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BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador.

Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor Ltda. 2002.
“Nossa civilização ocidental inteira está interessada nele [...] Pois,
diferentemente de outros tipos de cultura, ela sempre esperou muito de sua
memória. [...] O cristianismo é uma religião de historiador. Outros sistemas
religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia
praticamente exterior ao tempo humano; como livros sagrados, os cristãos tem
livros de história.”(p.42).
Podemos perceber como o fato do cristianismo ter se unido tão intensamente
à nossa cultura ocidental afetou um ponto importante da nossa civilização:
estamos sempre buscando respostas para o presente no passado. Devido à
religião cristã e a forte presença de fatos históricos nos livros da mesma, a
civilização ocidental acabou se apegando muito a sua memória.
“A história mal-entendida, caso não se tome cuidado, seria muito bem capaz de
arrastar finalmente em seu descrédito a história melhor entendida.”(p. 42).

“A história no entanto, não se pode duvidar disso, tem seus gozos próprios, que
não se parecem com os de nenhuma outra disciplina. É que o espetáculo das
atividades humanas, que forma seu objeto específico, é, mais que qualquer
outro , feito para seduzir a imaginação dos homens. [...] Resguardarmo-nos de
retirar de nossa ciência sua parte de poesia.”(p. 44).
O autor reforça o que Fustel de Coulanges já havia nos dito em A Cidade
Antiga. A história não é apenas um conjunto de dados, não sobre as
instituições situadas no tempo, mas sobre os homens desse tempo, sobre os
homens que criaram essas instituições. A história não pode perder o seu
caráter poético.
“Seria infligir à humanidade uma estranha mutilação recusar-lhe o direito de
buscar, fora de qualquer preocupação de bem-estar, o apaziguamento de suas
fomes intelectuais. À história, mesmo que fosse eternamente indiferente ao
homo faber ou politicus, bastaria ser reconhecido como necessária ao pleno
desabrochar do homo sapiens.”(p. 45).
Impedir o homem de conhecer a sua história seria uma atitude quase que
criminosa contra a humanidade. Embora a história não nos presentei com um
conhecimento utilitário, que sirva ao homo faber, ainda assim serve à fome
intelectual do homo sapiens, também servindo de consulta para as ações a
serem tomadas no presente.
“Em matéria intelectual, não mais que em qualquer outra, o horror das
responsabilidade não é um sentimento muito recomendável.”(p. 46).
O conhecimento do passado não serve para ser guardado, isso não é ser um
historiador, mas, como diz Marc, um “antiquário”. O historiador tem o de ver de
assumir a responsabilidade de seu conhecimento intelectual, ele deve buscar,
através de seus conhecimentos, ser uma espécie de “mensageiro da verdade e
da justiça”, uma espécie de delator do mal. Negar-se a assumir essa
responsabilidade demonstra covardia diante da responsabilidade do
historiador.
“Diz-se algumas vezes: “A história é a ciência do passado.” É [no meu modo de
ver] falar errado. [...] A própria ideia de que o passado, enquanto tal, possa ser
objeto de ciência é absurda.”(p. 52).
A história não pode ser o estudo de algo que não tem um valor de estudo em
si, o passado não pode ser objeto de estudo de nenhuma ciência porque não é
algo em si, mas apenas um meio pelo qual o nosso estudo se realiza. O nosso
estudo deve ser sobre as coisas, pessoas e instituições no passado com
relação ao presente, não um estudo de “antiquários”.
“Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, [ os artefatos ou
máquinas,] por trás dos escritos aparentemente mais insípido e as instituições
aparentemente mais desligadas daqueles que a criaram, são os homens que a
história quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo, um
serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda.
Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça.” (p. 54).
O trabalho do historiador não pode ser se atentar apenas aos grandes
acontecimentos e instituições, ele deve se atentar aos mínimos detalhes, por
mais supérfluos que pareçam, porque eles também e, talvez, até de forma mais
frequente, fizeram parte da vida humana naquele tempo. É isso que nos
procuramos, esse é o principal objeto de estudo do historiador; não o tempo,
mas os homens no tempo.
“Nenhum historiador, em contrapartida, se contentará em constatar que Cesar
levou oito anos para conquistar a Gália e que foram necessários quinze anos a
Lutero para que, do ortodoxo noviço de Erfurt, saísse o reformador de
Wittenberg. Importa-lhe muito mais atribuir à conquista da Gália seu exato lugar
cronológico nas vicissitudes das sociedades europeias; e, sem absolutamente
negar o que uma crise espiritual como a do irmão de Martinho continha de
eterno, só julgará ter prestado contas disso depois de ter fixado, com precisão,
seu momento na curva dos destinos tanto do homem que foi seu herói como o
da civilização.” (p. 55).
A história não se preocupa apenas com quais foram os fatos que ocorreram, o
historiador tem que ir mais além. Transformamos o “o que aconteceu?" em
“onde aconteceu? “; “como aconteceu?” ; “ o que aconteceu?”; “ por que
aconteceu?”; “quem apoiou?” ; “quem foi contra?” ; “ por que não conseguiram
impedir?” e etc.
“Para o vocabulário corrente, as origens são um começo que explica. Pior
ainda: que basta para explicar. Aí mora a ambiguidade; aí mora o perigo.”(p.
57).
Um dos maiores problemas da humanidade tem sido o julgamento de um
acontecimento ou um movimento pela sua origem, não podemos resumir um
acontecimento apenas pela origem, devemos analisar minuciosamente em o
que aconteceu após a origem e, além disso, da relação mútua entre a origem e
o presente do mesmo.
“Em muitos casos o demônio da origem foi apenas um avatar desse outro
satânico inimigo: a mania de julgamento.”(p. 58).
A mania de julgar de forma anacrônica um acontecimento passado é um mal
que assombra a humanidade.
“A questão, em suma, não é mais saber se Jesus foi crucificado, depois
ressuscitado. O que agora se trata de compreender é como é possível que
tantos homens ao nosso redor creiam na Crucificação e na Ressureição. [...] A
história religiosa foi citada aqui apenas a título de exemplo. A qualquer
atividade humana que seu estudo se associe, o mesmo erro sempre espreita o
intérprete confundir uma filiação com uma explicação.”(p. 58).
Ao invés de buscarmos entender como o acontecimento estudado se ramificou
e tornou-se o que é, muitas pessoas buscam entender o todo à partir da
origem, quando a principal questão é como aquilo se comporta com o presente
e, além disso, como uma crença passada pendurou por tanto tempo.
“Para grande desespero dos historiadores, os homens não têm o hábito, a
cada vez que mudam os costumes, de mudar de vocabulário.”(p. 59).
Um problema que dificulta muito a vida dos historiadores. Uma mesma palavra
pode ter diversos significados diferentes quando observada em épocas
diferentes.
“O feudalismo europeu, em suas instituições características, não foi um arcaico
tecido de sobrevivências. Durante certa fase do nosso passado, ele nasceu de
toso um clima social. [...] Um contágio supõe duas coisas: gerações de
micróbios e, no momentâneo que a doença se instala, um “terreno".”(p. 59-60).
Um acontecimento histórico não é algo que ocorra do nada, ele depende muito
do terreno e da “atmosfera” política na qual ocorre.
“O que é, com efeito, o presente? No infinito da duração, um ponto minúsculo e
que foge incessantemente; um instante que mal nasce morre. Mal falei, mal agi
e minhas palavras e meus atos naufragam no reino da memória.”(p. 60).
O autor demonstra de forma magistral e em um trecho marcante a
efemeridade do “presente”. Algo que atinge profundamente a história e o
historiador.
“Alguns, estimando que os fatos mais próximos de nós são, por isso mesmo,
rebeldes a qualquer estudo verdadeiramente sereno, desejavam simplesmente
poupar à casta Clio contatos demasiadamente ardentes.”(p. 61).
Não Podemos nos esquecer que o passado recente também é história.
“Quem, uma vez diante da sua mesa de trabalho, não tiver a força de poupar
seu cérebro do vírus do momento ser a bem capaz de destilar suas toxinas até
num comentário sobre Ilíada ou o Ramayana.”(p. 62).
Não podemos deixar que os nossos preconceitos interfiram em nossa análise,
o anacronismo é um erro que os historiadores não podem cometer.
“A ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do
presente; compromete, no presente, a própria ação.”(p. 63).
Por causa das inovações como eletricidade, internet e outras coisas os
homens da idade contemporânea acham que deixaram de serem determinados
pelas ações dos seus antepassados, um erro muitas vezes fatal. A nossa
sociedade tem como alicerces os ensinamentos, costumes e símbolos dos
nossos antepassados, os ensinamentos deles se tornam vitais para uma boa
compreensão do presente. Não podemos cair no erro da ignorância por
acharmos que os ensinamentos do passado “não servem para nada”.
“Uma experiência única é sempre impotente para discriminar seus próprios
fatores: por conseguinte, para fornecer sua própria interpretação.”(p. 65).
Não podemos demos julgar os fatos pelo que vemos de imediato, por trás disso
há muita coisa que não percebemos a priori.
.“Eu estava acompanhando, em Estocolmo, Henri Pirenne. Mal chegamos, ele
diz: “O que vamos ver primeiro? Parece que há uma prefeitura nova em folha.
Comecemos por ela.” Depois, como se quisesse prevenir um espanto,
acrescentou: “Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas
sou um historiador. É por isso que amo a vida.” Essa faculdade de apreensão
do que é vivo, eis justamente, com efeito, a qualidade mestra do historiador.
[...] O erudito que não tem gosto de olhar a seu redor nem os homens, nem as
coisas, nem os acontecimentos, [ele] merecerá, talvez, como diz Pirenne, o
título de antiquário. E agirá sensatamente renunciando o de historiador.”(p. 66).
Aqui Marc Bloch nos demonstra qual é a principal virtude e erro de um
historiador. A maior virtude é o amor pelo que é vivo, pelo que é humano, pelo
que é história. O maior erro é achar que história é apenas o antigo, a história
longínqua, assim ignorando o passado recente.
“No filme por ele considerado, apenas a última película está intacta. Para
reconstruir os vestígios quebrados das outras, tem a obrigação de, antes,
desenrolar a bobina no sentido inverso das sequências.”(p. 67).
Aqui o autor expõe a relação mútua da história entre o passado e o presente.
“Não há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem
necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos.”(p. 67).
Uma incrível definição do que é a história.
“A vida é muito breve, os conhecimentos a adquirir muito longos para permitir,
até para o mais belo gênio, uma experiência total da humanidade [...] A única
história verdadeira, que só pode ser feita através da ajuda mútua, é a história
universal. “(p. 69).
Por causa do seu tamanho gigantesco e do seu incessante crescer, a história
é uma matéria que só pode existir de forma verdadeira enquanto coletiva. Uma
única pessoa não pode, pois não teria tempo, se especializar em todos os
assuntos da história, mas apenas a um número limitado. Por isso a
necessidade da coletividade em meio ao estudo da história.
“No imenso tecido de acontecimentos, gestos e palavras de que compõe o
destino de um grupo humano, o indivíduo percebe apenas um cantinho,
estreitamente limitado por seus sentidos e sua faculdade de atenção. [...] Todo
conhecimento da humanidade, qualquer que seja, no tempo, seu ponto de
aplicação irá beber sempre nos testemunhos dos outros uma grande parte de
sua substância.”(p. 70).
É impossível que nós, sozinhos, percebamos a situação do acontecimento
como um todo, precisamos e devemos buscar sempre por testemunhas e
relatos dos mesmos. Isso é algo inerente de qualquer ciência que busque
estudar os homens no tempo.
“Nos túmulos reais de Ur, na Caldeia, encontram-se contas de colar feitas de
amazonita. Como as jazidas próximas dessa pedra situam-se no coração da
Índia ou nos arredores do lago Baikal, parece se impor a conclusão de que, as
cidades do Baixo Eufrates mantinham relações de troca com terras
extremamente longínquas. [...] O conhecimento de todos os fatos humanos no
passado, da maior parte deles no presente, deve ser, [ segundo a feliz
expressão de François Simiand ], um conhecimento através dos vestígios.”(p.
72-73).
Nos trechos acima destacados podemos observar como os vestígios são algo
inerente do estudo histórico. O historiador pode descobrir muito à partir dos
mesmos, são algo que são tão importantes para a história como o átomo é
para o estudo da química e física.
“O passado é, por definição, um dado que nada mais modificará. Mas o
conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se
transforma e aperfeiçoa.”(p. 75).
O nosso entendimento do passado está ligado de forma mútua com o nosso
presente, embora os acontecimentos sejam um fato, o nosso entendimento dos
mesmos transforma incessantemente e de forma progressiva.
“Os exploradores do passado não são homens completamente livres. O
passado é seu tirano.”(p. 75).
Os historiadores não podem criar um objeto de estudo, estes devem ser
buscados, os vestígios devem ser minuciosamente estudados e
compreendidos.
“Há momentos em que o mais imperioso para o cientista é [, tendo tentado
tudo,] resignar-se à ignorância e confessá-lo honestamente.”(p. 76).
Nem sempre podemos resolver todas as questões pendentes em nosso meio,
às vezes, a ignorância é realmente algo quase impossível de ser transposta.
“O que os textos dizem expressamente deixou hoje em dia de ser o objeto
predileto de nossa atenção. Apegamo-nos geralmente com muito mais ardor ao
que ele nos deixa entender, sem haver pretendido dizê-lo. [...] A partir do
momento em que não nos resignamos mas a registrar [ pura e] simplesmente
as palavras de nossas testemunhas, a partir do momento em que tencionamos
fazê-las falar [, mesmo a contragosto], mais do que nunca impõe -se um
questionário. Está é, com efeito, a primeira necessidade de qualquer pesquisa
histórica bem conduzida. [...] Pois os textos ou documentos arqueológicos,
mesmo os aparentemente mais claros e complacentes, não falam senão
quando sabemos interrogá-los.”(p. 78-79).
Saber fazer o documento falar é uma das principais características de
qualquer historiador, muito do que um documento histórico pode nos dizer está
além do que era sua intenção dizer. Precisamos enxergar além do que é
aparente.
“A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem
diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar sobre
ele.”(p. 79).
Os instrumentos, palavras e mecanismos frutos do ser humano acabam por
tornarem -se um excelente retrato do que era aquela pessoa.
“Os fatos humanos são mais complexos que quaisquer outros. [...] Por maior
que seja a variedade de conhecimentos que se queira proporcionar aos
pesquisadores mais bem armados, elas encontrarão sempre, e geralmente
muito rápido, seu limites. Nenhum remédio então senão substituir a
multiplicidade de competências em um mesmo homem por uma aliança de
técnicas praticadas por eruditos diferentes, mas [ todas ] voltadas para a
elucidação de um tema único.”(p. 81).
Nenhum homem seria capaz, ou teria tempo hábil para sê-lo, de aprender
todos os ofícios necessários para solucionar algumas dúvidas históricas, por
isso faz-se necessária a aliança de um conjunto de eruditos para uma mesma
finalidade. Isso acontecesse por culpa da complexidade das coisas humanas e
do altíssimo nível de conhecimento necessário para solucionar o problema de
entender algumas dessas coisas.
“Todo livro de história que digno desse nome deveria comportar um capítulo
ou[ caso se prefira ], inserida nos pontos de inflexão da exposição, uma série
de parágrafos que se intitularia algo como: “Como posso saber o que vou lhes
dizer?” Estou convencido de que, ao tomar conhecimento dessas confissões,
inclusive os leitores que não são do ofício experimentaram um verdadeiro
prazer intelectual. O espetáculo da busca, com seus sucesso e reveses,
raramente entendia. É o tudo pronto que espalha o gelo e o tédio.”(p. 83).
O autor mostra como valoriza o “mostrar o caminho “, não adianta apenas
mostrar o que encontrou, faz-se necessário, também, mostrar como se chegou
naquele resultado.
“Que a palavra da testemunha não deve ser obrigatoriamente digna de crédito,
os mais ingênuos dos policiais sabem bem.”(p. 89).
Um trecho marcante que demonstra bem o que o autor buscará nos elucidar
no restante deste capítulo.
“Neste ano – [ 1681,] ano da publicação de De re diplomatica, uma grande
data, na verdade, na história do espírito humano — a crítica de documentos foi
[ definitivamente ] fundada.”(p. 90).
“Não existe pior desperdício do que a erudição quando gira no vazio, nem
soberba mais deslocada do que o orgulho do instrumento que se torna por um
fim em si.”(p. 93).
A erudição sem um objetivo deixa de ter sentido.
“Tendo os homens por objeto de estudo, como, se os homens deixam de nos
compreender, não ter o sentimento de só realizar nossa missão pela
metade?”(p. 94).
“O historiador não é, é cada vez menos, esse juiz rabugento cuja imagem
desabonadora, se não tomarmos cuidado, é facilmente imposta por certos
manuais introdutórios. Não se tornou, certamente, crédulo, sabe que suas
testemunhas podem se enganar ou mentir. Mas, antes de tudo, preocupa -se
em fazê-las falar, para compreendê-las. É uma das marcas mais belas do
método crítico ter sido capaz, sem em nada modificar seus primeiros princípios,
de continuar a guiar a pesquisa nessa aplicação.”(p. 95-96).
Aqui está uma das principais revoluções feitas na história após a utilização do
método crítico. Passamos a observar mais atentamente as testemunhas e seus
relatos.
“uma nova visão se abre para vastas perspectivas históricas. Eis portanto a
crítica levada a buscar, por trás da impostura, o impostor; ou seja, conforme à
própria divisa da história, o homem.”(p. 98).
Passamos a buscar entender o pensamento dos homens de determinada
época (atmosfera social) para, assim, compreendermos a veracidade dos
documentos por eles redigidos.
“Em sua fé como em seu direito, a Idade Média não conhecia outro
fundamento senão a lição de seus ancestrais. [...] Os períodos mais ligados à
tradição foram também os que tomaram mais liberdades com sua herança
precisa. Como se, por uma singular revanche de uma irresistível necessidade
de criação, à força de venerar o passado, naturalmente se fosse levado a
inventá-lo.”(p. 99-100).
Por culpa de sua insistência em permanecer no passado, quando
questionados pela inevitável dúvida que decorre dos acontecimentos
presentes, eles se sentiram na obrigação de inventar um passado que as
justificasse.
“A fraude, por natureza, engendra a fraude.”(p.101).
“Com poucas exceções, não se vê, não se ouve nem a não ser o que se
esperava de fato perceber. [...] A familiaridade traz, quase que
necessariamente, a indiferença.”(p. 104).
Um dos grandes problemas com relação aos testemunhos históricos é a falta
de atenção de nós, humanos, para com os pequenos detalhes.
“A obediência ao preconceito universal triunfara sobre a habitual exatidão de
seu olhar; e seu testemunho [, como tantos outros, ] informa não sobre o que
ele viu na realidade, mas sobre o que, em sua época, era estimado natural
ver.”(p. 106-107).
O testemunho de um homem sofrerá interna transformação com base na
atmosfera social na qual ele vive.
“Essas sociedades sempre foram, para as falsas notícias, um excelente caldo
de cultura. Relações frequentes entre os homens facilitam a comparação entre
os diversos relatos. Estimulam o senso crítico. Ao contrário, acredita -se
piamente no narrador que, a longos intervalos, traz, por caminhos difíceis, os
rumores de terras longínquas.”(p. 108).
As pessoas acreditam com mais facilidade naquele que permaneceu distante
por muito tempo do que naquele com quem tem um contato quase que
rotineiro, algo que se deva, provavelmente, a facilidade de colocar o senso
crítico em prática com relação a este ou ao sentido inverso com relação
aquele.
“Em uma mesma geração de uma mesma sociedade, reina uma
simultaneidade de hábitos e técnicas muito grande para permitir a qualquer
indivíduo afastar-se sensivelmente da prática comum. [...] A crítica move-se
entre esses dois extremos: a similitude que justifica e a que desacredita.” (p.
11-112).
Alguns costumes são inerentes à indivíduos pertencentes de uma sociedade
em determinado período de tempo, um grande exemplo é o vocabulários e a
gramática. Mas não podemos esquecer que uma semelhança muito grande de
acontecimentos ocorridas com pessoas diferentes em locais diferentes pode
demonstrar uma falsificação.
“Só o futuro é aleatório. O passado é um dado que não deixa mais lugar para o
possível. [...] A incerteza está portanto em nós, em nossa memória ou na de
nossas testemunhas. Não nas coisas.”(p. 117).
A incerteza maior no estudo do passado não está nos acontecimentos em si,
mas na bossa percepção dos mesmos.
“Na crítica do testemunho, todos os dados estão viciados. Pois elementos
muito delicados intervêm constantemente para fazer a balança pender para
uma eventualidade privilegiada.”(p. 118).
“Há mais certeza no todo do que em seus componentes.”(p. 122).
Uma obra do passado pode ter sido completamente alterada no que diz
respeito às palavras utilizadas em sua composição e, ainda assim, continua
sendo a mesma de quando foi escrita. “O todo é mais certo que seus
componentes.”
“Para penetrar uma consciência estranha de nós pelo intervalo das gerações,
é preciso quase se despojar de seu próprio eu.”(p. 126).
Não Podemos analisar fatos exteriores ao nosso ser com uma visão
egocêntrica.
“É muito mais fácil escrever prós e contras contra Lutero do que escrutar sua
alma; acreditar que o papa Gregório VII está acima do imperador Henrique IV
ou Henrique IV acima de Gregório VII do que desemaranhar as razões
profundas de um dos grandes dramas da civilização ocidental. “(p. 126).
É muito mais fácil julgar do que investigar. Daí brota um dos maiores erros
cometidos pelos espectadores da história.
“A lição do desenvolvimento intelectual da humanidade é no entanto clara:
sempre se mostraram mais fecundas e, por conseguinte, muito mais
proveitosas, enfim, para a prática, na medida em que abandonavam mais
deliberadamente o velho antropocentrismo do bem e do mal.”(p. 127).
Não podemos resumir as nossas ciências no velho jogo entre bem e mal,
devemos olhar para elas, acima de tudo, com um olhar imparcial e
investigativo.
“O ato falho é um dos elementos essenciais da evolução humana.”(p. 127).
“Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: “compreender”.
Não digamos que o historiador é alheio às paixões; ao menos, ele tem esta.
[...] É cômodo gritar “à forca!”. Jamais compreendemos o bastante. Quem
difere de nós — estrangeiro, adversário político — passa, quase
necessariamente, por mau. [...] A história, com a condição de ela própria
renunciar a seus falsos ares de arcanjo, deve nos ajudar a curar esse defeito.
Ela é uma vasta experiência de variedades humanas, um longo encontro de
homens. A vida, como a ciências tem tudo a ganhar se esse encontro for
fraternal.”(p. 128).
Aí está o que define um historiador, o seu amor pela compreensão dos
acontecimentos, não apenas pela ciência da existência dos mesmos. O
historiador não julga, ele investiga, tem como paixão, acima de tudo, a busca
pelo entender.
“O perigo começa quando cada projetor pretende ver tudo sozinho; quando
cada canto do saber é tomado por uma pátria.”(p. 131).
Nenhuma ciência é capaz de resolver todos os seus problemas sozinha, todas
precisam do auxílio das demais.
“Ora, homo religiosus, homo oeconomicus, homo políticos, toda essa ladainha
de homens em us, cuja lista poderíamos estender à vontade, eviremos tomá-
los por outra coisa do que na verdade são: fantasmas cômodos , com a
condição de não se tornarem um estorvo. O único ser de carne e osso é o
homem, sem mais, que reúne ao mesmo tempo tudo isso.”(p. 132).
Não podemos esquecer que o nosso principal objeto de estudo é o homem no
tempo e não as nomenclaturas que utilizamos para datá-los.
“Há contradições que se parecem muito com fugas.”(p.133).
É eterna contradição humana de fazer algo mesmo sabendo que aquilo é ruim
e desagradará a si próprio. Muitos acabam por utilizar -se de “pesos de
compensação” para buscarem aliviar o seu próprio ego.
“Nada mais saudável do que centrar o estudo de uma sociedade em um
desses aspectos particulares, ou, melhor ainda, em um dos seus problemas
precisos que levanta este ou aquele desses aspectos: crenças , estrutura das
classes ou dos grupos, as crises políticas...”. [...] A fim de compreender a
atitude do vassalo com o seu senhor, será preciso também informar-se sobre
qual era sua atitude para com Deus. O historiador nunca sai do tempo. Mas,
por uma oscilação necessária, que o debate sobre as origens já nos deu à
vista, ele considera ora as grandes ondas de fenômenos aparentados que
atravessam, longitudinalmente, a duração, ora do momento humano em que
essas correntes se apertam no nó poderoso das consciências.”(p. 135).
Os homens não podem ser analisados por suas ações somente, devemos
buscar sempre entender o porquê destas ações terem sido tomadas. Essa
compreensão só pode ser feita a partir do momento que entendemos a
atmosfera social daquela sociedade, ou seja: suas relações de classe,
estrutura religiosa, economia, política e etc.
“Em sociedades muito fragmentadas , como as da Idade Média, era frequente
que instituições essencialmente idênticas fossem, conforme os lugares,
designadas por termos muito diferentes.”(p. 138).
Instituições com os mesmos objetivos poderiam ter nomes completamente
diferentes em sociedades de uma mesma época, porém muito fragmentadas.
“Numerosas sociedades praticaram o que podemos chamar um bilinguismo
hierárquico. Duas línguas enfrentavam-se, uma popular, outra culta. O que se
pensava e se dizia corretamente na primeira escrevia-se, exclusiva ou
preferencialmente, na segunda.[...] Assim, os Evangelhos relataram em grego,
que era então a grande língua cultural do Oriente, frases que é preciso supor
ditas em aramaico pelas pessoas.”(p. 139-140).
Aqui podemos observar algo de extremo valor, não podemos julgar uma
língua que um povo falava pela língua na qual ele escrevia. Muitos povos
escreviam em uma língua que em nada se parecia com a qual eles utilizavam
para se comunicar oralmente.
“Nada mais difícil para um homem do que exprimir a si mesmo.”(p. 141).
Acho que esse trecho fala por si só, exprimir quem se é sem algum exagero
ou eufemismo é algo realmente dificílimo.
“O advento do nome é sempre um grande fato, mesmo se a coisa o havia
precedido; pois marca a tomada de consciência. Que passo o dia em que os
adeptos de uma nova fé se disseram eles mesmos cristãos!”(p. 142).
Um nome, mesmo que só venha a se instaurar muito tempo depois de seu
objeto, é algo que pode mudar completamente a história. A força de um nome
é avassaladora, pois dá identidade ao objeto.
“Uma palavra vale menos por sua etimologia do que pelo uso que dela é
feito.”(p. 143).
Muitos eruditos antigos achavam que essa frase funcionava precisamente no
sentido inverso, um erro que lhes custou muito, a etimologia nem sempre tem
a ver com o real significado de uma palavra, às vezes, essa palavra sofre
mudanças tão grandes que em nada tem a ver com sua etimologia.
“O anacronismo: entre todos os pecados, ao olhar de uma ciência do tempo, o
mais imperdoável.”(p. 144).
“Uma nomenclatura imposta ao passado a acarretará sempre uma
deformação, caso tenha por proposta ou apenas por resultado pespegar suas
categorias às nossas, alçadas, para a ocasião, à eternidade. Não há outra
atitude razoável a tomar em relação a esses rótulos senão eliminá-los”(p. 145).
É uma atitude anacrônica usar termos atuais para definir acontecimentos
passado, isso não é algo que possamos fazer sem, através de um erro
grotesco, deformar o passado de forma inaceitável.
“A verdadeira exatidão consiste em se adequar, a cada vez mais, à natureza
do fenômeno considerado. [...] Quando escrevo que uma modificação
extremamente profunda da economia ocidental, marcada ao mesmo tempo
pelas primeiras importações maciças de trigo exótico e pelo primeiro grande
desabrochar das indústrias alemãs e americanas, produziu-se entre cerca de
1875 e 1885, uso da única aproximação que esse gênero de fatos autoriza.
Vou, ao contrário, cismar em buscar uma data supostamente mais precisa?”
(p. 150-151).
A exatidão da data de um acontecimento histórico não quer dizer,
obrigatoriamente, que a sua data deve possuir um dia ou ano em específico.
Uma data histórica pode ser um pedido entre dois anos diferentes em que
aconteceram, não de imediato, mas devido a uma sucessão de
acontecimentos, grandes transformações que marcaram aquele período.
“Ocorre enfim, obrigatoriamente, de as gerações se interpenetrarem. Pois os
indivíduos não reagem sempre similarmente às mesmas influências. Hoje
mesmo, entre nossos filhos, já se pode discernir, mais ou menos, segundo as
idades, a geração da guerra daquela que será apenas a do pós-guerra. Com
uma ressalva, contudo: nas idades que não são ainda a adolescência quase
madura e não são mais a pequena infância, a sensibilidade em relação aos
acontecimentos do presente varia muito segundo os temperamentos pessoais;
as mais precoces será o se fato “da guerra", às outras permanecerão no lado
oposto.
A noção de geração é portanto muito flexível, como todo conceito que tenta
exprimir, sem deformá-las, as coisas do homem.”(p.152).
Aqui podemos observar como pessoas de uma mesma geração podem ter
entendimentos totalmente diferentes da realidade, isso depende muito do
ambiente no qual vive, do grau de cultura que possui e, além disso, da sua
idade. Como as influências que ocasional essa diversidade de percepção
podêm ser das mais diversas, ocorre as vezes de indivíduos de mesma idade
e geração possuem ideais e entendimentos da realidade totalmente diferentes.
“Uma geração representa apenas uma fase relativamente curta. As fases mais
longas chama-se civilizações. [...] Quando A transformação se operou,
dizemos que uma civilização sucede a uma outra: as cidades da Alta Idade
Média ocidental haviam herdado muito do Império Romano; todos, porém,
estarão de acordo que não era mais a mesma civilização. [...] O tempo
humano, em resumo, permanecerá sempre rebelde tanto à implacável
uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio.”(p. 153).
As civilizações se sucedem. Não é algo que possamos definir uma data
específica, são sucessões que ocorrem gradualmente, através de um longo
espaço de tempo, mas é algo que podemos notar quando “completo”, porém,
após a sucessão de uma civilização já se inicia a sucessão de outra, a história
não fica estagnada, ela flui incessantemente, às vezes lentamente, mas
sempre fluindo.
“Em vão o positivismo pretendeu eliminar da ciência a ideia de causa.
Querendo ou não, todo físico , todo biólogo pensa através de “por quê?” e de
“porque". Os historiadores não podem escapar a essa lei comum do
espírito.”(p. 155).
O que seria da História sem o seu “por quê “ e o seu “porque"?

“Os antecedentes mais particulares, porém dotados também de uma certa


permanência, formam o que se convencionou chamar de condições. [...]
Tomemos cuidado, aliás; a superstição da causa única, história, não raro é
apenas a forma insidiosa da busca do responsável. [...] O monismo da causa
seria para a explicação histórica simplesmente um embaraço. Ela busca fluxos
de ondas causais e não se assusta, uma vez que a vida assim os mostra, ao
encontrá-los múltiplos. [...] O vírus da Peste Negra foi a causa primordial do
despovoamento da Europa. Mas a epidemia só se propagou tão rapidamente
em razão de certas condições sociais, portanto, em sua natureza profunda,
mentais, e seus efeitos morais explicam-se apenas pelas predisposições
particulares da sensibilidade coletiva.”(p. 156-157).
Os acontecimentos históricos, diferente do que o senso comum costuma ditar,
não são causados por um acontecimento, a história não se resume a esse
monismo. Muito pelo contrário, a os acontecimentos históricos são causados
por uma cadeia múltipla de acontecimentos que convergiram para que tal fato
ocorresse.
“Falsearíamos gravemente o problema das causas, em história, se o
reduzíssemos, sempre e em toda parte, um problema de motivos. [...] É
possível que, em determinadas condições sociais, a divisão dos recursos
hídricos decida, antes de qualquer outra causa, sobre o hábitat; o que é certo
é que não decide necessariamente. [...] A partir do momento em que uma
reação da inteligência ou da sensibilidade não for natural, ela exige, por sua
vez, caso se produza, que nos esforcemos para descobrir suas razões.
Resumindo tudo, as causas, em história como em outros domínios, não são
postulados. São buscadas.”(p. 158-159,).
Não podemos resumir a história só como a ciência dos motivos, a história
não é algo que funciona mecanicamente. Não é porque tem água por perto
que as pessoas se reunirão, necessariamente, por lá. Não podemos apenas
postular as causas, até porque elas não são necessariamente obrigatórias,
uma mesma condição pode proporcionar, com frequência, reações muito
diferentes. É dever do historiador buscar o porquê dessas reações, o porquê
de condições iguais proporcionarem uma variedade quase que infinita de
acontecimentos diferentes. Não devemos postular. Devemos buscar.

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