar-se e
redobrar-se com ele, elaborando montagens, tais como fizeram Eisenstein, Brecht, Godard,
Warburg, Benjamin, Duchamp, etc. Uma máquina de guerra a perturbar as teorias, as políticas
e todas suas formas de expressão e configuração de práticas.
O plano heurístico aqui constituído entrelaça os elementos da realidade, a fim de
justapor uma distância, por mais próxima que esteja, criando uma perspectiva e, ao mesmo
tempo, pontos de fuga. Não se trata tanto, nesse caso, de para onde ir, qual horizonte
constituir, mas de onde estou e o que posso fazer daqui. Nesse sentido, muito mais um
214
98
“É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o
uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída;
escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma” (DELEUZE E GUATTARI, 2019, p.21). E mais
a frente acrescentam: “Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele é estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas de desterritorialização
pelas quais ele foge sem parar” (idem, p.25). No corpo do rizoma nada é fim ou mesmo ponto de partida.
Estamos sempre no meio, no entrelaçamento, no encontro, no cruzamento, prontos a fugir para outro lugar, para
outro lado.
215
tarefa formal ainda mais árdua, porque ainda mais precisa, ainda mais minuciosa, ainda mais
crítica, descobrindo de dentro seus próprios princípios e estruturas. Nesse processo, Didi-
Huberman (2012b) estipula, por assim dizer, duas formas de considerar tal perspectiva, isto é,
de inventar modos de exposição. O primeiro, a “partilha de comunidade” e, depois, a
elaboração do que denominou “poema dos povos”: no primeiro, temos o que se deve mostrar
mais precisamente, e no segundo, um procedimento a conjugar com essa partilha. Lança a
tarefa o autor (2012b, p.93):
Cultura seria o nome desse “espaço comum de todas as construções”, sem recorrer
com isso à criação de um ministério, uma instituição com “fins orientados e uma polìcia dos
meios frequentemente liberticidas” (ibidem, grifo nosso). A tarefa, vejamos, é bem diferente
de qualquer perspectiva de representação: um processo sem término, porque inacabável;
ilimitado, porque aberto; sem fim, porque está sempre em reelaboração de seus próprios fins,
não como final, mas como princípio orientador em vista da própria construção. Não há
exigência teleológica, senão a de colocar em jogo a própria construção, na processão de suas
relações sempre sintomáticas, isto é, inquietantes, desdobradoras e florescentes. Na
composição de uma comunidade trata-se, então, de pensar simplesmente a “humanidade como
fim”, formando, todavia, um “humanismo mais inteiro”, ou seja, “um humanismo capaz de
considerar o homem com sua incompletude mesma, o pensamento com sua loucura mesma”
(ibidem, p.95). Um humanismo com “fins ilimitados – os fins autênticos, os fins que não
serão reduzidos a tornarem-se meios servis a outros fins” (ibidem, p.97). A tarefa é, pois, a de
buscar tal comunidade, a de um humanismo capaz de considerar-se a partir de sua própria
ferida, de uma abertura profunda e abismal, sem fim.
Para tanto, é preciso não fazer a confusão entre estabelecer um “lugar do comum” e
um “lugar comum”. No primeiro, temos a busca de um lugar no qual qualquer um pode tomar
parte, o que significa dizer que tal lugar é capaz de lidar com as relações conflituosas das
diferenças e suas distâncias. No outro caso, por sua vez, trata-se de um média vazia, isto é, da
confecção de um lugar supostamente representativo, a partir da eliminação das diferenças, em
nome de uma alegada identidade. Tal distinção, afirma Didi-Huberman (2012b, p.98),
depende da nossa “vontade de olhar”, a qual, investida de “uma certa responsabilidade
216
polìtica”, consistiria, pois, em “não deixar definhar o lugar do comum enquanto questão
aberta no lugar comum enquanto solução toda encontrada”. Percebemos que a questão do
lugar do comum é uma questão tanto política quanto heurística, o que nos leva a buscar
levantar hipóteses sobre as possibilidades de sua construção, sem que isso se absolutize numa
resposta única e final.
Cabe-nos, então, tentar elaborar um trajeto desse comum, sem, entretanto, desejar
encerrar, ou sequer abarcar totalmente, os discursos acerca desse tema. Tentamos, pelo
menos, acercar-nos de algumas noções para poder colocar o debate do autor numa posição em
relação aos usos e às funções do comum no seu paradigma político-estético, de uma
perspectiva, isto é, atravessado pela operação heurística99. Ao fazer uma distinção entre “lugar
comum” e “lugar do comum”, no elemento genitivo a conectar os dois termos, o filósofo
procura relançar o debate para o âmbito de construção de um lugar que não é meramente da
instalação de algo que usa os sujeitos, ou pelo qual se identifiquem (nação, Estado, ideologia,
patriotismo...), mas que, na sua configuração o próprio termo altere-se e seja o lugar de
alteração. Em outras palavras: o comum não é mais um conteúdo (o que nos torna comuns? O
que identificamos como conteúdo do que nos faz sujeitos comuns?), mas de uma forma. Não
uma forma já dada, mas sim por se fazer, dizem Dardot e Laval (2017, p.17). Primeiro, para
reaver, ou, nas palavras de Didi-Huberman, para restituir o comum e seu lugar, é preciso
entender que comum associado, ora a comunismo ora à comunidade, não é capaz de dar conta
da sua potência heurística.
Dardot e Laval (2017), por sua vez, tentam recuperar outras possibilidades, a
exemplo de numus: ao invés de focar apenas no com – cuja partilha com comunidade e com
comunismo acaba por paralisar sua proliferação de sentidos –, deve-se focar na outra parte da
palavra. “[...] [M]unus, nas línguas indo-européias, pertence ao vasto registro antropológico
da dádiva e designa ao mesmo tempo um fenômeno social especìfico”. De um lado, “tipo
partículas de prestações e contraprestações” e de outro lado, “o que é dado em forma de
99
Um desenvolvimento extenso desse tema pode ser encontrado em Comum: ensaio sobre a revolução no século
XXI de Pierre Dardot e Christian Laval. Ambos não apenas retomam os fundamentos e principais
desenvolvimentos desse debate acerca do comum, como tentam atualizá-lo e levá-lo mais adiante. Nosso
interstício sobre o tema terá como base tal texto, fazendo-se a seguinte ressalva: falta, a nosso ver, a preocupação
com uma perspectiva corporal crítica do acesso ao comum na obra dos dois autores, coisa que poderia ter sido
considerada em vista, por exemplo, de Eros e Civilização de Herbert Marcuse, por um lado, ao qual falta, por
sua vez, o trato com uma questão tátil, e as considerações a perturbar a teoria da dupla, trazida por Silvia
Federici em Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, não só do ponto de vista do papel da
mulher na construção do comum, com o grande esforço de repressão corporal, conforme os capítulos 2, no tópico
“As mulheres como novos bens comuns e como substituto das terras perdidas” e o capìtulo 3, “O grande calibã:
a luta contra o corpo rebelde”. Na medida do possìvel, tentaremos considerar tais faltas, pois a política na obra
de Didi-Huberman não vem sem tais questões de páthos.
217
ser busca, não ser reconhecido, mas ser contestado: ele vai, para existir, em
direção ao outro que o contesta e por vezes o nega, a fim de que ele não
comece a ser senão nessa privação que o torna consciente [...] da
impossibilidade de ser ele mesmo, de insistir como ipse, ou caso se queira,
como indivíduo separado. (ibidem, p.17)
Enfim, diz o pensador: “a existência de cada ser chama o outro, ou uma pluralidade
de outros” (ibidem). Para Jean-Luc Nancy (2016), o ser e o comum do homem será seu ser em
comum102. Não é a essência individual que faz o homem reconhecer outro como homem, mas
o que, daí, define seu ser, como os que “se apresentam” na medida em que “comparecem, ou
são expostos, apresentados ou ofertados uns aos outros. Essa comparição não se acrescenta ao
seu ser, mas é seu ser que vem a sê-la” (NANCY, 2016, p.100). A qualidade desse ser em
comum do autor é a “partilha (ou exposição)” (idem, p.108). Só é-em-comum enquanto
comparece junto e expõe-se, expõe partilhando o comparecimento. A política inerente a esse
comum seria, então, o trabalho de “abrir a comunidade para ela mesma” (ibidem, p.128), isto
é, expô-la para si mesma (como comunidade), e não simplesmente a um “destino” ou a um
“futuro”. A comunidade pensada por Nancy (2016) figura, assim, muito mais espécie de
posição da posição, na qual a “essência é exposta”, isto é, é posta fora de si mesma para si
mesma (ibidem, p.132-133) – trata-se de um ter-lugar do lugar onde a exposição se dará,
posicionar-se na própria posição. Esse si mesmo, esclarece o pensador “não é sujeito. Ser para
si mesmo e não ser em si mesmo é a condição de ser da existência enquanto exposição”. Ao
expor partilhamos a própria exposição que, por sua vez, nos partilha, abrindo-nos a um
“devir-outrem que não comporta nenhuma mediação de si e do outro” (ibidem, p.135). O que
aparece, então, são “dinâmicas extensivas/intensivas de superfìcies de exposição” e, portanto,
“não há comunhão, não há ser comum, há o ser em comum” (ibidem). Há a partilha103. O que
fundamenta, então, o comum, na perspectiva desses autores é a completa ausência de
fundamento: não há ser do comum, uma essência, senão a atividade, ou a afetividade, da
partilha do ser em comum, ou mesmo, da ausência de comunidade como elemento de
constituição do devir-outrem do homem.
Tal esforço, certamente, visa arrancar o comum da noção de submissão ao “próprio”
do singular ao comum, como desindentificação da singularidade. Porém, o comum não precisa
102
“O ser não é nem substância, nem causa da coisa, mas é um ser-a-coisa onde o verbo „ser‟ tem valor transitivo
de um „por‟, mas onde o „por‟ não pousa sobre nada além (e em virtude de nada mais) do que sobre (e em
virtude de) o ser-aí, ser-lançado, libertado, abandonado, ofertado pela existência. (O aí não é um solo para a
existência, mas seu ter-lugar, sua chegada, sua vinda – ou seja, também sua diferença, seu retraimento, seu
excesso, sua excriação)” (NANCY, 2016, p.132-133).
103
“Não há tecido, nem sujeito ou substância do ser comum, e, por conseguinte, não há rasgo desse ser. O que
há é partilha” (NANCY, 2016, p.62).
219
abrir mão da singularidade104, pois é na partilha, na exposição que o singular encontra sua
forma, ao ser em comum: não como reconhecimento, mas como colocação em jogo da
insuficiência que nos faz ir em busca do outro, a fim de constituirmos nosso ser: “Só há
comunidade nas relações singulares” (TIQQUN, 2019, p.32). Então, não se trata no comum de
procurar o comum que somos, mas de por-em-comum, ou seja, como um trabalho sem
fundamento, no qual é o próprio por em comum que funda o ser do comum, como ser em
comum: “apenas a atividade de por em comum determina o pertencimento efetivo à
comunidade polìtica” (DARDOT E LAVAL, 2017, p.251). É própria dessa política o trabalho
de tomar parte [“koinónein – igualdade no tomar parte” (idem, p.252)], e, ao tomar parte,
colocar em questão expondo, isso no qual se toma parte. Esse pensamento serve-nos para
mostrar que o comum não é o que achamos no fundo de nós mesmos ou num lugar, mas
aquilo que inventamos. Não é um a priori determinado, mas o trabalho político de imaginá-lo,
a partir de nós mesmos, das partilhas, de constituir um lugar para esse comum 105. O que
Dardot e Laval (2017) fazem é um trabalho extremo de mostrar a construção de muros
(teológicos, políticos, filosóficos) sobre as propriedades do comum.
Contudo, como nos diz Agamben (2013a, p.22-23), ao fazer isso, o abismo das
impropriedades se aprofundou. O nosso trabalho, hoje, seria, então, apropriarmo-nos de tais
impropriedades (tudo aquilo que parece não constituir, ser próprio do comum) e dos outros
usos. O uso, para ele, seria a forma de passar do “próprio ao comum” (idem, p.28), porém, se
a questão política (e ética) é a apropriação das impropriedades, o uso não se limita a tal
passagem (ou a sua indiscernibilidade, como gosta de pensar o filósofo, entre ambos). Na
verdade, o uso faz com que o que é impróprio seja partilhado em comum, a partir do que se
constitui, não uma apropriação, mas exposição dessas impropriedades como comum106. Se a
propriedade for pensada como o trabalho de constituição de um ser, de sua essência, então, a
impropriedade seria tudo aquilo que está fora do ser, fora da essência (existência?). Nesse
caso, não há impropriedades nessa forma de comum, porque o comum não constitui
104
“Um ser singular não surge, em se ergue sobre o fundo de uma identidade confusa e caótica se seres, nem
sobre aquele de sua assunção unitária, nem sobre o fundo de um devir, nem naquele de uma vontade. Um ser
singular aparece enquanto finitude própria: por fim (ou no começo), ao contato da pele (ou do coração) de um
outro ser singular nos confins da mesma singularidade que é, como tal, sempre outra, sempre partilhada, sempre
exposta” E mais a frente, acrescenta: “A comunidade significa, por conseguinte, que não se dá ser singular sem
um outro ser singular [...]”, o qual abre o espaço para relação que não se dão apenas entre homens, mas
considera, ou melhor, só é possível realmente, com a mulher e com os animais (NANCY, 2016, p.59-60).
105
“Na comunidade de cada forma-de-vida, entram também comunidade de coisas e de gestos, comunidades de
hábitos e de afetos, uma comunidade de pensamentos” (TIQQUN, 2019, p.33).
106
“O comum exclui categoricamente qualquer ontologia do comum” (DARDOT E LAVAL, 2017, p.291), em
crìtica direta a Nancy, para quem há um esforço de “dissociação entre polìtica e ser-em-comum”. E, num sentido
partilhável, “[...] todo acontecimento, enquanto irrupção de sentido, instaura um comum” (TIQQUN, 2019, p.36,
grifo nosso).
220
propriedades, mas relações – no fim, o que se definirá como “propriedade” será a apropriação
contingencial convertida em próprio, ou seja, acumulação primitiva. “Disso resulta que
comunidade não consiste na partilha de uma „propriedade‟, mas na partilha de um „dever ou
obrigação‟” (DARDOT e LAVAL, 2017, p.294). Nesse sentido, mais do que um
fortalecimento, ou primeiridade do ser (como aconteceria, segundo os autores, em Nancy),
temos a imanência do “domìnio público” (a partir de Hannah Arendt), os sujeitos encontram
uma “tarefa”: “abrir espaço no qual pode se dar a afirmação do comum na inequivalência”
(idem, p.295). Tomando o pensamento de Roberto Esposito, os autores tentam elaborar uma
prática que não seja a “impolìtica da comunidade como defecção”. Tratar-se-ia, pois, de uma
“biopolìtica afirmativa”, que se traduz, em Dardot e Laval (2017, p.296-297) em “agir
comum”: “não se trata do que fazemos juntos, que pode ser tanto uma viagem como um
protesto, mas do modo de ação proveniente da coobrigação denotada pelo múnus latino”. Tal
tarefa é a da co-produção, numa produção conjunta que desenha, faz lugar disso que é
comum. Não se trata, então, da apropriação das impropriedades, mas da instituição do
inapropriável como uso “para preservá-lo e transmiti-lo” (idem, p.298).
Independentemente dos termos empregados, no fim, o que está em questão é a tarefa
de criação do comum, e essa criação não é a determinação de conteúdos, matérias,
propriedades, substâncias, essências, mas de formas, um ato de “fazer ser” infundado, surgido
das relações, do trabalho107 de exposição dessas relações em formação. Para eles, o comum
deve ser, constantemente, instituído, isto é, posto em partilha, criado, inventado, exposto.
Nesse sentido, ele não está dado a priori, e, por sua parte, também não está peremptoriamente
garantido, assegurado. O processo de instituição e de partilha configura-se como uma
atividade constante. Aí é preciso ver igualmente o trabalho de abertura desse comum nunca ao
que preenche como essência ou substância, mas como o que sempre está em exercício de
formação – nessa perspectiva, talvez, tenhamos uma aproximação do próprio exercício ético
kantiano, do imperativo categórico a colocar e garantir mais a forma-de-lei que a própria lei,
com a exceção expressiva de que no caso do comum visado aqui, não se deve buscar a lei da
forma nem mesmo a forma da lei, mas a colocação em jogo da forma e da lei. Pois é
possível, no caso das primeiras, chegar a um comum restituído a seu sentido jurídico-
teológico, o qual naturaliza qualquer coisa, ainda que ao uso comum.
Vejamos o exemplo exposto por Federici (2017, p.191): A partir de uma aliança
107
“Trabalhar é sempre engajar-se num agir comum de dimensões morais, culturais e, muitas vezes, estéticas”
(DARDOT e LAVAL, 2017, p.514). Muito importante essa anotação, pois o trabalho estético é aqui pouco
lembrado.
221
O comum pensado como “bem” acaba por dissociar a potência heurìstica de suas
formulações. A preocupação de Didi-Huberman em pensar e redefinir um lugar do comum, ao
invés de um lugar comum perpassa a noção do comum instituir um bem, o qual poderia ser
apossado. As perspectivas de Blanchot e Nancy, por sua vez, e, talvez, buscando a dita
afirmatividade da biopolítica fez com que Dardot e Laval não percebessem, de uma não-
afirmatividade, ou melhor, uma afetividade, mais do que qualquer negatividade, estivesse
cumprindo este papel: arrancar da possibilidade de posse a posse da possibilidade108 do
comum. O que eles propõem não é uma comunidade negativa, mas inconfessável
(confessando a insuficiência, isto é, a abertura) e inoperada (abrindo-a à cesura, ao
contrarritmo de seu movimento para dar outras formas). O que temos em relação ao comum aí
é, assim, um processo político de operação heurística: abrir para fazer meio, fazer do meio o
plano de composição desviante do próprio jogo político. Se há algo a ser instituído, então, é
isto: o comum como operação de cesura, de diferenciação, de constituição de lugares fora do
que toca cada sujeito. E isso, não necessariamente, significa um exterior desses sujeitos, mas
processos e procedimentos de subjetivação a lançá-los em jogos de exposição, de porem-se
fora para partilhar, partilharem a existência, na medida em que se expõem. Nesse jogo, o
comum não é um natural apropriado, gratuito, mas o que se institui enquanto se expõe,
enquanto se demonstra, num devir-outrem, não para subjugar, como acontece com as
mulheres, mas para com-partilhar e com-parecer no mundo, coletivamente, comunitariamente.
Ser-em-comum também pode se dizer: estabelecer relações num espaço em que se passa de
um para o outro, isto é, emancipação. Não há criação de lugar do comum sem emancipação.
Para Didi-Huberman, então, a construção desse lugar é, primeiro, uma questão de
conhecimento e, ao mesmo tempo, tem um “dom recìproco” capaz de nos levar a uma noção
de “reserva instintiva de assumir qualquer poder” seja em nome de sua potência, seja em
108
“A possibilidade é muda, não ameaça nem maldiz, mas aquele que, temendo morrer, deixa-a morrer é como
uma nuvem que frustra uma espera do sol” (BATAILLE, 2016, p.70).
222
nome de sua impotência, o que permite não apenas “ignorar as estruturas” como também
elaborar sua partilha: “sua exposição manifesta sua colocação em partilha” (ibidem, p.100-
101). Partilha, não de uma “reunião”, “divisão”, “assunção” ou “dispersão”, seguindo Nancy,
diz o autor, mas de “olhares”, de uma “compreensão” provada por uma “alteração – do
sentido, do aspecto –, então, de uma desidentificação” que é “dom do outro”. A formação, a
colocação em forma de uma comunidade passa, pois, pela partilha de uma perda (ibidem,
p.101-102).
Expor, então, significa tanto expor a uma partilha quanto expor a um perigo: “a
primeira tarefa do pensamento político seria reconhecer a potência do dom e a fragilidade
inerente a essa exposição” (ibidem, p.108). Por um lado, a potência de fazer com que surjam
novas formas e novos sentidos para a comunidade, abrindo-a às singularidades, ao ponto de
reconfigurá-la; por outro lado, a fragilidade, a qual se coloca a própria estrutura da
comunidade, demandando novas possibilidades de sentidos, o que pode significar uma nova
reestruturação dos papéis, funções e ordenamento social, o que quer dizer, um risco de perda
da posição ou do lugar. No fim, a partilha põe em forma, coloca a estrutura em movimento,
alterando as próprias estruturas de poder, o que leva a uma importante habilidade em dispor-
se a “abrir-se ao outro”: “É porque é preciso pensar o ser-junto além da assemblage, num
íntimo afrontamento da comunidade consigo mesma, que é bem a partilha” (ibidem). Essa
tarefa, nodal aí, cabe à imaginação, afirma o filósofo. É ela que é capaz de “fazer valsar as
aporias doutrinais”; é capaz de “propor novas combinações” e, a partir daì, de “alterar e
reinventar a figura humana no espaço mesmo de sua comunidade” (ibidem, p.105-106).
A política, notemos, permeia todo o processo, como processo heurístico: a
comunidade só se torna humanista, verdadeiramente, quando, abrindo-se aos outros,
experimenta uma perda; perda tal que as une, constituindo um lugar do comum, onde a
alteração e a reinvenção colocam em questão as figuras e aspectos humanos, recompondo sua
própria figura, uma do tipo inquietante, heurística. Tal abertura, por sua vez, significa abrir
lugar para os sem-lugar, dar a palavra àquelas e àqueles que não teriam (ou tiveram) direito à
palavra, “fazer dos povos o fora-do-quadro, o fora-do-campo da representação clássica”,
incorporar aquela parte do povo que se chama plebe (ibidem, p.107-109). Pensemos como o
paradigma do escravo retorna, toma lugar e demanda sua parte, sempre fora, sempre
recusada. Nessa perspectiva, a plebe deixa de ser a parte abandonada e sem lugar, para
tornar-se a “margem [...] margem de liberdade, isto é, agenciamento crítico e espaço de
soberania” (ibidem, p.114), onde se instaura um “humanismo autêntico, quer dizer, o
humanismo como filosofia experimental e abertura de possibilidades impensadas até na esfera
223
109
Rancière (2018, p.33-34), de sua parte, elabora a seguinte inquietação, que não deixa de ser pertinente: “O
filme em questão não deixou de repetir o mesmo roteiro. Ele esperou os personagens na saída da fábrica, como o
apaixonado por Marilyn em Só a mulher peca. Nunca se interessou pelo que se dizia lá dentro. E só entrou para
filmar falsos operários, gângsters que queriam roubar o dinheiro do pagamento”. No limiar do visìvel,
desdobram-se, não “invisìveis”, mas intenções.
224
haver identificação com Outubro ou A greve de Eisenstein quando com Triunfo da vontade de
Leni Riefenstahl. No fim, o próprio filósofo parece intuir a necessidade do valor de uso dessas
imagens (de modo que nenhuma está verdadeiramente segura110), quando pede a politização
da arte. Temos aí duas formas, por exemplo, de tratamento dos corpos: o corpo num
agenciamento coletivo mostrando o que pode fazer (a dança, o trabalho, o riso...), e o corpo
coletivamente arquitetado em prol de uma demonstração de poder (força, controle, equilíbrio,
coreograficamente...), uma despotencialização em nome do poder.
O que até então se buscou foi uma espécie de “economia da figuração”, o que
reduziu o povo à noção de “nação”, ou a um fechamento do “povo das imagens” (ibidem,
p.146-147) – Triunfo da vontade. Nem uma forma alargada na qual a singularidade se
perderia numa massa difusa, nem naquele rosto das revistas e propagandas, faces
representantes do poder e de um ideal fundado na exclusão. O cinema, diz o autor (2012b,
p.148) possui o que ele denomina “virtude polìtica”, qual seja: a de “buscar os rostos
perdidos”. Esses rostos aparecem, paradoxalmente, nas faces secundarizadas nos filmes: os
figurantes, que “são a massa obscura diante da qual brilham as „vedetes‟ [...] ou as stars”.
Massa obscura, massa esquecida, massa da noite: “Os figurantes são a noite do cinema
quando o cinema se quer uma arte para fazer brilhar” (ibidem, p.149). O que é ser figurante?
Parece que sua definição perpassa um conjunto de negações: “não-ator por excelência”, “ser
para não comparecer”, “fundo na massa”, “servir para nada”, “um rosto requerido para ser
sem rosto, um corpo para ser sem corpo” (ibidem, p.150-152). Porém, há aquele cinema que
não só se serviu desses corpos e rostos dessa forma negativa, como foi capaz de colocá-los em
cena, fez deles a própria matéria da obra; mostrou seus rostos e corpos, trabalhou a tensão
entre mostrar o singular e ainda assim dizer respeito aos povos.
A greve (1924) de Serguei Eisenstein é um exemplo; Stromboli (1949) de Roberto
Rossellini é outro. Nessas obras, as singularidades, em suas concretudes, aparecem: corpos
trabalhando e manuseando, rostos sujos, cansados, rindo, cantando; sua potência erótica,
realizadas de tal forma a expor dignamente esses corpos, colocando e complexificando as
questões: “como se aproximar de não-atores, como olhá-los nos olhos, escutar suas palavras,
respeitar seus gestos?”, pergunta Didi-Huberman (2012, p.156). Tudo isso, colocada como
“questão ética que a vida nos põe: fazer figurar ou desaparecer, calar-se ou tomar a palavra,
submeter-se à ordem ou revoltar-se contra ela, ser julgado ou tornar-se juiz, pesar a ficção
110
“[...] para negar o que aconteceu, como os negacionistas continuam a nos mostrar, nem é preciso suprimir
muitos fatos, basta tirar o elo que os perpassa e os constitui em história” (RANCIÈRE, 2018, p.16). As imagens,
de sua parte, precisam das relações estabelecidas, os elos que as constituem, para dar conta do esforço político de
emancipação.
225
com a mentira, a arte com a vida, o segredo ìntimo com a história partilhada” (ibidem, p.158).
Fazer arte do ponto de vista dos que não tem parte, é, como já disseram Deleuze e Guattari
(2104), tornar tudo político. Cada decisão, formal e de conteúdo, passa por uma relação ético-
polìtica. Não há estética sem polìtica nesse campo: “entendamos aqui que um filme não teria
justeza política senão trazendo seu lugar e sua face aos sem-nomes, aos sem-partes da
representação social habitual. Enfim, de fazer da imagem um lugar do comum, lá onde
reinaria o lugar comum das imagens do povo” (ibidem, p.158-159). Um modelo formal
utilizado pelos cineastas desejosos a elaborar “poemas dos povos” ou aquilo que o próprio
autor nomeia como “lirismo documentário”, fazendo uso da forma épica, a fim de “colocar
sob os olhos uma realidade histórica” (ibidem, p.159).
realidade dada”. Daì o realismo ser um elemento indissociável, porque faz sempre referência à
realidade dada, mas não como um naturalismo ou realismo vulgar. Ao invés disso, temos a
busca de uma figura capaz de “dar figura”, de elaborar um modo de olhar inesperado, não
pensável ainda, retirado da realidade como seu sintoma, aquilo que afunda mais ainda, na
composição de suas possibilidades com o presente. Quer dizer, um tal realismo é a elaboração
da realidade com seus possíveis (já realizados, por realizar ou jamais alcançados) (ibidem).
Tal processo lìrico coloca em contato o “corpo do homem” com o “corpo do mundo”
e, ao mesmo tempo, o “corpo sexual” com o “corpo social”, bem como o “corpo religioso”
com o “corpo profano” e o “corpo documentado” com o “corpo lìrico”, uma dialética
perturbadora que não oferece uma síntese qualquer, mas “fulgurações figurativas”, pois, ao
contrário de pensarmos uma aparição do “real” tentamos fazer aparecer a problemática, a
inquietude e o conflito. A comunidade está sempre em conflito com o sujeito, embora não
signifique uma exclusão. A própria comunidade constrói-se com base nessa dicotomia: numa
“imaginação essencialmente dialética”, que faz aparecer mais do que um movimento
progressivo e uniforme, o “movimento do páthos” (ibidem, p.164-168). A isso, o filósofo
francês denominava “mìmesis maldita” (ibidem, p.168), ou seja, não apenas o esforço de fazer
assemelhar, mas assemelhar alterando: “alargar a lìngua [...] votá-la às multiplicidades, aos
deslocamentos em direção a todos os horizontes do sentido. Desterrritorializá-la, em suma”
(ibidem, p.169). De que forma isso seria possível, senão restituindo ao próprio povo a
palavra? “Quer dizer, a multiplicidade e a complexidade de suas palavras, de suas sintaxes, de
suas lìnguas” (ibidem, p.170).
No fundo, ao contrário de um projeto de pureza, um ideal a assolar novas existências,
trata-se de elaborar uma “economia profanadora”, a partir de “atos impuros”, como faz
Pasolini, diz-nos Didi-Huberman (2012b, p.183), sobre sua abordagem diante de O evangelho
segundo Mateus (1964), o qual se trataria de uma “narrativa religiosa vista „pelos olhos de um
incrédulo, de um marxista‟”. Jogar com o conflito, a profanação e a impureza significam
“fazer dançar os conflitos” (ibidem, p.187), isto é, elaborar um trabalho capaz de abrir-se nas
feridas que se quer negar e forçosamente esquecer, recusar a exposição a todos os que, com
suas próprias vidas, contrariam o mito do progresso, o desenvolvimento civilizatório, os
documentos da cultura. Tal dança torna-se, para tanto, um elaborado esforço de montagem: de
corpos, de espaços e de tempos, porque o que se expõe aí são as cesuras de vidas, as vidas
com cesuras, marcadas pela marginalização, pela violência, pela exclusão. O que aparece é
este homem sem obras e, talvez, este homem sem conteúdo, cuja existência desafia, pelos
limiares, os limites das representações, do pensamento e dos sistemas. A exemplo do que o
227
filósofo nos mostra, a partir de uma cena de Accattone (1961), Pasolini coloca em ação aí os
homens que possuem como obra o uso de seus próprios corpos, pelos quais se cria um ritmo
de montagem e, partindo disso, “passam e fazem passagem” (ibidem, p.190) – enquanto se
expõe e expõem todos juntamente nessa dança.
A atenção colocada no momento em que apenas os corpos se expressam, numa briga,
junto à poeira, permite ao cinema “registrar a realidade” (numa espécie de mimesis), “colocar
em obra os gestos e os afetos humanos” (fazendo aparecer o páthos) e elaborar uma “operação
formal-significante” (por meio de sua figura), sabendo que em tal processo, “expor os povos
significa engajar a si mesmo” (ibidem, p.198). Temos, com isso, um sucinto exemplo de uma
complexificação da abertura de todo o processo de controle da imagem e da palavra, no
esforço hercúleo de dispor da exposição dos povos. Por uma perspectiva política, tal abertura
leva ao aparecimento da riqueza da humanidade, ao mesmo tempo em que sua pobreza mais
profunda, uma tocando a outra, uma profanando a outra. Isso significa restituir ao uso comum
e à elaboração de um lugar do comum, fundamentado numa forma de emancipação,
intolerável para quem deseja ardentemente o poder. Formalmente falando, os desafios são
ainda mais complexos, no sentido de envolver, por vezes, um número intimidador de decisões
e precisões técnicas para figurar tal multiplicidade; envolve, igualmente, uma variedade não
menos afrontadora de modos de mostrar, da amplidão de uma linguagem, de sua pluralidade,
inconstância, talvez mesmo, indomável. Poucos são aqueles bravos o suficiente, astutos
verdadeiramente, para lidar e compor a partir dessa infinidade de possibilidades, sem se abater
ou tentar sintetizar, a procura de uma solução final.
A política como potência heurística aparece, por vezes, como um golpe arrebatador
diante de quem está à espreita de um sentido último, de uma síntese tranquilizante, de uma
representação unificadora. Nessa concepção, Didi-Huberman (2012b) mostra-nos o trabalho
não menos poderoso em tentar fechar, reduzir e mesmo destruir os povos até chegar a um
povo tão dócil ao ponto de deixar-se controlar; ao ponto de ver a possibilidade de colocar um
chip ou deixar seu dna ser registrado e categorizado. Tal modelo não é o da política, nem
sequer produz o real que se tem como realidade. A realidade que se quer com sua ferida exige
levar em consideração “o desafio da dor”, elaborando, para tanto, uma “antropologia das
sobrevivências” (ibidem, p.218-219). A política engaja-se, não em sistemas de representação,
mas nas figuras marginalizadas que ferem esses sistemas, não como meros antissistemas, mas
como a colocação em movimento, e em sintoma, de todo sistema; na sua colocação em
constelação. Isso significa não abrir mão do rigor (estético, filosófico, científico) de tudo que
se considera. Porém, ao fazer isso não se está à procura de uma solução. O próprio processo,
os procedimentos engendrados, os saberes aprendidos aqui, mais do que fechar os campos das
experiências, abre-os, colocando novas problemáticas, inquietando aqueles que pareciam já
demasiadamente considerados, inventando novos, considerando o que desde sempre fora
excluído ou jamais considerado como questão pensável.
Ao invés de alcançar as alturas dos fins da razão, na sua ação determinante, a política
aprofunda-se ainda mais nas suas condições de exposição, nos corpos envolvidos111, no
sofrimento existente, nas potências, no não-saber, nas margens, espraiando-se para os lugares
insuspeitados, sem uma hierarquia dos campos de saber, do que se produz, do como se
produz. Antes de qualquer essência, preza-se pelas relações, pelos modos de como um saber,
uma imagem, um procedimento relaciona-se com outro, como aparece quando se aproxima e
quando se distancia de outros, dos usos que se faz. Por isso, em Didi-Huberman (2012b), sua
estreita e íntima conexão com a montagem. Um saber e uma imagem sozinhos são capazes de
criar saber, de abrir-se a uma forma de pensamento, do qual é possível saber. Porém,
relacionadas com outros saberes e outras imagens, pela montagem, esses saberes e imagens
desdobram-se no seu outro; tornam-se capazes de abrir-nos seu impensável próprio, sua
parcela de não-saber. Isso parece ser algo a chamar a atenção do filósofo: a possibilidade de
fazer surgir algum saber, de fazer ver algo que só aparece na relação, como um outro no
outro; um lugar de relação, na qual as partes tomam parte, mas que não tomam somente elas
mesmas – são tomadas umas pelas outras, em relação. Aparece ainda um terceiro, pelo qual
111
“O corpo que diz „eu‟ na verdade diz „nós‟” (TIQQUN, 2019, p.36).
229
os dois primeiros se dobram, fazendo com que a própria relação multiplique-se, dobrando-se,
desdobrando-se, redobrando-se, até adquirir uma espécie de carne, uma existência material e
dimensionada, capaz de fazer de toda composição um outro do outro do outro. Se o que se
ganha (a multiplicidade) em vista do que se perde (o ideal) vale a tarefa, a montagem é o
procedimento técnico a alimentar a política que, por sua vez, alimenta a montagem como um
procedimento ético na abertura heurística da exposição.
230
Uma forma do ser em comum, segundo Nancy (2016, p.108-109), é um ser literário,
isto é, um lugar onde é possível encontrar-se e partilhar a exposição. O ser literário é sempre
ser em exposição e comparecimento, sem com isso, fechar-se. Por que dessa forma? A
fragilidade do devir, porque passageira, efêmera, acaso, pode encontrar na escrita literária
uma possibilidade de ser figurada – comparecer na história, tornar-se por vir de uma
atualização. Ela não é apenas registrada ou inscrita numa forma a perpetuar-se pela história (a
letra morta que vem desde Platão e alcança expressão no barroco 112), mas é a demonstração, o
traço de uma passagem (a dialética da ruína, traço presente de um passado). Nada há que não
possa ser traçado pela literatura, nem linhas que não possam ser lançadas a partir dela, a fim
de instituir um modo de ser, ser em comum na exposição. Não se trata de diferenciar a ficção
(suposto traçado sem trajeto) nem o realismo (suposto trajeto traçado), mas de perceber aí
uma operação instituidora de sensibilidades e sentidos, semà-significado e semà-páthos, capaz
de recompor, reconfigurar o instituído113. Esse ser literário ecoa na exposição o acontecimento
que é o comparecimento. Se a moda, segundo Coccia (2010) é um modo de ser (e todo modo
112
“a letra morta vai rolar de um lado para o outro sem saber a quem se destina, a quem deve ou não falar.
Qualquer um pode, então, apoderar-se dela, dar a ela uma voz que não é mais „a dela‟, construir com ela uma
outra cena da fala, determinando uma outra divisão do sensìvel” (RANCIÈRE, 2017a, p.9).
113
“Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que
realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma
que o anima e com os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua
própria alma. [...] o ato de escrever é uma maneira de ocupar o sensível e dar sentido a essa ocupação. [...] Ela é
coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, a
alegorizar essa constituição” (RANCIÈRE, 2017a, p.7).
231
de ser é aparecer, portanto, estético114), então, a literatura como exposição do traçado do ser
em comum, é a extensão intensiva da possibilidade de enunciação desse ser. Permite a tomada
de palavra do que se expõe. E, ao fazer isso, expõe a própria exposição como enunciação – ou
seja, criamos a nossa existência e a própria exposição dessa existência. Nesse sentido, o ser
literário figura e é figurado pelo plano de composição da exposição.
O mais paradoxal é que esse recurso se faz necessário quando o que se expõe,
aparece em vias de desaparecimento. O ser literário advém, faz-se urgente como enunciação
do que está desaparecendo. Ao fazer isso, ele pode, inclusive, assumir formas figurativas, isto
é, imagens: a estrela cadente em Goethe, a aura em Benjamin, os vagalumes em Didi-
Huberman. Nesse ponto, a sobrevivência e a resistência mais se intensificam: sobrevive
porque resiste, resiste porque sobrevive. É preciso, então, expor o perigo, expondo-se ao
perigo e tomando a palavra e criando imagens. Em tal processo, reconhecem Blanchot e
Nancy, a morte figura, absolutamente, o abismo comum no qual qualquer ser toma parte. Qual
a função, então, da escrita (o configurador do ser literário) diante da morte? Tal como as
imagens tiradas de Birkenau, como já assinalou Didi-Huberman, a escrita aparece para não
matar e para não morrer115; uma interrupção, portanto. Mas, aparece também para registrar e
refletir sobre a própria morte. De certa forma, fazê-la. Trata-se, pois, de exposição e
enunciação do que se pôs para fora. A escrita reverbera, como desejava Benjamin, para a
crítica de arte. Isto é, ela nada explica (ou deveria se preocupar com tal tarefa), mas, ao invés,
apresenta a processão de possibilidades de experiências, configurando e colocando em
formação a própria obra, elemento da crítica116, da forma como disse Gagnebin (2012) sobre a
escrita de Kafka: é um trabalho de exegese da tradição judaica [atualização (Hagada) feita do
texto sagrado (Halacha)] a partir de outras exegeses, ao ponto em que o “original” foi perdido
(a fonte) e o que se faz é criação, alteração de toda tradição 117. Toda a obra passa a ser outra:
o ser literário devém outrem. Seu devir é interrupção; é cesura. Devém pensamento, devém
114
“[...] vivente é aquilo que não tem uma substância, mas que adere à própria substância apenas através de um
costume, de uma moda. Vive apenas aquele que não tem um ser, mas apenas modos de ser” (COCCIA, 2010,
p.77). E, bem mais adiante, acrescenta: “Por força da moda, o homem deverá aparecer constantemente no meio
de uma outra imagem sensìvel de si” (idem, p.85).
115
“E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se
pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.” (KRENAK, 2019, p.27).
116
“Literatura e democracia são dois modos de invenção de quase-corpos ou de incorpóreos cujo dispositivo
fragiliza as encarnações e as identificações que ligam uma ordem do discurso a uma ordem das condições. Essa
comunidade estética da separação é uma comunidade polìtica da deslegitimação”(RANCIÈRE, 2017a, p.18). O
autor vai mais longe do que pretendia Walter Benjamin. Todavia tal política da deslegitimação acaba por fundar
a possibilidade mesma do projeto político do filósofo alemão, porque isso significa fazer aparecer o espaço da
corveia sem nome, para usar a expressão de Benjamin.
117
“[...] arrastada por seu próprio movimento, a tradição torna-se autônoma em relação ao sentido inicial no qual,
originalmente, tinha suas raìzes” (GAGNEBIN, 2012, p.17-18).
232
linguagem, porque a ação foi interrompida, e isso não leva, precisamente, a uma negação do
ato, mas a uma suspensão em vias de alterar o próprio ato – abertura à potência, gesto118.
Agamben já assinalou que o que, em Aristóteles, antes se opunha ao ato era o uso, e
não a potência. Era uma função, a aparição do meio, e não a realização em vista de um fim (a
liberdade). O devir literário do ser em comum é sua disposição para a cesura, isto é, para a
abertura do gesto de viver na exposição àquilo que transforma, altera sua função. Nesse
sentido, a negação de Blanchot e de Nancy (ou negatividade, uma espécie de thanatopolítica,
ao senso de Dardot e Laval) não é mera oposição à afirmatividade, mas a operação que abre
na ação afirmativa, o gesto reflexivo119 da criação de uma “membrana” fluìda, ou de um
limiar de contato. Funcionaria como a negação da negação na dialética adorniana, a
alienação da alienação em Marcuse ou à busca do verdadeiro estado de exceção
benjaminiano. Tal negatividade é a da noite do não-saber, verdadeira entrega à insuficiência
do pensamento, do projeto e das práticas: “a comunidade é a consciência extática da noite da
imanência, enquanto uma consciência é a interrupção da consciência de si” (NANCY, 2016,
p.49, grifo nosso). A noite é o plano de fundo da composição que configura a constelação da
política da exposição: exposição aos outros (comunidade da alteridade) e exposição aos
perigos (comunidade dos espectros). Trata-se de compor, não somente contrapor o verso com
seu avesso.
118
“O que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz nem se age, mas se assume e suporta. Ou seja, o gesto
abre a esfera do ethos como esfera mais peculiar do humano” (AGAMBEN, 2015a, p.58-59). E, a seguir, diz
ainda: “[...] o gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios que paralisa a moral e apresenta meios que, como
tais, se subtraem ao âmbito da medialidade, sem se tornarem, por isso, fins”. (idem)
119
“O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visìvel um meio como tal” (AGAMBEN, 2015a, p.59). E,
depois, afirma: “O gesto é [...] comunicação de uma comunicabilidade”. (idem, p.60).
233
120
“É exatamente porque um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar dele para que possa viver. Apenas em
condições nas quais a perda tem importância o valor da vida aparece efetivamente Portanto, a possibilidade de
ser enlutada é um pressuposto para toda vida que importa” (BUTLER, 2015, p.32), e, mais adiante: “„essa será
uma vida que terá sido vivida‟ é a pressuposição de uma vida cuja perda é passìvel de luto, o que significa que
esta será uma vida que poderá ser considerada vida, e será preservada em virtude dessa consideração” (idem,
p.33). E isso, obviamente, deve ter espaço no espaço público: “O luto público está estreitamente relacionado à
indignação, e a indignação diante da injustiça ou, na verdade, de uma perda irreparável possui um enorme
potencial político [...] Se estamos falando de luto público ou de indignação pública, estamos falando de respostas
afetivas que são fortemente reguladas por regimes de força e, algumas vezes, sujeitas à censura explìcita”
(ibidem, p.66).
121
Tradução nossa.
122
“[...] a polìtica não se tornou „estética‟ ou „espetacular‟ recentemente. Ela é estética desde o início, na medida
em que é um modo de determinação do sensível, uma divisão dos espaços – reais e simbólicos – destinados a
essa ou àquela ocupação, uma forma de visibilidade e de dizibilidade do que é próprio e do que é comum”
(RANCIÈRE, 2017a, p.8).
123
Cf.RAMOS (2007, p.90-91)
124
“Sonhar, acima de tudo, quer dizer imaginar” (COCCIA, 2010, p.61). A imaginação de Baleia que sonha com
seu paraíso, mas também lembra-se, imagina seu passado e imagina seu próprio presente (“Baleia encostava a
cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente Sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito
cedo” (RAMOS, 2007, p.91).
234
decidida que a da irmã. Permaneceu nesse estado de meditação vazia e pacìfica [...]”
(KAFKA, 1997, p.78). Ele, porém, fez o caminho inverso. De homem a animal, mas ainda ser
literário, mas pelo qual ninguém choraria. Sua involução mostrou que o comparecimento
diante da morte, mesmo no limite da sua partilha faz existir um ser em comum. Mesmo no
estranhamento, desde que a exposição seja possível, a morte nos coloca diante desse comum.
Tais animais entram em comunidade (comunidade alargada a ultrapassar a limitação ao ser
humano) onde todos se tocam, expõem-se, são expostos125. É aí, nessa vida sensível126, que
descobrimos o ser em comum, onde não há identificação alguma entre seres.
Nós somos semelhantes porque somos, cada um, expostos ao fora que nós
somos para nós mesmos. O semelhante não é o parecido127. Eu não me
encontro, nem me reconheço no outro: eu vivo essa experiência ou
experencio no outro a alteridade e alteração que „em mim mesmo‟ coloca
para fora de mim a minha singularidade que a finda infinitamente (NANCY,
2016, p.66).
125
Enquanto Woolf não atribui características humanas à mariposa, ela mostra o próprio processo de exposição
do ser em comum, na medida em que dessemelha. Baleia é cada vez mais assemelhada ao humano e Gregor é
cada vez assemelhado ao não-humano (distanciado do não-humano, mas de um ponto de vista humano). Cada
um, a seu modo, altera o plano de composição do ser em comum na morte. O último está no limite, a cachorra
está dentro do plano, próximo do limite. A mariposa é aí, dos três, a que se mantém no limiar.
126
“A vida sensìvel é essa eternidade difusa e impessoal [...] A verdadeira eternidade não é a imortalidade, não é
aquilo que nos espera depois da morte, nem aquilo que resiste a ela, mas sim aquilo que é transferível e
apropriável por qualquer um” (COCCIA, 2010, p.91, grifo nosso). A morte retorna, faz seu retorno, dobrando-se
sobre o sensível, como matéria a dar forma a outras vidas.
127
Uma formulação mais “tropical”, num tom jocoso, foi dito por Oswald de Andrade (2017, p.39): “[...] a Anta
se assemelha e é dela semelhanta”
235
O comparecimento alarga a comunidade tal como inventa, a cada vez, o seu ser em
comum, porque a exposição de um ao outro, como relação de abertura heurística permite o
encontro com o fora de si mesmo sem recair num “eu”. Talvez, o que vai na mensagem
imperial, em outro conto de Kafka, podemos imaginar, seja justamente isto: não é o que se
disse ao ouvido do mensageiro que o repetiu, palavra por palavra ao imperador, mas a
exposição desse gesto, a partilha desse momento que faz com que o estranhamento diante da
morte (o fora que toma o dentro sem interiorizar-se) abra espaço, faça espaço, alargando as
bordas, sabendo ser possível a chegada (o fim). O mensageiro não carrega a mensagem,
meramente. Ele é a própria mensagem: o sujeito que dá as costas à morte para olhar a vida (o
que se pode aprender com o moribundo de Proust e de Kafka, a última palavra de autoridade
disse Benjamin) – gesto insuficiente, gesto de insuficiência, impotente até, restando-nos, pois,
lançar o lápis à escrita, expondo e compondo o ser em comum como literatura. Composição
pelos extremos, certamente: “é na morte de outrem que a comunidade me ordena ao seu
registro o mais próprio: mas não é pela mediação de um reconhecimento espelhante. Pois eu
não me reconheço nessa morte do outrem – cujo limite me expõe, no entanto, sem retorno”
(NANCY, 2016, p.65). O morrer demanda a transmissão. Transmitimos, não para que a morte
acabe, mas para que a exposição sem retorno tenha lugar na comunidade, porque, afinal,
ensina-nos Proust com Em busca do tempo perdido, a morte sempre fica para nós. É o amor
que vai com o outro. O que podemos fazer, então, é dar conta, fazer as contas e contar essas
ausências que nos formam. O luto põe o mundo em jogo, já assinalamos, segundo Fédida. É o
modo como inscrevemos e imaginamos a ausência no corpo de nossa comunidade – como lhe
damos uma forma; como damos sentido ao ser em comum que não mais se relaciona, senão
como ausência. Não é a mariposa em Virginia Woolf, o animal (barata?) em Kafka, a cadela
de Graciliano Ramos, a mosca em Marguerite Duras que fazem o estranhamento, mas o
comum que se desdobra justamente nisso que era estranho, ou mesmo insignificante:
236
Mas, se uma mosca morre, não dizemos nada, não registramos nada.
Agora está escrito.
[...] quero dizer: o escrever o pavor de escrever. A hora exata da morta,
registrada, tornava-a já inacessível. Isso lhe dava uma importância de caráter
geral, digamos, um lugar preciso no mapa geral da vida sobre a terra.
Essa exatidão da hora da morte faria com que a mosca tivesse funerais
secretos. (DURAS, 2017, p.22-23).
A morte de uma mosca abre, para a escritora, “a morte planetária”, além de deslocar
seu próprio exercício literário tornando esse ser não apenas “semelhante” ao homem como
semelhante ao escritor128: “a escrita da mosca era capaz de sustentar uma página inteira. Então
já é uma escrita” (idem, p.26-27). Qual é a escrita dessa mosca? Sua lenta morte, assistida por
Duras. A escrita era a exposição da mosca à morte e dessa exposição exposta à autora
[“Minha presença tornava aquela morte ainda mais atroz. Sabia disso e fiquei ali. Para ver,
Ver como aquela morte invadia a mosca progressivamente” (ibidem, p.22, grifo nosso)], a
qual, por sua vez, percebia a partilha “inominável” a atravessá-la, ao ponto de deslocar a
morte exposta a ela, como se agenciasse o processo, quando o que sucede é a aparição
(literária) do ser em comum. Ela pensou nos judeus e pensou nos alemães que poderia matar.
Ela pensou, ao registrar, na “massa fabulosa dos desconhecidos do mundo, as pessoas sós, na
solidão universal” (ibidem, p.23). Porque o que apareceu quando a morte expôs a mosca foi o
comum partilhado como exposição à morte – da mosca e, certamente, como por vir de Duras.
Se a morte aqui expõe o comum é porque esse comum em exposição é ele mesmo impessoal,
como a morte – vida sensível. Não se trata de um lugar o qual nos reconheceríamos129, mas de
um lugar onde algo se institui no limiar entre aqueles que comparecem. Tanto a instituição
(que não pode ser confundida com sua desmobilização: institucionalização) quanto o
comparecimento do comum demandam a exposição. E essa exposição é política,
especialmente quando o que comparece, o que faz porque está por desaparecer. Comparece
para não desaparecer, precisando, inclusive, comparecer para instituir, o seu próprio direito de
continuar comparecendo.
A morte é o extremo desse plano, onde tudo está em vias de se perder
(desaparecendo e institucionalizando). Buscar o lugar do comum é, então, estabelecer
128
No plano de composição, a mosca de Duras sai do limiar a partir de linhas de fuga traçadas para fora. Não só
experencia expondo a morte como põe em movimento esse espaço.
129
“Tudo o que, por contragolpe, meu ser sofreu durante essa longa agonia, é inenarrável mas, felizmente estou
perfeitamente morto... E para informar-te de que sou agora impessoal e não mais o Stéphane que conheceste...”,
escreveu Mallarmé a um amigo (BLANCHOT, 2011, p.114).
237
políticas de exposição e isso se faz na medida em que se põe fora o que é impessoal 130 a todos
e a cada um, o ser qualquer, um ser de desejo131: espaço impróprio de experimentação, no
qual até o lugar qualquer precisa ser inventado; política de instituição de meios sem fim, de
meios dobrando-se sobre si mesmo, fluídos, e continuamente como o mar, o mais potente
plano de composição existente, ou os céus, com suas nuvens, prontas a se desfazerem: poder
instituinte-do-mar, poder-destituinte-das-nuvens. “O meio é paixão e a paixão é meio”,
afirma-nos Didi-Huberman (2015j, p.161). O impessoal não elimina o páthos (está lá no
qualquer que o faz, desejante); dobrando sobre qualquer individualidade, ele justamente libera
os fluxos a atravessar os corpos e fazer deles meios: as emoções e os gestos. O “[...] gesto é
sempre gesto de não conseguir compreender-se na palavra, é sempre gag no significado
próprio do termo, que indica em primeiro lugar algo que se mete na boca para impedir a
palavra [...]” (AGAMBEN, 2015b, p.213). Nesse lugar, quando se quer calar, resta-nos, na
criação de um espaço no qual a comunicação expõe-se como comunicabilidade, a potência
como potência, o meio como medialidade sem fins – algo se forma, algo toma lugar.
Benjamin a denominou imagem dialética. Mas, se seguirmos as muitas indicações de Didi-
Huberman, toda imagem tem a potência de ser dialética. Ela pode surgir quando a
cognoscibilidade não é alcançada (a comunicação da comunicabilidade só gagueja, quando a
potência da potência está em direção à morte, a sua ausência até mesmo de impotência, como
no caso de Bartleby).
A emoção, de seu lugar, tomando parte nessa impessoalidade, aparece também como
material concreto a instituir um lugar do comum. Podem ser as lágrimas que escorrem como
linhas de fuga das faces de quem sofre; pode ser a cólera dos punhos em riste de quem se
revolta; pode ser o mover dos corpos em dança, fechando o trânsito, ou o corpo curvado pelo
sola da bota de um policial, ou a linha das costas do corpo de uma mãe curvada sobre o corpo
do filho baleado por um policial sobrevoando a esmo a região num helicóptero, ou mesmo um
corpo imóvel curvado enquanto é arrastado por uma viatura da polícia militar – todo esse
páthos e a exposição disso originada faz aparecer a condição política desses atos, o lugar
comum solidamente ofertado ou forçosamente aniquilado – palavras encarnadas, corpos reais,
130
“O eu nada importa. Para um leitor, sou o ser qualquer: nome, identidade, histórico não mudam nada. Ele
(leitor) é qualquer um, e eu (autor) o sou. Ele e eu somos, sem nome, saídos do... sem nome para este... sem
nome, como são para o deserto dois grãos de areia, ou, melhor, para um mar duas ondas se perdendo nas ondas
vizinhas. O... sem nome a que pertence a „personalidade conhecida‟ do mundo do etc. a que ela pertence tão
totalmente que o ignora” (BATAILLE, 2016, p.84, grifo nosso).
131
Agamben (2013a, p.10-11) desenvolve essa noção, no qual o qualquer é o qual-se-queira, o que já contém em
si o desejo, tornando-se uma “singularidade enquanto singularidade qualquer”, exposta como tal , “qual-se-
queira, isto é amável”. E segue: “Pois o amor não se dirige jamais a esta ou aquela propriedade do amado [...] ele
quer a coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é. Ele deseja o qual somente enquanto é tal [...]”.
238
imagens críticas. Sua invenção está sempre de par com os corpos. Não há lugar do comum,
sem um coletivo de corpos singulares a comparecer. Não há instituição do ser em comum sem
a exposição. E não há exposição sem imagens. Nesse sentido, parece-nos imprescindível
repensar e reconfigurar nossas noções sobre a teoria, a finalidade, o saber e suas formas, bem
como o trabalho sobre a política, a partir do páthos que a configura, a promover, permitir e
operar uma política das imagens na obra de Didi-Huberman, não como um auxílio à grande
política (o nome disso é marketing), mas a perturbação no seio da própria política que é, na
verdade, sempre estética.
239
132
No dicionário crítico da revista Documents, afirma Bataille (2018, p.147): “informe não é apenas um adjetivo
que tem este ou aquele sentido, mas um termo que serve para desclassificar, exigindo geralmente que cada coisa
tenha sua forma”.
240
p.97). Mas isso não significa sua aniquilação, e sim um deslocamento, pensado como “um
termo que serve para desclassificar, exigindo de maneira geral que cada coisa tenha sua
forma”, exigência que o autor qualifica de dialética (ibidem, p.28). O informe é, então,
concebido como o “trabalho das formas”, o que equivaleria, prossegue o autor, a um
“trabalho de parto ou de agonia: uma abertura, uma laceração, um processo dilacerante que
condena algo à morte e que, nessa mesma negatividade, inventa algo absolutamente novo [...]
uma crueldade nas semelhanças” (ibidem, p.29). Assim, Bataille faria assemelhar pés de
dançarinas com patas decepadas de bois num abatedouro, amontoadas numa parede, por
exemplo. Tal crueldade vai muito mais com a falta de respeito com qualquer instituição de
representação. Pela cruel semelhança, ambas as imagens entram em choque, à beira de um
colapso, permitindo que um saber se levante daí, um saber imprevisto por essas imagens e por
seus criadores. Outro exemplo vem da aproximação de uma foto típica de um casamento
burguês (brancos, em pé, numa rua, dispostos ordenadamente, rígidos) com outra de uma tribo
(pretos, deitados, na relva, sem disposição aparente, em posição de descanso)133 ou mesmo
dos manequins empoeirados do sótão de um museu. Tal trabalho cria tanto debates quanto
agenciamentos, tantas lacerações quanto entrelaçamentos; uma maneira mordaz de lembrar o
conselho de Leibniz: “buscar semelhanças entre os diferentes e diferenças entre os
semelhantes”; aqui não para encontrar qualquer unidade ou continuidade, no entanto, mas
para fazer com que umas formas invistam sobre as outras, formas devorem formas (ibidem).
Lembrando Rosalind Krauss, quem já deu especial atenção ao informe batailleano134, Didi-
Huberman (2015e) afirma que tal construção do informe demanda procedimentos específicos,
precisos, com o fim de atingir seus objetivos. Ou seja, não se trata de abandono da forma, mas
de um rigor sobre cada coisa, buscando sua forma própria; um verdadeiro trabalho metódico
sobre as formas, para que haja formas.
Nesse sentido, há um profundo respeito pela singularidade, irredutível a qualquer
ideal135. A transgressão é também dessa ordem: ela instaura a impossibilidade de reduzir uma
133
Ironicamente, podemos pensar, a disposição dessas duas imagens permitiria uma comparação entre as
esculturas egípcias (rígidas) e as esculturas gregas de deuses (em posição de descanso), sendo essas muito mais
ideais na perspectiva de Hegel do que as primeiras.
134
A autora cita, então, uma lista com uma série de procedimentos de como criar uma fotografia no estilo
surrealista, que vai de tomar imagens “absolutamente banais”, fazer fotos “espontâneas”, utilizar “impressões
em negativo” até “manipulações com espelhos” (KRAUSS, 2015, p.111).
135
Lembremos o conceito de ideal para Kant (2016, p.128) na Crítica da Faculdade de Julgar, por exemplo:
“[...] ideal significa a representação de um singular como ser adequado à ideia”, a fim de entender o que está em
jogo na concepção de Bataille. Ele também tem em vista toda essa tradição que vai de Kant a Hegel. Esse último
também não deixa sua contribuição. Diz logo no início dos Cursos de Estética, vol. I: “Denominamos belo de
Ideia do belo. Isto deve ser entendido no sentido de que o próprio belo deve ser tomado como Ideia e, na
241
verdade, como Ideia numa Forma determinada, enquanto ideal” (HEGEL, 2015, p.121) Mais a frente ele ainda
diz: “O belo se determina, desse modo, como aparência [Scheinen] sensìvel da Ideia” (idem, p.126).
136
“Não se assemelhar (a Deus) é outra maneira de dizer: vamos todos morrer” (DIDI-HUBERMAN, 2015c,
p.284)
137
Nessa perspectiva, apesar da concepção de Rosalind Krauss sobre o informe já ser um avanço em relação à
tradição separatista, hierarquizadora e unificadora, ainda não é o suficiente. Diz a autora (2015, p. 76, tradução
nossa): “a palavra informe denota o resultado da alteração, da redução de significado ou de valor, não mediante a
contradição – de caráter dialético –, senão mediante a putrefação: a punção dos limites ao redor do término, a
redução à identidade do cadáver – de caráter transgressivo –.”. Não se trata de passar de um lado a outro, como
242
se o informe fosse a força do entendimento operando, fora da dialética, levando do corpo a putrefação, mas o seu
poder mesmo de alteração, não como a transformação do corpo em cadáver, mas da relação dos corpos com o
putrefato, da justaposição de ambas, de forma, por um lado, a conservar ambas, apesar de arruinadas. O informe
não é a alteração do elemento em si, mas sempre em relação a outra coisa, no contato com outra coisa,
produzindo uma nova coisa.
138
“[...] o aspecto introduziria os valores decisivos das coisas...” (BATAILLE, 2018, p.74)
243
139
“Pouco importa, com efeito, que os biólogos consigam fazer com que os monstros entrem em categorias,
assim como fazem com as espécies. Eles não deixam por isso de constituir positivamente anomalias e
contradições” (BATAILLE, 2018, p.171). E, mais adiante, lembrando o trabalho da frenologia, o pensador
concluì: “Mas cada forma individual escapa a essa medida comum e, em algum grau, é um monstro” (idem,
p.173). Isto é, no processo de relação é possível sempre descobrir as dessemelhanças, as distâncias que nos
fundam. A média não é a regra; a regra é o desvio.
244
decomposição das imagens”, impondo, ao mesmo tempo, uma “soberania do contato”, e uma
experiência temporal do “desenvolvimento orgânico das formas”. Trata-se de conceder
atenção aos aspectos das coisas, abrindo as formas visíveis, insatisfeitas com seu ideal. Isso
faz aparecer, então, uma “oposição contundente”, isto é, ver nas flores – usualmente
representante de um ideal relacionado ao amor e à beleza, a sua “presença” que já aponta “no
odor do pistilo [...] um cheiro de podridão, a podridão das raìzes „ignóbeis e gosmentas‟,
oferecendo assim, „a contrapartida perfeita das partes visìveis‟” (ibidem, p.215-221)140.
Tais palavras inventariadas pelo filósofo em Documents, nos textos de Bataille,
ajudam-nos a elaborar uma configuração – pelo informe – do plano de composição das
imagens. Todas elas, em alguma medida, estão relacionadas com a noção de processo, do
trabalho de formação, a abrir mão, por sua vez, de um fim, de um acabamento, mas não de um
jogo: seja pela metamorfose, o qual rompe com o jogo mimético, seja com o vai e vem, que
sustenta o próprio jogo num espaço próprio em que os elementos estão à disposição para
engendrar outras formas, ou seja, sustentar a própria produção de formas e seja como
repercussão, realizando contatos com as coisas presentes, na sua carga material, a imagem
adquire, para si, todo um conjunto muito concreto (e preciso) de procedimentos de abertura
(ou rasgo) – uma fluidez, por assim dizer141. Ela articula, com o informe e sua proliferação de
palavras, uma carga metódica de colocação-em-relação que é um colocar em contato, até o
excesso, até a transgressão do tato, num investimento sobre o objeto, sobre a imagem, a partir
do qual descobre conhecimentos sobre suas singularidades e sobre as relações constituídas,
que, por não serem “essências”, são mutáveis, conforme a alteração das relações 142. Tal
procedimento, por sua vez, em relação à própria operação da imagem, não cria regras a serem
seguidas, uma normalização a definir um padrão de experiência. Ela tenta ligar, ao mesmo
tempo, com um rigor capaz de fazer jus à presença do objeto sem rompê-lo com qualquer
axioma, e com o acidente como provedor dos procedimentos a serem desdobrados conforme a
140
Bataille (2018, p.78).
141
Ver Didi-Huberman (2015j) que desenvolve esse tema a partir da figura da ninfa.
142
Se, por um lado, há um investimento sobre as concepções hegelianas da arte e mesmo da forma de produção
de saber a partir da dialética, sempre procurando a unificação das oposições, parece viável perguntarmo-nos,
como uma hipótese a investigar, se aqui, o maior visado não seria Kant, mais precisamente sua própria faculdade
de julgar. De certa forma o procedimento de Bataille está subvertendo a própria faculdade kantiana, seja quanto
ao belo: ao desinteresse há uma implicação do sujeito no que produz, ao nível libidinal, à satisfação e harmonia,
coloca-se a vertigem e o desprazer que poderá, talvez, vir a se tornar prazer, à necessidade opõe-se o acidental,
mantendo-se apenas a primazia da imaginação, mas não mais submissa ao entendimento (apesar de Kant chamar
de jogo livre das faculdades, quando a sensação está irremediavelmente precedida por uma representação); seja
quanto ao sublime: a perspectiva de Bataille parece muito mais próxima do sublime, uma forma de “violência à
imaginação”. Entretanto, a imaginação é violentada e, ao mesmo tempo, violentadora. A razão aqui não se torna
o motivo de satisfação por sua superioridade, mas ela cai junto com a imaginação. O prazer, talvez, seja o riso
em ver que o que resta de fato é ainda o ser humano. Apesar de tudo isso, ele ainda permanece.
246
singularidade desse objeto. Há de se ter atenção ao acaso que irrompe diante de nós e
desatenção aos caminhos já traçados, a fim de descobrir outras opções, como já ensinou
Gagnebin (2014). O que fica patente na experiência é manter a relação com o próprio
fenômeno gerador de experiências. E, através dos procedimentos do informe, retirar um saber
que seja contundente dessa relação.
Se o trato procedimental é o mais realista possível143, sem ser banal, no tipo de uma
tautologia (o que você vê é o que você vê), é por que, na constituição de tal realidade, na sua
trama, a imaginação – esse ato diante do desconhecido e do não-saber – participa no seu
entrelaçamento, abrindo a realidade ao seu visual, isto é, aquilo que aparece na relação. Nesse
sentido, a operação heurística é também um princípio sem fundamento diante da imagem, por
assim dizer. Ele opera como a origem em Walter Benjamin, a arrancar a experiência do seu
próprio contínuo, digamos a imagem de uma flor em um tratado, e é transportada para outro
espaço, digamos para uma revista de arte, onde há pinturas de Picasso, além de estar com as
pétalas arrancadas. Subitamente o que foi tirado de seu contínuo, que lhe parecia tão natural, e
passa a ser lançado em outros contextos, estranhos a princípio, no qual as relações são
informes, podemos perceber como a existência de um outro saber, a partir do qual a própria
coisa se altera e altera o que se sabia sobre ela. Esse princípio fundamenta o conhecimento a
partir da relação, como se funcionasse como necessário. Tão logo a relação seja desfeita, o
que funcionava como princípio perde seu valor. Abandona-se em nome de um outro qualquer,
tão necessário quanto144. Porém, naquela relação, aquele princípio permitia um saber,
fornecendo uma espécie de exemplo singular, do qual se retiraria um saber. No entanto,
sabemos que aì opera aquilo que Krauss (2015, p.194) chama de “pluralidade irredutìvel”, isto
é, “o múltiplo sem original”145. Em outra relação, o princípio pode ser um elemento de
constituição impossível, ao ponto de arruinar (deformando, destruindo, desativando) a
composição. A heurística operante nas imagens mantém-se em ambos os casos: por sua
operação formula uma deformação, encontrando uma espécie de faculdade que lhe permite
agir de tal forma; por seu princípio fundamenta uma metamorfose, tornando-se a faculdade
143
Segundo Denis Hollier, no prefácio de Documents, afirma que a profissão desse realismo é “numerosa” (p.30
e nota de rodapé 50).
144
Poderìamos aqui também reconhecer certa correspondência com a noção de “técnica da natureza” kantiana,
na medida em que se estabelece uma pressuposição a partir do qual um juízo seria estabelecido. A diferença está,
no entanto, no fato de que pela via informe de Bataille, constitui-se não apenas juízo, mas também saber. Saber
sem fim, a partir de acidentes, de choques e contatos. A própria necessidade não está a priori como uma
possibilidade de constituição de uma lei, ou uma forma de lei, mas do próprio saber em jogo, surgido da relação,
e não simplesmente do sentimento do sujeito.
145
Tradução nossa. Original que tanto pode nos levar à noção de originalidade, quanto de origem. Não se
trabalha, porém, com nenhuma das duas noções comuns. A própria ideia de Benjamin sobre origem não se refere
à gênese, obedecendo a um uso muito particular, o qual seguimos aqui.
247
que engendra a própria operação, sem com isso, estabelecer uma forma de lei. A imagem
pode, então, ser dialética, mas de uma maneira, por sua vez heurística, isto é, sem produção de
síntese ou axiomas (DIDI-HUBERMAN, 2015e, p.236).
A imagem aparece como uma dialética experimental, fazendo dessa dialética uma
particular forma de “heresia”, assumindo em Bataille um caráter de revolta, o que faz sempre
quando busca o rigor do pensamento. Fiel ao caráter de movimento de todo esse
procedimento, o pensador, por vezes, parece criar esboços, como autênticos “momentos de
formação”, esclarece Didi-Huberman (2015e), de “figuras figurantes”, ou seja, figuras que
proliferam formas, do que “figuras figuradas”, figuras com formas acabadas – representações.
Isso é feito para que não se separe “a direção da noção de um jogo, que devemos compreender
em todos os sentidos possìveis” (idem, p.268). O primeiro deles é como estrutura, abrindo
uma “lógica de um desenvolvimento, a temporalidade crìtica – o contratempo de um
acidente” (ibidem), o qual, segundo o autor, seria denominada de chance; o segundo sentido é
como lúdico, o mais infantil, o mais “baixo”, fornecendo, por um lado, “uma figura possível
do „sem-reservas‟, articulando-se a uma “orientação prometeica [...] ligada ao saber – o saber
humano roubado dos deuses, puxado aqui para o gaio saber, é claro, tão escarnecedor quanto
alegre”, e, por outro lado, continua o filósofo francês, o “tátil, isto é, capaz de impor a toda
dialética [...] o selo da manipulação concreta, que chega ao ponto da dilaceração cruel do
objeto com que a criança não apenas brinca, mas também estabelece um autêntico processo de
conhecimento” (ibidem, p.269-270); um terceiro sentido está entre crueldade e simulacro,
pelo qual o jogo infantil é dramatizado na figura teatral do histrião ou na figura do
sacrificador, quem simula, como uma “sedução” no “limite do horror”, tanto a regressão
quanto a transgressão (ibidem, p.271). Se a transgressão é a vontade de ultrapassar o limite, ou
romper o objeto (sacrifìcio, por exemplo), a regressão, diz o autor (2015e, p.273) “seria o
equivalente dessa „vontade de chance‟ [...] literalmente uma vontade de voltar para „ver
nascer a imagem de uma maneira concreta‟”, a fim de poder “fazer ressurgir a função do
olhar, no exercício adulto do ver, isto é, das „arquiteturas‟ duplamente fixadas do saber e do
gosto estético” (ibidem).
Nesse processo, a imagem vai adquirindo certa fluidez, diante de sua própria
“estrutura”. Está em vias de se decompor em constelação. Mas, ao fazer isso, num gesto de
inversão, numa virada dialética, indo ao mais alto – Mallarmé146 fez isso em Um lance de
146
“A conta total em formação do poeta jamais se completa; cada um de seus instantes é definitivo em relação
aos que o precedem e relativo diante dos que o sucedem: o próprio leitor é apenas uma leitura, um novo instante
dessa conta que não acaba, constelação formada pelo talvez incerto de cada leitura” (PAZ, 2012, p.49). O
248
dados, da constelação para o fundo do mar – a imagem ganha corpo, primeiro como um jogo
(o vai e vem), o qual possibilita um gesto alegre, um prazer (baixo) diante de tal jogo, para,
enfim, tornar-se tátil, um elemento de manipulação, que pode ser cruel (alteração das formas
para contato, sem ser um objeto de fato material, torna-se forma, substrato material de um
processo. A imagem aparece, nas palavras de Deleuze (2018, p.98), como imagem-
movimento:
A operação que as imagens exercem, e podemos dizer também, que fecundam essa
mesma operação, fazem com que criem para si um verdadeiro “plano de imanência”, o qual
faz da imagem “matéria; não algo que estaria escondido atrás da imagem, mas, ao contrário, a
identidade absoluta da imagem e do movimento [...] „Dizei que meu corpo é matéria, ou dizei
que ele é imagem...‟. A imagem-movimento e a matéria fluente são estritamente a mesma
coisa” (idem, p.99). No movimento que realiza, a imagem torna-se matéria, não uma cópia ou
mera reprodução, mas o aparecer da matéria em sua alteração.
Na perspectiva do jogo, a imagem adquire tais funções cruéis, abrindo-se à dialética,
que também, por sua vez, se revolta; é aberta para a chance de sua própria colocação em
forma, de se por em risco pela errância, como deliberadamente caminhar por uma região
perigosa em nome de uma experiência, para daí elaborar uma estrutura capaz de comportar e
produzir saber, como que arrancando daqueles que não desejam esse saber, ao ponto mesmo
de destruí-lo ou simular sua destruição “para ver o que acontece”. Olhar o experimento
rigorosamente é, como na regressão, desejar olhar e saber desde a origem do acontecimento,
performando a própria relação. Todavia, tal atitude não visa encontrar uma unidade, ou ser
gerador dessa experiência, pois como disse Bataille (2017b, p.354): “na noite há apenas
interessante nesse comentário de Octávio Paz é ele configurar heuristicamente a poesia de Mallarmé, afirmando
tratar-se de um “poema em movimento”.
249
noite”147. E, se há qualquer esforço de saber, de produzir saber, ele só pode ser concebido
desta forma: “só resta falar na noite, ao acaso, e ter apenas uma devoção, a chance” 148. Ou
seja, a vontade de voltar é uma vontade de retroceder à abertura ainda mais abissal, ou
mesmo, um afundar ainda mais nessa abertura, mas que, com seu horror e sedução, terror e
potência, é capaz de nos fazer “ver nascer uma imagem” (DIDI-HUBERMAN, 2015e, p.272)
– Essa vontade de origem que é, na verdade, vontade de fazer origem – turbilhonando todo o
processo e todos os elementos constituintes. Se, por um lado, subitamente a operação
heurística torna-se abissal, por outro lado, é pelo seu gaio e inquietante tecido que se espalha e
conecta-se nas formas mais extraordinárias e generosas, engolindo tudo, capaz de agregar
potencialmente tudo em sua rede, formando relações, as quais, por sua vez, põem as formas
em movimento. Se, de um lado, Bataille parece a figura do dispêndio ou de recusa hábil a
abrir mão da potência política dessa configuração, ele se encontra, graças a isso, de outro
lado, com Eisenstein, cineasta russo, com quem compartilha o mesmo tipo de operação,
também assumida como atitude. Na perspectiva do cineasta, tal operação, também como
procedimento, assume a forma da montagem (idem, p.318-320). É ela o espaço concreto da
“colocação em ação dessa dialética”, cujo jogo leva a uma série de formulações: colocação
em hipótese, colocação em tese, colocação em jogo, colocação em obra e colocação em
movimento. Um procedimento de experimentação a fim de concretizar o próprio jogo
(ibidem, p.311). Bataille seria aquele a nos acrescentar o que já vimos em Frenhofer:
colocação em queda, colocação em alucinação até.
O que se buscava, enfim, nesses jogos? Para Didi-Huberman (2015e, p.320) tratava-
se de um regime de intensidades, como a “via régia para operar de maneira que as formas nos
olhem, isto é, correspondam a esse „estado de coisas essencial e violento que Bataille viria a
chamar de „transgressão‟, enquanto Eisenstein, por sua vez, o chamava de „revolucionário‟”.
Tais noções sobre as imagens já estão presentes nos primeiros textos de Didi-Huberman,
desde a imagem-crítica até à imagem-combate. Enquanto essas últimas perturbam o saber
instituído, as imagens em jogo no pensamento de Bataille e Eisenstein colocam as imagens
147
“Lá onde o conhecimento buscou o ser, ele encontrou o inacabado” (BATAILLE, 2017a, p.46).
148
Algumas passagens do próprio autor pode nos ajudar a apreender, pelo menos, o que seria essa chance. Ela
aparece como aquilo que configura a “situação” do sujeito (ibidem, 2017b, p.76), mais só depois o autor tenta
encontrar um conceito para a chance: “Chance tem a mesma origem (cadentia) que échéance [calhar]. Chance é
aquilo que calha, aquilo que cai (na origem, boa ou má-chance). É a contingência, a queda de um dado”
(BATAILLE, 2017a, p.101) e mais adiante: “A chance é o efeito de uma colocação em jogo. Esse efeito nunca é
o repouso. Incessantemente recolocada em jogo, a chance é o desconhecimento da angústia (na medida em que a
angústia é desejo de repouso, de satisfação). Seu movimento leva ao único verdadeiro fim da angústia: à
ausência de resposta; ele não pode dar cabo da angústia, pois, a fim de ser chance, e não outra coisa, tem de
desejar que a angústia subsista e que a chance continue em jogo.” (idem, p.105) e sua relação é aberta como a
noite: “A chance sai da noite, volta à noite, é a filha e a mãe da noite” (ibidem, p.115).
250
149
“[...] a ferida do inacabamento os abre. Por meio do que se pode chamar inacabamento, nudez animal, ferida,
os diversos seres separados comunicam, ganham vida perdendo-se na comunicação de um ao outro”
(BATAILLE, 2017a, p.49). E, mais a frente, ao tratar dos amantes, ele adiciona: “A comunicação que os mescla
se deve à nudez de seus rasgões. Seu amor significa que não vêem um no outro seu ser, mas sua ferida, e a
necessidade de se perder: não há maior desejo que aquele do ferido por outro ferimento” (BATAILLE, 2017a,
p.53).
251
autêntica [...] Algo anterior a toda representação [...] Algo também posterior a toda
representação, como se a imagem fosse essa força obscura [...] capaz de desmentir a cena
figurativa [...]” (ibidem, p.354-355). O que a montagem faz é “abrir o campo das
possibilidades para essas „soluções acidentais‟ ou sintomas na representação” (ibidem).
Lembremos, por exemplo, a noção de origem mais uma vez, a partir de Benjamin, como a
pré- e a pós- história da história. Mesma concepção a aparecer na imagem dialética. Ela é
anterior porque não alcançou um estado de cognoscibilidade, seu tempo-de-agora, isto é, não
adentrou o espaço de uma esquematização capaz de fazê-la coincidir com um significado. Ela
é um significante, ou um acontecimento, cristalizado justamente neste momento em que se
mostra simplesmente, de modo a nos olhar e tocar de sua distância – a estranheza. Ela é
posterior porque, enquanto aparição singular, coloca em questão todo estatuto, representativo
que vise atribuir-lhe um significado. A imagem aparece como aquilo que sempre vem depois
de sua própria história, de sua própria invenção, como sobrevivente de si mesma, como
processo engendrador do saber e como resultado que a contesta; sempre haverá um novo
acontecimento a lançá-la num outro tempo que a faz transgredir os conhecimentos
constituídos sobre si, como uma espécie de atualização, e, ao mesmo tempo, dialeticamente,
regressar à origem, a fim de mostrar a figuração que a pôs em cena, incluindo aí o próprio
tempo e espaço onde foi gerada, mas na forma de uma intensidade. A imagem é o que resta
desse tempo: é seu a posteriori que a recria e a relança ao começo.
Nesse sentido, podemos pensar a imagicidade como esse poder de configurar no seu
espaço e tempo, sua origem e seu fim; de por em debate a representação que a sucede e ser, ao
mesmo tempo, a contestação dessa representação. Se elaborarmos mais uma vez a constelação
heurística dessas imagens, teremos, que ela pode, igualmente, articular-se por essa
perspectiva: ao mesmo tempo, uma operação anterior ao saber, uma atitude diante do processo
de saber e uma finalidade intensiva a abrir o saber produzido a seu informe, à sua colocação
em forma, produtora de sintomas, saberes inquietos, mordazes, alegres e terríveis. Ela,
exuberante e generosa, é capaz de configurar-se com sua desmesura, incorporando-a no seu
processo de intensificação da própria experiência. Poderíamos conceber a hipótese de que a
imagem aqui se compõe como uma vontade de sintoma, vontade de desclassificar, desmentir,
dilacerar qualquer ideia de saber universal, qualquer ideal de humanidade ou ser humano
(ibidem, p.365). Didi-Huberman (2015e) nos lembra que, para Bataille, o que tal vontade
revela, o “estado de coisas essencial” não é outro senão a “comunicação” do mal de ser, que
não é o inacabamento. A doença do ser humano é o seu inacabamento. A arte deve ser capaz
de comunicar isso e não qualquer mentira de completude. O ser humano é sua própria cesura,
252
150
As citações são traduções nossas.
253
menos agressiva, mas tão experimental quanto, do encontro. Encontro a colocar o pensador
em uma dupla tarefa, que pode ser paradoxal: “não perder a paciência do método, a longa
duração da ideia fixa, a obstinação das fontes predominantes”, bem como “não perder mais a
impaciência e a impertinência das coisas fortuitas, o tempo breve das descobertas, o
imprevisto dos encontros, ou mesmo, dos acidentes de percurso” (ibidem, p.10). Como
encontro, a operação heurística se torna uma capacidade de aproveitar o tempo breve de uma
aparição; é um modo de preparação para o acontecimento, formando e inventando
ferramentas, saberes necessários e imagens para conseguir (re)conhecer a chance.
Voltemos, então, a nosso exemplo: três dados são lançados, três dados absolutamente
similares, os quais caem ao acaso, e ao mesmo tempo, principia o experimento do autor. Ele
lembra antes: tal exercício está ligado às noções de simultaneidade e similaridade, as quais
possuem a mesma raiz (simul-, o que enuncia algo como uma rivalidade na chance). Quando
os três são jogados, simultaneamente e similarmente, tudo se diferencia: cada um dos dados
assume uma possibilidade, crua e cruelmente: “para um ecoa a vida; para o outro, a ferida;
para o terceiro, a morte; a um, o olhar; ao outro, a imploração; ao terceiro, nada” (ibidem,
p.21). Esses três dados assumiram no exercício a imagem de um acidente de carro, de uma
colisão (contato por excesso), no qual, ao acaso, um escapou ileso, sem saber como, mas
desorientado, vendo com certa dificuldade, sem estabelecer bem o contorno de cada coisa, e
mesmo de seus movimentos e pensamentos. O segundo foi ferido, mutilado. “Ele caminha e
implora „Onde estou? Jo, onde você está?”. Ele procura o companheiro, ignorando que sua
própria vida está por um fio; O terceiro está invisível. O primeiro, que ainda vê, olha uma
poça de sangue que aumenta silenciosamente “no branco vapor da neblina” (ibidem, p.21-22).
“Tal é o sentido do golpe de dados”, diz Didi-Huberman (2014d), ao final: a um o olhar, o
“dom envenenado do olhar”; ao segundo, “a loucura e a infinidade”, e; ao terceiro, a morte
que já se aproxima.
A vontade de chance é a vontade soberana que se impõe a esses três personagens, e o
faz, não como uma possibilidade a vislumbrar. Ela se impõe tatilmente, perturbando a própria
condição de ver, para aqueles que sobrevivem. Ela pode perturbar o olhar, e mesmo assim
permitir olhar – olhar a partir dessa perturbação, olhar primeiro a perturbação (o corpo
dolorido, as formas sem contorno, o zumbido na cabeça, a falta de orientação), para daí,
incrustrado nessa perspectiva, formular algum conhecimento sobre o entorno, sobre o
acontecimento que se abateu sobre todos. O segundo, atingido muito fortemente, talvez não
consiga recuperar-se. Ele não consegue pensar e formular hipóteses porque foi tomado pelo
acontecimento, ao qual ainda está perigosamente aberto. Sua chance está em viver ou nada. O
254
terceiro sucumbiu; a morte lhe tirou a própria chance. Ela abre na configuração dessa imagem
a própria possibilidade de viver, viver para conhecer, e, mesmo conhecendo, fazê-lo
perturbado pela chance151. Tal saber produzido, por isso, não vai ao encontro de universais, ao
apaziguamento das próprias condições que a tornariam possível. A imagem, operando
heuristicamente, aberta à vontade de chance, como vontade de outro, vem com a colocação
em contato, não só do pensamento ao não-saber (o segundo personagem) da aparição súbita
(acontecimental) à possibilidade de representar, mas do corpo ao risco de morte, e ao risco de
encontrar com um saber inesperado. A heurística operante na imagem torna-se, então, um
método do inesperado; um método para olhar o inesperado, buscando vê-la e daí poder
constituir algum saber.
Podemos perguntar então: quem vê o inesperado? O vidente. Palavra ambígua, de
acordo com o filósofo francês: pode significar tanto faculdade visual para conhecer quanto
visionário, profeta, e, por isso, “capaz de delírios” (ibidem, p.77). E, prossegue: quem quer
ver, sempre quer ver mais, e vendo, “busca identificar as formas do que vê, mesmo que o que
se vê seja o fugitivo, o louco, o informe por excelência” (ibidem). Para o autor, coube a Freud
dar uma forma, “inventar uma arte da interpretação”, no qual os critérios definidos não são da
ordem do figurativo, mas do simbólico, como uma “semiologia das profundezas” (ibidem,
p.78), uma forma que, ao contrário da maneira hegemônica de análise da obra de arte na
história da arte, vai para além do detalhe, ou seja, ele não é o fim, o objetivo almejado, mas o
ponto de partida, alcançando, pois, uma “matéria indistinta” (um trecho), mais do que
qualquer detalhe de representação (ibidem, p.79-83). Isso engendra, então, um ato de
figurabilidade, o qual faz da aparição de uma “inquietante estranheza” um lugar, o lugar
dessa aparição. Para tanto, o autor opera por uma “heurìstica da figurabilidade”, isto é, uma
“experimentação, e também uma teoria, de tal forma que as figuras não apenas „representam‟,
mas „se apresentam‟, nascem, combinam e contradizem para narrar variadas histórias de uma
vez, para descrever variados objetos de uma vez” (ibidem, p.96). Tal heurística articula-se
como figura figurante, uma figura em potência ou uso, “em suspenso, em vias de fazer, em
vias de aparecer”, podendo abrir nesse processo uma “visualidade sintomal” (ibidem, p.85), a
qual, no seu movimento, “admitem, e mesmo exigem, sua antìtese constantemente mantida”,
de modo que não podemos decidir ainda a qual elas se identificam”. Tal lógica encontra aì sua
virtualidade, capaz, nessa dialética suspensiva, de “oferecer o ìndice e mesmo o movimento
soberano do visual” (ibidem). Um movimento incerto, flutuante, como se alguém sonolento,
151
“[...] a morte pode ser a mãe da chance” (BATAILLE, 2017a, p.107).
255
entre o mundo onírico e o mundo do despertar, naquele mesmo instante, como disse
Benjamin, quando se reconhece um tempo prenhe de agoras, de novas descobertas, abertas a
novas possibilidades; aquele com um olhar inquietante.
A imagem abre-se, pois, a uma heurística, proveniente de uma teoria de origem
freudiana, capaz de lidar com as ambiguidades e uma aparição de inquietações, ao mesmo
tempo em que, dirigindo o olhar a uma figura em ato é capaz de ver na estranheza que
aparece, um conjunto de saberes e tempos conjuntos, uma constelação de possibilidades em
vias de se fazer. Porém, como dialética, ela determina o lugar no qual a aparição se
estabelece, bem como seu por vir, por mais que não se saiba qual. Isso, porque, como
operação e atitude, a imagem surge como posição no presente, o que a faz habilitada a
configurar suas origens e, ao mesmo tempo, engendrar seu futuro, tornando-se para aquele
futuro, caso se concretize, o passado que a figurou. Então, ela forneceria os elementos de uma
interpretação, como origem, como ponto de partida. Interpretação, devemos saber, cuja
realização estará, por sua vez, condicionada a dois elementos do trecho, pelo qual aparece: a
ordem de um (re)corte e, igualmente, a ordem de uma indiscernibilidade, ou seja, entre uma
“incisão” (a escolha do ponto de corte para interpretação) e a “indecisão” (não só saber o que
será cortado [tempo e espaço], bem como o tempo desse corte). É o custo dessa “visada
heurìstica” (ibidem, p.99-103). Para tanto seria indispensável um tipo de procedimento, hábil
o suficiente, para manter a heurística do movimento na imagem e, rigorosa o suficiente, para
fazer justiça ao (re)corte realizado na interpretação dessa imagem.
O autor apresenta-nos, então, um “procedimento temporalizado” para a “constituição
desse quadro em objeto visìvel”. O primeiro trata de uma função determinante, que dá certa
estabilidade material, para, em seguida, manifestar um princípio dividido-divisor, o qual toma
de empréstimo a Christian Bonnefoi (1948-), a partir do qual a estranheza irrompe, torna-se
“ferida em ato”. Por fim, trata-se do desaparecimento em ato do objeto: “ele está lá, visìvel,
mas desaparecendo como tal”, deixando um rastro – sua aura, um “levante parcial, lábil, como
indeciso: meio-heurístico, meio-enigmático”, um entrelaçamento, produtor de uma
“labilidade dos planos”. Eles surgem como camadas, umas sobre as outras, dando corpo à
figura, fazendo dela um objeto de contato: “Para conhecer a pintura”, diz Didi-Huberman
(2014d) a respeito de Frenhofer, o artista “teria que levantar „camada por camada‟, os quadros
de Ticiano” (ibidem). Imaginemos a instabilidade de cada plano separadamente cortada,
demandando de quem vê o esforço de dar sentido a isso. Um sentido que, na forma do trecho,
não implica a elaboração de interpretação para um detalhe, mas no estabelecimento de
relações entre recortes, entre manchas, os quais, por sua vez, com atenção começam a parecer
256
formar algo, uma figura que, com o menor desvio do olhar, torna-se outra coisa, mas já indica
algum sentido possível, mas frágil. Nesse espaço, essa figura prolifera formas, uma que vai
dando lugar a outra, ou mesmo justapondo-se a outra. O que parecia uma face torna-se um
tronco de árvore, ou o topo de uma montanha. O olhar, simultaneamente, corta e recorta as
camadas, cria sentidos parciais que se modificam, à medida em que o olhar se move, “entre
um saber (metade-abertura heurística) e uma obnubilação (metade-fechamento enigmático)”
(ibidem, p.106).
A figura, nesse processo, adquire uma “densidade aparente”, pela qual se passa do
colorido (da massa fenomenológica da cor) através do quadro, depois do lado (o muro, o
trecho) até seu além (o olhar)”, dando à cor “a qualidade do diáfano”, isto é, “uma condição
invisìvel como tal, da aparição do visìvel”, sua potência. O diáfano é um acontecimento que
toca o olhar. Esse contato produz “uma alteração, um movimento imóvel do sujeito”, ou seja,
o tocar. A cor, o diáfano em ação é “um jogo lábil do limite” (ibidem, p.106-109). Em
L‟homme qui marchait dans la couleur (publicação em 2001), a partir das obras de James
Turrell (1943-), o homem entra numa sala e é envolvido, inundado pela cor. Ela o toca, como
tocam as cores do homem que caminha no deserto: várias intensidades de amarelo, vários
sinais coloridos e ambíguos (fumaças, nuvens, fogo) a tocá-lo, a fazê-lo interpretar e dar um
sentido, a procurar um significado para os acontecimentos, correndo o risco de loucura, ou de
fazer da ausência o universal, a unidade dessas muitas camadas instáveis que se lhe apresenta
diante do olhar. Apresentam-se como trechos, como camada instável, de um desejo de sentido
que pode se transformar em sentido do desejo, fazendo do olhar um movimento imóvel, isto é,
formando um sentido de afeto. Somos afetados pela figura, pelo movimento da figura. Nossos
afetos são esses movimentos imóveis; são eles o arrepio do contato com o diáfano, o que não
toca nossa superfície e, ao mesmo tempo, atravessa-nos. É importante dizer, como lembra
Deleuze, que ser afetado não é uma forma passiva. Didi-Huberman o segue nisso: os afetos,
nossas emoções, põem em contato com o outro, por um impessoal concernente a todos. Há o
risco da humilhação, mas isso se dá mais pelo arrepio, ou vergonha, do íntimo
reconhecimento por tomar parte nos afetos do que por algum desconhecimento, como expõe o
nosso autor em Que emoção? Que emoção! (publicação em 2013c).
Nesse processo, persiste uma espécie de “experiência da teimosia (o
fenomenológico)” ao qual se conjuga um “ponto de vista estrutural (o semiótico)”, de modo a
por “toda estrutura em indecisão” (ibidem, p.110). Trecho seria o nome dessa abertura
heurística na imagem, essa potência de colocar em questão, questão de indecisão, questão de
incisão, questão de desaparecimento, questão de afetividade. A imagem aparece como a
257
formando uma “aliança voraz com o deus”. Cada participante do rito, então, reaviva esse
corpo único no qual todos participariam, comendo, incorporando. Por fim, o último homem, o
que nos interessa aqui, era aquele que “comia para melhor apodrecer”. Tratava-se de um
homem muito doce, que amava mel. Toda sua vida produzia doces e comia mel, ao ponto de
defecar doces. Após sua morte, enterraram-no num círculo de pedra, cheio de mel. Com o
passar dos anos, seu corpo fundira-se ao mel. Depois tal substância passou a ser distribuída
aos doentes, porque os curaria. Vindo de uma história chinesa, cujo termo significa “múmia”,
ele existe como um fármaco obtido a partir das múmias egípcias, ao qual Ambroise Paré
(1510-1590), cirurgião francês, consagraria uma pequena monografia. Segundo o filósofo,
essa última história ensina-nos que “comer pode servir também a melhor apodrecer, para
melhor fornecer aos outros os meios de não morrer. Como se o ato de comer se sustentasse de
alguma coisa como uma heurìstica da morte”.
Se a heurística é capaz de configurar a própria morte a partir dessas imagens, pode
ser neste sentido: fazer da própria morte uma abertura para que os outros não morram. Essa
morte, assim, deixa de ser um pertencimento puramente pessoal e adquire, articulando-se,
com um valor heurístico da sustentação da possibilidade de fazer a vida florescer. Temos o
exemplo da morte de Marielle Franco, ou mesmo a de Amarildo, numa constelação de
multiplicação da luta pelas vidas. Suas mortes, aparentemente de cada um, tornaram-se a
experiência de abertura para o desejo de luta, para a sustentação do impulso de vida que
conjuga muitas pessoas. Suas imagens surgem como levante de vidas marginalizadas; vem
dos rostos e corpos daquele que, como feridas, abrem o rosto ideal da sociedade brasileira;
rasgam a figura do “cidadão de bem”. A diferença entre a morte do último para a morte do
Cristo está justamente nessa espécie de regressão imanentista – uma dobra que vai ao limite e
faz limiar, espaço de experimentação na finitude. A morte não serve para o além-túmulo,
quando “tudo será melhor”. Ela, pelo contrário, ensina que uma morte pode servir, por algo
que fica – um resto –, como forma de alimento da luta, da sobrevivência, em nome de uma
possibilidade presente de transformação, ou de, pelo menos, de resistência.
à vida, ou mesmo é já o lançamento da vida como hipótese em forma de arte. De certa forma,
a imagem no plano de sua operação heurística adquire esse caráter de restituição à vida, à arte
e ao saber as muitas mutilações e esquematizações elaboradas durante a história da arte e do
pensamento. Com La ressemblance par contact: archéologie, anachronisme et modernité de
l‟empreinte (publicação em 2008)152, Didi-Huberman articula essa relação a partir da obra de
Marcel Duchmap (1887-1968), quem foi capaz de contestar a divisão artificial entre a
profissão do artista e a do artesão, além de por em questão a divisão temporal da história da
arte. Tudo isso, podemos dizer, do ponto de vista da técnica da impressão. Para realizar tal
consideração, primeiro é preciso evitar a tentação de tomar a impressão como “condição pré-
histórica da imagem”, muito menos como “condição moderna das artes visuais” (ibidem,
2008a, p.11-12). A impressão deveria ser jogada sobre dois modos de tempo, ou seja, sobre
um “ponto de vista anacrônico”, o que significaria repor o debate no tempo, onde ele falta,
“para fazer nascer em um ponto em que ela é desconhecida até” (ibidem, p.12). Para tanto, o
autor diz ser necessário partir do próprio presente, no sentido de investigar o processo no qual
essa história nasceu e está se tornando. Porque, a impressão é uma das mais antigas técnicas e,
ao mesmo tempo, pode estar entre, guardando-se as devidas diferenças, as formas mais
modernas de arte. Benjamin, em seu ensaio sobre a obra de arte, mostra tal aproximação:
primeiro, a impressão manual, ou mesmo se pensarmos, a impressão 153 das mãos nas paredes
das cavernas, e, depois, a fotografia e o cinema, com suas formas de impressão. Nem antiga
(ou paradisíaca, como lembra o autor), nem moderna (ou pós-moderna), a impressão elabora
seu próprio tempo, como um tempo-origem, um tempo anacrônico.
Apontar a rudimentariedade ou primitividade da impressão significa apresentar a
“qualidade de seu anacronismo”. Nela aparecem tanto o “contato com a origem” quanto “a
perda da origem”, operando numa dialética que instaura uma nova modalidade temporal
(anacrônica, modo de sobrevivência) diferente dos debates atuais: “A impressão [...] é algo
que nos diz tanto bem o contato (o pé que se afunda na areia) quanto a perda (a ausência do
pé na sua impressão) [...] e em uma tal conflagração que a impressão nos impõe repensar
certos modelos de temporalidade [...]” (ibidem, p.18). Coube a Duchamp elaborar uma
maneira de relacionarmo-nos com essas temporalidades. A partir dos famigerados
readymades, ele nos ensinou duas atitudes possìveis: “uma forma dual onde se confrontam
152
Todas as citações são traduções nossas.
153
Vale salientar o debate em torno do termo “impressão”, feito por Meyer Schapiro (2002, p.34-56), em “O
conceito de impressionismo”, a partir do qual se originará o nome do movimento impressionista. O debate
suscitado por Didi-Huberman estaria aaquém do conceitual de Schapiro, mas lembrando seu sentido mais trivial,
e certamente perjorativo, o do trabalho do pintor de paredes.
261
dois valores de uso [...] A primeira atitude consiste em reivindicar a perda da origem [...] A
segunda atitude consiste em [...] votar ao descrédito sua „não-obra‟, sua „desastrosa
posteridade‟” (ibidem, p.19-20). Ou seja, por um lado reivindicar a perda e fazer dela parte da
obra, partir desse ponto, ao invés de lamuriar tal perda. Por outro lado, por em questão, por
em jogo, a própria produção desse novo tempo, a fim de nela fraturar seu progresso, tornar a
“enunciação do „não importa o que‟ um campo desconcertante”, no qual o trabalho do fazer
não deixa de fustigá-lo. A impressão realiza tal operação, pois, para sua efetuação necessita
do trabalho técnico. Ela não é objeto de enunciação, como aparição desse evento como a
própria obra de arte. De certa forma, mancha o progredir do espírito, que, ao contrário de
instalar-se na palavra a reportar tão somente à interioridade do espírito para se produzir, faz
da matéria seu suporte imprescindível, ao ponto de, no processo de impressão, o homem não
agir, senão aproximando dois materiais, os quais, no contato, criam a obra: “a impressão
supõe um suporte ou substrato, um gesto que o afeta (em geral um gesto de pressão, ao menos
um contato) e um resultado mecânico que é uma marca, em vazado ou relevo” (ibidem, p.27).
Estamos diante de um dispositivo técnico que não é produto de nenhum gênio; que,
de certa forma, está fora do trabalho do sujeito, pelo menos, diretamente e, além disso, que é
passível de reprodução, acabando com a noção de unicidade da obra de arte. Uma invenção
imemorial, “perdida na noite dos tempos”, mas que sobrevive simplesmente. Foi capaz de
atravessar épocas e resistir a toda sorte de ataques, menosprezos e à “invenção da eletricidade,
dos robôs, da holografia”, para ainda constituir-se como técnica artística. Mais do que seu
anacronismo, a própria noção de técnica se altera: “ela olha em todos os sentidos do tempo” e
não meramente aquele do “progresso” ou da “novidade” (ibidem, p.29). Na perspectiva de
Marcel Mauss, o autor ainda opera partindo de uma “complexidade antropológica”, pela qual
a técnica é tida como um “ato tradicional em vista de um efeito mecânico, fìsico ou quìmico”,
que, então, está votado a uma “tensão de sua eficácia material e de sua eficácia simbólica”, de
modo a exigir uma “estrutura” transmitida à linguagem (ibidem, p.29-30). Seu anacronismo
está, então, implicado num tempo que a permite sobreviver, operando como um tipo de
ferramenta (organon) do artista, que numa “persistência antropométrica” continua a utilizar os
aparatos técnicos como extensão de seu corpo, como gestos (ibidem, p.30). A impressão,
nessa perspectiva, trabalha, demonstrando “seu valor fundamentalmente operatório”. Mesmo
que nada fabrique, ela
produz bem qualquer coisa [...] Mesmo se podemos constatar que ela está
raramente sustentada por uma axiomática – uma série de princípios valendo
262
Nesse sentido, operar pela impressão significa “emitir uma hipótese técnica, para ver
o que ela dá tão simplesmente”. O seu valor heurìstico é, pois, um “valor de experimentação
aberta” (ibidem). Isto é, a impressão torna-se um modo de aproximação e experimentação,
capaz de dar ao experimentador a possibilidade de produzir e reproduzir qualquer coisa. Além
disso, como técnica, ela permite um jogo entre as possibilidades materiais de tal produção e
suas formulações simbólicas. Serve também à extensão corporal como modo de trabalho
sobre o mundo, funcionando como uma forma de moldar, por um lado, e deixar as marcas
humanas de sua passagem (uma problemática temporal) e, ao mesmo tempo, de ser moldado,
servido como forma de transmissão, um saber em constituição, por outro lado. A impressão
serve, assim, ao artista como forma de deixar sua marca singular no mundo e, igualmente,
participa de uma eficácia simbólica, constituindo uma forma a ser apropriada por outros; uma
operação encadeada de trabalho pela tradição. Poderíamos dizer ainda: a impressão é
figurante (produz uma história e um tempo) e é figurada (produz obras, experimentações
singulares).
A tradição, diz o autor (2008a, p.32), da filosofia, porém, utiliza o termo como
“metáfora instrumental”, para opô-la a uma episteme (Platão) e à especulação científica
(Bachelard). Numa dimensão antropológica, isto é, imanente, e fora dessa bipartição (artes
mecânicas/artes liberais, manufatura/ciência), a impressão “procede rigorosamente, tanto por
seus procedimentos quanto por suas aplicações, dessa „ciência do concreto‟”, de modo que
“fazer uma impressão é sempre produzir um tecido de relações materiais que dão lugar a um
objeto concreto”. Além disso, ela é capaz, também, de produzir “relações abstratas, mitos,
fantasmas, conhecimentos”, abrindo aì a perspectiva dela ser pensada tanto como processo
quanto como paradigma, porque, na sua elaboração “reúne os dois sentidos da palavra
experiência, o sentido físico de um protocolo experimental e o sentido gnosiológico de uma
apreensão do mundo” (ibidem). Essa noção dupla a sustentar a impressão permite, por sua
vez, pensar na criação, ou “bricolagem” de relações (entre corpo e substrato). A partir de
Lévi-Strauss, ao definir as características da bricolagem, o autor mostra como elas se aplicam
também à impressão: “o princìpio não orientado do „isso pode sempre servir‟; a abertura ao
„momento incidente‟, ao acaso técnico, à „ausência de projeto‟; mas também a possibilidade
de „resultados brilhantes e imprevistos‟; o caráter „heteróclito‟ das matérias e das operações;
mas também o desejo que um só gesto seja „apto a executar um grande número de tarefas
263
Estamos, portanto, aqui diante de um inconsciente técnico, desde que, como deixa
claro o filósofo, partilhemos “com a noção de inconsciente uma outra característica, que é a
„montagem‟ particular de elementos catastróficos e de elementos estruturais” (ibidem, p.35).
A impressão cria, então, o que o autor passa a denominar cadeia operatória, a qual, “de um
lado, ela nos faz acessar a complexidade técnica dos objetos, frequentemente considerados
como rudimentares, porque são extremamente antigos; de outro lado, ela nos faz acessar uma
sorte de arqueologia, não somente da técnica, mas da hominização ela mesma” (ibidem,
p.36). A impressão é considerada uma dessas possibilidades de “cadeias operatórias”, no
sentido de um “sistema dinâmico de uma sinergia entre matéria, ferramenta, gesto, memória e
linguagem” (ibidem). Ela carrega consigo, pois, não somente sua dinâmica interna de
acidentes e perfectibilidade, trabalho de montagem que faz jogar o acaso com a própria
estrutura, sua margem de indeterminação a encontrar na própria técnica, no seu seio, por
assim dizer, um espaço em que o contato humano não participa, como também um
entrelaçamento disso com a própria humanidade, a visibilidade e registro de seus gestos e
linguagens, uma forma de construção e transmissão da memória, quando não uma
transformação paradigmática na própria concepção e estruturação da memória humana. Como
cadeia operatória, a impressão revela sua complexidade estrutural e configuradora, como
ferramenta humana e como linguagem, sem a qual não haveria a possibilidade histórica de
formular uma noção de humanidade. É um modo técnico de registro, mas também uma
ferramenta capaz de abrir possibilidades de experimentação com o acaso, na conjugação de
gestos e materiais, trabalho técnico e invenção, operando no espaço seminal em que a mão
humana não toca.
Nesse sentido, a impressão rompe, ou escapa, a qualquer divisão entre trabalho
manual e trabalho intelectual. Ambos são postos em jogo, abrindo espaço e deixando seus
vestígios. Didi-Huberman (2008a, p.37) assinala também as “relações constitucionais e
funcionais [...] que ligam potentemente a ferramenta à linguagem, a mão à face, o gesto à
palavra”, no qual a impressão encontra-se em “dois bons lugares bem diferentes”: entre a
“violência” e a “criação”, entre os “atos que imprimem à matéria uma forma utilizável” e as
“técnicas de fabricação”, ou “criação de formas”, o que se torna “o problema da dimensão
estética que se põe aqui em sua relação ao gesto técnico”. Tal gesto é concebido como o
265
154
“Nenhuma invenção surgiu de uma vez [...] Cada coisa surgiu pouco a pouco; no início ninguém se preocupou
com ela porque não se previu sua grandeza futura. [...] elas foram tentativas miseráveis, jogos ruins; só mais
266
maneira, ver uma impressão em Lascaux, como se tivesse sido produzida num único tempo,
ou desconsiderando a possibilidade de colisão temporal, acaba por eliminar a riqueza e
complexidade do que é olhado e do que é sabido. Realizar esse movimento de abertura
permite encontrar as histórias, saberes e ferramentas esquecidos ou os que permaneceram
invisíveis, devido ao enquadramento utilizado a ponto de desconsiderá-los.
No fim, a questão mais importante que se levanta é a da característica heurística que
concerne à própria produção, seja artística, seja filosófica dessas imagens. A se pensar numa
forma originária, ela é já impressão de outra forma, que pode ser já uma semelhança (por
acidente, por exemplo) de outra forma, que não é princípio axiomático de nada. A origem e o
processo são heurísticos, ou seja, abertos, não axiomáticos, acidentais, indeterminados quanto
a seu fim, o resultado de colisões e cruzamentos, impuro e corporal. As fronteiras são feridas,
o próprio território é descoberta como sedimentação de uma multiplicidade de tempos e
espaços. A aparente separação entre o olho e a mão alcança aqui uma relação
fenomenológica, capaz de criar do contato um resultado visual, como a mão encostada na
parede da caverna dos Altos Pirineus, em negativo – vestígio de um contato distanciado,
desdobrado em imagem: “um gesto de aderência, de pegada ou de pressão, que devém um
sistema figurativo, e mesmo produção de semelhanças „exatas‟[...]” (ibidem, p.44). Uma
cadeia operatória adaptável tanto ao seu meio quanto a seu suporte. O que está em jogo é
justamente a flexibilidade, esta possibilidade mesma de jogar com qualquer material, ser
capaz de adaptar-se a qualquer suporte. Tomando uma das características do ensaio, conforme
o pensamento de Adorno, a de não violentar o objeto, mas circunscrevê-lo, alcançamos uma
aproximação desse sentido que buscaria a impressão. Ela é capaz de se con-formar com seu
suporte e material. Se se realiza alguma violência, ela está no choque, no contato do suporte
com o material, violentando, por assim dizer, seu funcionamento, mas não sua estrutura. Uma
violência alegre.
Mesmo cavando numa pedra, ou montando um molde, a estrutura é respeitada,
articulando-se os materiais, os instrumentos e os gestos – ela se torna função neste jogo. O
que permanece é, então, a necessidade do contato para se produzir uma imagem (a impressão)
e sua criação mesma é dialética: a imagem aparece, como no caso acima, quando se retira a
mão, tornando-se, assim, o vestígio da ausência da mão, da ausência (e distância) do contato,
baseado num “dispositivo complementar”, o que, diz Didi-Huberman (2008a, p.46), não é
tardem se tornaram artifícios e a partir deles lentamente se tornaram artes, da arte foram posteriormente tiradas
regras; depois de muitos períodos intermediários, as regras foram elevadas à ciência; agora, para levar a cabo a
ciência, quer-se a visão do todo – mas onde está a origem? O fio está perdido” (HERDER, 2018, p.25).
267
outra coisa senão aquela marca “paradigmática do symbolon ele mesmo”. Marca de que em tal
caso? “da potência de uma conexão ou tempo, que é a potência fantasmática dos „retornos‟
das sobrevivências: coisas que se foram, mas que continuam, diante de nós, próximas de nós,
a nos fazer signos de sua ausência” (ibidem, p.47). Sua dialética também opera na divisão
conceitual entre presença e representação. O que seriam tais impressões e impressões de
mãos? Na partição entre “realismo” e “esquematismo (ou simbolismo)”, com a impressão
“essa distinção desmorona igualmente”, a partir do momento em que se compreende que “a
impressão, desde a pré-história, é tanto um motivo [sujet] quanto um processo” (ibidem, p.47-
48), ou seja, ela pode ser o resultado de um trabalho, de uma atividade direta, no sentido de
elaboração dessa impressão, como bem pode ser também a realização da reprodução dessa
impressão. Na verdade, é muito difícil realizar tal distinção, entre impressão feita e impressão
copiada. Desde sua origem, a categoria de autenticidade não se aplica, e mesmo aquelas que a
história da arte (originalidade, gênio, unicidade, ideal, etc) utiliza também se tornam
obsoletas. O que continua nessa operação é o que Didi-Huberman (2008a, p.51) denomina
como “uma bela lição de estética e de semiótica: jamais nela o processo se opõe ao resultado,
nem o „abstrato‟ ao „figurativo‟. Nem o traçado ao traço, nem o traço ao simbólico”. Temos,
pelo contrário, um “gesto técnico [...] investido das potências sobredeterminadas do
imaginário e do simbólico”. Um gesto, poderíamos dizer, a permitir colocar em contato
materiais e substratos variados, aproximá-los e estabelecer relações inesperadas, capazes de
produzir algo que guarda na sua constituição, o acaso e, ao mesmo tempo, a marca disso, a
realização de uma impressão, produto concreto e uma experiência.
Um gesto que é tanto técnico, no sentido da distância da mão que realiza o contato,
quanto tátil, a da mesma mão que realiza o contato dessa distância. A impressão consegue,
então, esquivar-se e contradizer a noção corrente a dividir e separar as artes, entre artes
liberais e artes mecânicas, consagrando, por isso, a impressão a um lugar subalterno,
esclarece-nos o filósofo (ibidem, p.92). O desejo de tal divisão, ocorre com o intuito de
“liberar-se do material” e, assim, consagrar o artista, agora diverso qualitativamente do mero
artesão, ao mundo da ideia, das profissões elevadas que pensam e definem o mundo: “toda a
estética das academias italianas do século XVI, onde se funda nosso sistema moderno das
„belas artes‟, poderia ser resumida como uma reivindicação, não somente intelectual, mas
também intelectualista”, opondo o “simples artesão alienado nos velhos modelos técnicos do
saber-fazer [...] à altura de um grande poeta, isto é, aquele de um autêntico saber intelectual
268
dobrado de uma liberdade e de uma „soberania‟ artística” (ibidem, p.92-93)155. Junto a isso,
formula-se uma teoria da imitação, na qual Giorgio Vasari (1511-1574), tratando da vida de
Giotto (1266-1337), começa com a injunção de “imitar sempre a natureza”, sob o auspício do
disegno, um conceito estratégico que, segundo o filósofo francês, “dá lugar a uma sorte de
axiomáticas da imitação – com os dois grandes eixos que se conhece – „natureza‟ e
„antiguidade‟ [...]”, a partir do que, ao invés de falar-se em imprimir uma matéria, muda-se
para a questão do exprimir uma ideia. Dessa forma, “o gesto técnico não é mais o primeiro:
ele se encontra no fim do percurso, simples instrumento de um processo aparentemente muito
intelectual que vai da idea ao disegno-desígnio (invenção artística), e daquele ao disegno-
desenho, a saber, nos termos mesmo de Vasari: a idea como tal espessa com le mani”156
(ibidem, p.93).
Com isso, instaura-se um primado óptico em detrimento do tátil. Primado tão
consolidado que, como disse Benjamin (2014, p.113), enquanto para a “recepção ótica” há a
contraparte da “contemplação”, para a “recepção tátil” nem há contraparte, nem mesmo
conceito. Didi-Huberman (2008a), por sua vez, mostrando uma certa obscuridade e falta de tal
contraparte, apresenta algumas “linhas de força” para uma “sobrevivência” da impressão. A
primeira diz da impassibilidade de desintrincar “a matéria da forma”, resistindo, assim, “à
ideia manìaca de Vasari, da forma compreendida como ideia”. Por exemplo, “Pisano recolheu
testemunhos formais da escultura romana, bustos notadamente [...]” ou ainda, “no século XV,
o realismo pictural de Masaccio não parte de nada, precedido que era por uma série de
modelos plásticos que lhe fornecia Nanni di Banco e Donatello”. E mesmo Cennino Cennini
“não hesita em consagrar os noves últimos capìtulos de seu Libro dell‟arte às técnicas de
impressão [...]”. A segunda linha diz respeito à sobrevivência “dos saberes-fazer técnicos
155
“[...] a palavra „arte‟ me interessa muito. Se ela vem do Sânscrito, como ouvi dizer, ela significa „fazer‟.
Agora todo mundo faz alguma coisa, e aqueles que fazem coisas em tela, com uma moldura, são chamados
artistas. Antigamente, eles eram designados por uma palavra que eu prefiro: artesãos” (DUCHAMP apud
CABANNE, 2015, p.24-25).
156
“Digo, pois, que a escultura e a pintura na verdade são irmãs, nascidas de um pai, que é o desenho, num único
parto e a um só tempo; e nenhuma tem primazia sobre a outra, a não ser na medida em que a virtude e a força
daqueles que a praticam façam um artista passar à frente do outro, e não por diferença ou grau de nobreza que de
fato haja entre elas” (VASARI, 2011, p.11), e: “Todos esses misteres e artes engenhosas [arquitetura, escultura,
pintura], como se vê, derivam do desenho, que é a necessária fonte de todas, sem o qual nada existe. Pois,
embora todos os segredos e métodos sejam bons, o melhor é aquele por meio do qual tudo o que está perdido é
reencontrado e tudo o que é difìcil se torna fácil, como podereis ver na leitura das vidas dos artistas” (idem,
p.66), e: “direi que a essência de ambas as artes é o desenho, fundamento delas, e, aliás, a própria alma que
concebe e nutre em si todas as partes do intelecto, perfeitíssimo na origem de todas as outras coisas, quando
Deus altíssimo fez o grande corpo do mundo e ornou o céu com brilhantíssimos luminares, desceu com o
intelecto na limpidez do firmamento e solidez da terra e, formando o homem, revelou com a formosa invenção
das coisas a primeira forma de escultura e da pintura”(ibidem, p.67, grifos nosso). O desenho está associado a
um trabalho mental, o que já determina a maneira de aproximação das técnicas artísticas. Se ela não visa a
“ideia” ela não será considerada arte, uma forma de dividir entre os “artistas” e os “artesãos”.
269
radical, não apenas sobre o plano técnico, mas também sobre os planos
estético e antropológico. Pois, o desafio dos procedimentos de impressão, no
fim do século XIV até metade sobre século XV – pelo menos – não são tanto
fazer vivo, isto é, imitar, senão reproduzir naturalmente, isto é, duplicar
(ibidem, p.98).
nos o poder do anacronismo, ensinando-nos um pouco mais o que sobrevivência quer dizer”.
A essa forma de proceder, o autor nomeia como “„modernidade‟, num sentido que nem é
vasariano, nem greenberguiano, dessa composição temporal”, composição que procede pela
relação de anacronismos, isto é,
Por fim, então, a “heurìstica da impressão acaba por desorientar o discurso ele
mesmo”, o que acaba dificultando a possibilidade de saber algo mais precisamente, mais
detalhadamente sobre ela. “Eis porque é, para nós, tão difìcil de saber de qual saber ela
procede exatamente. Porque é um saber-fazer polivalente, uma sobrevivência técnica, uma
cadeia operatória tão simples quanto eficaz, a impressão atravessa os tempos e os campos
discursivos” (ibidem, p.109). Se a impressão é desorientadora (da visão, da história, do
discurso), é porque ela é capaz de conjugar em seu espaço os elementos comumente
esquecidos ou deixados de fora, além de conjugá-los juntos, em contato, fora de qualquer
configuração determinada e tradicional, aquela da axiomática humanista. Que tipo de
humanismo substitui esse, senão aquele já levantado por Didi-Huberman em outras
oportunidades (2015e e 2013b, por exemplo), a do “humanismo fraturado” de Bataille. É
fraturada, informe, além de ser de invenção, no intuito de lembrar a potência do contato nessa
relação. Trata-se, nesse aspecto, não apenas de incluir as inovações técnicas, descobertas e
sobrevivências de um Donatello, e sim também de não excluir a parcela da humanidade
incapaz de corresponder aos axiomas e ideais artísticos. Trata-se, portanto, de estar
comprometido a abrir nesse sol que orienta a existência, abrir nesse homem, a noite densa e as
estrelas, as tochas de fogueira (a lenha e o carvão), os vagalumes frágeis, mas resistentes,
seres que integram a humanidade, não como média ou representação do povo (o herói, por
exemplo, “cume das epopeias”, como denomina Hegel), porém o precipício no qual se caí,
nas deformações e nos pobres, naqueles à margem e esmagados pelo solo, arrastados pela
cintilante carruagem do progresso.
273
engendrados por seus contrarritmos, ou seja, pelo que rompe, em qualquer momento, a
tentação ascética de calar. Tal tentação, se assim podemos chamar, refreia-se com o contato.
É ele a manter a possibilidade de dizer, de exprimir (as impressões antecedem as formas) e
imprimir (a expressão numa forma). A proximidade de impressão com os objetos que toca,
adquirindo sua textura, com tal materialidade impura e imperfeita, cujas falhas são
incorporadas e tornadas parte do processo, não deixa de lembrar a pele associada a ela: “não é
de se admirar que a dialética da impressão, com David d‟Angers, fixa-se tão frequentemente
sobre o motivo da pele – o subjéctil por excelência de todas as impressões que nos „tocam‟
mais diretamente” (ibidem, p.134).
Figura 22 - Uma mulher picada por uma serpente (August Clésinger, 1847).
Fonte: encurtador.com.br/cFGR9
Não apenas subjéctil do toque, mas da “carìcia. Campo e veìculo dos signos
desejantes” (ibidem, p.136). Desse modo, desejo, impressão e pele não deixam de imiscuírem-
se no imaginário e na escrita. Passam a relacionarem-se mutuamente a ponto de configurar um
“paradigma estético”. Seus elementos, apresenta Didi-Huberman (2008a, p.139), estão
relacionados com uma “reversibilidade” a permitir “a transformação interna das imagens em
sua própria negatividade”, além da aceitação e uso dos “acidentes de textura”, fazendo das
“dobras de amor” em “dobras de morte”. Tais dobras, incorporando para si as marcas do
contato (do contato de amor que é contato de morte), lembra o próprio ato da moldagem com
um ato de palpação e de palpitação dos corpos “que se transformam sensualmente sob os
dedos” (ibidem, p.143), configurando-se, então, entre “a fronteira do indecente e do não-dito”
(ibidem, p.145), não sendo tão somente a do desejo, mas também a da morte. A impressão
ocorria sobre os vivos na elaboração dos ex-votos, mas também era usado sobre os mortos, na
elaboração das imagos. Ela está tão próxima da reprodução, da duplicação do vivo, como está
da duplicação do rosto dos mortos, como último vestígio de sua existência, vestígio por
275
contato. Ela é também uma “fatalidade [...] essa pela qual termina a escultura”, porque agora
ela permite, inclusive, a reprodução de máscaras funerárias, apagando o rastro de unicidade da
escultura. “O paradoxo dessa fatalidade é a questão do „fim‟ (a desaparição) enlaçada com
uma questão de começos, ou mesmo de „fins‟ (de significação última)” (ibidem, p.146). Toda
a problemática da autenticidade aparece aí, na medida em que ela constitui um elemento
configurador do axioma que torna capaz de classificar uma obra como obra de arte. Na
impressão, isso se torna mais um problema do que uma certeza, já que a matriz nem é
considerada a obra de arte, mas o que forma, enforma a obra, nem o que ela produz, uma
reprodução157. Nessa ótica, pois, o elemento de autenticidade é justamente uma desorientação
da obra. O princípio mesmo assenta-se mais no procedimento do que no resultado. A
classificação não se torna mais difícil por esse caráter processual do que pelos tempos
conjugados em sua confecção.
157
Uma “saìda” do mercado da arte, segundo Rosalind Krauss (2015), no texto dedicado às obras de Rodin em
exposição nos EUA, teria sido a limitação da tiragem dos moldes, ou mesmo aquelas tiragens feitas durante a
vida do artista. Porém, mostra ela como está em contradição mesmo a ideia de original e de série.
276
transformar em novas hipóteses. “Seu grande valor procedimental [...] vem, antes de tudo, da
possibilidade aberta de uma processão das formas, de obra a obra, isto é, de uma transmissão
de elementos sintáticos em vista de sua eventual transformação” (ibidem, p.151-152). Tal
processão seria, assim, o ser em comum das obras. O experimento de uma hipótese de
impressão fornece ao experimento seguinte os resultados descobertos, não apenas como
elemento de determinação de sua forma, mas, muito mais, como elemento de composição em
vista de uma reconfiguração da obra anterior. Funcionaria como uma prova realizada, a partir
da qual, o artista gostando do efeito alcançado, tenta reproduzi-lo novamente ou de outra
forma, alterando um mínimo, ou com outro material, ou em outro suporte a fim de verificar os
resultados possíveis, podendo vir a elaborar uma composição. Ele não sabe, precisamente, o
fim (ou fins) dessa nova experiência. Sabe, no entanto, que ela fora possível anteriormente,
descoberta por acaso (ou por prova), e agora deseja saber como funciona em outras
configurações ou numa série, onde descobre algo, um novo conteúdo, uma nova forma, um
novo procedimento.
A impressão configura-se, assim, no corpo de um trabalho heurístico ativo de
decisões procedimentais e encontros fortuitos, que podem estruturar-se como uma história (a
transmissão da transformação) e mesmo uma política (a transformação da transmissão) a
partir de uma experiência conjugada entre um desejo de descoberta e a abertura para o acaso
(o não-saber, o inesperado, cujos acontecimentos, na estrutura processual alteram os percursos
e desorientam tantos as transmissões quanto as transformações). Outro exemplo, agora
apresentado pelo filósofo (2008a, p.153-155) concerne a Antônio Canova (1757-1822), quem,
apesar de menosprezar a moldagem, considerando a “translucidez e „vida‟ do mármore em
relação à „matéria morta‟ do gesso, no entanto não deixa de ter em seu ateliê os seus
„protocolos de reprodução”. Ou seja, o gesso era utilizado como material do processo por
excelência, no qual se descobriu uma “prática de duplos originais, nos quais „novos fins‟ são
experimentados, de sorte que a repetição chama uma diferença – por mais sutil que seja –
nomeado pela expressão „repetições rivais‟”. Isso cria dificuldade para aquele teórico em
busca da unidade, onde aparecem contradições. “Mas a contradição era fecunda: ela revelava
[...] uma função heurística, ou mesmo combinatória, desse repertório de formas, capaz de
suscitar um verdadeiro auto-engendramento da obra ela mesma”. Nessa concepção, a cadeia
operatória não apenas põe em relação os elementos da configuração, como é capaz de
permitir à própria obra apresentar sua potência de criação nas formas criadas. Tal forma não
seria tão somente o resultado acabado de um experimento, a resolução final de um ato ou de
uma ideia, mas o resultado parcial desse experimento, guardando nessa forma seu próprio
277
processo de formação, sendo algo e tornando-se potencialmente outro. Cada forma tem a
possibilidade de ainda formar-se, de bifurcar e constituir uma diferença, mesmo sua própria
contradição, não a procura de sua unidade subsumida, a exemplo do que se dá com o
movimento do espírito na Fenomenologia do Espírito de Hegel, mas da tensão dessas
diferenças como seu fundamento.
O paradigma heurístico das imagens, nessa perspectiva, como um colecionador (ou
mesmo, um fetichista), é capaz de juntar na sua composição todos os momentos, guardar o
mais insignificante e sensível à mudança mais sutil, um Argos com cinquenta olhos abertos ao
saber e cinquenta fechados, transformados em pele para sentir a vibração do não-saber. Se a
impressão aparece-nos, nesse paradigma, como forma processual e, também, como trabalho,
a impressão, no seu fundo, estruturadora e originária, parece, na verdade, mais a margem de
um precipício, a fim de saber um ponto, não um qualquer (ou, talvez, qualquer no sentido
recuperado por Agamben, de um querer, de um desejo), mas um encontrado, por força de um
sentido (significado ou afeto) ou por força de um acaso (do tipo, o saber ou a vida). Encontro
a começar, a por em trabalho, o próprio saber e a própria forma. Auguste Rodin (1840-1917)
foi o artista capaz de assumir essa forma de trabalhar processualmente, como já o fizera antes
Donatello, “de fazer trabalhar as contradições e as possibilidades”, não constituindo, por sua
vez, uma axiomática, mas “uma heurística dos procedimentos, dos processos e dos trâmites
reais: uma heurística tão exuberante, tão obstinada na sua abertura experimental que a obra de
Rodin, praticamente, faz explodir aquilo que entendìamos por „escultura‟” (ibidem, p.156).
Como d‟Angers, ele não deixa de contrapor o „falso realismo‟ da moldagem em relação à
escultura. Para seu trabalho trataria muito mais de alcançar uma “impressão espiritual”, cuja
definição seria “caráter”. Todavia, contraditoriamente, seus exemplos concretos recorriam a
moldes: “moldes de suas próprias obras [...] moldes de estátuas antigas [...] quando Rodin
levou seu acompanhante ao Louvre, é na sala de moldes que evocará ainda sua visão da
escultura antiga” (ibidem, p.157-158).
O molde está em seu processo, primeiro em argila, depois em gesso – em fragmentos
que reproduziam certos elementos, repete-as, com sutis diferenças. O que marca nesse
processo é, justamente, a constituição “da obra in progress [...] para ser imediatamente
disseminada em uma quantidade considerável de „fragmentos nômades‟” (ibidem, p.159)158.
158
“O trajeto nômade faz o contrário, distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto, indefinido, não
comunicante” (DELEUZE E GUATTARI, 2017b, p.54). Mais adiante, os autores acrescentam: “Para o nômade
[...] é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria
desterritorialização” (idem, p.56). E, depois: “O nômade, o espaço nômade é localizado, não delimitado”
278
Tais fragmentos formavam, para o artista, uma gipsoteca pessoal, como um “museu
decomposto de seu próprio museu desmembrado, onde cada membro se torna virtualmente
capaz de formar um novo organismo”. Descobre-se aí, afirma Didi-Huberman (2018a, p.160-
161), o “aspecto heurìstico do trabalho de Rodin” em “contradição flagrante com as alegações
de „fidelidade‟ ao modelo e a seu „caráter‟ vital”. Seu trabalho desenvolve-se sobre um
paradigma procedimental, ou seja, sobre a própria noção de abertura experimental e
processual, na qual importa mais, talvez, todo o processo de experimentação, variação,
fragmentação e combinação, do que fidelidade a um modelo, a um caráter, a uma ideia. Trata-
se da multiplicação, “a qual permite a Rodin esses „desdobramentos de energia‟, esses „ritmos
novos e complexos‟, esses „prolongamentos temporais do mesmo estado‟ [...]”, por um lado.
De outro lado, “a fragmentação [...] aparece [...] como consequência habitual do processo de
impressão que, para cada forma complexa, necessita de vários moldes e supõe, então, a
colocação em fragmentação do todo” (ibidem). Fragmentar não significa abrir mão da
densidade do trabalho, nem multiplicar significa tomar tudo acriticamente como se poderia
aventar. Significa, por um lado, olhar e experimentar a complexidade e singularidade de cada
parte, o que, potencialmente, significa um trabalho sem fim (sem finalidade determinada a
priori e sem conclusão do experimento), devido à riqueza de transformações possíveis e, ao
mesmo tempo, uma minunciosidade exuberante e exaustiva. Por outro lado, significa também
a disseminação em múltiplas formas, materiais e suportes dessas experiências, capaz de fazer
aparecer a diferença, na medida em que compõe uma estrutura, um mosaico desses
fragmentos, multiplicados à exaustão.
(ibidem, p.57). Isto é, os fragmentos nômades dizem mais do não fechamento e da possibilidade de movimento
do que uma mera parte.
279
determinação do juízo universal, nem mesmo plano puramente teórico dos princípios da
“ciência do sensìvel” baumgartiano. Porém, trata-se de uma forma de pensamento que se faz
processo, a instaurar o processo como princípio compositivo de sua própria estrutura. Pensar
o processo significa elaborar relações entre diferenças, entre coisas díspares que se
combinam, ou da própria coisa que se diferencia no tempo. É, ao mesmo tempo, demorar-se
no mesmo estado e multiplicar-se à exuberância das possibilidades e contradições que tudo
isso carrega consigo – seus contramovimentos O filósofo (2008a, p.164-165), para tanto,
apresenta alguns exemplos. Tomemos o primeiro deles: Étude de pied gauche, uma versão em
gesso de um pé direito num pedaço de madeira. Trata-se da versão moldada, um fragmento de
corpo que vai até o início de uma perna fechada, amassada em si, fora do exemplo clássico
bem-acabado. Além disso, é importante dizer, não há apenas um único pé direito, mas vários,
muitas variações do mesmo pé. Lembrando o pé na pintura de Frenhofer, em A obra-prima
desconhecida de Balzac, esse detalhe do corpo, adquire a autonomia sintomática de um
corpo-fragmento: “um „corpo-fragmento‟ que descontrói, sem dúvida, a origem referencial (a
totalidade anatômica, a forma humana)” na qual “se impõe como uma forma em formação,
capaz de ser ela mesma sua própria origem, sua própria morfogênese”. O que acontece com
tal origem é sua “decomposição e oferta inteiramente no presente da forma plástica”.
Segundo o autor, Rodin acabava por colocar em relação “essa falha da origem e essa
aderência à origem sobre o terreno mesmo do processo da moldagem” (ibidem, p.165).
Através da multiplicação desses pés esquerdos, o artista elaborava um “duplo nìvel”, tanto
paradigmático quanto procedimental: colocava em relação o mesmo com o mesmo,
elaborando, por um lado, “uma resposta prática, uma resposta formal inédita às questões de
serialidade, do reconhecimento visual dos volumes segundo diversos pontos de vista”. E, por
outro lado, “essa proliferação, autorizada pela moldagem, dá ao movimento [...] um
movimento orgânico”, não deixando de remeter à polissemia da própria palavra “[...] organon
(órgão do corpo vivo, mas também instrumento de um trabalho, instrumento de música [...]
forma de linguagem, particularidade do estilo, obra...)”. Movimento a colocar a “forma em
trabalho”, movimento a, garante Didi-Huberman (2008a, p.165-167), proceder como uma
imagem dialética, isto é, como o que deixa de ser uma “coisa-substitutiva” para tornar-se um
“trabalho figural da substituição que não cessa mais paradigmaticamente de engendrar-se [...]
isto é, de proliferar em associação, criando sempre novas hipóteses orgânicas impensáveis do
ponto de vista da secular „figura humana‟ [...]” (ibidem, p.167). Trata-se da recolocação, em
última instância, do próprio saber em questão. Trata-se, pois, da possibilidade de materializar
as questões que parecem fora dessa possibilidade. Robert Morris é lembrado pelo filósofo
280
afrontadas, reenviando, talvez, a uma obscura recusa de olhar” (ibidem, p.175). Então,
Duchamp e suas obras configuram uma autêntica imagem dialética capaz de afrontar nosso
tempo. Dela não se consegue alcançar sua cognoscibilidade pela recusa, não somente de
dialetizar, ao invés de polarizar, como de, simplesmente, olhar, pôr-se diante das obras não
para ver aquilo que confirma ou contraria a teoria formada, o saber constituído, e sim para
colocar-se diante e olhar apesar desse saber, estar presente e ter a presença da obra, a partir
de sua apresentação, do que aparece na medida em que é uma obra. Nem “novidade”, nem
“posteridade” fundam o pensamento e a prática do trabalho de Duchamp.
Pela ótica da impressão, seu trabalho é tanto antiquíssimo, do ponto de vista prático,
quanto é anacrônico, do ponto de vista temporal. Seus readymades, o “desastre”, a
“posteridade”, a “desaparição da arte”, tentam denominar tais práticas. Todavia, desde os
primórdios, passando por Donatello e por Rodin, eles já eram difusamente utilizados (ibidem).
Entra a disputa do “não importa o que, tudo poder fazer e a nulidade da arte contemporânea”,
essas duas posições, na concepção do autor, “acabam mais ou menos explicitamente por
recusar na espécie, tão paradoxal da obra produzida por Duchamp, o critério da singularidade
do objeto”. Essa singularidade considera desde as “marcas do procedimento”, os
“componentes materiais especìficos” até “os acidentes da fatura” (ibidem, p.176). Mesmo no
seu mais famoso trabalho, o urinol colocado em exposição no Independentes de 1917 deixa de
ser examinado em sua própria condição material e assume a figura de uma “ideia geral, a
saber, a decisão de expor tal qual um objeto industrial no quadro de uma manifestação
artìstica”, que levará ao debate de sua saturação. O que sucede daì, trata-se de uma “hipótese
enunciativa que suprime o objeto [...] Não resta senão a operação duchampiana como uma
operação de discurso ou sobre o discurso: uma operação sobre os sentidos e a „instituição‟ da
arte” (ibidem, p.177-178)159. Mais uma vez, uma ideia toma o lugar da matéria, do material e
seu discurso, nos seus infinitos e cultos jogos de linguagem, torna-se o mais essencial acerca
do qual se estrutura o pensamento. Por isso, paradoxalmente, quanto mais se parece mais
saber sobre arte, menos se olha e se sabe sobre a singularidade que a produziu: “ideias
159
“Acredito muito no lado medium do artista. O artista faz qualquer coisa, um dia, ele é reconhecido pela
intervenção do público, a intervenção do espectador; passa assim, mais tarde, para a posteridade. Não se pode
suprimir isto, pois, em suma, é um produto de dois pólos; há o pólo daquele que faz uma obra e o pólo daquele
que a vê. Dou tanta importância àquele que a vê quanto àquele que a faz. / Naturalmente, nenhum artista aceita
esta interpretação. Mas, afinal de contas, o que é um artista? É tanto o fabricante de móveis, como Boulle, como
a pessoa que possui um „Boulle‟. O Boulle também é feito da admiração que traz” (DUCHAMP apud
CABANNE, 2015, p.122). Paz (2012, p.54) tenta desvendar um sentido do que diz Duchamp: “entre as suas
intenção e sua realização, entre o quer dizer e o que a obra diz há uma diferença. Essa „diferença‟ é realmente a
obra. [...] entre o que [o] artista quis fazer e o que o espectador acredita ver, há uma realidade: a obra [...] Uma
obra é uma máquina de singnificar”.
282
160
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.117).
283
forma manìaca [...] sem criticar o fenômeno de sociedade no qual reside essa fixação mesma”
(ibidem, p.182).
Então, colocar a obra do artista no centro de um debate institucional e
institucionalizado (nunca instituído, capaz de instituir algo), bem como levantar questões
sobre valor de troca e valor de uso, implica, na verdade, numa posição anti-duchampiana,
pelo posicionamento pela “posteridade” ou “pós-modernidade” de sua obra. Além disso,
elaborar um readymade em vista de sua possibilidade de venda pareceria ao artista um
“contrassenso miserável”, do qual muitos artistas contemporâneos, “mal informados ou
menos fascinados pelas condições de invenção do readymades que pela sua gestão
simbólica”, parecem mais propensos a considerar, o que lhes permitem ingressar no mercado
e na história da arte (ibidem, p.183). Em contrapartida, o artista sempre tentou manter
agrupadas suas obras, o que “supõe a consciência aguda de uma obra a apresentar
organicamente [...]”, elaborando, para tanto, um “contramotivo potente ao não importa o que
invocado [...]”: “esse contramotivo é aquele da heurística como atitude metódica para „abrir o
campo‟ técnico e simbólico do trabalho artìstico, sem para tanto „fazer não importa o que‟”.
Duchamp estava constantemente aberto ao acaso, mas também “mantinha junto o errático e a
ideia fixa, o abandono aos imprevistos e o reaperto metódico”. Nessa concepção, ele parte de
um “princìpio heurìstico – „tudo é bom‟, mas „vejamos o que ela dá‟ – que não está de acordo
como uma margem de indeterminação experimental senão para melhor revelar a pregnância
estrutural das diferenças e orientações”. Um jogo aberto do “como sem fim”. Com isso,
Duchamp buscava manter “coisas e ordens da realidade heterogênica que valem, primeiro, por
sua montagem, o jogo de suas diferenças recìprocas” (ibidem, p.183-184). Esquece-se, por
exemplo, que seu readymade é um dentre vários e que ele é “capaz de „fazer destacar certas
propriedades estruturais‟ pelo jogo das diferenças [...] que a obra estabelece com todos os
objetos que lhe cercam” (ibidem, p.184).
Por um lado, é a relação que se coloca como momento de pregnância, a qual, pela
montagem, revela-se o valor do objeto. Por outro lado, “os objetos não são, necessariamente,
todos tão ricos dessas possibilidades latentes”, ou seja, a escolha do urinol e de tantos objetos
por Duchamp possuiriam em si a capacidade de perturbar, o que significa que não é qualquer
coisa que pode ser utilizado, e que o artista, então, deve ter noção de oportunidade e saber
reconhecer tais objetos, o que exige certo domìnio metódico: “certos objetos em certos
contextos”, uma relação, diz o filósofo, a significar “uma necessidade ligada à singularidade
dos objetos [e] uma necessidade ligada à estrutura dos contextos onde eles se transformam,
284
mas que os transformam também”161. Exigência impressionante, pois. O artista atém-se tanto
ao processo quanto aos paradigmas. A isso se junta uma terceira questão: a da profissão, que
em Duchamp, está intimamente coligada à “decisão técnica” (ibidem, p.185)162. Se a “perda
da profissão”, ou sua crise, é um tema recorrente em relação ao artista, a qual equivaleria a
“desaparição da fabricação, e sua substituição por uma „frase‟” levando-nos a “diante da
obra de Duchamp: fazer ressurgir no visìvel a questão do contato”. Isso se torna importante
por que a literatura especializada, afirma Didi-Huberman (2008a, p.187-191) tentou apreender
Duchamp e seu trabalho a partir de um “paradigma fotográfico”: de um lado, “um paradigma
técnico” (Jean Clair) e, de outro lado, um “paradigma semiótico” (Rosalind Krauss). Onde o
primeiro tentou “retraçar uma história regressiva toda orientada em direção ao passado”, a
outra “situou a obra de Duchamp como uma incisão histórica, momento de „origem‟ para um
paradigma destinado [...] a defender e explicar a arte americana dos anos setenta”. Para o
autor, nenhum dos dois paradigmas olhou para a obra duchampiana com a devida atenção. Se
tivessem recorrido à dialética, teriam percebido que, não somente a obra poderia tocar essas
épocas simultaneamente, como elas eram mesmo muito mais antigas, e nesse sentido nada
originais, participando, entretanto, de um tempo anacrônico, o tempo próprio da impressão,
capaz de jogar com o outrora e com o agora, ao mesmo tempo.
161
Cf. Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.72).
162
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.64-65).
285
que procura conhecer o objeto. Para Didi-Huberman (2008a, p.192), o que se fez com
Duchamp, opondo-lhe a um modelo fotográfico, foi simplificar a história com o intuito de
possuí-la, o que, de um lado, “permitiria salvaguardar algo como um sentido ideal da
história” e, de outro lado, “permitiria salvaguardar um sentido ideal de arte”.
Em contraposição a tal ponto de vista, há o ponto de vista da impressão dialetizando
(e não polarizando) as relações, numa recusa, primeiro, de desintrincar aquilo que
“frequentemente se coloca como oposição”, quais sejam: “a fatura e a intenção, a matéria e a
ideia, os meios e os fins, o saber-fazer e o saber”, de modo que, paradoxalmente, as obras do
artista levariam às questões: “Qual é a fatura de suas intenções? Quais são os materiais de
suas ideias?”, etc. Questões que dizem respeito, prossegue o filósofo, a uma “eficácia
heurística, e não a qualquer verdade axiomática da obra duchampiana”. Em lugar de procurar
encerrar sua produção num sentido determinado (do tipo: os readymades mostram que
importa mais a intenção que a fabricação), tais hipóteses dialetizadas, uma participando e
alterando a outra (nada havendo, assim, de ideal ou puro), “exprimem [...] uma abertura
técnica – uma modificação tanto teórica como prática, paradigmática e processual [...]”. Uma
certa “fobia do tocar”, o ponto de vista da impressão permite reelaborar as crìticas, vencer as
censuras e mesmo se colocar como elemento de resistência (ibidem, p.193). Apenas uma
rearticulação da “questão técnica” tanto como paradigma quando como processo pode liberar
a potência da obra duchampiana, tão maltratada à luz dos holofotes, sob os quais padecem.
Vejamos o exemplo da obra do artista, La Mariée mise à nu par ses célibataires même ou,
também chamado de Grande Vidro, a partir da questão técnica pensada, agora, como forma
hipotética, a fazer da impressão, do seu paradigma e processo uma exigência163.
Por um lado, não se dá a ver como tal e não esconde sua dívida com a impressão
como “método concreto de fabricação”. Por outro lado, aparece como “construção
essencialmente antropomórfica”, capaz de colocar “os contrários em contato”. Porém, tal
antropomorfismo é tratado como “funcionamento maquínico”, elaborando aì um “contato do
antropomorfismo e da dessemelhança” a abrir a obra numa forma de imagem dialética, ao
invés de uma “suposta quarta dimensão” que o Grande Vidro dá acesso, acenando aí para um
aspecto mìstico. Mais materialmente, pelo contrário, terìamos a abertura a uma “dimensão
tátil” como uma espécie de “consistência metódica” do jogo dialético do “„tátil‟ com o
„transcendental‟” (ibidem, p.195-197). Duchamp já dizia, afirma o filósofo, que “a pintura
[não seja] exclusivamente retiniana”, apontando para um “valor de uso crìtico” que seria um
163
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.64-66).
287
“valor antirretiniano” (ibidem, p.198)164. Ele, primeiro, recusa a “impressão retiniana” dos
impressionistas e toma a “busca poética onde o método das Impressões da África terão jogado
uma regra determinante”, a partir de uma diferenciação entre “aparência” e “aparição”:
164
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.73).
288
forma, o inverso que produz e complementa, e nativo, o que dá a forma ao que molda, como
sua origem. Ela não entra, pois, na relação ótica (da aparência) sem antes passar pelo contato
(da aparição), sua materialização. Impressão, lembremos, sua dialética: uma apreensão sobre
algo, mas também uma marca, ou vestìgio, de contato. “Porque „nativo‟, porque „negativo‟, o
conceito de aparição esboçado por Duchamp aplica bem essa tensão do pensamento em
direção a algo que diz tanto a origem quanto a contradição sem repouso” (ibidem, p.200).
Essa relação tátil (e mesmo erótica) não deixa elevar-se puramente ao plano da contemplação
(do ideal). Por sua impureza (o trabalho manual, o contato com o material, a questão técnica),
a aparência vê-se enredada no plano corporal, às vezes o mais baixo – a exemplo do que
acontece com o olho n‟A história do olho de Bataille –. Na história da arte e entre os artistas,
esse mais baixo pode significar a aceitação e articulação da condição de artesão, como
Duchamp preferia denominar-se165. No sentido do ideal, como estrutura inteligível e
dignificação do trabalho e obras do artista, isso pode significar a realização de “formas por
contato”, as quais colocam em jogo o contato com a “forma intangìvel” ou “invisibilidade” do
paradigma fotográfico, “que nos diz a distância luminosa e a transparência líquida do
revelador”, enquanto “a impressão nos diz o contato metálico e a opacidade desta tinta negra”
(ibidem, p.205-207). As noções hegemônicas de domínio no discurso artístico, Duchamp opõe
esses anacronismos como forma de resistência: à ideia de “abandono da profissão” e “recusa
da mão”, de modo a consagrar as interpelações acerca da obra de arte, os readymades podem,
sob o ponto de vista anacrônico da impressão, articularem-se como uma “reivindicação do
„fazer‟ e, particularmente, do fazer artesanal” (ibidem, p.208).
Estabelece-se, então, uma “função crìtica” ao assumir tal posição; reivindica-se uma
“arte menor”, na qual se vale das mãos, dispõe-se muito mais em relação com os materiais do
que simplesmente com as intenções. Elas se encontram no fazer, no fazer artesanal, no
trabalho do artesão. “Essa afirmação manifesta, creio, a real função heurística – positiva, e
mesmo „nativa‟ – do elogio anacrônico endereçado por Marcel Duchamp às „pequenas
profissões‟ do artesão fotográfico, do impressor, e também do carpinteiro, do vitrinista, do
costureiro, etc” (ibidem, p.211). Ele marca, assim, o valor procedimental a operar,
dialeticamente, em sua obra: não uma “decisão ideal”, mas muito mais um “modo de
existência técnico” (ibidem, p.211-212), pelo qual, ele põe, supõe ou impõe, isto é, formula
hipóteses técnicas e procedimentais, as quais seriam colocadas em contato com o próprio
esforço e exigência formadora do artista166. Lembrando Benjamin, o artista não cria obras, ele
165
Cf. Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.29-30).
166
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.135).
289
configura o caos do mundo. O artista é um configurador, aquele que dá uma forma, mas
também aquele que põe em formação as próprias formas, porque ele se figura junto com elas.
Ele configura hipóteses. Como isso se apresenta em Duchamp? Com meticulosidade, isto é,
com o exercício constante do método e da forma. Para isso, ele não deixa de abrir o campo da
técnica, investigando seus usos e potências, como fim a ver o que ele pode dar a partir das
condições estabelecidas, e mesmo indo além delas, através dos resultados imprevistos, dadas
pelas próprias condições materiais ou ainda na formulação de suas hipóteses. A questão é,
nesse exercìcio, as obras não se isolarem, integrarem “componentes estruturais” (ibidem,
p.215).
Nessa abordagem, a função heurística na obra de Duchamp torna-se uma questão de
técnica. Em relação ao Grande Vidro, nota-se as insistências do artista, sua paciente reflexão,
o conhecimento dos elementos constituintes, os cálculos na execução, todas questões de
técnica (processo e procedimento), os quais permitem, pela demora prolongada e constante
retorno às obras, como uma “emanação do tempo e do contato”, tornando o processo de sua
confecção uma experiência de relação e travessia com essa obras. Ao elaborar “respostas
técnicas”, Duchamp está, em realidade, articulando “dois nìveis ou dois tipos de momentos
técnicos. Há, inicialmente, os „pequenos problemas‟: as questões postas e demultiplicadas por
uma decisão inicial, aquela, por exemplo, de utilizar o vidro como material de base [...]”. Com
uma questão aparentemente muito singela, ele conseguiu criar um encadeamento de
“hipóteses que definem o teor heurìstico por excelência do trabalho in progress”167. Elaborar
essa cadeia operatória heurística no corpo das obras de artes e das imagens significa manter,
num “modo experimental um campo de hipóteses, onde tudo permanece aberto”, onde o
resultado não é o mais importante. Quando uma hipótese, nessa cadeia, reclama uma
realização, então, ele busca responder com a paciência de uma “técnica de extrema precisão”,
envolvendo lentidão na sua processão e, mesmo, os cálculos matemáticos mais exigentes para
a elaboração da obra: “não há, sem dúvidas, progressão heurìstica sem esse duplo aspecto,
sem essa dupla espécie de dialética”, qual seja, “entre uma recusa da obrigação,
correspondente ao tempo aberto das hipóteses lançadas, e um engajamento na obrigação
máxima que impõe a realização precisa de uma hipótese” (ibidem, p.218-219).
No procedimento, Duchamp joga com o acaso. Ele realiza experiências, testa
materiais, abre-se às possibilidades dos contatos alcançados. Quando uma hipótese necessita
167
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.112) e: “O vidro me interessava muito como suporte, por causa de
sua transparência. Já era bastante. E ainda, a cor que, colocada no vidro, é visível do outro lado, e fechada, evita
a possibilidade de oxidar. A cor fica assim, o maior tempo possìvel pura, na sua visualidade” (idem, p.64).
290
ser realizada, como um momento crítico do processo, então, o artista vale-se de toda precisão
e capacidade artesanal para torná-la realidade. Nessa ótica, os readymades poderiam,
deveriam ser tomados como momentos (hipóteses concretizadas) no processo heurístico das
investigações duchampianas. A própria forma de separação utilizada, muitas vezes, no
processo de saber sobre tais obras apaga o mais fundamental de sua elaboração: nem a
negação do trabalho do artista, nem a negação do próprio objeto, mas a cadeia operatória,
exuberante e precisa de configuração de hipóteses em obra. O autor dá-nos um exemplo: “Em
1918 e 1919, retirado em Buenos Aires onde levava uma vida bem solitária, Marcel Duchamp
obrigava-se ao paciente polimento de seu Jeu d‟echecs”, coisa que faria da mesma forma com
outra obra, “Why not Sheeze, com os pequenos cubos de mármore esculpidos em formas de
cubos de açúcar”, de forma que se vê “o tipo de engajamento heurístico ao duplo gatilho que
caracteriza, talvez, toda sua iniciativa” (ibidem, p.219-220). Mesmo no filme realizado com
Man Ray (1890-1976) e Marc Allégret (1900-1973), Anemic Cinema, Duchamp revelaria não
apenas a paciência necessária de seu ofício, como uma exigência tão acentuada que nem
mesmo a máquina se mostrava capaz de responder: “Os aparelhos não eram capazes de fazer a
cena a não importa a qual velocidade, ela se enevoava, e como ela se tornava muito veloz,
dava um efeito ótico curioso. Fomos obrigados, então, a abandonar a máquina e fazer tudo
nós mesmos. Um retorno à mão, por assim dizer” (DUCHAMP apud DIDI-HUBERMAN,
2008a, p.220; apud CABANNE, 2015, p.118-119). Segundo ainda o filósofo, o retorno à mão
de Duchamp não seria apenas um acidente de percurso, mas uma “inscrição destinal” a
atravessar toda a obra do artista, ao ponto de elaborar manuais técnicos de instrução, escritos à
mão, de suas hipóteses artìsticas. “Se esse „retorno à mão‟ é pensado como um acidente,
então, é preciso dizer que é um acidente de propósito convocado, uma estratégia do acidente
na reprodução mecanizada”, no qual, continuamente, ele vem associando o “acidente da
reprodução” com a “reprodução do acidente” e “entre os dois, está bem evidente o paradigma
da impressão – entre o único e o serial, a passagem e o fóssil, o contato e a distância [...]”
(DIDI-HUBERMAN, 2008a, p.221).
Ao primeiro (acidente da reprodução), Duchamp alcançava um “acidente da
semelhança”, quando conseguia reproduzir um cheque todo a mão, decidindo depois
reproduzí-lo numa dimensão maior. O segundo (reprodução do acidente) acontecia quando o
artista decidia reproduzir “cada papel se suas notas para o Grande Vidro na forma precisa em
que a folha se encontrava na partida. A cadeia operatória, aqui, consiste em pensar uma forma
acidental [...] e uma forma do acidente produtora de serialidade e de semelhança”. Tal forma,
que não é acidental, mas capaz de jogar, de incorporar o próprio acidente, isto é, sua contra-
291
forma, torna-se uma espécie de “puro protocolo técnico” da própria forma. Um jeito de dizer
da abertura da forma à heurística que a fundamenta (ibidem, p.223). Tal heurística tem sua
forma, a qual como o retorno à mão, a fim de alcançar um efeito que a máquina não era capaz,
abre então a forma ao desejo, ou mesmo, nesse caso, “um desejo maquìnico” (ibidem, p.221).
Como desejo, a obra permitiria, pois, a aproximação de suas ideias com o contato corporal,
sabendo que, porém, uma não vem sem a outra. “A arte de Duchamp não é „desincarnada‟ ou
puramente „psìquica‟: ela põe de parte a parte a questão do contato, isto é, da relação dialética
entre contato e distância”. Ela também não é “feita de puras „ideias‟, „frases‟ ou „axiomas‟:
ela põe de parte a parte a questão do material, isto é, da relação dialética entre o jogo da
hipótese e adstrição do material”. Por fim, sua arte sequer “procede de um „abandono da
profissão‟: ela põe de parte a parte a questão da experiência, isto é, da relação dialética entre o
tuchè da experiência e o automaton de um desenvolvimento técnico novo” (ibidem, p.227-
228). Quer dizer, uma atitude heurística capaz de religar o pensamento às coisas, não como
simples correspondência de significados e significantes, mas de uma relação sempre
problemática, ou seja, sintomática. Cada contato põe em questão o contato e sua distância,
cada material põe em questão a ideia e seu processo, cada experiência exige uma travessia
pelo próprio trabalho, põe em questão esse mesmo trabalho. Formas e processos de fazer da
arte e do saber um constante esforço, físico e psíquico, de resistir às armadilhas das
totalizações, dos sistemas e vontades de morte, ou mesmo de simplificação dos sentidos
criados. “A atitude heurìstica, vimos, busca sim da parte de „tudo é bom‟ e da invenção
técnica sempre em ato” (ibidem, p. 228).
Muito mais como uma abertura infinita do que um fazer “não importa o que”, como
esclarece o filósofo. Ou seja, por precisão e acaso, Duchamp muito mais se mantém nas
292
brechas que encontra, do que procura qualquer coisa para fazer abertura. Fazendo isso, ele não
recusa, meramente, a possibilidade de uso dos materiais, a fim de alcançar a melhor
formulação para suas hipóteses. A uma tal abertura técnica corresponde uma multiplicidade
vasta de materiais a partir do que poderíamos perguntar sobre como orientar-se numa tal
experiência. “Tal é a questão que põe, fundamentalmente, a heurìstica a toda ideia de método”
(ibidem). Aqui, o autor não deixar de marcar sua referência, nessa questão, a Paul Feyerabend
(1924-1994) com Contra o método. Para o filósofo da ciência, o foco deveria recair no
processo e não no resultado, o que significaria, para a ciência a possibilidade de tornar-se uma
abordagem entre tantas (FEYERABEND, 2011, p.13). O método científico, nessa concepção,
torna-se uma forma de interpretação de fatos já vistos e já interpretados. A grande importância
de tal consideração estaria na questão de os conhecimentos serem produzidos por abordagens
distintas, as quais não deveriam ser desconsideradas. Nada há de essencial, nada que não
possa ser colocado em questão (idem, p. 37). Pelo contrário, a ciência modularia o próprio
saber, de modo que o “apelo à razão” que se faz para sua validade seria uma “manobra
polìtica” (ibidem, p.39-40). Qual a solução apresentada, então, por Feyerabend? Um
procedimento anárquico, operando, agora, pela elaboração do que ele denomina hipóteses
inconsistentes, a partir de uma “metodologia pluralista”, de tal forma a conseguir conceber o
conhecimento como um “crescente oceano de alternativas mutuamente incompatìveis”
(ibidem, p.42-44). De que se trata todo esse movimento, senão da heurística na sua
formulação metódica e epistêmica? Um procedimento sem princípio, e, portanto, aberto às
possibilidades dos mais diversificados resultados, os quais, por sua vez, conseguiriam
elaborar e considerar as hipóteses mais inusuais, contraditórias e exuberantes nos seus
processos e sentidos, sem medo, enfim de contradizer-se, fracassar no resultado ou
reconfigurar o próprio procedimento.
O modo de configuração do trabalho duchampiano não é muito distinto. Didi-
Huberman (2008a, p.230) tentou, pois, percorrer a “cadeia operatória da impressão” para
mostrar como tal heurística apresenta-se como método na obra do artista. Aí, a impressão
como paradigma não serve somente para “reproduzir, mas também para alterar e desconstruir
tudo aquilo que ela toca: por desdobramento, por redobramento, por inversão”. Primeiro,
continua o autor, a “impressão desdobra”, isto é, “ela cria um duplo, um semelhante” e
também “cria um desdobramento, uma duplicação, uma simetria na representação”, a que o
artista tanto sustentava interesse, ao duplicar, ou como diz, dobrar o objeto, criando para ele
uma dobradiça, utilizando-o como uma espécie de princípio. Aparece aí a aplicação da
relação entre desmontagem e remontagem, as quais, “permitiria ao quadro [...] adquirir o
293
status, não de uma aparência, mas de uma aparição, sorte de molde „nativo‟ e „negativo‟
[...]” (idem, p. 230-231). Nessa perspectiva, o objeto torna-se, por um lado, simétrico ou
semelhante de si mesmo e, por outro lado, apresenta a fratura em seu próprio material,
abrindo espaço para a dessemelhança, por mais ínfima que seja, ou para o contato, pela
tatibilidade da dobra ou da fratura no vidro, como sucedeu no Grande Vidro. O artista “cria,
certo, um semelhante – simetricamente afrontado a seu semelhante –, mas ele tende
igualmente a negá-lo, a cortá-lo, a destruí-lo. O duplo que produz a impressão tem, então,
também uma função de dessemelhança”, pois, “a semelhança obtida por contato está votada a
um destino de dessemelhança, senão de destruição” (ibidem, p.239).
Não é à toa que as obras de Duchamp são “máquinas de crueldade”, formulando suas
hipóteses antropomórficas alteradas, para também levar à destruição “como com Kafka, mas
passando nas formas, nas „matrizes‟ ou nos „moldes‟ [...]” (ibidem). Ou seja, em suas
formulações artísticas, a obra põe em obra e como obra a própria forma. A obra aparece como
uma solução, mas tão somente latente, operando em si mesma como sua própria destruição.
Continua ainda o filósofo francês, “a impressão redobra”, pela qual, parece haver a criação de
um “écran protetor, um invólucro no qual a forma parece, por um momento, protegida por sua
contra-forma”. Trataria, então, de “tomar a semelhança”, impondo, por sua vez, “uma nova
significação ao ato de „tomar‟ quando ele termina por arrancar a semelhança do corpo do
qual se apodera”. Nessa concepção, que já recorda, em alguma medida, Phasmes, a impressão
torna-se “predatória: ela guarda o que nós perdemos, ela nos isola e, mesmo, nos rasga de
nossa semelhança” (ibidem, p.239-240). Em obras como Yvonne (em kimono) e Grande
Vidro, Duchamp explora os halos, contornos das figuras “ou, antes, redobra dos contornos,
de uma zona que pode ser de sombra ou de luz, espessa ou diáfana”, as quais adquirem, aqui,
um valor tátil, seja a sombra como “signo indiciário” do contato, ou o contorno luminoso de
um papel rasgado que, igualmente, marca um contato: “o procedimento da impressão
descobre-se tencionada entre um rasgo da reprodução [...] e uma reprodução do rasgo”,
fazendo desse rasgo uma espécie de “versão tátil da sombra que será, doravante, a versão tátil
do halo”, conseguindo fazer da aura pele, de “auratizar a pele” (ibidem, p.240-245),
auratização da pele pelo rasgo – máquina cruel de fazer aparecer o outro da pele: a carne.
294
Duchamp joga com isso, em suas mais diversas maneiras e complexidades: espelhamentos,
semelhantes se tocando, jogo com contornos e formas vazadas, fazendo aparecer o avesso.
Dobrar passa por aí: desdobrar, redobrar e inverter. Então, “à impressão se inverte”, ou seja,
“ela inverte simetricamente as condições morfológicas de seu referente: a impressão de um
corpo convexo é, em geral, um corpo côncavo. De outra parte, essa inversão tópica engaja
toda a esfera dos significados: ela funciona então como uma „inversão dos sentidos‟”. Com tal
ato, o artista mostra a própria possibilidade de “reversibilidade de qualquer coisa” (ibidem,
p.254). Nessa perspectiva, o “sentido-semà torna-se o sentido-somà” e vice-versa, de tal modo
que “todo seu pensamento pode ser compreendido como uma formalização e, como uma
experimentação das conexões entre o lugar e a carne” (ibidem, p.254-255), entre os
significados, essa floresta se símbolos, os quais nos parecem familiares, repletos de
associações habituais, capazes de nos permitir viver e, ao mesmo tempo, delirar nos contatos
mais íntimos, que perturbam toda ordem, fazendo-nos sufocar no ar dessa mesma floresta, ao
ponto de depararmo-nos com seus fantasmas, esses semelhantes em contanto com o mistério.
Nesse processo, mesmo a linguagem participa do jogo. Quando Duchamp escreveu: “A Guest
+ a Host = a Ghost”, ele realizou uma “operação visual”, mas também uma “operação de
imaginação”, aproximando visualmente dois elementos semelhantes na produção de uma
dessemelhança, um sintoma, por contato, o único capaz de produzir tal resultado. Contato
dialético, o “nativo” e o “negativo”, produtor de uma diferença. “Os jogos duchampianos
sobre a linguagem possuam um incontável valor heurístico: eles são o mais frequentemente
das hipóteses tópicas lançadas em vista de uma transformação perceptual do lugar e do corpo”
(ibidem, p.255). Se o lugar pode, pelo contanto, devir corpo, o corpo pode tornar-se um
lugar, um lugar de experiências, não somente de contato, mas também de espaçamento, ou
seja, uma forma de distanciar do corpo a ponto de estranhá-lo em relações imprevistas, ou de
fazer tal contato o negativo de uma forma artística, tornando-o lugar de impressão168.
Podemos pensar, seja em Priere de toucher ou Étant donnés le gaz d‟éclairage et la chute
d‟eau, corpos tornados lugares, quer dizer, matrizes, formas para a produção de moldes,
reprodução de impressões a guardarem seu elemento corporal como fundamento. Pois, se a
reversibilidade aparece em jogo aqui, significa, enfim, que aparece “com o contato, o motivo
da penetração sexual” (ibidem, p.257).
168
“Os corpos são espaços abertos [...] Os corpos são lugares de existência, e eles não têm existência sem lugar
[...] O corpo dá lugar à existência” (NANCY apud VILELA, 2010, p.19-20, tradução nossa).
296
169
“Máquina erótica, mas onde o erotismo é observado sob o ângulo do pior escárnio”, porque o erotismo, em
várias obras de Duchamp parece reduzido a “um puro processo mecânico” (CARROUGES, 2019, p.46).
298
se, estar em contato com o saber-fazer. A matéria e a técnica são tão fundamentais quanto as
ideias.
Mesmo no contato, porém, uma não sobrepõe a outra, é preciso deixar claro. Elas
entram em dialética, ou seja, tocam-se e criam tensão, choque, contradição, a fim de alcançar
os melhores resultados para as hipóteses comporem um plano de configuração relacional. É
por isso que podemos falar em procedimento anárquico, isto é, sem arkhé, sem princípio. O
que se produz do contato não é esperado ou definido. Elabora-se o procedimento até alcançar
um processo, o qual poderá ser alterado por novos procedimentos e novos processos, ao se
reconhecer as potencialidades de resultado a partir dessas alterações, não havendo um melhor
ou pior que o outro, mas apenas o desejo de ver como funcionam sob nova ótica, ou que
produtos poderiam dar de uma outra forma. Compromete-se, antes de tudo, com a própria
experiência. A impressão, nesse sentido, realiza a possibilidade para o tempo, fazendo-o
encontrar-se com sua potência, com os tempos que o atravessam ou atravessaram, mantendo
uma relação com a ausência, isto é, com o que poderia ter sido, um modo de dizer do saber
em relação com o não-saber. Como, então, criar axiomas ou encerrar sistemas nessa acepção,
quando a potência heurística reside no ato realizado como realidade visual ou quando esse ato
mesmo não é mais do que parte de uma cadeia operatória a formar formas, duplicá-las e
assinalar aí diferenças, provenientes do processo de contato? Constituição de meios sem fins,
medialidade operatória – gestos. Duchamp, de sua parte, simplesmente não para de reproduzir
suas próprias obras, ainda que em miniatura, as quais carregava consigo, todas produzidas
com precisão, lembrando constantemente o caráter serial dessas obras: “o aporte teórico de
Duchamp, sobre esse ponto, terá justamente sido de colocar o dedo sobre uma estranha
particularidade – erótica e técnica – da reprodução, isto é, das conexões de transformação
recíproca entre a série (a família) e a singularidade (o sujeito)”. A partir disso, o artista não
deixava de valer-se de uma “dialética pelo que o semelhante tende ao diferente e o diferente
ao semelhante”, isto é, nesse movimento, “Duchamp, de fato, não resiste jamais ao prazer – e
ao princípio heurístico – de alterar” (ibidem, p.270-272).
A heurística da impressão permite-lhe criar um paradigma de contato, capaz de
escapar à mimese (e seu jogo, ou julgo, platônico, com o falso), mantendo a reprodução, não
mais como uma condição de afastamento de uma suposta autenticidade, mas como a
colocação em questão dessa condição, como um relacionar-se com seus semelhantes. Ao
invés de produzir o mesmo, a identidade, era capaz de produzir o dessemelhante, por essa
299
possibilidade de alteração170. Um nativo que produz seu negativo, um nativo que é também
um negativo, a forma duplicada e invertida, dobrada e colocada em contato; tudo no bojo da
técnica, que, com sua forma negativa e nativa, permite a penetração, criando um fantasma, a
aparição de uma diferença alterada da semelhança. Nessa relação, a singularidade, como no
mosaico citado por Benjamin, ganha destaque, sem perder de vista as relações com as demais
singularidades. Mais do que cada fragmento, tem-se em vista aqui a cadeia operatória a
associar, um trabalho in progress, aberto, sempre passível de reconfiguração, ainda que
técnico; entretanto, uma técnica que não abre mão da possibilidade de reformulações
estéticas. “O artista reprodutor seria, então, a sua maneira, um artista dialetizador, um
produtor de „imagens dialéticas‟”. Como isso se daria com Duchamp? “O artista „negador‟ e
„acusador‟ – o dadaísta – ignora o necessário deslocamento do mesmo, que supõe uma
autêntica transformação da visão e que permite, notadamente, a impressão ou reprodução do
acidente”, ou seja, e numa concepção muito próxima com a do profanador, Duchamp altera
(não uma simples negação) sem destruir, porque o movimento permite, pela heurística da
impressão, dispor-se ao processo e não a um resultado (destrutivo)171. Porém, esse processo
não retorna meramente a uma identidade; por mais que a reversibilidade seja possível, porque
o acidente está sempre a atravessar os estágios do processo, isto é, sempre alterando mesmo a
possibilidade de reversão.
Em 3 stoppages-étalon, por exemplo, o artista deixa cair um fio de um metro (metro
inventado por ele) sobre uma madeira, depois cortada na linha do fio caído. Tem-se, assim,
com a repetição do processo, conjugando procedimento preciso (o corte) com o acaso (a
queda), três objetos reproduzidos de tal forma a estarem relacionados entre si pelo processo,
como série, e mesmo pela aproximação, um assemelhar que dessemelha. “A impressão, entre
as mãos de Duchamp, é o que conseguiu, com o golpe de força dialética, romper com a
imitação clássica sem, para tal, negar absolutamente a semelhança”. Ele alcança isso com suas
“inversões, reversibilidades, irreconhecimentos. Produzindo o mesmo como negatividade”, ao
qual o artista nomeia como distância. A distância é, para ele, uma operação. E, segundo Didi-
Huberman (2008a), é uma operação dialética. “Trata-se de produzir o semelhante, mas de
170
“O que é falso não é apenas a cópia, mas já o modelo” (DELEUZE, 2013, p.178). Essa categoria do
verdadeiro não se aplica no campo do autêntico, porque o artista que cria, não simplesmente forma uma forma,
mas a transforma, sendo, pois, “criador de verdades”, de modo que a valoração de verdadeiro ou falso, autêntico
ou inautêntico, não se aplicam. No fim, os artistas produzem a partir da potência do falso, isto é, “o pode de
afetar e ser afetado”, sempre em relação de forças, movimento (idem, p.170) e metamorfose (ibidem, p.179).
171
Apesar dessa perspectiva de Didi-Huberman, seguindo de perto a de Duchamp, ser compreensível, o aspecto
“destrutivo” dos dadaìstas parece atrelado a um por vir fracassado, não se diferenciando aí de Duchamp, no
aspecto da potência. Destruir como processão, não para alteração das coisas, mas da vida, da realidade –
programa extremo, sem ironias, certamente. O erro dos dadaístas foi levar a sério demais seus jogos, talvez.
300
Figura 29 - 3 stoppages-étalon
(Duchamp, 1952)
Fonte: encurtador.com.br/ertS4
172
“Desde que chegou à palavra três, você terá três milhões e é a mesma coisa que três” (DUCHAMP apud
CABANNE, 2015, p.79). Ou seja, o três não é síntese, mas sintoma, proliferação.
173
“O puro acaso me interessava como um meio de se ir contra a realidade lógica” (DUCHAMP apud
CABANNE, 2015, p.78).
301
distância de qualquer intenção mimética. Tal modo, imperativo de operação, aventado por
Duchamp, não apenas modifica a relação entre os objetos de uma mesma série, um conjunto
de semelhanças em vias de dessemelhar, como também coloca como desafio ao espectador
e/ou especialista o de conseguir identificar essa diferença impossível. Segundo Didi-
Huberman (2008a), apenas começando a olhar é que se fará possìvel “aceder a tal distância”.
E, essa questão, não é somente a de contemplar, apurar a vista até enxergar mais nitidamente.
Trata-se de uma questão de contato: “„contato e infrafino‟, anota Duchamp sobre um pequeno
pedaço de papel cuidadosamente posto à parte. Essa enunciação toma valor de programa:
trata-se de produzir o infrafino, ou de „revelá-lo‟, enquanto possibilidade fìsica subliminar,
quase indefinìvel”. Isso significa que a “distância do semelhante deve poder se experimentar
também como uma distância tátil, ou quase”. Aparece aì, então, um tipo de fenomenologia,
uma “fenomenologia do afloramento” (ibidem, p.282). Exemplifica Duchamp (apud DIDI-
HUBERMAN, 2008a, p.282): “Tentando colocar uma superfìcie plana à flor de outra
superfície plana, passa-se por momentos infrafinos”.
Um “problema ótico”, então, que nele se converte em “problema tátil”. Ambos se
tocam sem se tocar. O contato mantém à distância. O que Duchamp cria são “hipóteses de
objetos infrafinos como tantas explorações dirigidas em direção às fronteiras táteis da
visibilidade” (DIDI-HUBERMAN, 2008a, p.283). Pode ocorrer de uma espécie de fobia a, no
aparente contato, já ser sentido como um contato à distância. Ou basta pensarmos num carro
em alta velocidade passando por ínfimo de atropelar alguém ou alguma coisa. Subitamente
aquela distância ínfima, sentida como ínfima, torna-se o elemento de contato, a ponto de
arrepiar a pele. Sente-se o contato como essa distância (entre vida e morte, certamente), mas
também pela infinidade do quase que separa dois extremos. Como o toureiro, citado pelo
autor em Le danseur des solitudes, no seu momento com o animal, tendo de calcular o passo
necessário, mas acidental, da salvaguarda de sua vida. Duchamp procura realizar coisa similar
com suas obras, o que significa que, apesar do acaso a poder decidir o resultado, ela pode ser
experimentada, desde que a exigência de precisão seja mantida. De toda forma, a distância
infrafina adquire, ou se mostra, em sua potência tátil. Ou melhor, em seu caráter heurístico,
“Duchamp estima, é certo, que o pensamento pode „emitir um lance de dados‟, na gargalhada
mais ridìcula” (ibidem). Ele nada deixa passar; perscruta a mais ínfima e insignificante
relação, a fim de encontrar o infrafino: “Duchamp não esquecerá de nos lembrar que „quando
a fumaça do tabaco cheira também a boca que a exala, os dois odores se conjugam por
infrafino‟”. Ele não deixa de elaborar hipóteses “hipofìsicas” do infrafino, as quais colocam
em questão os materiais, como um “aspecto „antitético‟ da operação”, buscando soluções para
303
O artista não deixa de colocar uma questão semelhante a Da Vinci, diz-nos Didi-
Huberman (2008a). Se esse se perguntou como “pintar o vento, como pintar sua forma sutil”,
o outro coloca a questão em termos de moldagem, como “imprimir sua forma nas coisas”. Se
em Air de Paris, os “poderes do vidro” entram em contato com os “poderes do ar” para criar
uma imagem, a forma da reticulagem, da camada aparece como modo de dar uma solução a
tal problema. Trata-se da impureza do próprio ar: a poeira. “A poeira é moldante, porque ela
trabalha como uma muito lenta película [...] do baixo-relevo infinitesimal [...]” (ibidem,
p.289). Pacientemente ela se assenta no objeto, criando uma precisa camada, uma segunda
pele ou superfície; ou ainda, reproduz, moldando o objeto, duplicando-o por precisão.
Precisão e acaso conjugados numa cadeia operatória. Duchamp, utilizando isso como
procedimento, realizou sua Élevage de poussière, à qual aplicou ao final um verniz fixador.
Mar Ray fez a fotografia célebre, e sobre a qual assinala o filósofo (2008a, p.290):
304
Aparecem aí misturadas uma questão ótica e uma questão tátil, postas em relação
com o tempo e com a carne: “Tal é bem o erotismo técnico das experiências duchampianas
sobre a impressão: seu caráter de „aproximação‟ é aquele da carìcia, seu caráter de „precisão‟
é aquele do enquadramento orgânico”, o que nos obrigaria a “olhar toda obra de Duchamp sob
o ângulo de seus estranhamentos – de suas distâncias luminosas – da textura” (ibidem, p.290-
291). Ela aparece nas simulações de oxidação do bronze, nas galvanizações em banho de
eletrólise dos metais, nas pinturas cuidadosamente envernizadas, lixadas, passadas, a fim de
adquirir uma textura precisa, simulando, por exemplo, a pele. Não a carne da pintura, como
quer Frenhofer, mas a própria pele, a ponto de ser no contato a possibilidade de
reconhecimento (ibidem, p.291): “para suscitar ou para transmitir esse desejo, colocará todo
seu cuidado em fabricar bordas intersticiais, zonas de dobras e de sombras, zonas
opticamente „sobrelinhadas‟ e tatilmente „reentrantes‟”, capazes, por tamanha precisão de seu
trabalho e contanto, fazendo do “infrafino lugar de encontro entre a forma e sua contra-
forma”. Esse lugar, por sua vez, abre a perspectiva do valor, ou da “possibilidade hipofìsica”
de rasgo, essa “zona liminar” a abrir-se, isto é, a encontrar uma heurística (ibidem, p.295).
Com With my Tongue in my Cheek, Duchamp promoveu uma espécie particular de
autorretrato: ele fez em gesso, por impressão, a parte da bochecha que guarda marca de
contato. Coloca, então, o problema da semelhança numa abordagem distinta daquela da
305
mimese. Por um lado, “ele se dá, primeiro, como um relevo de sombra [...]”, de maneira que
“a sombra seja tirada do lado óptico ou representacional – modelo histórico da imagem [...]
para nos fazer acreditar “tornar visível ou „expresso‟ o espaço do rosto”. Por outro lado, a
“sombra será tirada do lado tátil, isto é, do lado da impressão – modelo anacrônico da
imagem”, de maneira que ela “dará uma massa de gesso, esse molde da bochecha que
apresenta visualmente, abruptamente, um lugar do rosto, uma tiragem tão precisa quanto
perturbadora” (ibidem, p.297). Isso apareceria, então, como um “mal na representação”, não
apenas como o molde da bochecha (bem como alguns pelos do rostos do artista), e sim
também como algo que está posto diante de nós, como o “„exterior‟ do rosto” e como uma
“massa „interior‟ branca e ainda obscena de uma lìngua que teria sido posta „sobre a
bochecha‟”(ibidem, p.297-298).
O que Duchamp realizou não foi outra coisa senão a colocação em sintoma de sua
obra de arte, no estado daquele que consagra o mais importante aspecto definidor da
humanidade, o rosto com seus olhos e sua mente. Se, com Hegel (2015), vimos que a
humanidade do ser humano está assentada num “ponto no olho” a revelar a subjetividade do
pintor, fazendo do retrato a forma mais peculiar dessa autoconsciência, colocar em questão
em termos táteis (descartado desde o início pelo filósofo alemão), ainda mais do ponto de
vista da língua (sequer da boca, que deveria estar fechada, no máximo levemente aberta, mas
sempre inexpressiva para não perturbar a parte superior da face, o ponto principal), faz com
que os axiomas caiam juntos com esse contato úmido, e obsceno, do dentro no diante. O
306
retrato torna-se então como tátil, assemelhando à identificação animal, a mais baixa
materialidade. O que é isso senão o por em relação do humano, não com a divindade que o
purificaria como figura da humanidade, e sim com o mundo que o cerca, com o qual está em
contato e, justamente, através de seu maior e externo órgão de sentido, a pele. Para Didi-
Huberman (2008a, p.298-299) isso cria uma relação entre a precisão e a brutalidade, pela
qual a impressão alcança uma “eficácia técnica”, ou seja, uma relação, por um lado, “da
violência produzida no campo da representação artística, pela irrupção de objetos que mantém
com seu referente uma conexão de aderência extrema” (uma brutalidade da precisão), e, por
outro lado, uma relação que “coloca em obra a questão, a textura do infrafino” (uma precisão
da brutalidade), dando, então, expressão a um “modelo temporal” que é o acaso. Quando
uma coisa chega por acaso, encontro ou acidente, sua aparição assusta-nos sempre por sua
brutalidade e por sua precisão imiscuídas. Isso, pois, diferencia-se de uma “indiferença ao
„não importa o que‟”. A heurìstica, nesse sentido, reencontra-se com a noção concebida por
Bacon: ela não é mera sorte, isto é, o encontro fortuito do saber com quem o aprenderá, mas a
chance, um esforço de precisão em deparar-se com a descoberta, significando encontrar o
aparato técnico e a atitude aberta para a possibilidade de descoberta. Envolve-se também
nessa possibilidade, o procedimento e o processo, o que significaria um agir do sujeito em
direção do que poderá vir, da chance que o poderá contemplar. Porém, ao invés de uma
determinidade e autoconsciência (do tipo hegeliana), abraça-se o indeterminado por contato,
a inconsciência como possibilidade de deparar-se com o não-saber.
Nesse sentido, é-se muito mais fiel ao saber, porque se prepara para saber no
processo, e não para enquadrá-lo na possibilidade apenas de ter consciência de si. Duchamp
parece ser muito mais exigente, não determinando um sistema de compreensão, de modo a
conseguir saber com muito mais precisão e saber operar apesar da própria brutalidade, que o
encontro demanda: “ele não faz nada de diferente que articular dialeticamente a questão do
acaso – chamada também de „regime de coincidência‟ – àquela da fabricação”. Nessa ótica,
“ele engaja uma abertura, uma invenção, um deslocamento do pensamento técnico [...] Se o
possível aberto para o acaso permanece [...]” é porque provoca “um encontro fìsico – erótico,
técnico – de „ajustagem‟ ou de estampagem de uma forma numa contra-forma”, o que ele
nomeia “mecânica do acaso” (ibidem, p.299-300). Vejamos de perto: o acaso instaura-se em
Duchamp a partir das noções de regime e mecânica, isto é, a partir de determinados princípios
normativos e prática procedimental, mas não no sentido axiomático dessas formas, porque o
acaso mantém os elementos em tensão. Aparecem, então, como oximoros: um que estabelece
princìpios para as “coincidências”, quer dizer, a aproximação de coisas distintas num espaço
307
campo técnico [...] da impressão: aquela que repete um mesmo por contato,
mas o resultado dessa repetição forma uma distância, ou mesmo um
infrafino, onde as semelhanças produzidas são tão precisas e brutais, tão
estranhas e inquietantes, que se tornam, ao menos para um pensamento da
imitação, inassimiláveis (ibidem, p.301-302).
174
Ver Duchamp (apud CABANNE, 2015, p.27)
308
impressão como técnica. Porém, em sua própria constituição, ela também carrega consigo a
impressão, em marcas que marcam o sujeito, o artista, servindo como forma de transmissão,
não somente da obra, como também do afeto (do sentido). É por tal que ela inquieta tanto a
representação (fazendo o somà imiscuir-se ao sèma) quanto a história (fazendo um tempo
misturar-se a outro, como as ninfas pagãs numa obra cristã, como verificou Warburg,
permitindo a sobrevivência da figura). Na imagem criada, não há tão somente um tempo
sob/sobre outro tempo, mas a mistura, a relação, permitindo que ambos surjam, apresentem-se
como uma única imagem, repleta de tensões. Sua modernidade pode ser pensada nessa
perspectiva: como atualização, ou colocação em relação dos tempos, não como uma
esquematização resultante do trabalho da consciência puramente, senão como apreensão e
sobrevivência das imagens em contato umas com as outras, compondo uma gigantesca e
inesgotável constelação de obras, convivendo e tocando-se, de suas distâncias, umas as outras.
O artista, esse configurador, é o intermediário dessas relações. Ele as percebe, ou mesma as
cria, fazendo-as tocarem-se, criando correspondências, onde parece não haver nenhuma, a fim
de retirar sentidos.
A impressão opera aí o trabalho dessa colocação em contato que, ao contrário de
produzir resultados (lembremos as gravuras esquematizadas do “grande ataque histérico”
criada pela equipe de Charcot), produz sintomas, perturbações e aberturas, quando, em lugar
de separar e ordenar, percebe-se as relações necessárias para sua existência (no caso das
gravuras e desenhos de Salpêtrière, a comparação com as fotografias já revela a alteração, a
produção de outra forma de relação que não a própria fotografia, ainda que num esforço de
domesticação dos gestos). É isso que revela a função crítica da impressão, uma forma
procedimental, processual, capaz de fazer da contradição um modo de devir, ao qual é
possìvel, na sua “função de conhecimento e pensamento” reconhecer a “uma pertinência
teórica própria”, a partir da noção mesma de anacronismo. “De outra parte, a „arqueologia‟
produzida pelos artistas nada tem de um conhecimento positivo e objetivante. Ela nos obriga a
repensar o ato mesmo de conhecimento histórico [...]”, de tal modo que, “a „arqueologia‟ que
está em questão aqui se mostra mais tátil, mais tateante, mais inquieta, mais heurìstica”
(ibidem, p.311-312). Tal possibilidade passa ao largo do que comumente adota-se como
modernismo, embora alie-se à noção freudiana “no sentido bem mais complexo do a
posteriori, do sintomal, do retorno do recalcado, do „presente anacrônico‟”, ou da noção
warburguiana de sobrevivência, pelo qual o modelo está em contato como o “inconsciente
histórico”, ou ainda nas imagens dialéticas benjaminianas, ou, por fim, aos blocos de
causalidade de Carl Einstein, tudo formando verdadeiras “lições de método” e, mesmo,
310
(ibidem, p. 321-322). O autor lembra que, de um “ponto de vista filosófico [...] o paradigma
da impressão está além de toda oposição entre forma e informe”, de modo que, partindo de
Plotino, considera o traço sendo a forma do informe, uma “maneira de indicar um autêntico
pensamento das distâncias” (ibidem, p.320).
Um traço é a marca do presente de uma ausência que ali esteve, o vestígio de uma
forma, de uma forma em formação. Ainda que considerada como “disciplina auxiliar da
arqueologia pré-histórica, a ichtologia resume, ou mesmo exaspera, as obrigações e as
potencialidades metodológicas de todo autêntico conhecimento dos vestígios”, ou seja,
problema do olhar, problema da interpretação relacionado a esses “traços de traços”. O que,
então, traz tal “ponto de vista ichtológico” ao olhar do historiador e do teórico da arte sobre as
formas visuais em geral, pergunta o filósofo. Primeiro, a obrigação de “desenvolver um
„conhecimento do terreno‟ e mesmo uma técnica de seus objetos de conhecimento – pois, para
retirar uma impressão, é necessário fazer sua contra-forma [...]”. Segundo, isso obriga a
“reconhecer a complexidade das formas, obrigando a saber que as formas são processos, e
não somente o resultado do processo”. E, terceiro, saber que “esses processos, propriamente
falando, não tem fim, que a imagem atualmente vista não é senão o „presente anacrônico‟ de
um jogo interrompido de deformações, de alterações, de rasuras e de retornos de toda sorte”.
A ichtologia mostra que, no fim, as formas não se desintrincam da matéria, pois “as formas
são os substratos, ou antes, o processo dialético das modificações do substrato por um gesto
qualquer”. Isto é, “as formas são os tempos em obra, tempos contraditórios intrincados na
mesma imagem” (ibidem, p.323-325). As formas são sempre em formação, de modo que
aquilo com que nos deparamos é um instante desse processo. Não somos tempo suficiente
para ver, muitas vezes, suas alterações no processo, ao qual se integram o que olhamos dela, o
que fazemos para conservá-la, o lugar onde está, tudo que se escreveu sobre ela.
Mantendo essa perspectiva aberta, que não é outra senão a da heurística, tornamo-nos
capazes de descobrir que, em termos de saber, a forma trabalha e opera de modo semelhante.
E a imagem entra em outro estatuto inteiramente distinto: do contato, do traço, da
multiplicidade, do informe, do infrafino, todas formas de dizer imanente, não-contemplativo,
espaço de vida. Os saberes são substratos e o tempo em obra em nós. Nós, esses instantes de
um sopro de vida, é que nos tornamos o nó, o ponto de cristalização no processo da imagem.
De certa forma, somos mais um traço com o qual a imagem se (de)forma. De que a imagem se
compõe nesse processo? É, então, como processo sem fim, diante mesmo do mais
insignificante vestígio, da complexidade do tempo e do espaço, e ainda mais diante de
qualquer modo de dominação pelo saber, constituído como posse e poder de um grupo; é
312
como contra-forma que ela se põe diante disso, anarquicamente, como força contra os
dominadores e como abertura a todo princípio a visar a determinação de um modo de ser. A
partir de Duchamp, nesse longo percurso, vemos a heurística como atitude frente às
instituições e axiomas do campo artístico; vemos a imagem como paradigma frente ao tempo
progressivo a elaborar a história de seus estilos e esquematizações de seus movimentos;
vemos a imagem como procedimento frente às estruturas determinadas insistindo em ordenar
e enquadrar as obras, separando-as de seus processos, a limitá-las como forma acabada (morta
e imortalizada); vemos, enfim, a operação heurística como relação entre precisão e acaso, o
esforço de construir um modo de conhecer, capaz de lidar com a complexidade sem reduzí-la
a momentos determinados, mas, pelo contrário, como momentos relacionados e relacionais,
implicados em contradições de tempos, implicados com a ausência, cuja impossibilidade de
recuperar totalmente o saber do objeto no passado torna indispensável o trabalho da
imaginação e, assim, da recriação e remontagem presentes.
Trata-se de investigar e abrir caminho, senão imaginá-los – como no sonho dos mil
gatos em Sandman; trabalhar com inconsistências e múltiplas alternativas, mesmo as que se
opõem, mesmo as imprevistas, mesmo as parciais, incompletas e abertamente lacunares –
como a poesia de Safo, por exemplo, conjunto de fragmentos. Subitamente, estar diante de um
texto desses, repleto de vazios, com palavras incompreensíveis, fraturadas e ainda aquelas que
podem assumir diversas possibilidades, fazendo-nos ler o que está ausente, imaginar o que
poderia ter sido, ou apenas fazer aparecer diante de nós o espaço da página como fundo
envolvente. Trata-se de ver o que está ausente e, ao mesmo tempo, todas as possibilidades
imageantes. Os pesquisadores precisam de um profundo conhecimento sobre a obra para
serem capazes de sugerir uma dessas possibilidades. Quando se descobre um novo fragmento,
menos rasurado que corrobora a sugestão, não se trata meramente de um fechamento de
sentido, mas a intrusão de um encontro preciso. No fim, a sugestão não encerra as
possibilidades de dizer; mesmo a palavra errada pode promover uma abertura insuspeitada na
obra, atualizando-a, revigorando-a no seu não-saber. A atitude heurística com a imagem é, ao
mesmo tempo, nessa abordagem, humildade do pensador com sua colaboração e precisão por
tal colaboração no enriquecimento do saber sobre a obra. Se lembrarmos o sentido
benjaminiano do tratado, como propedêutica e não ensino, teremos a heurística como
operador constelar, configuradora das potências de saber, dos seus procedimentos e processos,
a fim de imprimir, não o saber, mas quem busca saber e a imagem como elemento da
constelação a se abrir a essas potências, com o desejo de fazer mundo, não o representando
(copiando), mas oferecendo a possibilidade mesma de alterá-lo, por um instante.
313
ela tenha um ser, mas o que a constitui parte da sua exposição em direção aos traços
distribuídos nos seus trajetos, constituindo sempre em direção da alteridade, sendo outro175. A
questão, nesse ponto, adquire uma perspectiva ética: sem essência a garantir o valor de uso
das imagens, como fazer e ser justo? Como fazer justiça ao que se expõe enquanto
desaparece, sem diminuir a dor, sem espetacularizar ou censurar e ainda fazer com que quem
vê tenha empatia, ou, pelo menos, não feche os olhos? Constituir contatos, dar atenção, criar e
usar procedimentos, sem dúvidas. No corpo do pensamento do autor, ele retira essas questões,
traçando novas perturbações, remodelando o já dado, abrindo e apresentando outras situações,
transformadas em situações-funções. Expor os povos é sempre trabalho em movimento.
Posicionar-se nesse espaço exige, em grande medida, atenção.
Com o último volume ao qual temos acesso da coleção L‟œil de l‟histoire (coleção
aberta que já conta com seu sexto volume, Peuple en larmes, peuple en armes), Passés cités
par JLG (publicação em 2015)176, dedicado à obra do cineasta francês Jean-Luc Godard, é um
aprofundamento, especialmente a uma espécie de “sìntese” do cinema mundial, intitulado
Histoire(s) du cinéma (1988), elaborado e intrincado conjunto de citações fílmicas e literárias,
montadas numa forma comparável às Passagens de Benjamin ou ao ABC da guerra de
Brecht. A questão aí é, pois: como citar os passados? Isto é, como usá-los, como expô-los,
como fazê-los aparecer? Didi-Huberman (2015i) chama a atenção para o fato de elaborar-se
tal questão no plural, o que já indica a necessária consideração da heterogeneidade desses
passados a tomarem alguma forma, a fim de serem citados: “próximos e distantes,
anacrônicos, mas coexistentes” (idem, p.12). Tais passados não são considerados em sua
inteireza, mas como fragmentos. Citar é citar uma parte, por vezes retirando-lhe de seu
contexto para aproximar de outro, de tal modo que “a citação é primeiro um ato de
linguagem” e um ato de “admiração”. Todavia, nesse processo, tal ato, admirar e usar na
linguagem, seja uma forma de “querer tornar-se autor” do que é citado, “mas como uma
phasme que devora uma folha de uma árvore para melhor assemelhar-se a ela” (ibidem, p.12-
13). Nesse sentido, cita-se não simplesmente para apropriar-se da citação, e talvez do passado
citado, mas para transformar o “apelo à autoridade” em “rejeição da autoridade”, pelo menos
com Godard, afirma Didi-Huberman (2015i, p.15).
Trata-se sempre, ou quase sempre, de um jogo no qual citar é citar para criar uma
referência, colocar toda questão no tempo, fazer o tempo aparecer no âmbito da linguagem,
175
Duchamp (apud CABANNE, 2015) mesmo já demonstra como a obra está sempre dependendo do olhar do
espectador para se compor. Faz-se necessário o outro para a obra ter lugar. Não está em um, nem no outro, mas
na relação (o diáfano para Didi-Huberman, talvez).
176
Todas as citações são traduções nossas.
315
sem com isso permanecer tão fiel à citação, ao ponto de nada inventar ou transformar. Com o
intuito de evitar tal dominação, Godard utilizaria um certo método, uma “metodologia
citacional”, consistindo em colher as citações, verificar para “colocar em ordem o material”,
constituindo uma espécie de “inventário”. E, por fim, uma recolagem, isto é, “uma montagem
especìfica” a fim de oferecer “dinâmica interna” ao filme (ibidem, p.16-17). Todo esse
processo e procedimento é o que o filósofo denomina como “sua heurìstica citacional de
textos e imagens”, cuja montagem “coloca em cena e coloca em relação” as citações e gestos
e quadros e fragmentos” (ibidem, p.18). A citação, nessa composição heurística, torna-se uma
“unidade mìnima dotada de uma mobilidade essencial a toda enunciação” que, ao contrário de
diminuir sendo enquadrada ou enquadrando, é aumentada “como elemento de montagens
futuras” (ibidem, p.19). Com tal elemento, Godard as usaria de modo distinto também: não
como elemento do processo discursivo, mas como “ruptura do diálogo”, uma espécie de
citação cortante para “construir uma dialética” (ibidem, p.21), forma a tornar, aparentemente,
tanto a citação uma parada quanto um adorno: “duas maneiras de se mascarar, de chafurdar,
uma para desaparecer na subexposição, a outra para desaparecer na superexposição”.
Isto é, uma como censura, a outra como espetáculo, tanto como “despersonalização
da palavra” quanto como “produtora de vários sentidos”, sendo “antes de tudo, uma heurìstica
de significações que emergem” (ibidem, p.26), sempre associadas por um “material a
montar”, o qual permitiria, enfim, formular seu “motor poético” (ibidem, p.27). Esse motor
coloca em operação o uso da citação a partir da reformulação das próprias relações das
citações. Elas não apenas enquadram, mas também desenquadram, ou seja, são retiradas e
retiram, pela sua constituição em fragmento, do contexto matricial. Fazendo isso, são
“destacadas de seu contexto próprio e dispostas, montadas, em vista de uma lógica outra”.
Nesse sentido, a citação “desautoriza ela mesma” (ibidem, p.29). A lógica não é
desmantelada, mas está sempre em vistas de outra possibilidade, da abertura a outra
possibilidade. Porém, ela é igualmente constitutiva de outra coisa; leva, por sua vez, a uma
dobra sobre seu próprio processo que faz do montador, no caso aqui Godard, aquele que
autoriza a si mesmo a desautorizar, mudando o centro da autoridade. Porque, no fim, e ele
nunca esquece, seu processo é uma prática própria da marca JLG. Há, de um lado, uma
“gratuidade frequente” conjugada com um status; de outro lado, fazendo da obra do cineasta
um intricado jogo de duas coisas, mas de uma ou de outra: “Trabalho ou status? Fecundidade
heurística ou posição de autoridade? Movimento sem fim da arte como experiência (como
experimentação) ou fixação de uma regra de artista como personagem (como
institucionalização)?”. Se ambas oscilam e coexistem na obra de Godard, o que permanece em
316
jogo, nesse processo, é a relação entre o passado citado e o presente, na “possìvel colocação
em obra comum de uma poética e de uma polìtica” (ibidem, p.30, grifo nosso).
Citar passados não apenas aborda um trabalho processual de composição de uma
obra. O ato de trazer para o presente um passado significa já elaborar algum tipo de denúncia
“contra os estados presentes de injustiça”. Isso significa que os passados citados remontam ao
presente, não somente como dados, mas como uma relação com o tempo presente, ao ponto
de modificarem-se nessa configuração. O tipo dessa relação, diz o autor (2015i, p.33), é
semelhante à constelação benjaminiana: “uma configuração lacunar desenhando através de
seus pontilhados, mesmo qualquer ponto de vista ou qualquer profecia polìtica”, uma tarefa
tal que, na sua elaboração, jamais separa a forma do conteúdo. Uma não vem sem a outra. A
montagem de Jean-Luc Godard, com o processo mesmo de montagem, não deixa de tentar
experimentar tal relação. Ele “convoca toda exuberância das imagens e linguagem possível
[...] para provocar alguma coisa como a sideração, ou a efusão, ou aceitação, ou a distância
que seja, ainda, do No comment”, uma dialética a colocar em tensão, em contato, o veja aí
[vois, là], “o que supõe um longo trabalho de orientação do olhar, de colocação em relações
propositadas” e o eis [voilà], “o que supõe, de qualquer maneira, o suspense da sessão [...] ou
bem a abrupta marcação da liberdade artìstica” (ibidem, p.37). Para o cineasta, a montagem
transforma-se numa palavra mágica, seja como uma fonte de desejo, seja como procedimento
a desenvolver-se “por assim dizer, sobre duas tábuas de uma „paixão da ciência‟ e de uma
„ciência da paixão‟” (ibidem, p.38-39). Dividindo nessas duas tábuas, Godard parece tentar
sistematizar num processo que, por suas mãos, será capaz de totalizar toda a potência da
montagem. Dividindo, ele parece imprimir seu saber sobre cada elemento. Em ambas, a
ciência parece deparar-se com seu mestre, capaz de calcular todas as possibilidades, com a
força de sua autoridade, surgida como princípio organizador de toda(s) a(s) história(s) do
cinema.
Percebamos, por um lado, que esse querer de uma fecundidade heurística não
significa alcançá-la, ou, pelo menos, não na sua plenitude inquietante, de abertura e
proliferação. Para Didi-Huberman (2015i), a ambiguidade existente na obra de Godard, entre
a autoridade de si e a heurística inerente ao trabalho de montagem, leva-o a reduzir essa
última a um jogo de dois: duas coisas (imagens, frases, histórias) postas uma em relação com
a outra, na qual se decide por uma delas ou ainda se reduz a questão a tal tensão. Por outro
lado, e certamente graças à forma da montagem, a possibilidade de abertura a outras relações
e colocação de questões, não restritas a dois, faz com que a própria obra sobrepuje a vontade
do seu criador. Godard, encontrando na montagem “uma via real à necessária conjunção do
desejo de conhecimento [...] e do conhecimento do desejo”, encontraria em Freud uma espécie
de “personagem-chave” para o diálogo, no qual tal necessidade se mostra. Isso faz com que
História(s) do cinema assuma muito mais “uma abertura às transferências, às associações de
ideias, às atenções flutuantes, às superinterpretações e, para dizer tudo, a todas as
fecundidades inesgotáveis do trabalho do inconsciente [...]” de maneira a “reconhecer e de
experimentar as potências da figurabilidade onde proliferam [...] todas as trocas ou
conversões entre formas verbais e formas visuais” (ibidem, p.42-43).
O caminho adotado por Godard, porém, abre a dúvida ao filósofo: é possível que,
fazendo da montagem uma “palavra mágica”, ao ponto da ingenuidade, ou reduzindo-a ao
trabalho de aproximação, ele estaria reduzindo sua fecundidade? Como ele utilizaria a
montagem: produzindo poemas “dos quais florescem ainda todas as múltiplas possibilidades”
ou produzindo fórmulas, “na qual todos os múltiplos, todos os possìveis, encontram-se
dogmaticamente reduzidos a qualquer coisa como uma verdade reduzida?” (ibidem, p.46).
Trata-se, pois, de saber “se, numa montagem dada, faz-se a colocação em poema do mundo
ou bem sua colocação em fórmula” (ibidem, p.47). Quer dizer, a montagem, apesar de sua
íntima relação com a heurística, pode ser cooptada para um fim dogmático, na medida em que
esquematiza as possibilidades em fórmulas definitivas. Diz ainda o autor: “se Godard
consegue confundir os dois – e é exatamente aí que é preciso interrogar sua ética da
linguagem – é, sem dúvida, que sua cultura poético-política tomou um percurso decisivo no
fim dos anos 1960 [...]” (ibidem). Se ele coloca em relação duas imagens, não deixa de
elaborar uma dialética, própria da montagem, se pensada como “uma prática, uma técnica,
uma grande arte dialética”. De qual dialética se trataria, então, pergunta Didi-Huberman
(2015i, p.50). E, como Godard a compreende? Para o cineasta, a “imagem é feita de duas, isto
318
conexão de duas imagens ao menos, conexão situada, tanto que possìvel, „lá
onde as contradições são as mais agudas‟ [...] e na medida onde ela faz surgir
dessa conexão um terceiro termo – eventualmente nomeada „imagem‟,
enquanto tal – que resulta da contradição posta em obra (DIDI-
HUBERMAN, 2015i, p.52).
não deixa de denunciar uma certa “vulgaridade” na obra do cineasta francês, qual seja, a
“vulgaridade da arrogância”, que faz de seu cinema “qualquer coisa como uma „poética do
desprezo‟”, porque faz de seu cinema uma espécie de “tautologia” e, ao mesmo tempo, um
“ato de metalinguagem”, quando, para Pasolini, os “gestos do corpo ou um elemento da
realidade em geral” são tão “metapoetizáveis, traduzìveis” quanto os “fonemas”(ibidem,
p.186-187). Não há, portanto, nada de inocente [naïve] no que se faz com o cinema e nas
tentativas de criar um “poema dos povos”, como gostaria Godard. Para Pasolini tratar-se-ia
muito mais de fazer do cinema uma “transgressão”, mas não como algo perpétuo, ao ponto de
“esquecer contra quem essa transgressão se exerce”. Nenhuma transgressão vale “sem a
colocação em lugar de uma linha de confrontação destinada a saber reconhecer, para melhor
combater, seu inimigo” (ibidem, p.190). No fim, cabe saber que a potência heurística da
montagem sempre dependerá, estará irremediavelmente associada, à capacidade de abertura
que se cria, à constituição de máquinas de guerra prontas a ferir seus inimigos, não os
matando, mas abrindo-os às feridas de sua constituição, inclusive, na negação e na exposição
de suas perdas.
A heurística não se realiza senão sob a condição de sua constelação: potência,
abertura, inquietude, sobrevivência, precisão, posição, dialética e confronto, recusa da
autoridade, heterogeneidade, sintoma; cada um desses elementos, problemáticos sem dúvida,
opera na estrutura, configurando seus movimentos e seus constantes esforços para por em
movimento. Se em Godard isso ainda resiste, deve-se ao jogo sempre possível a se fazer, mas
numa postura de abertura do que parece se fechar numa autoridade, numa fórmula e numa
autorreferência. Porém, não podemos esquecer a atitude de citar os passados, como modo de
lembrar-nos de sua resistência no presente, ainda que como fragmento, bem como as
possibilidades poéticas e políticas de suas referências ao presente, como elementos de
composição e polinizarem a própria ação e pensamentos presentes, conjugando, para tanto,
desejo e conhecimento. Percebemos, com Pasolini, que, se usarmos como analogia, a
heurística não é um mero procedimento de metapoetização, traduzibilidade ou visibilidade,
como se as imagens fossem reduzíveis aos discursos e as frases tornassem-se claras, mas um
processo, um modo e uma potência, um procedimento, uma técnica e uma posição, aberta
diante e dentro do mundo, involucrando corpos, gestos, palavras e desejos – tocando e
expondo tais contatos. Todos se tocando e criando relações reais, concretas, impuras,
cognoscíveis e de não-saber. Por sua abertura, capaz de considerar as possibilidades, por mais
inesperadas que sejam, sua precisão e rigor tornam-se mais potente, sem, contudo, ferir ou
passar o próprio movimento de configuração a ela concernente. Isso significa uma
320
internalização de sua própria figura, ou seja, encontra aporte na sua própria produção,
elaborando de dentro os princípios que a fundamentarão, como o solo fundamenta o corpo de
uma estrela cadente.
Isso tudo, por sua vez, não deixa de apontar para várias perdas: desde uma
axiomática estabilizadora até uma pureza determinante e clarificadora. Perde-se em certeza o
que se ganha em inquietude. Por isso, há a necessidade de uma atitude diante da heurística.
Podemos pensar como Kant a elaborar sua faculdade de julgar como um harmonizador das
inquietações da natureza junto à faculdade de conhecimento, a fim de que o sujeito possa
conceber algum conhecimento e sentir-se seguro nesse mundo. Podemos, ainda, pressupor
uma finalidade, para que a experiência seja possível como algo abarcável pela razão e pelo
entendimento, e, assim, garantir um suposto dever moral, a partir da castração dos nossos
corpos e desejos (em Kant, reduzido a uma vontade e não a um impulso vital, elã de nossa
mais profunda experiência ética e estética). Ou, podemos, com a heurística, jogar, inclusive,
com nossa própria impotência, fazer da experiência uma produção e descoberta de outras
possibilidades de existir, e não de deveres; colocar e implicar nossos corpos e nossas pulsões
inconscientes no esforço de redefinir os modos como conhecemos, como experimentamos e
como entramos em relação com a natureza. A heurística, nesse sentido, expande-se para além
do antropomorfismo e lança o sujeito no mundo como elemento de composição, com os
animais e a própria natureza. Dessa forma, abrimo-nos ao mundo, abraçamos alegremente sua
diversidade e constituímo-nos a partir desse movimento e transformação. Ou seja, onde Kant
enxergava desespero, nós enxergamos a própria condição do viver e conhecer; do produzir
saber e do dispor desse saber.
Poderíamos nos perguntar, pelo longo decurso dessa tarefa de tentar pensar e compor
a constelação da heurística das imagens, o que retiramos disso tudo? Esforçamo-nos por não
esquematizar nem esboçar a aparição de seus sentidos, a fim de, isolando-os de seus planos de
composição, ter uma visão acabada das aparições e usos dados por Didi-Huberman. Ao invés
disso, tentamos desenvolver uma outra via, uma outra possibilidade, mas essa capaz de
respeitar o objeto, no sentido de fazê-lo aparecer, não numa ideia, porém no seu processo e,
ao mesmo tempo, como procedimento. Isso significou o esforço de nada definir a priori, nada
determinar nem mesmo no seu percurso. Tentamos, nessa medida, fazer jus ao próprio esforço
do filósofo, na mesma medida em que lançava mão da heurística para compor a constelação
321
da imagem como possibilidade política em sua filosofia. Não produzir, nesse sentido, uma
imagem política, simplesmente, maus uma política das imagens, isto é, a elaboração de
procedimentos, técnicas e formas de expor os povos que está desaparecendo, na mesma
medida em que faz aparecer seu ser em comum, de um lado, e a constituição, de outro lado,
com o qual se relaciona, de fazer aparecer outros modos de saber a partir dessas imagens, que
não o discurso racional, sistematizador e sintetizador; trata-se mais da busca de uma razão
poética, fundada na empatia, no páthos, no movimento afetivo de compreensão e nas
emoções, não como elaboração de uma pluralidade de indivíduos sentimentalistas diante da
dor, mas como subjetivações capazes de passar, de fazer passagem pela alteridade, instituindo
lugares do comum, onde tomam parte, sem se apossar de nada (nem das palavras, nem das
imagens, nem dos corpos).
Isso nos leva a outra situação: a existência de tensões que, por vezes, se contradizem,
tendo a tendência em dizer, dialetizam: a heurística como um princípio anárquico e, ao
mesmo tempo, como forma de precisão e rigor, ou seja, como o que garante o direito de não
importa o que participar de sua composição e, ao mesmo tempo, da precisão de um
procedimento definidor de suas estratégias, aberta ao acaso, mas não a qualquer coisa. A
política das imagens, nesse plano de composição, não possui princípio. Isso significa dizer
que aí nada está garantido, nada lhe é fundamental e, se bem pensarmos, estamos diante de
uma passividade: uma atividade diante de uma passividade; uma atividade passiva e uma
passividade ativa. Quer dizer, um complexo afetivo e um completo gestual, o três que faz três
milhões, como disse Duchamp. Tal como os gestos, na acepção de Agamben, a política das
imagens inscreve-se numa categoria distinta dessa dicotomia de origem aristotélica. Está no
âmbito da situação, ou muito mais, no âmbito da função. Assume-se o que sobre nós age e
suporta-se esse agir, podendo, por vezes, fazer desse suporte agenciamento. A figura
paradoxal apresentada por Didi-Huberman, capaz de conjugar o suporte e a assumição de um
comprometimento, como gesto capaz de agência, é Atlas:
mundo [...] Mesmo de cantar isso acompanhado à cìtara” (idem). Atlas é aquele capaz de
suportar, mas também de portar um mundo de sofrimento nos ombros. E, ao fazer isso,
comporta dois planos distintos (dialéticos) relacionados: o céu e a terra, todo o saber celeste
dos deuses e todo saber terrestre dos homens para viver. O trabalho de Atlas não é, pois,
lamuriar-se de suas dores, mas de fazer com que esse saber trágico, sempre corporal
(primeiramente corporal, no sentido de Merleau-Ponty), seja a dobra que se dobra e desdobra
o saber do lógos, o saber apartado dessa imanência. O olhar, então, dá e torna-se a carne desse
saber: “o saber é evidentemente necessário, mas permanece inoperante sem o pensamento, ele
mesmo inoperante (Goethe) quando se encontra desencarnado, separado do olhar” (idem,
p.138). A política das imagens não visa substituir as formas vigentes de política (suas ações,
suas tomadas de partido, suas institucionalizações), mas retirar dessa política a visibilidade
como mecanismo operatório, de tudo que ela silencia no seu processo. Esse é seu gesto ético:
ele se “situa no [...] ato de dar conhecimento às imagens cujo estado „mudo‟ frequentemente
deixa-nos „mudos‟, mudos de indignação” (ibidem, 2010, p.50). Nesse sentido, a política das
imagens assume dois gestos intrínsecos: um gesto de emancipação:
Dois gestos que não podem vir sem a própria experiência do sofrimento: “o
humilhado que olha o humilhado abre o campo apesar de tudo [...]” (ibidem, p.203-204), isto
é, fazer o trabalho de configurar um gesto de exposição, a fim de fazer expor o ser em comum,
que só vem onde esse comum se constitui mais dessemelhante e dilacerante: a ferida que
chama o ferimento, como bem disse Bataille. O trabalho de assumir o que nos toca (tuchè) e
configurar (technè) isso no nosso tempo, nesse espaço mesmo do dilaceramento, do desastre,
é um ato de resistência, ou seja, “manter essa imagem apesar de tudo” (ibidem, 2003, p.60).
323
Sua manutenção, não para calar ou apresentar o inimaginável, mas para instituir, a partir dela,
uma resistência política, e conjuntamente, uma exceção teórica, “própria para modificar a
opinião preexistente sobre o „inimaginável‟” (ibidem, p.80). A instituição de uma política das
imagens passa por um esforço (por vezes hercúleo) de tomar posição diante do que nos deixa
sem chão e tomar a palavra diante do que nos emudece. Em última instância, essa forma de
política está sempre no limiar, e não mais no limite da política177. Não é a toa que essa política
encontrará nos levantes uma expressão estética e teórica.
A política das imagens coloca como limiar o que vem depois do fim (ou dos fins,
nada próximo da escatologia, mas do suportável). Ela aparece onde o próprio limite rompe-se
como insuportável, não restando senão revoltar-se, levantar-se, suportar e assumir o gesto de
morrer para não morrer meramente. O “levante acontece tarde demais, no esforço de instaurar
uma nova situação, já passado o momento em que a sujeição devia ter chegado ao fim”
(BUTLER, 2017, p.23). E quando acontece, são coletivos; trata-se de um “pôr-se de pé junto”
a fim de “mostrar e se fazer ouvir”, no momento em que não se deveriam fazê-lo (idem, p.25),
podendo-se, talvez por isso, constituir-se um momento de emancipação (ibidem, p.30). E, ao
levantar-se “sempre cita um outro, é animado por imagens e narrativas do [levante] anterior”
(ibidem, p.31). Isto é, um levante figura e atualiza todos os levantes, na medida em que monta
e remonta a própria história (como suspensão, como interrupção, como descontínua, como
turbilhão), apesar do seu fim e fracasso, “intrìnsecos de sua definição” (ibidem). Nesse
processo, as próprias categorias políticas (práxis, por vir, ação coletiva) adquirem outros
sentidos (interrupção, agora e aqui, expressão coletiva) a fim de contar outros planos
(temporais e espaciais).
Como acontece “exprimir ideias” (afirma Butler ainda), e convoca outros levantes, a
proliferação de imagens dá lugar, e faz as vezes, do discurso. A visualidade é sua própria
legebilidade. Sua consciência teórica coincide com a exposição das imagens que os levantes
criam para si. As próprias palavras, ao levantarem-se, expõem-se. A tomada de palavra é
também exposição como imagem. Tudo é, ao mesmo tempo, palavra e imagem, capacidade de
fazer legível o que se vê e visual o que dá palavra ao corpo. Uma verdadeira perfomance
política de exposição: “o levante produz performances que, segundo um movimento
descendente e ascendente, vão da expressão de um contra-poder constituinte até o menor
„não‟ pronunciado contra o comando” (NEGRI, 2017, p.46). Mondzain (2017, p.50) parece-
177
“Podemos, então, estabelecer uma diferença conceitual entre o „limite‟ e o „limiar‟, o limite designando o
penúltimo, que marca um recomeço necessário, e o limiar o último, que marca uma mudança inevitável”
(DELEUZE E GUATTARI, 2017b, p.140).
324
nos mais feliz na sua imagem de pensamento sobre o levante que Antônio Negri, porque
mostra a potência imageante e figurante do levante: “os levantes devem aos ventos e às
vagas, à respiração e à dança. Nada põe de pé os que não dançam, e no levante haverá
alegria”. Tudo se levanta como um sopro na “divina energia do desejo” (idem). Mas, há
sempre também o contrapeso, a gravidade do levante. E mais uma vez a figura de Atlas
retorna, encarnando a dialética de nossa polìtica das imagens: “Pode-se dizer que Atlas
aguenta firme, mas a coisa é tão pesada, desde Melancolia I de Dürer ate Le Penseur de
Rodin, o pescoço pede ajuda e apoio à mão. A imagem do pensador não poderia separar a
cabeça da mão” (ibidem, p.51). No processo de suporte e assumição do peso, o levante (como
o além do suportável) engendra, não uma mera passagem a outro estado ou espaço, mas um
gesto: o salto, um gesto para sair (às vezes oscilando, às vezes dançado) “para fora da zona
dos assassinos” (KAFKA apud MONDZAIN, 2017, p.58), a fim de criar um novo espaço.
Contudo, ao fazer isso, deve, em larga medida, “fazer um luto da verdade e assumir o risco da
forma que será dada ao movimento, não do retorno, mas do encontro aventureiro e do
compartilhamento (MONDZAIN, 2017, p.59), buscando a “ativação da nossa força para criar
imagens, operando em todo encontro” (idem).
De certa forma, o levante parece assumir essa imagem de mar – Mondzain (2017,
p.62) lembra as palavras de Axacársis: “Há três tipos de homens, os vivos, os mortos e os que
estão no mar” – revolto, a se levantar para dobra e fazer muro, fluir e resistir, escapar e lutar.
Porém, Rancière (2017b, p.66) lembra que há uma divisão no levante: “a onda de liberdade
que se ergue em oposição aos objetivos da vontade empreendedora”. Uma força que se
levanta para suspender; um gesto realizado em direção a uma parada, como acontece com a
dança de Israel Galván (1973-), afirma Didi-Huberman (2013d). O autor, em Le danseur des
solitudes (publicação em 2005) apresenta esse dançarino como aquele que “dança suas
solidões” (DIDI-HUBERMAN, 2013d, p.15). Isolando-se, ele se torna muitos, criando do
múltiplo com seu corpo em movimento, abrindo-se numa heurística capaz, não de representar
uma dança (ou a solidão), mas de fazer aparecer criando, não apenas “as condições – espaciais
e corporais [...] de sua ausência”, mas de fazer mostrar “sobretudo como ele cessa de fazer”
(idem, p.15-18), fazendo um evento, uma estética da parada (como o pássaro em vôo que
cessa de se mover porque está no ponto preciso do movimento do ar). Seus gestos tornam-se
perturbadores, diz-nos o autor, de tal modo a nos fazer perder: “perder-se como pessoa no
espaço e no tempo dos movimentos produzidos” (ibidem, p.24). Cada gesto, cada passo (pas,
em francês, diz tanto o passo, movimento, como a passagem, a distância do passo, e também
o „não‟, a negativa, a parada) dele não é para levar adiante a outro passo, mas para suspender,
325
178
Como um limiar ainda possível nesse campo, podemos pensar na proposta de Catherine Malabou com
Ontologia do acidente: ensaio sobre a plasticidade destrutiva, na qual a autora não deixa de nos apontar que
“ninguém pensa espontaneamente numa arte plástica da destruição. No entanto, esta também configura. [...] A
destruição tem seus cinzéis de escultor” (MALABOU, 2014, p.13). O que ela pensa não é o limite, mas esse
lugar mesmo (o limiar), onde se deve criar algo inteiramente novo: “Alguma coisa se mostra por ocasião do
dano, do corte, alguma coisa a que a plasticidade normal, criadora, não dá acesso nem corpo” (idem, p.14). Não
se trata, nesse campo de metamorfose, pois segundo a autora, toda metamorfose, lembrando Ovídio, supõe uma
essência que não se altera. Ela quer justamente esse campo em que nada permanece o mesmo, nem mesmo a dita
essência. A isso ela denomina, então, plasticidade: “A plasticidade é a forma da alteridade lá onde não há
nenhuma transcendência, de fuga ou de evasão. O único outro que existe então é o ser outro a si mesmo”
(ibidem, p.17).
326
perda aparece, assim, como o limiar da experiência heurística da política das imagens, pois ela
coloca em questão a possibilidade, na mesma medida, em que abre à necessidade da
possibilidade. Precisamos, então, do salto, ou da ruptura, daquele gesto, enfim, que abre o
espaço, expondo-o. Com a capacidade de suportar e assumir, os gestos tornam-se, afirma
Didi-Huberman (2017b, p.302) transmissìveis: “os gestos sobrevivem apesar de nós e apesar
de tudo. Eles são nossos próprios fósseis vivos [...]”. E eles sempre assumem “formas
corporais”, capazes de fazer perceptìveis, veiculantes, orientadores, “tornando-os plásticos ou
resistentes de acordo com as circunstâncias” (idem, p.301).
As imagens aparecem como aquilo que expressa, dá forma a essas formas, como
formas de exposição, ao longo da história, desses gestos. Nós os produzimos todos os dias,
mas as imagens permitem a criação de memória, expõem e expressam sua aparição. As
imagens são traços deixados pelos gestos, repercutindo-os, processando-os, propagando-os
pelo tempo, chamando por aqueles que, no nosso tempo, figuram-nos, atualizando e
relacionando. Relacionados estão sempre ao desejo. Porém, pergunta o autor: “Mas por que
no levante nossos desejos tendem a se exacerbar? Por que não esperar tranquilamente que se
obtenha a satisfação esperada?”. Por que, leva mais adiante, “sempre no elemento da ruptura,
o forçar dos limites, em uma inquietação tão viva que se poderia considerar trágica?” Por que
a partir de uma “dor inextinguìvel”? (ibidem, p.307). Lembrando o ensaio benjaminiano sobre
o barroco, ele nos inscreve nessa “história dos sofrimentos do mundo” (ibidem). Atlas, então,
retorna como figura fractal dessa narrativa, porque no fim, o sofrimento é experimentado e
vivido por todos, ao ponto de parecer, “precisar de mitologias que celebrem sua fatalidade e
sua universalidade” (ibidem, p.308). Junta-se a ele no sofrimento Prometeu, aquele que
presenteou a humanidade como fogo, para, então, estabelecer um corpo sofrido de punidos,
por desobedecerem a arqué, o princípio e a autoridade. Essa seria a única forma de nos
colocarmos diante do sofrimento?
que pôs abaixo. A ruína, alegoria da impermanência de qualquer coisa, senão como fragmento
desse mundo passado incrustado no presente, lembra que não há dor que seja eterna, não há
sofrimento que não acabe e não há sistema, ou opressão, que não tenha seu fim. “A memória
se inflama”, então, e os sujeitos descobrem-se diante de uma encruzilhada, “mais aberta e
perigosa do que na escolha tradicional, humanista de Hércules, entre o vìcio e a virtude”
(ibidem, p.309). Trata-se, no levante, seja de Atlas, seja de Prometeu, seja de Eva, de lançar
os dados e virar a mesa, ao mesmo tempo; lançar os planos para o alto, perturbando toda sua
composição. Isto é, transgredir: “atirar seu fardo por cima da cabeça, é sair de seu buraco”
(ibidem, p.310). No entanto, lembremos das imagens de Salpetrière ou aquelas tiradas pelo
Sonderkommando, para ficarmos nos exemplos do próprio autor. O que sucede no plano em
que não é possível sequer transgredir? Quando o que se pode fazer é nada além de expor,
expor-se, ao risco de desaparecimento, ou justamente por isso?
A política das imagens torna-se paradigma aí, encontrando nos levantes o seu limiar
diante do limite, um movimento de saída, a força, para escapar à zona dos assassinos. Mas ela
também deve deslizar no plano onde o limite não se rompe, o corpo desmantela-se ao ponto
de nem resistir nem sobreviver, deixando como resto algumas imagens. E essas imagens são
imagens de apagamento de traços, vestígio de vestígio. A exposição surge não apenas como
instituição do ser em comum enquanto desaparece, mas abre também a política das imagens a
sua própria impotência. Como proceder, então? Um exemplo tomado do autor vem de
L‟étoilement: conversation avec Hantaï (publicação em 1998), quem procede com os
farrapos, dando-lhes corpo, criando dobras e desdobras, fazendo seus estrelamentos
(étoilement): aí, dentro e diante, verso e avesso aparecem juntos, perturbando a relação com a
tela, fazendo da superfície, encarnada, corpo (ibidem, 2013a, p.36). Nesse espaço de
impotência, os estrelamentos abrem na experiência interior da própria pintura, “da obra em
seu próprio debate do pensamento” (ibidem, p.104). E ele o faz através de um trabalho de
corte, no qual descobre que “a impureza é a verdadeira situação”, e, assim, “não assinala,
então, um algoritmo, mas uma multiplicidade de tentativas heurísticas, decisões e indecisões
misturadas” (ibidem, p.106-107). O trabalho de corte suspende toda a trama da impotência.
Como disse Agamben, a impotência abre o campo da própria potência, lembrando-
nos o que podemos e o que podemos não fazer. Na impotência é possível, também, dizer não,
mas do contrário do “homem revoltado” de Camus que recusa, esse não não guarda tal
potência, tal dialética com o sim, mas também não pode ser considerada uma simples
renúncia. É o não do desobramento; é o não da estrela cadente dos desesperançados que
sabem não existir mais esperança para si e daí emitem uma imagem, frágil e precária, para que
328
os outros se lembrem, façam memória, como disse Benjamin, ao final de seu ensaio “As
afinidades eletivas de Goethe”. Emitir, que é um lançar de si, um manifestar-se como
expressão de si para os outros. Expor, então: por para fora isso que é comum; fazer aparecer
no limite da destruição o que é o comum. As imagens fazem as vezes dos corpos, tornam-se
eles mesmo corpos, corpos que aparecem quando os próprios corpos não podem comparecer.
Elas surgem, aparecem, como sintomas-corpos. Por vezes, um jorrar inesperado e excessivo
– o que escapa quando se passa do excedente; excessivo e, talvez, difícil de olhar; inesperado
e, talvez, incapaz de olhar. Faz-se necessário, certamente, um trabalho sobre o olhar:
desarmar e (re)armar, já o disse Didi-Huberman.
329
LIMIAR – Nefelomancia
Tal arte não é, então, o de ver o que é, mas o que não é no momento em que se desfaz
no ar. Para Pellejero, não são as nuvens (e as imagens) que desaparecem, mas ele mesmo,
diante das imagens que interroga. O que acontece quando desaparece? O que me vai a vida.
Não a vida mesma, num o que que a diz, a coloca em movimento, mas esse algo que vai com
ele e quando vai (poderíamos duplicar?) vai a vida e vai ele. O que vai a vida é onde acontece
nele. O que parece se desdobrar aí é que o que vai a vida acontece como lugar de
desaparecimento e como lugar de distância. O ele que vai a vida, já não é o eu que a profere.
É esse ir a vida (sem crase, logo, não é para a, mas a apenas como uma substantivação – o
que vai – e adjetivação – a qualidade de vai). Então, a vida não o carrega, mas se desloca
(para o que acontece), não vai com ele, nem nele, mas passa ao lado separado, como
paradigma, como distância. Se nele o que vai, não vai para ele, vai a vida. É esse ir a vida que
parece aparecer quando o me dele desaparece diante das imagens. Não se trata tanto de passar
às formas, de multiplicá-las, mas de ver o que vai a vida, o que faz limiar do desaparecimento,
não do que é, mas do que não é – seria a retirada desse me do que vai a vida, da possibilidade
de abrir à multiplicidade n-1?
É por isso que a morte aparece diante do autor? Esse momento “que se torna mais
angustiante à medida em que nos aproximamos da última hora”? (ibidem, p.67). O me-eu
subitamente abre-se (desvanece) para o impessoal: “Tudo fala de mim, e também de ti. Escuta
com atenção. Logo falarão de outros” (ibidem, grifo nosso). O que vai a vida é os outros que
ficam quando desaparecemos. Logo, fazer a experiência do desaparecimento dos outros pode
330
ser do que se trata, enfim, a nefelomancia: adivinhamos na morte dos outros, quando estão
desaparecendo, o que nós não somos, não fomos, mas, também, talvez, o que somos não, isto
é, o que vai a vida. O que acontece no que vai a vida compõe um conjunto de planos (o eu que
vai a vida partido em dois – eu que desaparece, eu que se subjetiva em impessoal¸ exposição
da alteridade em distância). As imagens tornam-se o plano de jogo, no qual ao sermos
lançados, somos desconjuntados, desaparecemos. Olhar as imagens é uma forma de
desaparecer, restando-nos adivinhar o que acontece quando o que vai a vida acontece. A
relação entre a adivinhação e a leitura de imagens, como exercício de desaparecer, não são tão
distintas assim. Falta-nos apenas compreender melhor o que significa esse desaparecer.
(i) Desaparecer pode ser dito também como falso, ou mesmo, um contraposto da
verdade, o fundo, talvez, de onde ela sai. Desaparece o que não é verdadeiro, pois se
verdadeiro fosse se revelaria, apareceria como tal. Só desaparece, nesse sentido, o que está em
devir, o que passa ao largo de uma essência. Mas, também, o que é ilusório, deixando à
mostra o que é essencial. O que desaparece, desaparece para o que é essencial seja revelado.
O desaparecimento, assim, é um trabalho negativo da verdade, como o que não é verdadeiro.
(ii) Desaparecer pode ser dito também como esquecer. O que desaparece é o que é esquecido.
Desaparecer pode ser o contraposto da memória. Se desaparece é porque não há memória,
pois a memória é o aparecer do que não desapareceu. Nesse sentido, o desaparecimento é a
negativa contumaz da memória e, também, do que merece ser lembrado. Juntando-se
memória e verdade, o que desaparece é aquilo que nem é verdadeiro, e, talvez por isso não
merece ser lembrado.
A nefelomancia perturba tal ordenamento, pois busca justamente aí um saber. O que
se revela como saber no não ser, de uma dupla negação? Se a negatividade, ou dupla
negatividade, poderia produzir uma positividade, como se dá na dialética hegeliana, ao
lembrarmos Adorno, tal denegação mais aprofunda a negação do que a afirma. O nem-nem do
desaparecer faz com que o saber, ao qual se dobra, seja atravessado, e não simplesmente
marcado, por um sem-sem, a constituição de uma perda de sentido, porque lhe é retirado o
princípio que parecia fundá-lo. Desnudado de sua imagem dogmática do pensamento, o saber
aparece, comparece, com não-saber. Não a negação do saber, não a recusa de saber, não a
impossibilidade para saber, mas a abertura ao que se revela (a noite do não-saber) no que
desaparece.
[...] desnuda, portanto eu vejo aquilo que o saber escondia até então, mas, se
vejo, sei. De fato, sei, mas o que soube, o não-saber o desnuda mais uma
331
Desaparecer pode significar desaparecer retirando-se (ainda que perda, ainda que
desnudamento). Desaparecer pode significar, ao invés de falsidade e esquecimento, um dar
lugar e um transmitir. Pode-se desaparecer dando lugar ao outro, como acontece com
Enrique Vila-Matas (2009) que dá lugar ao doutor Pasavento e que, por sua vez, dará lugar a
outro, doutor Pynchon, em busca de desaparecer. Desaparecer para ele tem a ver com passar
ao largo, passar ao lado das coisas, até o ponto de ser esquecido, por ausência – sempre feita
escrevendo, voltando-se ao fundo de si mesmo. Pode-se igualmente desaparecer por tiragem,
ao ter a imago feita em cera retirada para transmissão. Fica a imago, desaparece o corpo; fica
a imagem pública, desaparece o sujeito privado; desaparece a posse da imagem (DIDI-
HUBERMAN, 2015k, p.206). Tentar olhar o que não é no que desaparece é estar aberto ao
não-saber. Será por isso que Hegel temia as nuvens, aconselhando-nos a não as olhar, ou
melhor, a esquivarmo-nos delas a fim de focar o sol? Não há retorno nesse modo de operação
diante do que desaparece. Há apenas a possibilidade de fazer desse aberto o lugar de
experiência, de tentar dizer o que não se constitui essencialmente, mas somente o que viaja
como talvez179.
A experiência diante das imagens não parece ser tão distinta. Apesar (ou justamente
por isso) dos esforços de tentar atribuir sentido às imagens (vejamos o exemplo de “levantar o
chapéu” para Panofsky, a partir do qual se delineia todo seu programa iconológico, ao qual
Didi-Huberman tece algumas críticas em Diante da imagem...). No fim, elas se apresentam
diante de nós sempre, talvez sempre, com um resistente talvez. Não que escapem às
possibilidades de interpretação, mas que a própria interpretação é um momento no
movimento da imagem na imagem-movimento (lembrando também o que Octavio Paz disse
do poema em movimento de Mallarmé). Porque ler o que não é quando está desaparecendo é
ler o que está em movimento, o que vai a vida. Ao tentar dizer o que se olha numa imagem,
deve-se ter a coragem de tentar dizer também o que desaparece. Cada palavra, então, guarda o
seu próprio silêncio, constitui-se junto com ele. Dizer o não ser é também dizer o ser não,
dizer o não que nem se sabe. Pode-se, com isso, peremptoriamente abrir o dito e o olhado,
como possibilidades de figurar outra coisa e, por vezes, figurar o que desaparece, figurar o
179
“Inaudita, novìssima a própria experiência que metafìsico algum teria ainda ousado pensar. Ora o pensamento
do „talvez‟ compromete talvez o único pensamento possìvel do acontecimento” (DERRIDA apud VILELA,
2010, p.137).
332
que se perdeu. O tempo desse desaparecimento, já o disse Benjamin nas suas Teses sobre o
conceito de história, é o tempo do poderia ter sido.
O português possui uma intrigante modalidade desse tempo: futuro do pretérito. Esse
modo do tempo verbal diz o que aconteceria no passado se o fato passado tivesse acontecido,
isto é, diz o futuro inacabado de um passado se tivesse tido a chance de se realizar. Um futuro
não existente de um passado desaparecido. Se o seu registro se faz ainda possível (o não ser aí
do que estaria desaparecendo), é porque ele não desapareceu simplemente. Algo restou, uma
imperfeição, ou seja, uma sobrevivência. Sobrevive, entretando, como um não-ser
desaparecendo no limiar da possibilidade. Talvez, esse seja o tempo propício da imaginação:
não do mero e se... mas do talvez: “poderia ter sido dessa forma...”, uma possibilidade, “mas
está desaparecendo...”, uma realidade, “contudo, está desaparecendo como realidade mas não
como possibilidade, “poderia...”, “pode ainda...”, “pode talvez”. Aì o e se... adquire sua
potência imageante de figurar o futuro. Todavia, sempre talvez, em vista do que está se
perdendo.
Por isso, desaparecemos juntos. Somos também tomados por este vagar pelas
imagens e pelas nuvens, “Poderìamos ter sido outros...”. Tudo isso perturba nossa mesa de
trabalho: ao colocar em questão, ao colocar em movimento a questão da adivinhação
(operação da imaginação), o que está desaparecendo, colocamos a nós mesmos nessa mesa;
instituímos planos de composição com os não-saberes que nos aparecem. Jogamos e somos
jogados, como na gravura de Goya, até nos desconjuntarmos, ao ponto de vislumbrar a morte.
Daí, só constituindo juntos um ser em comum é possível chegar a uma configuração possível
(e aberta) das imagens e de nós mesmos. Aí, o que vai a vida é o contato, dilacerante porque
nos arrebenta desse nosso “eu”, proliferados porque nos desmonta, faz com que caìamos
juntos numa trama de subjetivações, que vão dando plasticidade ao que somos, em vista do
que poderíamos ter sido, e, em vista ao que nos perde, num lugar que nem é outro nem é o
“eu”, nem é o desta distância, mas é o que vai a vida.
Maneira maníaca de estar na vida, não apenas entre as coisas, mas estar
absolutamente, ou devir, desaparecendo. Na mesa de trabalho da nefelomancia, o tempo
retrocede como desaparecer (Atazagorafobia), mesmo sabendo-o inevitável, o que só leva à
desolação. Esse é um primeiro modo (demasiadamente moderno?) de ver esse processo de
adivinhação. Mas, supomos, chegar à Apanta seria o modo desse desdobrar que não é negação
(nem permanecer na memória, nem regozijar o porvir), mas desaparecer no meio de todas as
coisas. Belo modo de desaparecer. Mas desaparecer depois de ter escrito180. Desaparecer
aparecendo, ao confundir-se absolutamente com todas as coisas (devir-camaleão, devir-tudo).
Abrir-se ao mundo. Fazer da vida chance. Vila-Matas mostra essa paixão: desaparecer, criar
as condições, os procedimentos (colocar-se de lado, evitar contactar as outras pessoas, mudar
o nome e escrever sobre desaparecer para, finalmente, desaparecer, no que vai a vida181).
Desaparecer, então, como técnica, tal como nos ensina Brecht, toda uma série de
procedimentos (separar-se dos amigos na estação, procurar alojamento, passar pelos pais
como estranho, abaixar o chapéu sobre o rosto, não poupar comida, não permanecer sentado
por muito tempo, não dizer duas vezes a mesma coisa, negar o próprio pensamento se o
encontrar em outra pessoa, não deixar sepultura). Tudo para desaparecer. Desaparecer para
não ser apanhado.
(iii) Desaparecer pode ser dito, então, ocultar-se, procurar não aparecer. Não é
desvanecer, não-ser ou deixar de ser, mas encontrar outros modos de ser, um modo
clandestino de existir: um modo fugitivo, um modo refugiado, um modo revolucionário.
Modos também para viver dos marginalizados (toda sorte de minorias). Modos de devir no
mundo ao ponto do imperceptível, devir de passagem pelo, e talvez para, o infrafino. Devir
absolutamente todas as coisas poderia significar passar entre todas as coisas, entrando em
contato com elas, aproximando-se ao ponto de assemelhar. (iv) Desaparecer pode ser dito,
então, imiscuir-se nas coisas, assemelhar-se a elas, como as phasmes, ao ponto, se preciso for,
de devorar aquilo com que se assemelha, tomando seu lugar. Assemelhar-se na mesma
180
“Desaparecer e ausentar-se ao escrever e escrever para ausentar-se. Talvez agora, com o desaparecimento
radical, chegue a verdadeira hora de minha escrita. Em todo caso, cheguei ao fim das coisas” (VILA-MATAS,
2009, p.295).
181
Vila-Matas (2009, p.410) conclui seu exercìcio de desaparecer assim: “‟Por acaso a natureza viaja ao
estrangeiro?‟, ele me pergunta agora, e parece estar atravessando a luz da bruma nesta alameda situada no fim do
mundo. „Permanecerei aqui. Que motivo poderia ter me arrastado para esta terra desolada, senão o desejo de
permanecer aqui?‟, diz. E se vai. Mas fica, mas se vai. Acaso ficou? Vejo-o seguir seu caminho e vejo como dá
um passo adiante e, pela ruela úmida, escura e estreita, acaba chegando ao seu recanto, e lá, sem som nem
palavras, fica à parte”.
334
medida em que faz o semelhante desaparecer. Ler, então, o que desaparece enquanto se
assemelha, mas não sendo a coisa que desaparece. Adivinhar o que não é enquanto está
desaparecendo, isto é, lançar na mesa de trabalho e remontar com o tempo da imaginação,
com a matéria de não-saber. O que desaparece por fim? Desaparece o próprio fim, ou fins,
desaparece o “eu” (ainda que na desolação ou na angústia [“O não-saber é antes de tudo
ANGÚSTIA. Na angústia aparece a nudez que extasia [...] Evidentemente, o êxtase é antes de
tudo saber apreendido, em particular no extremo despojamento e na extrema desconstrução
do despojamento [...]”, e, mais adiante Bataille (2016, p.86) ainda diz: “No êxtase, a gente
pode se deixar ir [...]”. Deixar ir o que? Ir a vida, no despojamento (abrir mão do sujeito e do
objeto), no desaparecimento. Mas, aí, o pico se revela abismo e o resto é queda.
É o que vai a vida, que se mostra, que se sente, na queda, o desaparecimento sendo
forma do não-sentido que aparece no não-saber, abrindo o saber, enquanto está
desaparecendo: “A obra escrita produz e expõe o escritor, mas uma vez feita não dá
testemunho senão de sua dissolução, sua desaparição, sua defecção e, para dizê-lo
brutalmente, sua morte, da qual por outro lado nunca fica uma constância definitiva”
(BLANCHOT apud VILA-MATAS, 2009, p.297). Desaparecer pode ser dizer, então, o mais
próximo impróprio da verdade. Só desaparece o verdadeiro e só é verdadeiro na medida em
que desaparece. Porque, no final, ou no princípio, o que é importa é o jogo e a distância a
fazer aparecer o que fica nessa abertura que é uma parada: o que vai a vida enquanto fratura,
queda e perda; o peso que assina a gravidade da vida cuja chance aponta (algo desaparece
para que outra apareça) a possibilidade de novos sentidos, novas formas, outros modos de ser.
O risco é gigantesco; é um verdadeiro caos que nos abre ao saber e ao não-saber, demandando
outras categorias para pensar. Desaparecer como as nuvens, mas desaparecer para devir-
outrem.
335
I.
182
Nesse momento, o autor lembra o comentário de Derrida, em A verdade em pintura, sobre a querela entre
Heidegger e Meyer Schapiro a respeito da pintura dos sapatos de Van Gogh: “Cada um diz: eu vo devo a
verdade em pintura e eu a direi. Mas é preciso carregar o acento sobre a dívida e sobre o devo, verdade sem
verdade da verdade. O que eles devem, todos os dois, e o que eles devem quitar nessa restituição dos sapatos, um
pretendendo devolvê-los ao camponês, o outro ao pintor?” (DERRIDA apud DIDI-HUBERMAN, 2015k,
p.210), ao que o autor acrescenta: “A grande virtude desse raciocìnio é manter o ato de restituição fora de toda
atribuição tal ou qual: restituir não é atribuir alguma coisa a alguém para que ele anexe e se privilegie [e sobre
ele prevaleca] um direito privado. A restituição não implica nem anexação nem a aquisição de propriedade
(DIDI-HUBERMAN, 2015k, p.210).
337
própria restituição: não apenas devolver, mas fazê-lo ao “livre uso dos homens”, o que
constituiria o “dom das imagens” (ibidem, p.212-213). Seu processo de devolução deve
também adquirir um sentido, que é o da exposição, qual seja: dar a conhecer o que se passa, o
que não tinha lugar, o que fora censurado, o que se quis esconder. Trata-se, enfim, de um
gesto de emancipação, a fim de constituir um lugar do comum: “a imagem que você vê [voir]
e o que você recebe [rece-voir], você a recebe por bem, você a recebe até o fim? Ela acaba
por ser nossa, tanto minha que te transmito, quanto sua e de todos os outros onde ela poderá
se difundir como bem comum?”, pergunta Farocki, precisada “filosoficamente” por Didi-
Huberman: “em que condições pode-se dizer que um cineasta consegue restituir
verdadeiramente aquilo que ele dá a ver?” (ibidem, p.220). No processo de desmontar e
remontar, deverá haver uma certa atitude de modéstia: não se apossar das imagens, nem
mesmo como o autor, a autoridade, delas, mas sempre em vista do comum, do nós e dos
outros, com vista a dar a ver e dar a conhecer, fazendo concernir a qualquer um. O artista aí
ganha importância, porque, no fim, ele, talvez, seja o que tenha o tempo necessário para tal
trabalho. Pois, é necessário tempo para a restituição.
II.
essas ninfas neguem o movimento, mas estão sempre em vista de uma imobilização, de certa
passividade – por vezes como maneira possível de escapar a uma violência maior, e mesmo
em vista de uma aniquilação –, a qual, ao invés de simplesmente por em movimento seu
corpo, o movimento é o elemento destruidor. Elas não são fúrias, mas vítimas de alguma
fúria. Nessa parada mostra-se, todavia, o elemento virtual que se ocultava sob o movimento:
um outro movimento, um movimento outro – a afetividade. Para tanto, é preciso voltar o
olhar, com mais atenção. Wisława Szymborska (1923-2012) olhou com atenção e afeto para a
mulher de Lot. Na parada por ela executada e com sua punição ocorrida, a poeta, estendendo
o tempo, faz a mulher falar183 – podemos pensar que o verdadeiro contraponto da ninfa seja o
poeta ou o filósofo, sempre com seu olhar e seu pensamento a suspenderem tudo. Teria ela
olhado apenas por “curiosidade”? Tal como o condenado de Satre em O muro: o tempo que
passa, o movimento do pensamento, abre o que não parecia possível, um tempo imaginado, da
imaginação. A mulher parada, a mulher punida, subitamente olha, olha por desobediência.
Talvez olha por esperança. Talvez. Olha distraída por cansaço, por solidão. E aí, sua condição
de ninfa se mostra, quando o vento bate, despenteia o cabelo e agita o vestido. Um momento.
Olha também até por acidente (um tropeço, ou ainda por raiva). É impossível saber
finalmente. Tudo está lançado no possível, no talvez, e no não-saber. No fim, a própria ninfa
entra em dialética consigo mesma, tal como as ninfas modernas do hospital de Salpetrière,
imobilizadas por um páthos, a permitir o registro de seus corpos. O contraposto dessas ninfas
é sempre o fundo de sofrimento (do olhar masculino) sobre seus corpos, desejos e destinos.
III.
Agora, uma vez mais, volto o olhar para a imagem que me acompanha há, pelo
menos, seis anos. Mesmo quando não a olho, porque às vezes não tenho a devida força para
183
Dizem que olhei para trás de curiosa. / Mas quem sabe eu também tinha outras razões. / Olhei para trás de pena pela tigela
de prata. / Por distração – amarrando a tira da sandália. / Para não olhar mais para a nuca virtuosa. / do meu marido Lot. /
Pela súbita certeza de que se eu morresse / ele nem diminuiria o passo. / Pela desobediência dos mansos. / Afetada pelo
silêncio, na esperança de Deus ter mudado de ideia. / Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro. / Senti em mim
a velhice. O afastamento. / A futilidade da errância. Sonolência. / Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão. / Olhei
para trás por receio de onde pisar. / No meu caminho surgiram serpentes, / aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres. / Já
não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia / serpenteava ou pulava em pânico consorte. / Olhei para trás de
solidão. / De vergonha de fugir às escondidas. / De vontade de gritar, de voltar. / Ou foi só um vento que bateu, / despenteou
meu cabelo e levantou meu vestido. / Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma / e caíam na risada, uma vez,
outra vez. / Olhei para trás de raiva. / Para me saciar de sua enorme ruína. / Olhei para trás por todas as razões mencionadas
acima. / Olhei para trás sem querer. / Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés. / Foi uma fenda que de
súbito me podou o passo. / Na beira trotava um hamster apoiado nas duas patas. / E foi então que ambos olhamos para trás. /
Não, não. Eu continuava correndo. / me arrastava e levantava, / enquanto a escuridão não caiu do céu / e com ela o cascalho
ardente e as aves mortas. / Sem poder respirar, rodopiei várias vezes. / Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
/ É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade (SZYMBORSKA, 2011, p.56-57).
340
tanto, penso nela, escrevo sobre ela ou a partir dela184. Ela colocou tudo isso em movimento;
ocupou-me por tanto tempo que eu não sou mais o mesmo, não é mais possível... Voltar o
olhar, olhar para descobrir o que esqueci, o que modifiquei ao longo do tempo em que não
olhei, e o que passei a notar depois de certo tempo, faz com que o trabalho de olhar torne-se
um movimento de contato, com o qual compareço, na medida em que escrevo. E, por vezes,
não quero escrever, ou mesmo pensar nisso. Porque comparecemos, eu e a imagem de
Claudia, num espaço que nem é dela (da mulher-Claudia), porque quem comparece é a
imagem – é a imagem de um suposto-corpo; por outro lado, nem é “eu” porque não me
reconheço nela e reconheço o espaço como estranho a mim, a meu próprio corpo.
Compareço apenas por um profundo estranhamento, por uma distância quase sempre
abissal. Primeiro, há estes significados da imagem que nos cercam e que, por isso, nos
separam: mulher-negra-mãe e homem-branco-filho. Depois há os significantes da imagem:
corpo, silêncio, movimento, traços, trecho e tudo que nos atravessa, separando-nos por
estratos, por trajetos, por discursos, por destinações e por visibilidades. Temos um homem a
filmar e homens que a recolhem. Sou a cor e a voz do algoz. O sujeito e agente do olhar. Ela,
desnudada e olhada, entregue e exposta. Entre nós, mais distâncias: a do obturador da câmera
e a do vidro da janela do carro. Há todo o silêncio e há todo o trajeto: um silêncio da imagem
(cortado apenas pelo ruído do homem tentando esconder a câmera, com medo), um trajeto
perturbador, de irritar a pele. No fundo há também o odor (tudo imaginado, ou talvez,
experenciado: lembraças das vezes em que senti algo queimar de dor, por atrito [uma tampa
arrastada na calçada, uma queda de bicicleta], coisas que emergem enervando o corpo,
memória do corpo). Tudo aparece como indícios (o visual do visível).
Um plano aí se configura. Um plano composto de muitos planos: plano do
observador/olhante, coincidindo com quem olha de fora; plano do trajeto/traço/trecho (o
sintoma-imagem-movimento) a perturbar toda a cena. Se na imagem de Goya, as crianças
estão desconjuntadas por lançamento – mal se vendo os membros (órgãos sem corpo), aqui a
diferença está na trajetória, não ascendente, mas horizontalizada, constituindo linha, traço de
escrita. O corpo escreve com o sangue. Uma página capaz de se sustentar? O corpo está
igualmente desconjuntado (não corpo sem órgãos). Uma matéria informe a perturbar o plano;
184
A primeira tentativa, “Um trecho em nós: por Claudia”, está publicado em Escrerver no estado de exceção
(2017); a segunda tentativa está publicada na revista filosofia de dunas, com o tìtulo “Revolver uma imagem”
(disponível em: https://filosofiadedunas.wixsite.com/filosofiadedunas/filosofiadedunas1, p.17-65), a qual gerou
uma montagem apresentada na Revista Raimunda 9 (2017) (disponível em:
https://revistaraimunda.wixsite.com/revistaraimunda/raimunda9); uma terceira tentativa, por fim, está em “Da
carne à carne”, publicado nos Anais da Mostra PET 2017 (disponìvel em:
https://mostradepesquisa.weebly.com/ediccedilatildeo-atual.html). Muitas referências e comparações devem-se a
esses trabalhos.
341
O plano do céu não tem nuvens. Como ver o que está desaparecendo para saber? O plano do
céu torna-se fundo opaco, fechando a cena, como uma tampa de panela. Não há saída pelo
alto. Há apenas dobra aí dentro. Tudo se dobra como as vestes e as nuvens da Santa Teresa de
Bernini – dobra de dor. O corpo (demos esse nome por questão de empiria: já sabemos de
antemão tratar-se de um corpo) toma a cena, porque ela mancha a tela. É a própria mancha, a
mancha-ferida ali. Isso faz dentro e fora serem atravessados. Diante e avesso também:
estrelamentos de Hantaï ou mesmo os de Adriana Varejão185, dobras de impotência, dobras de
perturbação. Algo liga o corpo ao veículo, prende-o o suficiente para marcar. Linhas se
configuram, não de fuga (já não há fuga dali), e podem atravessar, virtualmente, a porta da lei
(aí, as linhas fogem, deixando o corpo para trás), propagam-se pelos planos do vidro e mesmo
tocam no fundo da imagem – a superfície – o plano do céu. Uma grande caixa aí se configura:
o cubo de Giacometti, a caixa de Tony Smith, e também os casulos de Ligia Clark. Podemos
dobrá-los: o plano do céu sobre o plano do trajeto? O que desaparece é a vida, o que se
escreve aí é a morte. E ambas se expõem, são expostas. O corpo-ferida é o ser em comum
exposto. E ele aparece informe no seu deslocamento, em direção à morte.
185
Como desdobramento dos textos anteriores, acabei encontrando-me com as obras de Adriana Varejão, as
quais me ajudaram a olhar melhor a imagem. Uma relação está mais presente no já citado “Da carne à carne”,
mas há também um trabalho mais atento à obra dessa artista, que nunca perdeu de vista todo o trabalho aqui, no
texto, também publicado em filosofia das dunas, intitulado “O fundo da pintura em Adriana Varejão” (disponìvel
em: https://filosofiadedunas.wixsite.com/filosofiadedunas/filosofiadedunas2, p.18-32).
342
Tudo é controlado. Como queria Hegel, nada que afete demasiadamente a face e
impeça o humano, um ser de ideia, de manifestar-se, de mostrar-se como parte do espírito,
mesmo que na hora da morte – hora que não impede nem mesmo seus heróis de falar. Os
signos de revolta são absurdamente controlados. Não se sabe o que fazer com quem só
consegue chorar, expondo-se nesse momento de fragilidade, coisa que pode contagiar gente
demais. Uma autêntica perturbação da notícia. O caso do menino sírio resgatado de
escombros, ferido mas impassível na sua imagem, parecia ser um candidato a suportar, mas,
com o tempo, a poeira misturada ao sangue da criança começa a inquietar o olhar; mostra-se
como um significante de sofrimento, de uma violência avassaladora, que não destrói o corpo,
mas certamente fraturou o espírito. A imobilidade da criança mostra-se subitamente como
uma letargia diante da vida; a queda numa tragédia. Por isso, a imagem foi mostrada sempre
acompanhada de uma narração em off, desejando detalhar e explicar a situação, para que,
verdadeiramente, não a olhássemos. Basta um fremir para atiçar as cinzas da indiferença, para
aparecer uma centelha. As palavras podem soterrar ainda mais. A imagem-Claudia, quando
mostrada, aparecia sem a parte mais nítida e, logo, a mais perturbadora, porque se reconhecia
o corpo, adquiria-se uma certeza de morte. Encotramos tão somente um borrão, uma macha.
Há um discurso que o precede, outro que o narra e um outro a explicá-lo.
As imagens nunca estão sozinhas, ou melhor, nunca estão livres. Nunca são
mostradas para se olhar, mas tão somente para acatar a interpretação formulada. O que vemos
é o que nos disseram para ver. O esforço de mediação é também medicação da compreensão.
Torna-se, praticamente, uma questão de gosto, capaz dos pequenos abalos. Tanto se poderia
evitar se houvesse mais sinceridade, se os limites não fossem barreiras. Um exercício de
parresia186, talvez. A mediação torna-se medianidade e não medialidade. Pode-se pensar por
um estatuto do gosto, do desenvolvimento do juízo de gosto, na contenção, na moderação e na
oportunidade precisa da manifestação dos sentimentos. Tudo que saí, o que se coloca fora, o
que salta num arroubo é mau gosto. Mesmo as imagens de sofrimento não deveriam escapar à
etiqueta (a estética docilizada e contoladora). Mesmo quando se mostra como borrão no
vídeo, subsitui-se rapidamente pelo retrato: o rosto impassível, neutro, da fotografia 3x4.
Reconhece-se o aspecto humano, mas na medidanidade do padrão homogeinizador –
186
Michel Foucault no último curso dado no Collège de France, entre 1983 e 1984 tratou da parresia, a coragem
de dizer a verdade, não importa a situação de risco. Aí, o autor não apenas traça as modalidades de parresía
(socrática, cínica, estoica e cristã), como elabora isso como uma forma de vida. Isto é, não ter a coragem da
verdade não seria apenas uma forma de discurso, mas a adoção de uma forma de vida, que se conjuga com a
própria verdade como modo de viver, que é também uma “ousadia polìtica”, a qual “consiste portanto em dizer
algo diferente, algo contrário ao que pensa a Assembleia ou o Príncipe. [...] é pela verdade que o homem
político, se for corajoso, arrisca a vida. Está aí, muito esquematicamente, a estrutura do que poderíamos chamar
de a bravura política do dizer-a-verdade” (FOUCAULT, 2011, p.205).
344
protocolo aceitável, ainda que a singularidade do rosto apareça (o que pode perturbar). Claro
que o retrato compondo com a imagem acaba por tornar ainda mais cruel o acontecimento. O
corpo é exposto ainda mais nu, ainda mais material, ainda mais animal. Agamben (2014b) é
quem diz que o que diferencia os homens dos animais é ter esses últimos sua identificação nas
marcas corporais, enquanto para os humanos foca-se o rosto, onde tudo se concentra, tanto
que, na história da arte, a cabeça sem corpo produziu os retratos e o corpo sem cabeça,
produziu a nudez. Nessa nudez187, o corpo devém animal, quer dizer, encontra seu devir-
animal188. O que pode esse corpo, então? O que pode ele no seu devir-animal?189 Pode uma
liberdade, isto é, o poder de exposição (expor-se e ser exposto) com justiça, nem que seja para
fazer-lhe memória?
Temos um corpo-mancha-borrão sem cabeça; corpo-ferida, com suas marcas – esse
corpo identifica-se com suas marcas, as feridas expostas; corpo dobrado, como curvado,
deitado, numa posição de esmagamento, de uma força presente pela maneira como deixou o
corpo, lançado à porta aberta da viatura, de onde se vê um ponto de luz apontando para o
plano do céu, um fundo-sombra - porta de sombra cerrando a porta aberta. Nem se pode sair,
nem se pode entrar – faz traço, arrastada, abrindo um limiar. Nem sempre o limiar é uma
escolha. Resta a mudança, porque não há retorno possível (situação do refugiado, por
exemplo). O traço é vestígio de passagem e passagem de um vestígio. Devir-ferida, devir-
carne: as pinturas de Francis Bacon e os quadros de “Azulejos em carne” de Adriana Varejão
– devir-tumor; fazendo o dentro constituir-se como diante e o fora superfície borbulhante;
para além dos estrelamentos, tumores, corpo doente, invadido, porém de fora, da exposição
desse corpo à violência, ao arrastamento. Devir-dor do corpo, mas do corpo feito imagem.
Devires que instituem o visual do visível: vemos o corpo-ferida, no qual se pode olhar o que
aí se abre: a carne feita ferida, a ferida apossando-se do corpo, a ferida fazendo-se corpo-
tumor, a massa disforme que toma conta para sobreviver, colocando-se em formação. A célula
dobra sobre si mesma, multiplica-se e revolta-se. Esse devir-tumor excede a imagem,
187
“A nudez do corpo humano é a sua imagem, isto é, o tremor que o torna cognoscìvel, mas que permanece, em
si, inapreensível. [...] E precisamente porque aimagem não é coisa, mas a sua cognoscibilidade (a sua nudez),
não manifesta nem significa a coisa; e todavia, visto que não é mais do que o doar-se da coisa ao conhecimento,
o seu despir-se das vestes que a cobrem, a nudez não é diferente da coisa, ela é a própria coisa” (AGAMBEN,
2014b, p.121).
188
“[...] o animal é inseparável de uma série que comporta o duplo aspecto progressão-regressão, e onde cada
termo desempenha o papel de um transformador possível da libido (metamorfose)” (DELEUZE E GUATTARI,
2017a, p.15). E, mais adiante dizem: “O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele
devém [...]” (idem, p.19) E ainda: “Não devimos animal sem um fascìnio pela matilha, pela multiplicidade”
(ibidem, p.21). Um desejo de se conjugar com a diferença para devir no mundo, de uma multiplicidade de
maneias que não o do “eu”, sozinho e sempre se identificando consigo mesmo.
189
“Ou parar de escrever, ou escrever como um rato..” (DELEUZE E GUATTARI, 2017a, p.21). O devir-animal
permite a variação e participação para se continuar falando quando não parece mais possível.
345
demandando uma constelação capaz de abarcar sua lógica: a violência – Nan Goldin com seu
olho vermelho, marca e mancha de um espancamento; a imagem-contato. O vermelho da
roupa de Claudia: vermelho da carne ferida semelhante ao olho da artista. O olho torna-se
háptico. Ele toca e é tocado; a imagem toca e é tocada, por esse vermelho que faz carne de
imagem e convoca a própria carne de quem vê a comparecer. É preciso olhar atento, dar
atenção: “No fundo, o problema das imagens não é que careçam de realidade. O problema é
que a realidade careça da potência para produzir suas imagens. É o risco do delìrio”
(PELLEJERO, 2018, p.74). A realidade ali freme, na sua própria carência (de confecção, de
registro, de olhar. Mas tudo isso a torna mais urgente, mais fenomenológica, mais sentido-
somà). Ambas, imagem e realidade, estão atravessadas, uma produzindo a outra, nessa
carência:
Tremor de que somos carentes: carentes de tempo, para ser mais preciso. Não
notamos a passagem facilmente. Ela pode ser infrafina. É o contato infrafino que se configura
na imagem: o contato entre a pele e o solo, do qual “resulta” a carne. E esse contato repete-se
perpetuamente enquanto olhamos. É um instante da realidade e a realidade de um instante. O
corpo desdobra-se e prolifera-se nesse delírio. A imaginação se faz necessária. Para saber um
pouco mais é preciso imaginar, caçando os traços que nos permita seguir a linha, ao custo,
sempre, de abrir feridas. O corpo devém animal, a partir de sua ferida, multiplicando como
um enxame: lembrando o cubo de Giacometti que se desdobra em prisão e em casulo,
podemos pensar um devir-larva, devir-casulo (o encapsular em vista de uma metamorfose:
saída da carne, entrada na imagem) a tornar-se um devir-mariposa a se queimar na chama, ao
abandonar-se ao fogo. Mas ela, Claudia, certamente não se deixou seduzir pela chama, pelo
fogo da arma. Ela foi apanhada, capturada, no meio, seu corpo devindo, talvez, alvo, com uma
marca de morte (filha de Caim, marcada com sua cor, sua cor convertida em alvo, a mancha
indelével da culpa e da culpabilidade). A bala já assinava seu nome antes mesmo dela ser
moldada, e mesmo antes de saber; a bala já inscrevia sua punição no corpo antes mesmo que
ela tivesse a chance de decifrar. A máquina kafkaniana aparece como o sonho não mais
346
(tradução utilizada por Lacan, por vezes, para o Trieb freudiano) o que garante sua força
pulsional de persistência. O indício dessa linguagem em pulsão, ou impulsionada por uma
palavra, pode permitir à imagem vicejar nos planos não imaginados, ou impedidos, seja pelo
silêncio tumular, seja pela palavra de controle do sentido. A palavra, por sua vez, e sua
tomada deve visar isto: só se faz justa, na medida em que se lança de volta ao corpo; assume a
corporalidade do contato como fundamento de sua apariação.
A palavra deveria mais aparecer e fazer comparecer junto ao corpo do que o
simbolizar, constituindo seu túmulo, porque, no fim, o corpo é sempre o limite da palavra.
Quer dizer, o penúltimo. Para limiar, qual seria o último? A imagem como aparição da
cognoscibilidade nua, a própria coisa. Ela se coloca entre o real e o significado, como um dom
ao outro, dom do conhecer, instituindo aí o limiar que permite ao corpo e à palavra
encontrarem-se, ainda que em tensão, sem redução de um ao outro. Isso significa ser
necessário o esforço de criação de práticas de liberdade, tanto para o corpo como para a
palavra, nesse lugar que é o da imagem. Não qualquer imagem: imagens dialéticas, ou
imagens críticas, na acepção de Didi-Huberman, aquelas que criam, além de imagens críticas,
críticas das imagens. Trata-se, enfim, de imagens em crise e crise pelas imagens. Nesse
campo, primeiro, saber olhar para a imagem de maneira heurística: olhar (adivinhar) o que
não é no momento em que está desaparecendo constitui um exercício da faculdade da
imaginação, ao qual se acompanha um exercício de tomada de palavra, na modalidade do
futuro do pretérito, o modo de ser literário da heurística no momento de sua exposição.
Imaginar o que se poderia ter dado no que está desaparecendo é instituir linhas de fuga para a
elaboração de hipóteses.
As hipóteses são as mônadas dobrando sobre si mesmas, vagando e errando pelo
campo aberto das possibilidades; criando e montando e recompondo um plano em quem o que
não foi e não é perturba a realidade, fragmentando-a, ao mesmo tempo em que a enriquece,
fazendo dela chance. As imagens aparecem como saltos ou lampejos da junção dessas
distâncias, dando corpo às possibilidades em suas distintas realidades. Realidade distante,
mais ainda sim realidade – delírio, que pode ser simplesmente um fora do enquandramento
existente, campo de não-saber. Ao adivinhar o que não foi e o que não é, a realidade se
transforma numa mesa, num móbil capaz de ser alterado. O desaparecimento configura-se,
então, como alteração: o visível que se faz virtual para, em seguida, fazer aparecer o visual, o
outro do visível. O visível não desaparece meramente – nenhum desaparecimento é absoluto,
porque fica sempre algum vestígio, apenas ocultado – mas é abstraído, ou seja, colocado à
distância para fazer plano de composição com o visual. O que acontece é alteração (não a
348
conversão de uma forma em outra, mas o aparecimento do próprio movimento) que apresenta
o informe.
A imagem-movimento de Claudia é a imagem do informe e, ao mesmo tempo, a
forma de sua alteração. Seu corpo desconjuntado é a exposição da própria condição de um
corpo e de uma imagem: na morte, no seu limite rompido feito limiar, o próprio devir-outrem
comparece na sua desordem, nem proximidade da semelhança, nem distância do fora absoluto
(transcendental, metafísico até), mas um topos demandando de nós seus traços, sua escrita, a
fim de compor um campo de sentidos, para pensar e falar, mesmo que além do que podem
sustentar tanto o pensamento quanto a palavra. Aqui a imagem constitui o gesto daquele que
nem, necessariamente, pensou, nem nunca tomou a palavra (o “cinegrafista amador” jamais se
pronunciou sobre o ocorrido), mas suportou o gesto de realizar uma imagem. Ainda que em
movimento, todo o discurso ficou fixado: uma série de “signos guilhotinados” como
denominou Tatsumi (apud UNO, 2018, p.183), cortados, não para integrar alguma
constelação de sentidos, mas para impedir qualquer desdobramento, qualquer afloramento de
sentidos e de revoltas; para mostrar que tudo está num “movimento incessante do visìvel e
minha visão móvel. Não há objeto fixo nem conteúdo, há apenas forças invisíveis tornadas
visìveis” (UNO, 2018, p.43). O trabalho consistiria, então, “em medir o incomensurável e
fazer aparecer a desmesura” (idem). Medir é a forma de encarar a própria vida: “As distâncias
não cessam de variar. O mundo é sempre constituído pela profundidade imperceptível,
imensurável [...] Porém, medimos em vão, sem medida, mal captamos o imensurável ao
medir” (ibidem, p.46).
Medimos a distância incomensurável daquela morte a nós e de nós a ela, de modo a
instituir um mundo que é essa profundidade de relações incomensuráveis. Como Duchamp
que inventa a medida de seu metro, devemos inventar as nossas medidas, a fim de instituir
algo que vai ao outro e retorna a nós, como diferença na sua variação. É essa desmesura que
se apresenta feito corpo, imageada, na medida em que está desaparecendo. Olhamos para o
que não é, a fim de imaginarmos, a fim de medir a distância dessa vida para outra vida que é a
outra dessa mesma, sem dela sair. Armar o olhar para fugir e, na fuga, arranjar uma arma. Por
isso, as nuvens são o paradigma, e não o sol, como alertava e queria Hegel. O corpo aí é o
metro de medida: mede o trecho do arrasto, mede a distância da porta aberta, mede a relação
com os homens que a carregam, mede a cor de sua pele, mede toda política e mede a própria
medida. E daí, mede o mundo inteiro. O quadro que a enquadra (o vidro da janela – vidro que
segundo Duchamp permitia à cor não desvanecer facilmente, e ao mesmo tempo, daria a ver o
“outro lado”) e a tela que enquadra o quadro e o quadro da viatura que a tem à margem, e os
349
quadros das janelas a enquandrarem também, logo ao lado, não amarram sua capacidade de
medir. Seu corpo como medida mede tudo e atravessa tudo medindo. Nada está incólume a
esse corpo-ferida caído. Ao medir no movimento, mede alterando. Nem o céu escapa, nem o
mundo escapa. Tudo é medido, tanto como ponto de perspectiva, como o corpo de onde parte
e para o qual volta, quanto pela grade que rompe o ponto, pelas linhas do horizonte e linhas
verticais do arraste atravessadas, criando planos: topografia do espaço, inscrição do sangue no
lugar de sua origem e de seu acontecimento e processão pelo plano, cartografando as regiões
do subsolo e dos céus, os terrenos, os buracos, as elevações, os declives. Paisagem de
sofrimento suportado por um mapa de dor. Muitos nomes poderiam ser inscritos aí190. Abre-se
um devir-multidão cindido do sofrimento: “Estar inteiramente na multidão e ao mesmo tempo
completamente fora, muito longe: borda [...]” (DELEUZE E GUATTARI, 2019, p.55).
Cada imagem aparece, então, como a medida incomensurável de outras imagens,
cujas medições também se realizam com essas. Medir é colocar em contato e é, também,
colocar em relação, traçar passagens de uma a outra relação e medida. Como se faz da
passagem de uma estrela cadente. A experiência está na passagem, na medida, no tempo que
se mede, e não nos pontos fixos. Estabelecer ponto fixo é separar e tornar sacro, de maneira a
desviar o olhar, ou mesmo fechar, não para ver a imagem, mas para rezar em nome da
Ausência191. Não é a ausência que aparece quando a coisa desaparece, mas o desaparecimento
mesmo, enquanto se ausenta. Esse ausente, poderíamos dizer ainda com Didi-Huberman
(2015h), é o sopro, o fôlego, o ar que se toma entre uma palavra e outra, ou o que garante a
190
“A perspectiva era a demonstração de como a realidade e sua representação podiam sobrepor-se num mesmo
plano, de como se relacionavam efetivamente entre si a imagem pintada e seu referente num mundo real – sendo
a primeira uma forma de conhecimento do segundo –. Na retícula tudo se opõe a essa relação, abortada desde o
primeiro momento. Ao contrário da perspectiva, a retícula não projeta o espaço de uma habitação, de uma
paisagem, ou de um grupo de figura sobre a superfície de uma pintura. De fato, se projeta algo, projeta a
superfície da pintura em si. Trata-se de uma transferência em que nada muda de lugar. Poderia-se dizer que as
qualdiades físicas da superfície transferem-se às dimensões estéticas da mesma superfície. E, como se
demonstrou, aqueles do plano – físico e estético – resultam ser o mesmo plano: coextensivo e, através das
abscissas e ordenadas reticulares, coordenado. Visto dessa forma, o fundamento da retícula nos remete a um
aberto e decidido materialismo” (KRAUSS, 2015, p.28, tradução nossa). Seguindo uma topografia é possìvel
estender esses planos de retículas e compor estratos de saber, contato que altera a própria estrutura, sempre
movente. Krauss está preocupada com esse elemento de diferenciação da arte moderna em relação à tradição, o
que não a deixa imaginar as possibilidades de relação e criação de trajetos.
191
“Como inventar um objeto fascinante, um objeto que tem o homem em respeito? Como inventar uma
visualidade que se endereça, não à curiosidade do visível, ou mesmo a seu prazer – mas a seu desejo unicamente,
à paixão de sua iminência (palavra que, sabe-se, se diz em latim praesentia)? Como dar à crença o suporte visual
de um desejo de ver o Ausente? É isso o que o clero e os artistas religiosos da Idade Média bem tiveram que, em
algum momento, se perguntar. E eles chegaram em algum momento a esta solução radical, tão simples quanto
arriscada: inventar um lugar, não simplesmente oco, mas deserto/desertado [déserté]” (DIDI-HUBERMAN,
2015g, p.20).
350
192
O ar torna-se uma pertinente questão, pois ele é o veículo da palavra: é aquilo que a suspende, corta-a e leva-a
até o outro, “não apenas o veìculo da palavra [...] mas também o meio por excelência do figurável, o movimento
mesmo, atmosférico e fluìdo do inconsciente como tal” (DIDI-HUBERMAN, 2015g, p.15). O ar é também
matéria que “se respira e se modula a frase de nossa palavra, de nosso pensamento” (idem, p.14). A partir disso,
Pierre Fédida, na concepção do autor, teria inaugurado sua prática, como uma “virada de fôlego”, que nos poria
em relação com o dizer, seu processo, e não somente com o dito: “o dizer [...] sugere uma „respiração abrindo-se
ao outro e significando aos outros sua significância mesma” (ibidem, p.16), isto é, um meio de fazer chegar ao
outro e colocá-lo no espaço desse sopro, capaz de abrir à tormenta, arrastando-nos à experiência inquietante
desse sopro, como uma espécie de “dramatização” ou “contágio”. A mesma palavra que, dita, poderia curar ou
matar alguém no período da peste, de tal maneira que a proliferação de rezas, encantamentos e meios de proteção
do contato com o ar e com a palavra faziam dessas relações algo de materialmente brutal e apavorante, na
experiência mesma dessa possibilidade de contágio. Imaginemos que tal situação dá corpo ao que disse Bataille
[2016, p.45]: “a diferença entre a experiência interior e filosofia reside principalmente no fato de que, na
experiência, o enunciado não é nada, apenas um meio e mesmo, tanto quanto um meio, um obstáculo; o que
conta não é mais o enunciado do vento, é o vento”. Nessa perspectiva, a palavra ganha movimento e torna-se
uma forma de contato, não apenas discursivo, mas também patético. A palavra abre-nos ao páthos, e como o
vento, adquire a potência do contágio, que pode fazer a palavra tornar-se elemento de seu próprio silêncio, ou de
sua alucinação. Um elemento de cesura ou de intermitência e um elemento de sintoma.
351
visualidade), de tal modo que, ao olhar, suportando e assumindo o olhar como gesto e ethos
da política de exposição, a imagem derruba tais protocolos, demandando procedimentos e
fazer do visto um isto a colocar em questão. Nessa guerra contra as imagens, as imagens
fazem-se máquinas de guerra. E, no fim, qualquer imagem guarda a potência de compor tal
máquina contra os poderes. Primeiro, por sua capacidade de impotência: ela pode nada
modificar, pode passar sem ser notado, como bem pode também ser soterrada e permanecer à
espera de uma recuperação, do encontro fortuito, e aí, passar ao largo, como o que estava
desaparecendo, dos holofotes do poder – ficarem cegos por não saberem olhar. Pode, em
segundo lugar, igualmente levantar a cólera, como registro e aparição de um sofrimento
perpetrado, documento de um passado vivido na dor e como dor, a partir do qual se pode
acender a centelha da memória e dar azo à revolta, como prova e como experiência. E ela
pode, em último lugar, estar entre os dois, entre a impotência e o poder de revolta: como gesto
configurado de um tempo suspenso e paradigmático de um acontecimento – uma ferida aberta
no sol do saber e no solo da política a engolir, em seu fundo, em seu abismo, o poder que a
configura. A violência dessa iluminação e a clareza desse discurso caem juntas com aquele
corpo, inerte, mas resistindo com sua materialidade informe. A alteração se faz massa, forma
e matéria do não-saber exposto aos outros. Aquela morte, que poderia ser a morte-vazio de
Amarildo, torna-se a morte-ferida a abrir a profundidade para o peso de todas as mortes. Uma
morte chama pelas outras mortes. O silêncio no vídeo parece, talvez, o silêncio das sereias de
Kafka, a penetrar ainda mais profundamente nossos ossos, pois não há proteção alguma contra
o silêncio193. Resta-nos, talvez, a atitude de Ulisses, fingir que não ouviu e superou, ou o
trabalho de elaboração desse lugar desertado e deserto onde linhas ressoam e ecoam pelo
plano, elementos infrafinos que passam e povoam o mundo nos limiares: poeria e ar.
Esse saber trágico põe em questão todo saber, fazendo-o vacilar, e ganhar corpo,
como ganha corpo os olhos de Frenhofer quando transbordam de lágrimas. Se a superfície da
imagem não é suficiente para dar-lhe corpo, então, as lágrimas, como a cólera, cumprem a
função de fazer isso. As imagens apresentam-se como a cognoscibilidade de um corpo-ferida
que dá a conhecer a potência desse corpo, desde que alguém suporte-o e assuma-o. O suportar
é da ordem do páthos: suportamos com nossas dores; suportamos sofrendo juntos,
comparecendo nesse sofrimento e assumindo a tarefa de expor esse comparecimento,
193
“As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter
acontecido isso, é imaginável que talvez alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente
não. [...]” (KAFKA, 2002, p.104) E mais adiante: “E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não
cantaram, sejam porque julgavam que só o silêncio poderia ainda conseguir alguma coisa desse adversário, seja
porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes – as
fez esquecer de todo e qualquer canto” (idem, p.105).
352
levantando-nos em nome dos que caíram. Isso, com risco, de realizar o gesto de assumir o que
se suporta, inclusive com o corpo, mas também com o pensamento. Assumir o que se suporta
e tomar a palavra para que o gesto propague-se e devenha formas. Quais formas, então? O
trabalho da montagem, compondo com obras que exponham o que não se vê na imagem –
abrir a imagem ao seu visual, fazendo com que os outros tenham conhecimento. A forma é
composição da montagem com a tomada de palavra, todo o esforço de pensar essa imagem,
criar linhas, abordar certos conteúdos que se desdobram da imagem ou conteúdos que se
voltam para ela. Seria possível escrever sem fim, medir sem fim, escrever e medir, ao mesmo
tempo, como uma coisa só194. Escrever para dar a conhecer a imensurabilidade da medida,
sem determinar, porém, seus usos. A imagem aparece aqui numa composição, num discurso,
numa forma política. Que forma política essa imagem tem a oferecer, a dar-nos a conhecer?
Um ethos, um olhar de transformação. Já o disse Benjamin: o espanto não é mais uma questão
verdadeiramente filosófica. Mas o que podemos fazer para transformar o que agora espanta,
não porque nos choca (a experiência do choque é uma experiência moderna que leva,
concomitantemente, à indiferença), mas porque nos coloca em movimento, obriga-nos à
alteração.
Todas as imagens desse tipo: vejamos o exemplo do caso Dandara dos Santos,
mulher trans, espancada e filmada em sua tortura, exposta e visibilizada justamente no
momento de sua morte, quando seu corpo é outro corpo-ferida. Ela é a imagem desse processo
de alteração, um corpo-como-alteração. Quem não suporta a alteração como forma da
existência só enxerga ódio onde não é capaz de olhar e conhecer, no momento do próprio
movimento. Vendo na alteração, sem conseguir olhar, um fora de quadro, a imagem perturba
profundamente, restando a esse sujeito destruir (ou negar) para que a estrutura mantenha-se.
Tal perspectiva foi formulada por Suely Rolnik (2018) em Esferas da insurreição, a partir da
experiência com a fita de Moebius numa obra de Lygia Clark, intitulada “Caminhando”.
Nesse experimento, há dois caminhos: cortar a fita seguindo a estrutura preexistente,
repetindo-a na sua mesmidade, ou, cortar de outro modo, produzindo outras formas. A autora,
então, pensa essa estratégia artística a partir das subjetividades195. Há quem, mesmo
reconhecendo as falhas, continue reproduzindo o modelo existente em vista da própria
194
“Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda
por vir” (DELEUZE E GUATTARI, 2019, p.19).
195
“[...] como formas e forças embora distintas são inextrincáveis, constituindo uma só e mesma face da
superfície topológico-relacional de um mundo, tais capacidades operam simultânea e inseparavelmente na trama
relacional que se tece entre os corpos que a constituem a cada momento [...]” (ROLNIK, 2018, p.50). Vale
salientar que, na perspectiva de Rolnik (2018, p.110), a subjtividade não se reduz à condição de sujeito. Ela é,
muito mais, uma constituição existente “pelos efeitos das forçasdo fluxo vital e suas relações diversas e mutáveis
que agitam as formas de um mundo”.
353
conservação – os trajetos já são bem definidos, mesmo que faça sofrer. E há quem se ocupe e
suporte o novo. Temos, pois, subjetividades conservadoras196 e subjetividades
revolucionárias. O que Rolnik (2018) nos ensina, a partir desse experimento, é que o primeiro
tipo torna-se praticamente incapaz de compreender e de desejar, ou mesmo conseguir olhar, as
alterações – pode, inclusive, violento, agir em prol da conservação da estrutura de poder,
sendo esse sua forma de desejar. O poder do capitalismo está em preservar, por vezes, essa
estrutura subjetiva, que a autora denomina como cafetinagem. É o que se dá no processo de
conhecimento diante dessas imagens: incapazes de experimentar empatia perante a alteração
que tais corpos expõem (cada um a sua maneira), resta a tais sujeitos a violência ou a
indignação vazia, absolutamente distanciada, mais marca de alívio do que de cólera – no
fundo nem compreendem, nem desejam compreender, nem seriam capazes de o fazer. O
processo de cafetinagem é tão perverso que ela subjuga os desejos, não só destruindo-os, mas
transformando-os num modo reativo e incrivelmente despotencializante diante da própria
pulsão de vida. Diante dessas imagens descobrimos o quanto podemos estar mortos, mas de
outra maneira: nossas pulsões vitais, nossos desejos pela variação são expostos como uma
experiência impossível, senão absurdamente limitados e incapazes de atingir qualquer nível
de conhecimento, qualquer forma de aparição. Ao não comparecermos nessa política da
exposição é a nós também que fazemos ausência diante do ser em comum que nos abre
visualmente.
Deixar de dar atenção às imagens, a tais imagens, significa uma questão de perda. Ao
ler o que não é no que está desaparecendo, abrimos mão da distância que nos funda num
plano de composição da imaginação, das próprias possibilidades de vida – uma espécie de
desconjuntamento fundador aberto. Abrimos mão do que nos faz perder, do que nos altera,
permitindo-nos a experiência de devir-outrem, isto é, devir a multiplicidade, uma espécie de
“mundos larvares” a habitarem nossos próprios corpos, pois, “o mundo vive efetivamene em
nosso corpo e nele produz germens de outros mundos em estado virtual” (ROLNIK, 2018,
p.54). Esse devir-larva197 parece pulsar na imagem. Estamos diante de um corpo-ferida
196
“[...] se não seguirmos as instruções da artista – e insistirmos em voltar a recortar a partir de um ponto já
perfurado –, o resultado é a reprodução infinita de sua forma inicial. Esta não cessará de permanecer idêntica a si
mesma, a cada vez que repetirmos a escolha de nossa ação, até que não haja mais lugar onde recortar. Nesse tipo
de corte o ato é estéril, não produz obra: o acontecimento da criação de uma diferença na qual a obra como tal se
plasmaria” (ROLKIN, 2018, p.47).
197
Vale a pensa lembrar a ideia de Agamben, a fim de enriquecer essa variação do devir, a partir de um animal
encontrado no México, chamado axolotl: “a princìpio [...] foi classificado como uma espécie própria, com a
particularidde de manter durante toda a vida características tipicamente larvares para um anfíbio [...] apesar do
seu aspecto infantil, ser perfeitamente capaz de se reproduzir” (AGAMBEN, 2013b, p.89). A partir daì, ele
compara e passa a tratar da espécie humana, quando diz: “A evolução do homem não se teria dado a partir de
indivíduos adultos, mas sim das crias de um primata que, como o axolotl, teria adquirido prematuramente a
354
devindo a morte, imagem é que a salva do seu absoluto desaparecimento, fremindo sua
própria fragilidade, pois faz ecoar todos os germens dos corpos que desaparecem de uma vez
sem rastros perceptíveis até hoje (Amarildo, os desaparecidos da ditadura civil-militar).
IV.
A autora ainda lembra que, no sentido filológico, há uma conexão da resistência com
o “estar de pé”, “estar aì” e ainda mais: “„estar presente‟ e, simultaneamente, „dizer não‟”
(idem, p.202, nota de rodapé). Resistir pode, então, dizer o expor-se ao desparecimento
capacidade de se reproduzir” (idem, p.90). Essa criatura, indiscernível entre a infância e a vida adulta, então,
guardaria a potência própria da vida humana: “A criança neotênica, pelo contrário, estaria em condições de
poder dar atenção precisamente àquilo que não está escrito, a possibilidades somáticas arbitrárias e não
codificadas. [...] No nome, o homem liga-se à infância, para sempre amarrado a uma abertura que transcende
todo destino especìfico e toda vocação genética” (ibidem, p.91). Uma espécie, então, de involução criadora, nos
termos de Deleze e Guatarri, abrindo esse devir-larva da imagem-Claudia a um jogo de sentido, que, talvez, dê a
essa imagem de morte um estado de colocação em questão, a pérpetua abertura da própria imagem à experiência
capaz de nomear, quando não tem “absolutamente nada para dizer ou exprimir” (ibidem). Figurar e inventar, ao
invés de simplesmente explicar e definir.
355
ferida lança-nos ao rés do chão, pois é de lá que deve partir nossos pensamentos, nossos
conceitos e nossas relações: um plano de superfície a agrimensar e medir cada buraco, cada
insignificância, cada parte, cada pedaço, compondo outras imagens, abrindo cada expresso,
fazendo exercícios de resistência a fechar-se num túmulo, a calar, a dizer o que encerra, a
uniformizar e homogeneizar os sentidos. A heurística numa constelação heurística relança os
problemas para que nem fiquemos tristes198, percamos potência, nem nos habituemos às
certezas, a fechar os olhos diante das imagens por acreditarmos já sabê-las, pois, quando uma
imagem-Claudia, imagem-meteoro a abalar nossas estruturas e alterar o plano de composição
do nosso olhar e do nosso pensamento, aparece, sejamos capazes de fazer justiça a ela:
medindo-a, tomando a palavra e expondo-a, na mesma medida em que nos expomos. O seu
ethos habita aí, nesse processo de expor o que está desaparecendo em todo seu não-saber e
não-ser, como uma coisa de não.
198
“É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das
coisas” (AGAMBEN, 2013b, p.46).
357
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