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Filosofia do conhecimento

Análise comparativa de duas teorias do conhecimento

— A natureza do conhecimento

Conhecimento proposicional

De acordo com a análise platónica, o conhecimento proposicional envolve três condições fundamentais:
uma condição de crença, uma condição de verdade e uma condição de justificação. A crença é,
portanto, uma condição necessária para o conhecimento. Mas não é condição suficiente: a crença não
basta para o conhecimento; é preciso algo mais. De acordo com uma definição tradicional, o
conhecimento proposicional consiste em crenças verdadeiras justificadas.

Justificação

Podemos alegar que uma crença só estará adequadamente justificada se estiver apoiada por razões tão
fortes que não exista a menor hipótese de ela ser falsa.Segundo esta perspectiva, uma justificação
adequada terá de ser infalível, mas isto é muito implausível, concluindo-se então que uma justificação
adequada poderá ser falível (exemplo: a crença de que Fernando Pessoa escreveu O Livro do
Desassossego poder ser falsa).

— Conhecimento a posteriori e a priori

O conhecimento a posteriori (ou conhecimento empírico) é aquele que depende da experiência, seja ela
sensorial (que advém dos nossos sentidos como a visão e a audição) ou introspectiva (que advém
daquilo que encontramos dentro de nós como emoções e desejos). O conhecimento aprovado pelas
ciências da natureza e pelas ciências humanas é a posteriori, e o mesmo se pode dizer de muito
conhecimento que obtemos todos os dias — estão três cadeiras nesta sala; ontem estive
profundamente triste; o universo está em expansão desde o big bang.

O conhecimento a priori é aquele que não depende da experiência empírica. O nosso conhecimento a
priori é constituído por crenças que podemos justificar recorrendo unicamente ao pensamento, sem nos
baseamos em quaisquer dados empíricos. As verdades da lógica e da matemática, bem como
quaisquer afirmações que possamos saber que são verdadeiras pensando apenas no seu significado,
constituem conhecimento a priori — os solteiros são casados; tudo aquilo que é branco tem cor; a+b =
b+a.

Problema: será que o conhecimento a priori se reduz ao conhecimento que nada nos diz sobre a
realidade?

Empirismo

Os empiristas, entre os quais se inclui Hume, são céticos quanto ao conhecimento a priori. Os
empiristas declaram que a lógica, matemática, e todas as afirmações que são verdadeiras, por definição
nada nos dizem sobre a realidade propriamente dita. Pensam, portanto, que não existe conhecimento a
priori na realidade, ou seja, todo o conhecimento da realidade é a posteriori ou empírico.

Racionalismo

Os racionalistas, entre os quais se inclui Descartes, geralmente não negam que exista conhecimento a
posteriori, mas pensam que, recorrendo unicamente à razão ou ao pensamento, podemos obter
conhecimento da realidade propriamente dita. Os racionalistas supõe frequentemente que o
conhecimento a priori, por oposição ao conhecimento empírico, assenta em justificações certas e
infalíveis.

— Descartes contra o ceticismo

A dúvida metódica

Problema: será que sabemos o que julgamos saber?

Os céticos declaram que nada sabemos realmente, uma vez que os nossos conhecimentos são
injustificados. Descartes tem o objetivo de mostrar que os céticos estão enganados. Segundo
Descartes, para obtermos a certeza temos de encontrar um fundamento inteiramente seguro para o
conhecimento. Como haveremos de encontrar esse fundamento seguro? Recorrendo à dúvida, sugere
Descartes. Dúvida metódica — vamos tentar colocar em dúvida as nossas crenças, rejeitando
provisoriamente todas aquelas que não sejam indubitáveis.

Descartes começa por duvidar de todas as crenças que se baseiam na experiência empírica e chega a
duas conclusões:

● Os nossos sentidos não são completamente confiáveis, uma vez que enganam-se em algumas
ocasiões, e como é imprudente confiar naqueles que nos enganam nem que seja uma vez,
devemos rejeitar as nossas crenças empíricas, pois estas podem ser falsas.
● Nunca podemos distinguir por sinais completamente seguros o sono da vigília. Assim, é possível
que estejamos a sonhar quando nos julgamos e, portanto, talvez tudo aquilo que pensamos
estar a observar não passe de uma ilusão.

Depois de concluir que as crenças a posteriori não podem servir como fundamento para o conhecimento
certo, Descartes coloca em dúvida as crenças a priori, como as que temos na área da matemática, que
nos parecem completamente certas. Descartes pensa que estas crenças não são indubitáveis e para
mostrar isso este introduz o argumento do gênio maligno, o qual também nos permite questionar todas
as crenças empíricas.

O gênio maligno é um ser extremamente malévolo que está empenhado em fazer-nos viver na ilusão.
Sem termos noção, ente poderia controlar os nossos pensamentos e fazer-nos cometer os erros de
raciocínio mais elementares. Ora, se existe um gênio maligno, tudo aquilo que julgamos existir à nossa
volta não passará de uma ilusão.

O cogito

Recorrendo à dúvida metódica descobrimos o cogito: “Penso, logo existo”. Para Descartes, o cogito
constitui o fundamento certo do conhecimento, pois nem mesmo um gênio maligno poderia enganar-nos
no que respeita à nossa própria existência. O cogito nos assegura apenas da nossa existência
enquanto seres pensantes, podendo a existência dos outros e do nosso corpo ser ainda uma ilusão.

Descartes admite então a seguinte regra geral: é verdadeiro aquilo que concebemos de forma muito
clara e distinta.

A existência de Deus

Segundo Descartes a existência de Deus é uma ideia clara e distinta. Deus existe porque a ideia de um
ser perfeito tem de ter sido causada por um ser perfeito e um ser perfeito não pode deixar de ter a
perfeição de existir. Como Deus existe e não é um ser enganador, podemos estar certos de que, se
usarmos bem as nossas faculdades, confiando apenas naquilo que compreendemos com clareza e
distinção, obteremos conhecimento genuíno.

O círculo cartesiano

O círculo cartesiano representa uma das objeções mais fortes à teoria de Descartes. Afirmar que Deus
existe porque concebemos a sua existência com clareza e distinção, e dizer depois que podemos
confiar naquilo que concebemos com clareza e distinção porque Deus existe, parece constituir uma
falácia de circularidade.

— O ceticismo mitigado de Hume

Impressões e ideias

Hume perseguiu o objetivo de desenvolver uma teoria da natureza humana, por meio da qual pretendia
explicar o funcionamento da nossa mente.

Hume fala de percepções para se referir aos conteúdos da nossa mente. De acordo com a sua
perspectiva, as impressões e as ideias são as duas únicas espécies de percepções. As impressões são
mais vívidas e intensas do que as ideias. As impressões abrangem as nossas sensações externas
(visuais, auditivas, etc.) bem como os nossos sentimentos internos (emoções, desejos,etc.). As ideias
são as percepções que constituem o nosso pensamento (cópias esbatidas das impressões — princípio
da cópia).

Nesta perspectiva todas as ideias têm origem empírica, não existindo, portanto, ideias inatas. — Uma
pessoa que seja cega de nascença não conseguirá formar a ideia de azul, já que nunca teve a
impressão de azul.

Relações de ideias e questões de facto

Existem dois géneros de investigação: a investigação de relação de ideias e a investigação de questões


de facto.

O conhecimento de relações de ideias é a priori e corresponde a proposições que têm as seguintes


características: são verdades necessárias (não podemos negá-las sem nos contradizermos) e nada
dizem sobre o que existe no mundo.

O conhecimento de questões de facto é a posteriori e correspondem a proposições que têm as


seguintes características: são verdades contingentes (podemos negá-las sem nos contradizermos) e
dizem respeito àquilo que existe no mundo.

O raciocínio relativo às questões de facto é muito diferente do raciocínio demonstrativo dos


matemáticos, pois tem um caráter indutivo e assenta na relação de causa e efeito — a relação de
causalidade. A causalidade consiste apenas numa conjunção constante entre géneros de
acontecimentos ou de objetos observáveis. Nunca observamos qualquer conexão necessária entre
causa e efeito. A ideia de conexão necessária tem origem num sentimento interno produzido pelo
hábito.
Críticas ao ceticismo radical

Todas as formas de ceticismo radical são indefensáveis:

O ceticismo cartesiano é incurável. Se começarmos por desconfiar totalmente das nossas faculdades,
nunca conseguiremos estabelecer qualquer conclusão a partir do cogito.
O ceticismo pirrónico é impraticável. Deixa de acreditar em tudo o que não conseguimos justificar,
vivendo permanentemente na dúvida, é algo que está fora do nosso alcance e que tornaria impossível a
ação.

Duas conclusões céticas de Hume

De acordo com Hume, devemos adotar um ceticismo mitigado. O ceticismo resulta das seguintes
conclusões: somos incapazes de justificar a crença de que a natureza é uniforme, a qual subjaz às
nossas inferências causais e somos incapazes de justificar a crença de que o mundo exterior é real,
pois não conseguimos mostrar que as nossas percepções são causadas por objeto reais.

O ceticismo mitigado ou moderado não reage a estas conclusões como o pirrónico. Não passa a duvidar
de tudo aquilo que não consegue justificar, mas toma consciência dos limites do entendimento humano.
Isso leva-o a não ser dogmático e a evitar questões demasiado especulativas.

— Comparação entre Descartes e Hume

Ideias inatas

Hume nega a existência de ideias inatas. Descartes descarta esta perspectiva. Em seu entender,
existem três tipos de ideias: as factícias (resultam da nossa vontade, que as gera imaginativamente
partir de outras ideias); as adventícias (a que Hume chamaria de impressões, são percepções causadas
por objetos materiais) e as inatas (estão na nossa mente desde que esta começou a existir).

Para Hume, mesmo a ideia de Deus resulta da combinação de várias ideias, que acabam, todas elas,
por ter a sua origem em impressões.

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