Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DOSSIÊ SOBRE
O RACIONALISMO DE DESCARTES
I
Síntese da teoria cartesiana do conhecimento
O projeto Construir um sistema de verdades
indubitáveis em que de uma verdade que
seja impossível considerar falsa possamos
deduzir outras verdades que sejam certezas
absolutas.
As razões de ser do 1. O sistema dos ditos conhecimentos do
projeto seu tempo era constituído por verdades e
falsidades.
2. Temos de separar o verdadeiro do falso e
justificar que o que acreditamos ser
verdadeiro é absolutamente verdadeiro.
3. O sistema dos ditos conhecimentos do
seu tempo não tinha bases firmes e estava
desorganizado a tal ponto que havia
falsidades na base do sistema e verdades
noutros pontos desse sistema.
4. Temos de encontrar uma verdade
indubitável que sirva como base ao sistema
dos conhecimentos e permita organizá-lo
firme e seguramente.
II
TEXTOS SOBRE DESCARTES
1
O conceito de ciência
Um homem que duvida de muitas coisas não é mais sábio do que aquele que nunca pensou
nelas; é-o até menos do que este último, se formou sobre algumas uma falsa opinião. Por isso
mais vale nunca estudar do que ocupar-se de objetos de tal modo difíceis que, sem podermos
distinguir o verdadeiro do falso, sejamos forçados a admitir por certo o que é duvidoso, pois
não há então tanta esperança em aumentar a doutrina quanto o perigo de a diminuir. Como
consequência, rejeitamos todos os conhecimentos que não passam de prováveis e
declaramos que é preciso confiarmos unicamente no que é perfeitamente conhecido e
de que não se pode duvidar.
Numa primeira fase, Descartes considera que, e entre as ciências do seu tempo, só duas
resistem a esta exigência da sua nova conceção de ciência: a Aritmética e a Geometria.
Mais tarde, porém, afirma que há outras verdades, as quais, não cabendo propriamente
no espaço das ciências geométricas ou matemáticas, não deixam de ser tão certas e
evidentes como elas ou talvez mesmo até mais: é o caso das verdades metafísicas,
relativas à natureza pensante do espírito (mente), à distinção da mente relativamente
ao corpo e ao conhecimento da existência de Deus.
Por conseguinte, Descartes não defende que verdades dignas de tal nome sejam só as
da Aritmética e da Geometria, mas revelará sempre a tendência para considerar que
toda a verdade deve assemelhar-se, pela sua certeza e evidência, à das demonstrações
daquelas duas ciências. Tais demonstrações, com efeito, são uma espécie de exemplo
concreto e já realizado de uma ciência que merece tal nome; e, por outro lado, o cultivo
dessas disciplinas, desde tempos imemoriais e de forma ininterrupta, é índice de que
o espírito humano não se deixou perverter completamente pelo emaranhado das
opiniões prováveis ou simplesmente falsas e que as “sementes de verdade”, de que a
humana razão dispõe, só necessitam de uma boa ocasião e de um bom método para se
desenvolverem em todas as suas potencialidades.
Descartes tem uma conceção sistemática e dedutiva da ciência. O saber, a ciência
verdadeira é uma longa cadeia de razões que se inferem umas das outras e não um
amontoado de verdades isoladas. A dimensão sistemática da conceção cartesiana da
ciência exprime-se nas metáforas a que o filósofo recorre para falar do seu projeto
global: o modelo arquitetónico (o edifício da ciência), ou o modelo orgânico (a
árvore). Daí a necessidade de procurar os “fundamentos”, as “raízes”, os
“alicerces”, expressões que percorrem de uma ponta à outra os textos cartesianos.
António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do Jogo, pp.
204-205 e 212.
As regras do método
1. A regra da evidência: “nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a conhecer
evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir
nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que
não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida”.
2. A regra da análise ou da divisão: “dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar
no maior número possível de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver”.
4. A regra da enumeração: “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais
que tivesse a certeza de nada omitir”.
A segunda aplica-se sobretudo às questões complexas, que, para poderem ser resolvidas
mais facilmente, terão de ser decompostas nos seus elementos mais simples e por
isso também mais claros e evidentes.
António Marques e Leonel Ribeiro dos Santos, Filosofia 2, Lisboa, A Regra do Jogo, p.
218.
3
A intuição e a dedução
A intuição
Para Descartes, não há senão duas vias pelas quais se pode chegar ao conhecimento
certo das coisas. Essas duas vias correspondem a outras tantas operações da razão. São
elas: a intuição e a dedução. Vejamos o que o filósofo entende por estas expressões e
como concebe a relação entre elas no processo de constituição da ciência.
O conceito de intuição não era novo e era abundantemente usado nos escritos
escolásticos. Todavia, Descartes tem consciência de que o usa num sentido
absolutamente novo e adverte os seus eventuais leitores de que não o confundam com
o sentido do uso corrente de tal termo. Em que consiste essa novidade?
c) Deste modo, os conceitos que são objeto de intuição caraterizam-se pela sua
simplicidade, pela sua clareza, distinção e evidência imediata; em suma, pela sua absoluta
certeza. É por isso que são as ideias de natureza intuitiva que se constituem como
princípios e fundamentos de outros conhecimentos. A filosofia cartesiana revela-se
como o esforço por chegar a encontrar quais são ou qual é essa intuição intelectual
mais originária de todas, que é capaz de fundar todas as outras e de onde todas as
outras recebem a sua luz e certeza.
d) Assim, não é qualquer objeto que é suscetível de constituir-se como objeto de uma
intuição, mas tão só aqueles que primam pela sua natureza absolutamente
racional. Descartes indica algumas dessas certezas intuitivas: a consciência da própria
existência e do próprio pensamento, as propriedades das figuras geométricas.
A dedução
Por dedução «entendemos toda a conclusão necessária tirada de outras coisas
conhecidas com certeza».
Descartes sabe que a maior parte das verdades a que o espírito humano tem acesso é
de natureza dedutiva e não de natureza intuitiva. O homem não tem uma intuição única
e total do conjunto das verdades e de todas as consequências que se podem extrair de
um único princípio. O homem não tem imediatamente presente, com absoluta
evidência ao seu espírito e de uma só vez, toda a série de verdades que constituem o
corpo da ciência. Só uma inteligência infinita e intemporal como a de Deus poderia ter
uma tal intuição.
a) A evidência das verdades deduzidas não é imediata e atual, mas mediada por outras
verdades primeiras a que há necessidade de recorrer. Daí que Descartes diga que a
certeza destas verdades deduzidas das primeiras seja, num certo sentido, retirada da
memória e não da inteligência, embora seja a inteligência a reconhecê-la.
Embora «se possa dizer que a evidência das verdades deduzidas e a certeza que o
espírito delas tem seja, em certo sentido, uma evidência e certeza diferidas, isso não
implica todavia que elas sejam menos verdades do que aquelas das quais recebem a
evidência. Não há lugar, na ciência cartesiana, para verdades autênticas e verdades
a meias. Há uma única cadeia de verdades que apenas se distinguem entre si pelo facto
de umas serem mais simples e outras mais complexas, pelo facto de as que são mais
simples serem, por isso também mais evidentes e primeiras na apreensão por parte do
espírito e as complexas só sucessivamente virem a ser deduzidas das primeiras e nesse
sentido serem elos sucessivos de uma cadeia contínua como é a ciência.»
4
As ideias
«Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias das suas obras, mas as
exposições mais conhecidas encontram-se em duas delas: no Discurso do
Método e nas Meditações Metafísicas. Nelas, Descartes mostra que o nosso
espírito possui três tipos de ideias que se diferenciam segundo sua origem e
qualidade:
1. Ideias adventícias (isto é, vindas de fora) ou empíricas: são aquelas que têm
origem nas nossas sensações, perceções, lembranças; são as ideias que nos
surgem por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se
referem. Por exemplo, a ideia de árvore, de pássaro, de instrumentos musicais,
etc. Não correspondem, geralmente, à realidade das próprias coisas. Assim,
andando à noite por uma floresta, vejo fantasmas. Quando raia o dia, descubro
que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento. Olho para o
céu e vejo, pequeno, o Sol. Acredito, então, que é menor do que a Terra, até
que os astrónomos provem racionalmente que aquele é muito maior do que
esta.
2. Ideias factícias ou da imaginação: são aquelas que criamos mediante a nossa
imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de ideias
adventícias que estão na nossa memória. Por exemplo, cavalo alado, fadas,
elfos, duendes, dragões, super-homem, unicórnio etc. São as fabulações das
artes, da literatura, dos contos infantis, dos mitos, das superstições. Estas
ideias não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram
inventadas por nós, mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as
inventaram.
3. Ideias inatas: são aquelas que não poderiam vir da nossa experiência
sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem
poderiam vir da nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para
compô-las a partir da nossa memória.
As ideias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já
nascemos com elas. Por exemplo, a ideia do infinito (pois não temos qualquer
experiência do infinito), as ideias matemáticas (a matemática pode trabalhar
com a ideia de uma figura de mil lados, o quiliógono, e, no entanto, jamais
tivemos e jamais teremos a perceção de uma figura de mil lados).
Essas ideias, diz Descartes, são “a marca do Criador” no espírito das criaturas
racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade.
Como as ideias inatas são colocadas no nosso espírito por Deus, serão sempre
verdadeiras, isto é, corresponderão integralmente às coisas a que se referem,
e, graças a elas, podemos julgar quando uma ideia adventícia é verdadeira ou
falsa e saber que as ideias factícias são sempre falsas (não correspondem a
nada fora de nós). Ainda segundo Descartes, as ideias inatas são as mais
simples que possuímos (simples não quer dizer “fáceis”, e sim não compostas
de outras ideias). A mais famosa das ideias inatas cartesianas é o “Penso, logo
existo” ou a ideia de Eu. Por serem simples, as ideias inatas são conhecidas
por intuição e são elas o ponto de partida da dedução racional.»
http://afilosofiadacaixapreta. blogspot. pt/2010/08/filosofia-de-rene-descartes.
html
5
Críticas a Descartes
Será que ele duvida de tudo?
«Embora a dúvida metódica pareça questionar tudo o que poderia
possivelmente levantar qualquer tipo de dúvidas, tal não se verifica de facto.
Descartes confia na exatidão da sua memória por exemplo, nunca colocando
em questão o facto de ter sonhado no passado ou a convicção de que os seus
sentidos o tenham por vezes enganado. Não questiona, ainda, que os
significados que associa a determinadas palavras sejam os mesmos de que
fizera uso anteriormente.
No entanto, não se trata de um problema relevante para o entendimento de
Descartes. A Dúvida Cartesiana continua a constituir uma poderosa forma de
ceticismo, tendo o filósofo resolvido apenas duvidar do que lhe era possível
duvidar. Uma forma mais extrema de ceticismo poderia ter minado por
completo a sua capacidade para a reflexão filosófica.
Crítica ao Cogito
Umas das críticas habitualmente dirigidas ao conceito cartesiano de Cogito, em
particular quando é apresentado sob a forma de «Penso, logo existo», é que
este parte do princípio de que a afirmação geral «todos os pensamentos
implicam alguém que os pense» é verdadeira, hipótese que Descartes nunca
tenta estabelecer ou tornar explícita. Esta crítica baseia-se no pressuposto de
que Descartes apresentou a conclusão «eu sou» como resultado de uma
inferência logicamente válida, efetuada nos seguintes moldes:
Todos os pensamentos implicam alguém que os pense.
Neste momento existem pensamentos.
Logo, quem os pensa tem de existir.
No entanto, esta crítica não afeta o conceito de Cogito tal como ele é formulado
nas Meditações Metafisicas, uma vez que no texto não é em parte alguma
sugerido que se trata de uma inferência lógica. Descartes, pelo contrário,
parece estar a advogar a necessidade de introspeção por parte do leitor ou da
leitora e a desafiá-los para duvidar da verdade da asserção «eu penso, eu
existo».
O Círculo Cartesiano
Depois de Descartes ter determinado a veracidade da sua própria existência
enquanto ser pensante por meio do Cogito, a totalidade do seu projeto de
reconstrução encontra-se assente em dois fundamentos: a existência de um
Deus benevolente e o facto de tudo aquilo em que se pode acreditar de forma
clara e distinta ser verdade. Ambos são, em si mesmos, discutíveis.
Contudo, existe uma acusação mais fundamental que é muitas vezes dirigida à
estratégia de Descartes, nomeadamente a de que quando o filósofo argumenta
a favor da existência de Deus confia na noção de ideias claras e distintas e que
quando argumenta a favor da doutrina das ideias claras e distintas pressupõe a
existência de Deus. Por outras palavras, Descartes argumenta em círculo.»
Nigel Warburton, Grandes Livros de Filosofia, Lisboa, Edições 70, pp. 75-76.
6
Alguns aspetos revolucionários da teoria cartesiana
7
A filosofia cartesiana é racionalista
Todas as ciências são a razão humana em exercício, são objetivações da
razão humana que, por si só, independentemente dos sentidos e de
preconceitos, constitui o edifício do saber. Esta autonomia da razão manifesta-
se no facto de ela encontrar em si própria, não só as chamadas verdades, mas
o critério da verdade. Como é evidente no itinerário metafísico cartesiano,
depois de depurada, purificada, a razão descobre na certeza da sua existência
enquanto sujeito puro o modelo da certeza, o critério da verdade. Só depois a
procura do saber se iniciará, consistindo, como se sabe, numa descoberta cada
vez mais profunda de si mesmo por parte do sujeito. É em si mesmo que o
sujeito pensante (a razão) encontra uma «imagem» racional, do mundo e,
previamente, de Deus.
É a exigência de autonomia da razão que determina todo o percurso
metafísico de Descartes. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à
posse de si mesma, libertando-a, na constituição do saber, de dependências
exteriores, não racionais. A realidade é em si mesma racional. Portanto, é a
razão, e só ela, que deve conhecê-la.
É em si e por si que a razão descobre Deus como ser perfeito que garante a
objetividade dos seus conhecimentos e é a razão que define em que consiste a
essência da realidade física: só é real o que é racional.
Evidencia-se o tema da autonomia da razão dizendo que o racionalismo cartesiano é um
inatismo. As ideias claras e distintas sobre as coisas são, no fundo, a nossa
própria razão, pois só podem ser tiradas dela. As verdades racionais não
provêm do exterior, caso contrário não seriam racionais mas sim fatuais ou
fictícias.
Deste modo, conhecer a verdade é reconhecê-la, atualizar, mediante um
método correto, algo que, enquanto seres racionais, possuímos desde sempre.
O próprio Descartes diz que ao conhecer «não me parece que aprenda algo de
novo mas sim que me recordo do que já sabia antes» (5.ª Meditação).
Por isso as verdades racionais não se ensinam. Só aprendemos a reencontrá-
Ias. As verdades racionais, como as matemáticas, não são recebidas, não têm
nenhuma fonte exterior à razão. O inatismo é a plena afirmação da autonomia
da razão: em termos de conhecimento, o inatismo funda ou justifica a recusa
de toda e qualquer autoridade exterior.
Compreende-se assim que Descartes defenda a constituição do edifício do
saber por um só arquiteto.
TEXTOS DE DESCARTES
1
Descartes resume a sua teoria do conhecimento
«Gostaria de expor as razões que servem para provar que os verdadeiros
princípios que permitem alcançar o mais alto grau da sabedoria, que consiste
no soberano bem da vida, são aqueles que expus neste livro; e, para tanto,
apenas duas são necessárias: a primeira, que os princípios sejam muito claros;
e a segunda, que deles se possa deduzir todas as outras coisas. Na verdade
apenas existem estas duas condições exigidas por esses princípios. Ora,
posso facilmente provar que são muito claros: em primeiro lugar pela forma
como os encontrei, isto é, rejeitando todas as coisas em que podia encontrar a
mínima oportunidade de duvidar; é certo que aquelas que não puderam ser
rejeitadas por este processo, e desde que passamos a considerá-las, são as
mais evidentes e as mais claras que o espírito humano consegue conhecer.
Aquele que pretende duvidar de tudo não pode no entanto duvidar que existe
enquanto duvida, e que aquele que assim raciocina, não podendo duvidar de si
próprio e todavia duvidando de tudo o resto, não é aquilo a que chamamos
corpo, mas sim aquilo a que chamamos alma ou pensamento. Assim.
Considerei o ser ou a existência de tal pensamento, como o primeiro princípio,
do qual deduzi muito claramente os seguintes: que Deus existe e é o autor de
tudo o que existe no mundo e que, sendo a fonte da verdade, não criou o
nosso entendimento de tal maneira que este se possa enganar no juízo que faz
das coisas e das quais tem uma perceção muito clara e muito distinta. São
estes os princípios de que me sirvo no que respeita às coisas imateriais ou
metafísicas, dos quais deduzo, muito claramente os princípios das coisas
corporais ou físicas: que há corpos extensos em comprimento, largura e altura,
que tomam diversas formas e se movem de diversas maneiras. Eis, em poucas
palavras, os princípios donde deduzo a verdade das outras coisas.»
2
A dúvida como estratégia para procurar uma verdade indubitável
«1. Para examinar a verdade é necessário, pelo menos uma vez na vida,
pôr todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder.
Porque fomos crianças antes de sermos homens, e porque julgámos ora bem
ora mal as coisas que se nos apresentaram aos sentidos quando ainda não
tínhamos completo uso da razão, há vários juízos precipitados que nos
impedem agora de alcançar o conhecimento da verdade; [e de tal maneira nos
tornam confiantes que] só conseguimos libertar-nos deles se tomarmos a
iniciativa de duvidar, pelo menos uma vez na vida, de todas as coisas em que
encontrarmos a mínima suspeita de incerteza.
2. Há, também, que considerar como falsas todas as coisas de que se
pode duvidar.
Será mesmo muito útil rejeitarmos como falsas todas aquelas coisas em que
pudermos imaginar a mínima dúvida, de modo a que [se descobrirmos algumas
que apesar de tal precaução] nos pareçam claramente verdadeiras, possamos
considerar que também elas são muito certas e as mais fáceis que é possível
conhecer.»
4
A descoberta de uma verdade indubitável e da que dela imediatamente se
deduz
«7. Só poderemos duvidar se existirmos; este é o primeiro
conhecimento certo [que se pode adquirir].
Como rejeitamos tudo aquilo de que podemos duvidar ou que imaginamos ser
falso, supomos facilmente que não há Deus, nem Céu, nem Terra, e que não
temos corpo. Mas enquanto duvidamos da verdade de todas estas coisas
poderíamos igualmente supor que não existimos: com efeito, temos tanta
repugnância em conceber que aquele que pensa não existe verdadeiramente
ao mesmo tempo que pensa que [apesar das mais extravagantes suposições]
não poderíamos impedir-nos de acreditar que a conclusão penso, logo existo
não seja verdadeira, e por conseguinte a primeira e a mais certa que se
apresenta àquele que conduz os seus pensamentos por ordem.
5
O Cogito como modelo e critério de verdade
«Agora fecharei os olhos, taparei os ouvidos, porei de parte todos os sentidos,
apagarei também do meu pensamento todas as coisas corpóreas, ou pelo
menos, porque isto é quase impossível, não as tomarei em conta, por inanes e
falsas, e, dialogando só comigo próprio e inspecionando-me mais intimamente,
procurarei tornar-me o meu próprio eu progressivamente mais conhecido e
familiar. Eu sou uma coisa que pensa, quer dizer, que duvida, que afirma, que
nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que quer, que não quer,
que também imagina, e que sente. Porque como atrás notei, embora as coisas
que sinto ou que imagino não sejam possivelmente nada fora de mim, todavia
aqueles modos de pensar que chamo sensações e imaginações existem em
mim, de facto, enquanto são certos modos de pensar. E com estas poucas
palavras, enumerei tudo o que verdadeiramente sei, ou pelo menos, tudo aquilo
que até agora notei que sabia. Neste momento vou considerar com mais
exatidão se em mim há outros conhecimentos que não tomei em conta até
agora. Estou certo de que sou uma coisa que pensa. Mas sei o que se requer
para que eu tenha a certeza de alguma coisa? […] Parece-me que já posso
estatuir como regra geral que é absolutamente verdadeiro tudo aquilo que
compreendo clara e distintamente.»
René Descartes, Meditações da Filosofia Primeira, 3.ª Meditação
6
Ideias inatas, adventícias e factícias
«O erro principal e mais frequente que se pode descobrir nos juízos consiste
em que afirmo que as ideias que estão em mim são semelhantes ou conformes
a certas coisas que estão fora de mim. Se considerasse as próprias ideias
como certos modos do meu pensamento e nãos as referisse a qualquer outra
coisa, dificilmente me poderiam oferecer matéria de erro.
Porém, destas ideias parece-me que umas são inatas, outras adventícias,
outras feitas por mim próprio. Porque que eu compreenda o que é “coisa”, o
que é “verdade”, o que é «pensamento», parece-me que reside na minha
própria natureza e que o não recebo de outra parte. Mas que eu ouça agora um
ruído, que veja o Sol, que sinta o calor das chamas, isto, segundo julguei até
agora, procede de certas coisas situadas fora de mim. E, por último, as
Sereias, os Hipogrifos, e seres semelhantes, são inventados por mim próprio.
Mas também posso crer que as ideias são todas adventícias, ou todas inatas,
ou todas factícias, uma vez que ainda não descobri claramente a sua origem
verdadeira.»
René Descartes, Meditações da Filosofia Primeira, 3.ª Meditação.
7
A intuição e a dedução
«Por intuição entendo, não a convicção flutuante fornecida pelos sentidos ou o juízo
enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito da mente
pura e atenta tão fácil e distinto que nenhuma dúvida nos fica acerca do que
compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito da mente pura e
atenta, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão e que, por ser
mais simples, é ainda mais certo do que a dedução, se bem que esta última
não possa ser mal feita pelo homem, como acima observamos. Assim, cada
qual pode ver pela intuição intelectual que existe, que pensa, que um triângulo
é delimitado apenas por três linhas, que a esfera o é apenas por uma
superfície, e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas do que
a maioria observa, porque não se dignam aplicar a mente a coisas tão fáceis.
Ora, esta evidência e esta certeza da intuição não são apenas exigidas para as
simples enunciações, mas também para quaisquer raciocínios. Seja, por
exemplo, esta consequência: 2 e 2 é igual a 3 mais 1; é preciso ver
intuitivamente não só que 2 e 2são 4, e que 3e 1 são igualmente 4,mas, além
disso, que destas duas proposições se conclui necessariamente aquela
terceira.
Poderá agora perguntar-se porque é que à intuição juntamos um outro modo de
conhecimento, que se realiza por dedução; por ela entendemos o que se conclui
necessariamente de outras coisas conhecidas com certeza. Foi imperioso proceder
assim, porque a maior parte das coisas são conhecidas com certeza, embora
não sejam em si evidentes, contanto que sejam deduzidas de princípios
verdadeiros, e já conhecidos, por um movimento contínuo e ininterrupto do
pensamento, que intui nitidamente cada coisa em particular: eis o único modo
de sabermos que o último elo de uma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo
que não a prendamos intuitivamente num só e mesmo olhar o conjunto dos
elos intermédios, de que depende a ligação; basta que os tenhamos
examinado sucessivamente e que nos lembremos que, do primeiro ao último,
cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos. Distinguimos portanto,
aqui, a intuição intelectual da dedução certa pelo facto de que, nesta, se
concebe uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; além disso,
para a dedução não é necessário, como para a intuição, uma evidência atual,
mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Pelo que
se pode dizer que estas proposições, que se concluem imediatamente a partir
dos primeiros princípios, são conhecidas, de um ponto de vista diferente, ora
por intuição, ora por dedução, mas que os primeiros princípios se conhecem
somente por intuição, e, pelo contrário, as conclusões distantes só o podem ser
por dedução.
Eis as duas vias mais seguras para chegar à ciência; do lado do espírito não se
devem admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e
passíveis de erro.»
8
A importância do método
«Entendo por método regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente
as observar nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar
inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre gradualmente
o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o que será capaz de saber.
Aqui, há duas observações a fazer: não tomar absolutamente nada de falso por
verdadeiro, e chegar ao conhecimento de tudo. Com efeito, se ignorarmos algo
de quanto podemos saber é apenas porque ou nunca divisamos uma via que
nos conduzisse a tal conhecimento, ou porque caímos no erro oposto. Mas se
o método nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual para
não cairmos no erro contrário à verdade, e do meio de encontrar deduções
para chegar ao conhecimento de tudo, parece-me que nada mais se exige para
ele ser completo, já que nenhuma ciência se pode adquirir a não ser pela
intuição intelectual ou pela dedução, como antes ficou dito.»
9
Deus é o fundamento metafísico da objetividade do conhecimento
«Em que sentido se pode dizer que, se ignorarmos Deus, não podemos
ter conhecimento certo de nenhuma outra coisa.
Mas, quando o pensamento que desta maneira se conhece a si mesmo, não
obstante persistir ainda em duvidar das outras coisas, usa de circunspeção
para tentar estender o seu conhecimento mais além, encontra em si, primeiro,
as ideias de várias coisas; e enquanto as contempla simplesmente e não pode
garantir que exista alguma coisa fora de si semelhante a estas ideias, mas tão
pouco o nega, não corre o perigo de se enganar. Encontra também algumas
noções comuns com as quais compõe demonstrações que o persuadem tão
absolutamente que não poderá duvidar da sua verdade enquanto a isso se
aplica. Por exemplo, tem em si as ideias dos números e das figuras, e conta
também entre as suas noções comuns esta: "se somarmos quantidades iguais
a outras quantidades iguais, os totais serão iguais" e muitas outras tão
evidentes como esta, por meio das quais é fácil demonstrar que os três ângulos
de um triângulo são iguais a dois retos, etc. Enquanto percebe estas noções e
a ordem pela qual deduziu esta conclusão ou outras semelhantes, o
pensamento está muito seguro da sua verdade; mas como não poderia pensar
sempre nisto com igual atenção, quando acontece lembrar-se de alguma
conclusão sem ter em conta a ordem pela qual pode ser demonstrada e, no
entanto, pensa que o autor do seu ser teria podido criá-lo de tal natureza que
se enganasse em tudo o que lhe parece muito evidente, vê bem que tem um
justo motivo para desconfiar da verdade de tudo aquilo deque não se apercebe
distintamente e que não poderá ter nenhuma ciência certa até conhecer aquele
que o criou.»
Descartes, Princípios da Filosofia, § 13, Lisboa, Guimarães Editores, 1974, p.
22.