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DOSSIÊ SOBRE O RACIONALISMO DE DESCARTES

DOSSIÊ SOBRE
O RACIONALISMO DE DESCARTES

I
Síntese da teoria cartesiana do conhecimento
O projeto Construir um sistema de verdades
indubitáveis em que de uma verdade que
seja impossível considerar falsa possamos
deduzir outras verdades que sejam certezas
absolutas.
As razões de ser do 1. O sistema dos ditos conhecimentos do
projeto seu tempo era constituído por verdades e
falsidades.
2. Temos de separar o verdadeiro do falso e
justificar que o que acreditamos ser
verdadeiro é absolutamente verdadeiro.
3. O sistema dos ditos conhecimentos do
seu tempo não tinha bases firmes e estava
desorganizado a tal ponto que havia
falsidades na base do sistema e verdades
noutros pontos desse sistema.
4. Temos de encontrar uma verdade
indubitável que sirva como base ao sistema
dos conhecimentos e permita organizá-lo
firme e seguramente.

A estratégia Vamos submeter ao exame rigoroso da


para atingir esse dúvida as bases em que assentava o sistema
objetivo dos conhecimentos estabelecidos.
1. Consideraremos falso o que não for
absolutamente verdadeiro ou indubitável.
2. Consideraremos enganadora qualquer
faculdade que alguma vez nos tenha
enganado ou de que cujo funcionamento
correto possamos por muito pouco que seja
suspeitar.
A dúvida será por isso aplicada de forma
hiperbólica.
3. As bases do sistema dos ditos
conhecimentos que vamos examinar
implacavelmente são:
– A crença de que os sentidos são fontes
fiáveis de conhecimento sobre as
propriedades dos objetos físicos.
– A forte crença de que existem realidades
físicas;
– A crença de que as mais fiáveis produções
do nosso entendimento – as matemáticas –
são um modelo de verdade indubitável.
O que passar neste exame rigoroso será
indubitavelmente verdadeiro.

O que não passa no 1. Os sentidos não são dignos de


exame da dúvida confiança quanto às informações quer
metódica/hiperbólica sobre as qualidades das coisas sensíveis
quer sobre a existência dessas mesmas
coisas.
As ilusões dos sentidos e o argumento de
que não temos forma de distinguir
absolutamente o sonho da realidade, o
fictício do real levam-nos a negar o
empirismo (que o conhecimento comece
com a experiência sensível) e a crença de
que o mundo físico indubitavelmente
existe.
2. O correto funcionamento do nosso
entendimento (razão) é colocado sob
suspeita devido ao argumento de que
Deus pode tê-lo criado destinado a
confundir o falso com o verdadeiro.
Os objetos sensíveis e os objetos inteligíveis
– exemplificados pela matemática – são
colocados sob suspeita e por isso deles não
pode derivar-se conhecimento algum.

O que resiste à dúvida. Resiste à dúvida a existência do sujeito que


de tudo duvida. «Duvido – penso – logo
existo» é uma verdade indubitável porque a
existência de quem duvida não pode ser
objeto de dúvida nenhuma.

Caraterísticas da 1. É primeira porque impõe-se no momento


primeira verdade em que de tudo se duvida.
2. É primeira porque não deriva de
nenhuma outra (teria de haver outra, o que
não acontece).
3. É objeto de intuição existencial e não de
dedução – será o ponto de partida de todas
as deduções que faremos para construir o
sistema firme dos conhecimentos.
4. É, por isso, o primeiro princípio do
sistema dos conhecimentos.
5. Corresponde à existência de um sujeito
cuja natureza ou essência consiste em
pensar.
6. É uma ideia ou verdade inata porque se
impõe como absolutamente indubitável
independentemente da experiência. Nasce
connosco e descobrimo-la como certeza
sem apoio empírico.
7. É um critério ou modelo de verdade, dada
a evidência, clareza e distinção, com que se
impõe.

Verdades indubitáveis 1. A alma é distinta do corpo.


que deduzimos da Todas as coisas sensíveis – incluindo o meu
primeira verdade corpo ‒ podem não passar de realidades que
só existem em sonho. Mas existo e disso
não posso duvidar. Se não preciso do corpo
para existir, então a alma – o que eu sou – é
distinta do corpo e mais fácil de conhecer
do que este.
2. Deus existe.
Se duvido e nada conheço a não ser que
existo e sou um ser pensante, então sou
imperfeito. Mas de onde veio esta ideia?
Comparei as minhas qualidades com as que
caraterizam um ser perfeito. Logo, sem a
ideia de um ser perfeito – do que é ser
perfeito ‒, não saberia que sou imperfeito.
Mas sou a causa desta ideia? Sou o seu
autor? Não, porque ela representa mais
perfeição do que a que possuo e poderia
causar. Logo, só um ser perfeito é causa da
ideia de perfeito. Quem é esse ser? É Deus.
Logo, Deus existe.

A importância da 1. Afasta-se a desconfiança no


existência de Deus como funcionamento correto do nosso
ser perfeito entendimento.
Provado que Deus não pode enganar,
podemos confiar nas operações do nosso
entendimento/razão. O critério da evidência
é fundamentado de modo que aquilo que
considero claro e distinto – evidente – é
claro e distinto, absolutamente indubitável.

2. Supera-se, em parte, o solipsismo.

Com efeito, Deus é ser cuja existência que


não depende do sujeito pensante.

3. Deus é o fundamento metafísico das


crenças verdadeiras. Garante-as
absolutamente, porque garante que as
evidências atuais são realmente
indubitáveis como também que o
serão sempre. O conhecimento torna-se
assim um conjunto de verdades objetivas,
independentes do sujeito pensante.

A recuperação da Descartes apercebe-se de que há ideias das


crença na existência do coisas que não são produzidas pelo sujeito
mundo físico pensante. Existindo, devem ter uma causa:
as próprias coisas sensíveis. Esta propensão
ou crença natural é legítima e fundada dado
que Deus, a quem a devo, não me engana.

1. A razão é a fonte ou origem do


O racionalismo conhecimento.
cartesiano Só as verdades descobertas pela razão e
deduzidas desta têm direito ao título de
conhecimento. O princípio do sistema dos
conhecimentos é uma verdade puramente
racional. Os sentidos não merecem
confiança.
2. O ideal de conhecimento em Descartes
é o de um sistema dedutivo análogo ao
modelo do raciocínio matemático que
sempre o deslumbrou.
De uma verdade indubitável – a existência
do eu – deduz outras verdades que devem
apresentar a mesma clareza e distinção. A
matemática é um ideal metodológico e não
a rainha das ciências, dado que esse
estatuto de ciência primeira pertence à
metafísica.
3. As ideias que desempenham um papel
decisivo no conhecimento são ideias
inatas.
Ideias como as de eu e de Deus formam-se
no pensamento sem o contributo da
experiência. São ideias que, mediante a
reflexão puramente racional, a razão
descobre em si, atualizando o que
potencialmente existe na alma desde que
existimos. O inatismo é a afirmação da
autonomia da razão em relação à
experiência.
4. A dúvida metódica está ligada à
natureza racionalista da filosofia de
Descartes.
A vontade de duvidar parte da ideia de que
a razão não pode atingir a verdade
subordinando-se à experiência, aos
sentidos. A dúvida cumpre a função de
devolver a razão à plena posse de si
mesma, torna-a autónoma ao libertá-la da
dependência em relação aos sentidos e dos
falsos pontos de partida.

II
TEXTOS SOBRE DESCARTES

1
O conceito de ciência

«A ciência é um conhecimento certo e evidente.»

«A ciência diz-se de uma única maneira: “toda a ciência é um conhecimento certo e


evidente”. Por conseguinte, a ciência demarca-se, claramente, não só do que é falso, mas
também do que é duvidoso ou meramente provável. Descartes chega mesmo ao ponto
de dizer que é preferível ser ignorante a possuir conhecimentos duvidosos ou
prováveis.

Um homem que duvida de muitas coisas não é mais sábio do que aquele que nunca pensou
nelas; é-o até menos do que este último, se formou sobre algumas uma falsa opinião. Por isso
mais vale nunca estudar do que ocupar-se de objetos de tal modo difíceis que, sem podermos
distinguir o verdadeiro do falso, sejamos forçados a admitir por certo o que é duvidoso, pois
não há então tanta esperança em aumentar a doutrina quanto o perigo de a diminuir. Como
consequência, rejeitamos todos os conhecimentos que não passam de prováveis e
declaramos que é preciso confiarmos unicamente no que é perfeitamente conhecido e
de que não se pode duvidar.

Regras para a direção do Espírito, II.

Numa primeira fase, Descartes considera que, e entre as ciências do seu tempo, só duas
resistem a esta exigência da sua nova conceção de ciência: a Aritmética e a Geometria.
Mais tarde, porém, afirma que há outras verdades, as quais, não cabendo propriamente
no espaço das ciências geométricas ou matemáticas, não deixam de ser tão certas e
evidentes como elas ou talvez mesmo até mais: é o caso das verdades metafísicas,
relativas à natureza pensante do espírito (mente), à distinção da mente relativamente
ao corpo e ao conhecimento da existência de Deus.

Por conseguinte, Descartes não defende que verdades dignas de tal nome sejam só as
da Aritmética e da Geometria, mas revelará sempre a tendência para considerar que
toda a verdade deve assemelhar-se, pela sua certeza e evidência, à das demonstrações
daquelas duas ciências. Tais demonstrações, com efeito, são uma espécie de exemplo
concreto e já realizado de uma ciência que merece tal nome; e, por outro lado, o cultivo
dessas disciplinas, desde tempos imemoriais e de forma ininterrupta, é índice de que
o espírito humano não se deixou perverter completamente pelo emaranhado das
opiniões prováveis ou simplesmente falsas e que as “sementes de verdade”, de que a
humana razão dispõe, só necessitam de uma boa ocasião e de um bom método para se
desenvolverem em todas as suas potencialidades.
Descartes tem uma conceção sistemática e dedutiva da ciência. O saber, a ciência
verdadeira é uma longa cadeia de razões que se inferem umas das outras e não um
amontoado de verdades isoladas. A dimensão sistemática da conceção cartesiana da
ciência exprime-se nas metáforas a que o filósofo recorre para falar do seu projeto
global: o modelo arquitetónico (o edifício da ciência), ou o modelo orgânico (a
árvore). Daí a necessidade de procurar os “fundamentos”, as “raízes”, os
“alicerces”, expressões que percorrem de uma ponta à outra os textos cartesianos.

Rejeitando como falso o que é meramente provável ou duvidoso, exigindo sólidos


fundamentos, a conceção cartesiana de ciência revela-se como tendencialmente
dogmática.»

António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do Jogo, pp.
204-205 e 212.

As regras do método

«O Discurso do Método reduz a quatro os preceitos ou regras fundamentais do método


cartesiano. São elas:

1. A regra da evidência: “nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a conhecer
evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir
nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que
não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida”.

2. A regra da análise ou da divisão: “dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar
no maior número possível de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver”.

3. A regra da dedução e da ordem: “conduzir por ordem os meus


pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir
pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos, e admitindo mesmo
certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns aos outros”.

4. A regra da enumeração: “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais
que tivesse a certeza de nada omitir”.

A primeira é uma regra de prevenção e de critério absoluto e preside a todas as verdades,


tanto às simples e primeiras como às mais complexas e últimas.

A segunda aplica-se sobretudo às questões complexas, que, para poderem ser resolvidas
mais facilmente, terão de ser decompostas nos seus elementos mais simples e por
isso também mais claros e evidentes.

A terceira visa assegurar a homogeneidade e continuidade do encadeamento das razões,


de modo a garantir que a ciência seja um todo único de verdades dispostas entre si
segundo uma série ordenada.

A quarta pretende garantir a completude, passando um olhar de verificação sobre o


processo de modo a assegurar-se de que em cada uma das verdades deduzidas se dão
as notas que as tornam verdadeiras, uma vez que é impossível ao homem ter de todas e
de cada uma delas a intuição imediata da sua evidência.»

António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do Jogo, p.
218.

3
A intuição e a dedução
A intuição

Para Descartes, não há senão duas vias pelas quais se pode chegar ao conhecimento
certo das coisas. Essas duas vias correspondem a outras tantas operações da razão. São
elas: a intuição e a dedução. Vejamos o que o filósofo entende por estas expressões e
como concebe a relação entre elas no processo de constituição da ciência.

A intuição. «Por intuição entendo


[...] o conceito que a inteligência pura e atenta forma
com tanta facilidade e distinção que não resta absolutamente nenhuma dúvida sobre
aquilo que compreendemos». (1)

O conceito de intuição não era novo e era abundantemente usado nos escritos
escolásticos. Todavia, Descartes tem consciência de que o usa num sentido
absolutamente novo e adverte os seus eventuais leitores de que não o confundam com
o sentido do uso corrente de tal termo. Em que consiste essa novidade?

Tentemos alinhar as caraterísticas essenciais desse olhar atento do espírito a que


Descartes chama intuição.

a) Ela é instantânea, ao contrário da dedução que se dá em cadeia sucessivamente e


exige, por conseguinte, o tempo e o recurso à memória. A intuição é um puro olhar do
espírito dirigido a objetos de natureza intelectual que imediatamente são apreendidos
na sua evidência e captados pelo espírito com absoluta certeza.

b) A intuição de que fala Descartes é uma intuição de natureza intelectual ‒ intuição


intelectual, como lhe chama ‒, e não uma intuição de natureza sensível. Ela é um ato da
«pura inteligência» e não uma «produção da imaginação» a partir dos dados sensíveis.
Ela «nasce exclusivamente da luz da razão».

c) Deste modo, os conceitos que são objeto de intuição caraterizam-se pela sua
simplicidade, pela sua clareza, distinção e evidência imediata; em suma, pela sua absoluta
certeza. É por isso que são as ideias de natureza intuitiva que se constituem como
princípios e fundamentos de outros conhecimentos. A filosofia cartesiana revela-se
como o esforço por chegar a encontrar quais são ou qual é essa intuição intelectual
mais originária de todas, que é capaz de fundar todas as outras e de onde todas as
outras recebem a sua luz e certeza.

d) Assim, não é qualquer objeto que é suscetível de constituir-se como objeto de uma
intuição, mas tão só aqueles que primam pela sua natureza absolutamente
racional. Descartes indica algumas dessas certezas intuitivas: a consciência da própria
existência e do próprio pensamento, as propriedades das figuras geométricas.

A dedução
Por dedução «entendemos toda a conclusão necessária tirada de outras coisas
conhecidas com certeza».

Descartes sabe que a maior parte das verdades a que o espírito humano tem acesso é
de natureza dedutiva e não de natureza intuitiva. O homem não tem uma intuição única
e total do conjunto das verdades e de todas as consequências que se podem extrair de
um único princípio. O homem não tem imediatamente presente, com absoluta
evidência ao seu espírito e de uma só vez, toda a série de verdades que constituem o
corpo da ciência. Só uma inteligência infinita e intemporal como a de Deus poderia ter
uma tal intuição.

A necessidade que o espírito humano tem de recorrer à dedução para progredir na


ciência é, antes de mais, um sinal inequívoco do seu caráter limitado e do caráter
progressivo do conhecimento humano. Nem todas as verdades são por si
imediatamente evidentes, mas poderão ser absolutamente certas para o espírito se
este as deduzir de princípios evidentes e verdadeiramente conhecidos, por meio de
um movimento contínuo e sem interrupções.

Assim, por duas razões se distingue a dedução da intuição:

a) A evidência das verdades deduzidas não é imediata e atual, mas mediada por outras
verdades primeiras a que há necessidade de recorrer. Daí que Descartes diga que a
certeza destas verdades deduzidas das primeiras seja, num certo sentido, retirada da
memória e não da inteligência, embora seja a inteligência a reconhecê-la.

b) A dedução processa-se sucessivamente, segundo um movimento ininterrupto, ao


passo que a intuição se dá instantaneamente, como vimos.

Embora «se possa dizer que a evidência das verdades deduzidas e a certeza que o
espírito delas tem seja, em certo sentido, uma evidência e certeza diferidas, isso não
implica todavia que elas sejam menos verdades do que aquelas das quais recebem a
evidência. Não há lugar, na ciência cartesiana, para verdades autênticas e verdades
a meias. Há uma única cadeia de verdades que apenas se distinguem entre si pelo facto
de umas serem mais simples e outras mais complexas, pelo facto de as que são mais
simples serem, por isso também mais evidentes e primeiras na apreensão por parte do
espírito e as complexas só sucessivamente virem a ser deduzidas das primeiras e nesse
sentido serem elos sucessivos de uma cadeia contínua como é a ciência.»

António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do


Jogo, pp. 209 -213.

4
As ideias
«Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias das suas obras, mas as
exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do
Método e nas Meditações Metafísicas. Nelas, Descartes mostra que o nosso
espírito possui três tipos de ideias que se diferenciam segundo sua origem e
qualidade:
1. Ideias adventícias (isto é, vindas de fora) ou empíricas: são aquelas que têm
origem nas nossas sensações, perceções, lembranças; são as ideias que nos
surgem por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se
referem. Por exemplo, a ideia de árvore, de pássaro, de instrumentos musicais,
etc. Não correspondem, geralmente, à realidade das próprias coisas. Assim,
andando à noite por uma floresta, vejo fantasmas. Quando raia o dia, descubro
que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento. Olho para o
céu e vejo, pequeno, o Sol. Acredito, então, que é menor do que a Terra, até
que os astrónomos provem racionalmente que aquele é muito maior do que
esta.
2. Ideias factícias ou da imaginação: são aquelas que criamos mediante a nossa
imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de ideias
adventícias que estão na nossa memória. Por exemplo, cavalo alado, fadas,
elfos, duendes, dragões, super-homem, unicórnio etc. São as fabulações das
artes, da literatura, dos contos infantis, dos mitos, das superstições. Estas
ideias não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram
inventadas por nós, mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as
inventaram.
3. Ideias inatas: são aquelas que não poderiam vir da nossa experiência
sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem
poderiam vir da nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para
compô-las a partir da nossa memória.
As ideias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já
nascemos com elas. Por exemplo, a ideia do infinito (pois não temos qualquer
experiência do infinito), as ideias matemáticas (a matemática pode trabalhar
com a ideia de uma figura de mil lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais
tivemos e jamais teremos a perceção de uma figura de mil lados).
Essas ideias, diz Descartes, são “a marca do Criador” no espírito das criaturas
racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade.
Como as ideias inatas são colocadas no nosso espírito por Deus, serão sempre
verdadeiras, isto é, corresponderão integralmente às coisas a que se referem,
e, graças a elas, podemos julgar quando uma ideia adventícia é verdadeira ou
falsa e saber que as ideias factícias são sempre falsas (não correspondem a
nada fora de nós). Ainda segundo Descartes, as ideias inatas são as mais
simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e sim não compostas
de outras ideias). A mais famosa das ideias inatas cartesianas é o “Penso, logo
existo” ou a ideia de Eu. Por serem simples, as ideias inatas são conhecidas
por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional.»
http://afilosofiadacaixapreta. blogspot. pt/2010/08/filosofia-de-rene-descartes.
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5
Críticas a Descartes
Será que ele duvida de tudo?
«Embora a dúvida metódica pareça questionar tudo o que poderia
possivelmente levantar qualquer tipo de dúvidas, tal não se verifica de facto.
Descartes confia na exatidão da sua memória por exemplo, nunca colocando
em questão o facto de ter sonhado no passado ou a convicção de que os seus
sentidos o tenham por vezes enganado. Não questiona, ainda, que os
significados que associa a determinadas palavras sejam os mesmos de que
fizera uso anteriormente.
No entanto, não se trata de um problema relevante para o entendimento de
Descartes. A Dúvida Cartesiana continua a constituir uma poderosa forma de
ceticismo, tendo o filósofo resolvido apenas duvidar do que lhe era possível
duvidar. Uma forma mais extrema de ceticismo poderia ter minado por
completo a sua capacidade para a reflexão filosófica.

Crítica ao Cogito
Umas das críticas habitualmente dirigidas ao conceito cartesiano de Cogito, em
particular quando é apresentado sob a forma de «Penso, logo existo», é que
este parte do princípio de que a afirmação geral «todos os pensamentos
implicam alguém que os pense» é verdadeira, hipótese que Descartes nunca
tenta estabelecer ou tornar explícita. Esta crítica baseia-se no pressuposto de
que Descartes apresentou a conclusão «eu sou» como resultado de uma
inferência logicamente válida, efetuada nos seguintes moldes:
Todos os pensamentos implicam alguém que os pense.
Neste momento existem pensamentos.
Logo, quem os pensa tem de existir.
No entanto, esta crítica não afeta o conceito de Cogito tal como ele é formulado
nas Meditações Metafisicas, uma vez que no texto não é em parte alguma
sugerido que se trata de uma inferência lógica. Descartes, pelo contrário,
parece estar a advogar a necessidade de introspeção por parte do leitor ou da
leitora e a desafiá-los para duvidar da verdade da asserção «eu penso, eu
existo».

O Círculo Cartesiano
Depois de Descartes ter determinado a veracidade da sua própria existência
enquanto ser pensante por meio do Cogito, a totalidade do seu projeto de
reconstrução encontra-se assente em dois fundamentos: a existência de um
Deus benevolente e o facto de tudo aquilo em que se pode acreditar de forma
clara e distinta ser verdade. Ambos são, em si mesmos, discutíveis.
Contudo, existe uma acusação mais fundamental que é muitas vezes dirigida à
estratégia de Descartes, nomeadamente a de que quando o filósofo argumenta
a favor da existência de Deus confia na noção de ideias claras e distintas e que
quando argumenta a favor da doutrina das ideias claras e distintas pressupõe a
existência de Deus. Por outras palavras, Descartes argumenta em círculo.»

Nigel Warburton, Grandes Livros de Filosofia, Lisboa, Edições 70, pp. 75-76.
6
Alguns aspetos revolucionários da teoria cartesiana

1. UMA NOVA CONCEÇÃO DE CIÊNCIA


«Todas as ciências não são senão o conhecimento humano, que permanece
sempre uno e idêntico, por mais diferentes que sejam os objetos aos quais se
aplica.» (R.D.E.)
Esta é uma ideia fundamental do pensamento cartesiano: a ideia da unidade do
corpo das ciências. Como está expresso no texto, esta unidade baseia-se na
unidade e identidade do espírito humano, do sujeito pensante.
Sejam quais forem os objetos ou assuntos a que se aplique, o espírito humano
permanece o mesmo no seu modo de conhecer. Tal como a luz do Sol é única
e idêntica por mais diversos que possam ser os objetos que ilumina, assim o
nosso conhecimento é único e idêntico, seja qual for a diversidade dos objetos
que investiga.
Dado que a luz não muda quando mudam os seus objetos, por analogia
diremos que o nosso modo de conhecer e o conhecimento não variam quando
mudam os objetos que consideram.
As várias ciências não são diversas maneiras de conhecer ou diversas luzes
sobre diferentes objetos. São diversas paisagens que uma mesma luz (um
mesmo modo de conhecer) ilumina.
Esta conceção cartesiana de ciência é radicalmente diferente da conceção
dominante (aristotélico-tomista), que diferenciava as ciências conforme os
objetos e estabelecia uma hierarquia entre elas, baseada no grau de
inteligibilidade contido nesses objetos.
Toda a ciência, segundo essa conceção, é ciência de um determinado objeto e
recebe as suas caraterísticas desse objeto (lembrar a alegoria da linha em
Platão e a hierarquia das ciências em Aristóteles). A atenção incidia no objeto.
A ciência não era encarada do ponto de vista do sujeito. Assim, era irredutível a
diversidade das ciências.

2. UMA NOVA CONCEÇÃO DE MÉTODO


Falar de uma ciência universal ou unitária implica falar de um método universal:
os objetos (as realidades a conhecer) podem variar, mas o modo como
conhecemos é sempre o mesmo, isto é, segundo as regras metodológicas da
evidência, da análise, da síntese, da enumeração e segundo duas operações
que são a intuição e a dedução.
O método é nas suas linhas gerais o seguinte:
a) No que respeita ao conhecimento da realidade o movimento é das ideias para as coisas.
Estas só serão objetos de conhecimento certo e evidente se as ideias que delas formarmos
forem claras e distintas, isto é, evidentes. Nunca atribuiremos às coisas senão o que captamos
com evidência nas ideias que delas formamos.
b) Antes de conhecer, devemos estabelecer as condições da verdade. Ou seja, antes de
falarmos das coisas, devemos encontrar a linguagem correta do seu conhecimento.
c) Devemos organizar os conhecimentos, isto é, ordená-los segundo um sistema de relações
de dependência.

3. UMA NOVA CONCEÇÃO DE VERDADE


Para Descartes, importa afirmar a autonomia da razão. Ela não deve perder a
sua unidade submetendo-se aos factos e modelando-se por eles. Deve
construir uma totalidade sistemática, uma unidade dedutiva, submetendo-se
apenas às regras que ela mesma estabelece.
Deste modo a verdade já não será, como se pensava, o acordo do juízo com a
coisa mesma. É aqui evidente uma profunda inversão da atitude do sábio: é a
ordem do real que deve harmonizar-se com ou submeter-se à ordem das
razões (da Razão) fundada na veracidade do Ser absolutamente perfeito:
Deus.
Tal como não podemos ler o livro do mundo se não constituirmos a língua que
o vai tornar inteligível, não podemos seguramente conhecer a verdade sobre as
coisas sem antes definirmos o que é a verdade. O conhecimento da verdade, o
que ela é, em que consiste, é a condição prévia que nos tornará capazes de
dizer, com segurança, que conhecemos as coisas.
Como é exposto na 1.ª regra do método, a verdade consiste na clareza e
distinção das ideias. Deixou de ser a adequação ou conformidade do espírito
com o real. Passou a ser uma simples qualidade interna da ideia.
Para Descartes, é esgotar energias e engenho tentar ajustar o pensamento às
coisas. Estas, tal como o livro que por si só, sem a criação de um dicionário, é
ilegível, são ininteligíveis. Tal como a língua que vai decifrar o livro do mundo
não está neste, a verdade não está nas coisas e, logo, é um contrassenso
entendê-Ia como adequação do pensar às coisas.
Sobre esta conceção de verdade é visível a influência dos estudos
matemáticos de Descartes, das suas investigações nesse domínio. Nas
matemáticas, a verdade de uma ideia não é atestada senão pela certeza que
nela intuímos, independentemente da experiência.

4. UMA NOVA CONCEÇÃO DE METAFÍSICA


Quer para Descartes quer para o saber tradicional, a metafísica é a ciência dos
primeiros princípios. A semelhança acaba, contudo, aqui:
Vejamos as diferenças:
a) Para a tradição, a metafísica era a ciência dos primeiros princípios do ser, ao passo que
para Descartes ela é a ciência dos primeiros princípios do conhecimento.
b) O que Descartes considera como primeiros princípios do sistema do saber nunca antes
tinham sido considerados primeiros princípios. São princípios como a existência do sujeito
pensante, a distinção alma-corpo e a existência de Deus.
Dizer «penso logo existo» não é, de modo nenhum, uma novidade mas, dizer que a
proposição «eu penso logo existo» é o primeiro princípio do sistema do
saber e que Deus está na base deste sistema enquanto garantia da
objetividade ou imutabilidade dos conhecimentos que o constituem, é algo de
radicalmente novo.
c) O que os filósofos até aí consideraram como primeiros princípios do sistema do saber eram
realidades das quais não tinham um conhecimento claro e distinto e daí a fragilidade do edifício
científico tradicional.
d) Para a filosofia tradicional de inspiração aristotélica e também platónica, a metafísica era o
momento culminante do sistema do saber (era o seu fecho), ao passo que para Descartes a
metafísica era a base do sistema, o seu momento inicial.
e) A tradição aristotélica construía o sistema do saber a partir da experiência o que, segundo
Descartes, punha em causa a autonomia da razão.

5. UMA NOVA CONCEÇÃO DE DEUS


a) Deus como garantia da verdade
Deus é a «raiz da árvore do saber». Se o Cogito, o «Eu penso logo existo», é a
primeira certeza que eu descubro, ela não é contudo fundamento da
objetividade e da imutabilidade do saber. O sujeito pensante constitui
conhecimentos, mas a garantia de que eles não são subjetivos, variáveis, só
pode ser dada por Deus. Só o Ser eterno assegura o que é próprio de um
conhecimento científico: ser sempre verdadeiro.
Esta tese era surpreendente para os contemporâneos de Descartes, formados
no espírito da filosofia tomista. Para esta, a afirmação da existência de Deus é
posterior à certeza sobre a existência das coisas sensíveis. Daí o remontar das
coisas sensíveis a Deus como de um efeito a uma causa.
«É um dos traços caraterísticos da filosofia cartesiana a necessidade de fazer apelo a Deus
para garantir as nossas verdades (transformá-las em conhecimentos objetivos). A filosofia
escolástica, à qual se censura o facto de constantemente fazer intervir a Teologia,
não se servia de Deus para chegar ao mundo (nem para fundar a ciência), mas
do mundo para atingir Deus». (Étienne Gilson)
Em Descartes, só o recurso a Deus e à sua veracidade garante a validade da
forte inclinação que sinto em crer na existência das coisas sensíveis e o caráter
absoluto das verdades racionais. A respeito deste último tema, declara que «o
ateu não pode ser geómetra». Entendamos bem esta tese! O ateu pode
demonstrar teoremas, e ficar persuadido tal como aquele que admite Deus,
mas não pode, sem a garantia divina, estar certo de que o teorema
permanecerá verdadeiro. O seu saber será pontual e parcial, a bem dizer
fugaz, e não aquilo a que podemos chamar participação na verdade eterna.

b) Deus como criador das essências e das existências


Neste ponto, Descartes está em desacordo com quase todos os teólogos,
sobretudo S. Tomás. Só Guilherme de Ockham, teólogo franciscano do século
XIV, ao que parece desconhecido de Descartes, ousara dizer que todas as
verdades (essências) lógicas, matemáticas ou morais, são criadas. Por outras
palavras, o ato de criação divino não obedeceu, não foi orientado por verdades
ou princípios lógicos e morais. Tudo foi criado por Deus (este ser vivo, esta
verdade matemática, etc.) de forma soberana, absolutamente livre. Ao decidir
que 2 + 2 são 4 e outras verdades, Deus fê-lo arbitrariamente. A decisão é
gratuita, não submetida a nenhuma lei. Assim é porque Deus assim quis. Deus
poderia ter feito com que 2 + 2 não somassem 4, poderia ter criado outras
verdades em vez daquelas que soberanamente incutiu no nosso entendimento
de uma vez para sempre.
«As verdades matemáticas que denominais eternas foram estabelecidas por Deus e dele
dependem inteiramente, tal como o resto das criaturas»
Se fez uma coisa e não outra, a razão disso é-nos incompreensível, pois,
apesar de Deus ser cognoscível, os seus desígnios ou finalidades são,
segundo Descartes, insondáveis.

7
A filosofia cartesiana é racionalista
Todas as ciências são a razão humana em exercício, são objetivações da
razão humana que, por si só, independentemente dos sentidos e de
preconceitos, constitui o edifício do saber. Esta autonomia da razão manifesta-
se no facto de ela encontrar em si própria, não só as chamadas verdades, mas
o critério da verdade. Como é evidente no itinerário metafísico cartesiano,
depois de depurada, purificada, a razão descobre na certeza da sua existência
enquanto sujeito puro o modelo da certeza, o critério da verdade. Só depois a
procura do saber se iniciará, consistindo, como se sabe, numa descoberta cada
vez mais profunda de si mesmo por parte do sujeito. É em si mesmo que o
sujeito pensante (a razão) encontra uma «imagem» racional, do mundo e,
previamente, de Deus.
É a exigência de autonomia da razão que determina todo o percurso
metafísico de Descartes. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à
posse de si mesma, libertando-a, na constituição do saber, de dependências
exteriores, não racionais. A realidade é em si mesma racional. Portanto, é a
razão, e só ela, que deve conhecê-la.
É em si e por si que a razão descobre Deus como ser perfeito que garante a
objetividade dos seus conhecimentos e é a razão que define em que consiste a
essência da realidade física: só é real o que é racional.
Evidencia-se o tema da autonomia da razão dizendo que o racionalismo cartesiano é um
inatismo. As ideias claras e distintas sobre as coisas são, no fundo, a nossa
própria razão, pois só podem ser tiradas dela. As verdades racionais não
provêm do exterior, caso contrário não seriam racionais mas sim fatuais ou
fictícias.
Deste modo, conhecer a verdade é reconhecê-la, atualizar, mediante um
método correto, algo que, enquanto seres racionais, possuímos desde sempre.
O próprio Descartes diz que ao conhecer «não me parece que aprenda algo de
novo mas sim que me recordo do que já sabia antes» (5.ª Meditação).
Por isso as verdades racionais não se ensinam. Só aprendemos a reencontrá-
Ias. As verdades racionais, como as matemáticas, não são recebidas, não têm
nenhuma fonte exterior à razão. O inatismo é a plena afirmação da autonomia
da razão: em termos de conhecimento, o inatismo funda ou justifica a recusa
de toda e qualquer autoridade exterior.
Compreende-se assim que Descartes defenda a constituição do edifício do
saber por um só arquiteto.

Texto de Luís Rodrigues

TEXTOS DE DESCARTES
1
Descartes resume a sua teoria do conhecimento
«Gostaria de expor as razões que servem para provar que os verdadeiros
princípios que permitem alcançar o mais alto grau da sabedoria, que consiste
no soberano bem da vida, são aqueles que expus neste livro; e, para tanto,
apenas duas são necessárias: a primeira, que os princípios sejam muito claros;
e a segunda, que deles se possa deduzir todas as outras coisas. Na verdade
apenas existem estas duas condições exigidas por esses princípios. Ora,
posso facilmente provar que são muito claros: em primeiro lugar pela forma
como os encontrei, isto é, rejeitando todas as coisas em que podia encontrar a
mínima oportunidade de duvidar; é certo que aquelas que não puderam ser
rejeitadas por este processo, e desde que passamos a considerá-las, são as
mais evidentes e as mais claras que o espírito humano consegue conhecer.
Aquele que pretende duvidar de tudo não pode no entanto duvidar que existe
enquanto duvida, e que aquele que assim raciocina, não podendo duvidar de si
próprio e todavia duvidando de tudo o resto, não é aquilo a que chamamos
corpo, mas sim aquilo a que chamamos alma ou pensamento. Assim.
Considerei o ser ou a existência de tal pensamento, como o primeiro princípio,
do qual deduzi muito claramente os seguintes: que Deus existe e é o autor de
tudo o que existe no mundo e que, sendo a fonte da verdade, não criou o
nosso entendimento de tal maneira que este se possa enganar no juízo que faz
das coisas e das quais tem uma perceção muito clara e muito distinta. São
estes os princípios de que me sirvo no que respeita às coisas imateriais ou
metafísicas, dos quais deduzo, muito claramente os princípios das coisas
corporais ou físicas: que há corpos extensos em comprimento, largura e altura,
que tomam diversas formas e se movem de diversas maneiras. Eis, em poucas
palavras, os princípios donde deduzo a verdade das outras coisas.»

René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa Edições 70, p. 16.

2
A dúvida como estratégia para procurar uma verdade indubitável
«1. Para examinar a verdade é necessário, pelo menos uma vez na vida,
pôr todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder.
Porque fomos crianças antes de sermos homens, e porque julgámos ora bem
ora mal as coisas que se nos apresentaram aos sentidos quando ainda não
tínhamos completo uso da razão, há vários juízos precipitados que nos
impedem agora de alcançar o conhecimento da verdade; [e de tal maneira nos
tornam confiantes que] só conseguimos libertar-nos deles se tomarmos a
iniciativa de duvidar, pelo menos uma vez na vida, de todas as coisas em que
encontrarmos a mínima suspeita de incerteza.
2. Há, também, que considerar como falsas todas as coisas de que se
pode duvidar.
Será mesmo muito útil rejeitarmos como falsas todas aquelas coisas em que
pudermos imaginar a mínima dúvida, de modo a que [se descobrirmos algumas
que apesar de tal precaução] nos pareçam claramente verdadeiras, possamos
considerar que também elas são muito certas e as mais fáceis que é possível
conhecer.»

René Descartes, Princípios da Filosofia, Edições 70, Lisboa, p. 27.


3
O conhecimento tem de ser constituído por verdades absolutas
«REGRA II ‒ Importa lidar unicamente com aqueles objetos para cujo
conhecimento certo e indubitável os nossos espíritos parecem ser
suficientes.

Toda a ciência é um conhecimento certo e evidente; nem aquele que duvida de


muitas coisas é
mais sábio do que quem nunca pensou nelas; parece até menos douto que
este último, se formou uma opinião errada a respeito de algumas. Por isso, é
melhor nunca estudar do que ocupar-se de objetos de tal modo difíceis que,
não podendo distinguir o verdadeiro do falso, sejamos obrigados a tomar como
certo o que é duvidoso, porque então não há tanta esperança de aumentar a
instrução como perigo de a diminuir. Por conseguinte, mediante esta
proposição, rejeitamos todos os conhecimentos somente prováveis, e
declaramos que se deve confiar apenas nas coisas perfeitamente conhecidas e
das quais não se pode duvidar.»
René Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Edições 70, Lisboa, p. 5.

4
A descoberta de uma verdade indubitável e da que dela imediatamente se
deduz
«7. Só poderemos duvidar se existirmos; este é o primeiro
conhecimento certo [que se pode adquirir].
Como rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar ou que imaginamos ser
falso, supomos facilmente que não há Deus, nem Céu, nem Terra, e que não
temos corpo. Mas enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas
poderíamos igualmente supor que não existimos: com efeito, temos tanta
repugnância em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente
ao mesmo tempo que pensa que [apesar das mais extravagantes suposições]
não poderíamos impedir-nos de acreditar que a conclusão penso, logo existo
não seja verdadeira, e por conseguinte a primeira e a mais certa que se
apresenta àquele que conduz os seus pensamentos por ordem.

8. Aseguir também se conhece a distinção entre a alma e o corpo.


Também me parece que este é o meio mais adequado para conhecer a
natureza da alma enquanto substância completamente distinta do corpo
porque, examinando o que somos, nós, que pensamos
agora estamos persuadidos de que fora do pensamento não há nada que seja
ou exista verdadeiramente, e concebemos claramente que, para ser, não
temos necessidade de extensão, de figura, de estar em qualquer lugar, nem de
outra coisa que se possa atribuir ao corpo, e que existimos
apenas porque pensamos. Por conseguinte, a noção que temos de alma ou de
pensamento precede. a que temos de corpo, e esta é mais certa visto que ainda
duvidamos que que no mundo haja corpos, mas sabemos seguramente que
pensamos.»

René Descartes, Princípios da Filosofia, Edições 70, Lisboa, p. 29.

5
O Cogito como modelo e critério de verdade
«Agora fecharei os olhos, taparei os ouvidos, porei de parte todos os sentidos,
apagarei também do meu pensamento todas as coisas corpóreas, ou pelo
menos, porque isto é quase impossível, não as tomarei em conta, por inanes e
falsas, e, dialogando só comigo próprio e inspecionando-me mais intimamente,
procurarei tornar-me o meu próprio eu progressivamente mais conhecido e
familiar. Eu sou uma coisa que pensa, quer dizer, que duvida, que afirma, que
nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que quer, que não quer,
que também imagina, e que sente. Porque como atrás notei, embora as coisas
que sinto ou que imagino não sejam possivelmente nada fora de mim, todavia
aqueles modos de pensar que chamo sensações e imaginações existem em
mim, de facto, enquanto são certos modos de pensar. E com estas poucas
palavras, enumerei tudo o que verdadeiramente sei, ou pelo menos, tudo aquilo
que até agora notei que sabia. Neste momento vou considerar com mais
exatidão se em mim há outros conhecimentos que não tomei em conta até
agora. Estou certo de que sou uma coisa que pensa. Mas sei o que se requer
para que eu tenha a certeza de alguma coisa? […] Parece-me que já posso
estatuir como regra geral que é absolutamente verdadeiro tudo aquilo que
compreendo clara e distintamente.»
René Descartes, Meditações da Filosofia Primeira, 3.ª Meditação

6
Ideias inatas, adventícias e factícias
«O erro principal e mais frequente que se pode descobrir nos juízos consiste
em que afirmo que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes
a certas coisas que estão fora de mim. Se considerasse as próprias ideias
como certos modos do meu pensamento e nãos as referisse a qualquer outra
coisa, dificilmente me poderiam oferecer matéria de erro.
Porém, destas ideias parece-me que umas são inatas, outras adventícias,
outras feitas por mim próprio. Porque que eu compreenda o que é “coisa”, o
que é “verdade”, o que é «pensamento», parece-me que reside na minha
própria natureza e que o não recebo de outra parte. Mas que eu ouça agora um
ruído, que veja o Sol, que sinta o calor das chamas, isto, segundo julguei até
agora, procede de certas coisas situadas fora de mim. E, por último, as
Sereias, os Hipogrifos, e seres semelhantes, são inventados por mim próprio.
Mas também posso crer que as ideias são todas adventícias, ou todas inatas,
ou todas factícias, uma vez que ainda não descobri claramente a sua origem
verdadeira.»
René Descartes, Meditações da Filosofia Primeira, 3.ª Meditação.

7
A intuição e a dedução
«Por intuição entendo, não a convicção flutuante fornecida pelos sentidos ou o juízo
enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito da mente
pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que
compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e
atenta, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão e que, por ser
mais simples, é ainda mais certo do que a dedução, se bem que esta última
não possa ser mal feita pelo homem, como acima observamos. Assim, cada
qual pode ver pela intuição intelectual que existe, que pensa, que um triângulo
é delimitado apenas por três linhas, que a esfera o é apenas por uma
superfície, e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas do que
a maioria observa, porque não se dignam aplicar a mente a coisas tão fáceis.
Ora, esta evidência e esta certeza da intuição não são apenas exigidas para as
simples enunciações, mas também para quaisquer raciocínios. Seja, por
exemplo, esta consequência: 2 e 2 é igual a 3 mais 1; é preciso ver
intuitivamente não só que 2 e 2são 4, e que 3e 1 são igualmente 4,mas, além
disso, que destas duas proposições se conclui necessariamente aquela
terceira.
Poderá agora perguntar-se porque é que à intuição juntamos um outro modo de
conhecimento, que se realiza por dedução; por ela entendemos o que se conclui
necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza. Foi imperioso proceder
assim, porque a maior parte das coisas são conhecidas com certeza, embora
não sejam em si evidentes, contanto que sejam deduzidas de princípios
verdadeiros, e já conhecidos, por um movimento contínuo e ininterrupto do
pensamento, que intui nitidamente cada coisa em particular: eis o único modo
de sabermos que o último elo de uma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo
que não a prendamos intuitivamente num só e mesmo olhar o conjunto dos
elos intermédios, de que depende a ligação; basta que os tenhamos
examinado sucessivamente e que nos lembremos que, do primeiro ao último,
cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos. Distinguimos portanto,
aqui, a intuição intelectual da dedução certa pelo facto de que, nesta, se
concebe uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; além disso,
para a dedução não é necessário, como para a intuição, uma evidência atual,
mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Pelo que
se pode dizer que estas proposições, que se concluem imediatamente a partir
dos primeiros princípios, são conhecidas, de um ponto de vista diferente, ora
por intuição, ora por dedução, mas que os primeiros princípios se conhecem
somente por intuição, e, pelo contrário, as conclusões distantes só o podem ser
por dedução.
Eis as duas vias mais seguras para chegar à ciência; do lado do espírito não se
devem admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e
passíveis de erro.»

René Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Lisboa, Edições 70, p. 7.

8
A importância do método
«Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente
as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar
inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente
o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber.
Aqui, há duas observações a fazer: não tomar absolutamente nada de falso por
verdadeiro, e chegar ao conhecimento de tudo. Com efeito, se ignorarmos algo
de quanto podemos saber é apenas porque ou nunca divisamos uma via que
nos conduzisse a tal conhecimento, ou porque caímos no erro oposto. Mas se
o método nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual para
não cairmos no erro contrário à verdade, e do meio de encontrar deduções
para chegar ao conhecimento de tudo, parece-me que nada mais se exige para
ele ser completo, já que nenhuma ciência se pode adquirir a não ser pela
intuição intelectual ou pela dedução, como antes ficou dito.»

René Descartes, Regras para a Direção do Espírito, Lisboa, Edições 70, p. 8.

9
Deus é o fundamento metafísico da objetividade do conhecimento
«Em que sentido se pode dizer que, se ignorarmos Deus, não podemos
ter conhecimento certo de nenhuma outra coisa.
Mas, quando o pensamento que desta maneira se conhece a si mesmo, não
obstante persistir ainda em duvidar das outras coisas, usa de circunspeção
para tentar estender o seu conhecimento mais além, encontra em si, primeiro,
as ideias de várias coisas; e enquanto as contempla simplesmente e não pode
garantir que exista alguma coisa fora de si semelhante a estas ideias, mas tão
pouco o nega, não corre o perigo de se enganar. Encontra também algumas
noções comuns com as quais compõe demonstrações que o persuadem tão
absolutamente que não poderá duvidar da sua verdade enquanto a isso se
aplica. Por exemplo, tem em si as ideias dos números e das figuras, e conta
também entre as suas noções comuns esta: "se somarmos quantidades iguais
a outras quantidades iguais, os totais serão iguais" e muitas outras tão
evidentes como esta, por meio das quais é fácil demonstrar que os três ângulos
de um triângulo são iguais a dois retos, etc. Enquanto percebe estas noções e
a ordem pela qual deduziu esta conclusão ou outras semelhantes, o
pensamento está muito seguro da sua verdade; mas como não poderia pensar
sempre nisto com igual atenção, quando acontece lembrar-se de alguma
conclusão sem ter em conta a ordem pela qual pode ser demonstrada e, no
entanto, pensa que o autor do seu ser teria podido criá-lo de tal natureza que
se enganasse em tudo o que lhe parece muito evidente, vê bem que tem um
justo motivo para desconfiar da verdade de tudo aquilo deque não se apercebe
distintamente e que não poderá ter nenhuma ciência certa até conhecer aquele
que o criou.»
Descartes, Princípios da Filosofia, § 13, Lisboa, Guimarães Editores, 1974, p.
22.

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