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Publicação:04/2013
Era uma terça-feira, 13 de dezembro de 2011, quando Mauro Costa e Raoni Silva,
respectivamente gerente de ecorrelações e coordenador de ecorrelações da Natura, se
dirigiam à associação de agricultores de Moju, no Pará, uma aldeia quilombola a cerca de
90km da Unidade Industrial da Natura, em Benevides (UIB). A finalidadeda visita era a
negociação anual de fornecimento de insumos da biodiversidade. Durante o percurso de
“cabocla” (barco comum na região amazônica), eles conversavam sobre a “sustentabilidade”
do modelo de negócios da empresa como forma de continuar desenvolvendo as regiões
atuantes, mas também possibilitando à Natura obter vantagens frente a seus concorrentes.
A UIB estava na Amazônia desde 2006. Contudo, a crescente importância dos insumos da
biodiversidade amazônica em seus produtos começava a preocupar Mauro. Segundo as
práticas da Unidade com as comunidades fornecedoras, os agricultores tinham a garantia de
compra de parte da produção anual por pelo menos três anos, mas não havia uma estimativa
exata do potencial de aceitação dos produtos finais (shampoos, sabonetes e cremes, entre
outros) pelos consumidores da Natura.
Além disso, a prática do time de Benevides era investir não só em treinamento e
capacitação, mas também em transferência de conhecimento e de investimentos financeiros,
o que potencializava a formação de competências nas comunidades. Entretanto, como estas
não eram obrigadas a fornecer os insumos exclusivamente para a Natura, isso poderia atrair
potenciais concorrentes. Vale destacar que essas comunidades já vinham sendo sondadas por
outras empresas.
Ponderando todos esses fatos, Mauro e Raoni discutiam se a Natura conseguiria
realmente conciliar vantagens competitivas e o desenvolvimento de comunidades, mesmo
não havendo relação de exclusividade no suprimento de insumos.
A “cabocla” seguia pelo volumoso rio amazônico, e as dúvidas sobre a viabilidade do
modelo de negócio da Natura UIB continuavam a inquietar Mauro e Raoni. Em breve, eles
desembarcariam na comunidade de Moju para a reunião em que apresentariam aos
produtores as propostas de suprimento e preço.
1
Este caso foi desenvolvido pelos professores, exclusivamente para fins de discussão em sala de aula, e não se
propõe a julgar a eficácia oua ineficáciagerencial,nem tampoucodeve servir comofontede dados primários.
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A Natura
A Natura foi fundada em 1969, por Antônio Luiz da Cunha Seabra, com a finalidade de
unir a cosmética e as relações. 2 Anos depois, respectivamente em 1979 e 1983, se juntaram a
aos empresários Guilherme Peirão Leal e Pedro Luiz Barreiros Passos. Os três definiram as
bases do que viria a ser a Natura Cosméticos, tanto na estruturação da empresa quanto em
suas crenças e visão de mundo.
A missão (“razão de ser”) da Natura se fundamenta na busca de produtos que promovam
“bem-estar”– relação harmoniosa e agradável do indivíduo consigo mesmo e com seu corpo
– e “estar bem" – relação empática, bem-sucedida e prazerosa do indivíduo com o outro e
com a natureza de que faz parte. Segundo as crenças da empresa, “A vida é um
encadeamento de relações”.3
Em 2004, a Natura abriu capital no “Novo Mercado” da Bovespa,4 obtendo, naquele ano, uma
receita de vendas de R$ 2.472 milhões e lucro líquido de R$ 300,3 milhões. De lá até 2011, a
empresa teve uma evolução de 279% na receita de vendas e de 277% no lucro líquido,
chegando a R$ 6.887 e R$ 830,9 milhões respectivamente em 2011. 5 Ademais, de 2006 a 2011,
teve um aumento 4% na margem de lucro, assim como bons indicadores ROA (23,99%) e
ROE (60,75%) neste último período. Foi nomeada uma das 21 mais sustentáveis pela revista
Exame, tanto 2010 quanto em 2011,6 e faz parte de vários índices que reúnem empresas
comprometidas com a sustentabilidade social e ambiental tais como o ISE (Índice de
Sustentabilida de Empresarial), oIGC (Índice de Governança Corporativa) e o ICO2(Índice
Carbono Eficiente), da BM&FBOVESPA.
2
RelatórioAnualNatura,2011,p.9
3
RelatórioAnualNatura,2011,p.3.
4
NaturaWebsite.Disponívelem:<http://scf.natura.net/SobreANatura/>.Acessoem:9set.2012.
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Esse cenário favoreceu companhias que apostaram em franquias, como o Boticário, que
verificou um crescimento de dois dígitos no mesmo período. E estimulou a entrada de novos
players, como o grupo frigorífico JBS, que adquiriu as marcas Albany, Francis, Francis Hydrata,
Neutrox e Ox. O grupo JBS pretendia ser a “Unilever brasileira” nos próximos anos. 10 Além
dele, a Bombril, conhecida marca de lã de aço e produtos de limpeza doméstica, também
entrou no setor, pela aquisição da marca Ecologie, visando aproveitar sinergias entre o
mercado de cuidados com beleza e com o lar.
As dificuldades da Natura e da Avon na coordenação dos sistemas de informação para
venda também favoreceram outros competidores que trabalham com vendas no varejo, tais
como a Unilever, a Procter & Gamble (P&G) e a L’Oréal. Esta última, em particular,
desenvolveu uma linha de produtos à base de cacau.
Apesar do baixo crescimento relativo em 2011, o mercado brasileiro de cosméticos e
produtos de cuidado pessoal ainda está aquecido. Nesse ano, o Brasil teve o mais rápido
crescimento em alguns segmentos como o de produtos para depilação (21,12%), bebês e
crianças (15,62%), cuidados com os cabelos (7,15%) e banho (5,56%), entre outros.
Segundo analistas,11 as previsões desse mercado até 2016 são que entre os BRIC’s 12, o
Brasil se mantenha como líder em vendas no setor, com 46% do total vendido, frente à China,
à Rússia e à Índia, respectivamente com 32%, 12% e 10%. Um fator determinante para a
manutenção da liderança brasileira éo aumento do mercado consumidor pelo crescimento da
classe C13, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste.
Além disso, o consumidor brasileiro e mundial mostra uma tendência a aumentar seu
consumo de produtos premium da categoria de cosméticos. Entre 2011 e 2016, por exemplo,
espera-se um crescimento total de 117,9% no mercado de desodorantes e de 74,8% no de
produtos para banho.14 Também produtos relacionados à biodiversidade parecem ter uma
aceitação relativamente considerável pelos consumidores: a marca Ekos, da Natura, aparece
como o sexto maior market share do setor no Brasil, com uma constante presença de ao menos
1,5% nos últimos quatro anos (2008-2011).
A linha Ekos
A linha Natura Ekos foi lançada em 2000, principalmente para desenvolver um modelo
inovador na indústria de cosméticos, explorando a ideia de que o ser humano e a natureza
são um só e de que essa relação deveria ser reforçada no cuidado com a beleza. Assim, o
cuidado pessoal estaria muito mais ligado à relação do ser humano com o meio ambiente do
que propriamente a pesquisas tecnológicas, como fazem outras empresas de cosméticos.
Segundo Marcelo Cardoso,vice-presidente de Desenvolvimento Organizacional e
Sustentabilidade da Natura:
“Como é que nós vamos competir com a L’Oreal, com a Unilever, com a Avon, que investem milhões de
dólares em pesquisa e desenvolvimento para pesquisar a molécula?[...] Então, a Natura, naquele
momento [1998], fez uma aposta na biodiversidade brasileira como eixo central de investimento.”
5RelatóriosAnuaisNatura.
6 Revista Exame. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/meio-ambiente-e-energia/noticias/21-empresas-modelo-em-
sustentabilidade-em-2011>. Acessoem:9 set.2012.
7RelatórioAnualNatura,2011,p.53.
8RelatórioAnualAvon,2011,p.32.
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9 10 EuromonitorInternational"BeautyandPersonalCareinBrazil2012",p.2.
11
EuromonitorInternational“BeautyandPersonalCareinBrazil2012”,p.2.
12
AsiglaBRIC’ssignifica:“Brasil,Rússia,ÍndiaeChina”.
13
SegundocritérioABEP(AssociaçãoBrasileiradeEmpresasdePesquisa)aclasseC(considerandoC1eC2)temumarenda
médiadeR$1416,00.Fonte: http://www.abep.org/novo/Content.aspx?ContentID=835
14
EuromonitorInternational"BeautyandPersonalCareinBrazil2012".Idem,p.18.
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Entretanto, a relação da Natura UIB com essas comunidades não seguia o modelo
tradicional de “compra e venda” no mercado spot, de curto prazo. As particularidades da
região amazônica e a inexistência de um mercado regular para produtos como o murumuru,
a andiroba, o cupuaçu, o cacau e o açaí, entre outros insumos da biodiversidade, tornam
muito difícil a compra e venda desses produtos. Nas palavras de José Renato Cagnon,
gerente da Unidade Industrial de Benevides:
“Eu desafio você a ir à Amazônia com cinco milhões no bolso e tentar comprar alguma coisa. Você
verá que não consegue comprar nada.”
Foi para viabilizar a obtenção desses insumos essenciais à linha Ekos que a UIB e a Natura
desenvolveram toda uma metodologia de diálogo e relacionamento com as comunidades
fornecedoras amazônicas.
As parcerias locais
Um dos problemas iniciais da Natura UIB foi como encontrar potenciais fornecedores
numa região com deficiências de logística, informação e comunicação e como reter os
fornecedores conseguidos.
Para implementar esse modelo de negócios, a UIB precisou contar com o apoio de
parceiros locais que conheciam a região, tinham contato prévio com as associações e,
sobretudo, tinham legitimidade na relação com essas comunidades. Um desses parceiros foi
a ONG Fase (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional). Criada em 1961,
com sede no Rio de Janeiro, a Fase tem ideário esquerdista-marxista. Sua missão é
“contribuir para a construção de uma sociedade democrática através de uma alternativa de
desenvolvimento sustentável”,15 e sua militância política sempre foi, segundo seus próprios
gestores,de combate a “políticas neoliberais”.16 A ONG tem um histórico ligado a
comunidades rurais e ribeirinhas, entre outras, e, desde a década de 1970, já se envolvia
como campesinato no norte do país. A organização tinha um escritório regional em Belém
para sustentar sua atuação na Amazônia.
As relações entre a Natura e a Fase começaram em 2000, mas não foram plenamente
satisfatórias para a implementação de uma parceria. Entretanto, com o passar do tempo, o
dialogo com a Natura evoluiu de tal forma que, em 2007, a Fase notou que havia objetivos
comuns de desenvolvimento, autonomia e sustentabilidade entre ambas as instituições.
Segundo uma das diretoras da Fase, o diferencial da parceria com aNatura:
Essa parceria com a Fase possibilitou à Natura UIB uma abertura para começar o diálogo
com as comunidades amazônicas. A construção conjunta de relações e a transferência de
informações entre comunidades amazônicas, FASE e Natura beneficiou as três partes: o
fortalecimento das comunidades, com renda advinda da comercialização de insumos da
biodiversidade; a potencialização da atuação da Fase, com a realização de cursos e
treinamento de lideranças nas comunidades; e a obtenção de insumos amazônicos a serem
usados nos produtos finais da empresa. Atualmente, a própria Natura contrata ex—
colaboradores da Fase para seus quadros de funcionários
15
Fasewebsite.Disponívelem:<http://www.fase.org.br/v2/>.Acessoem:9set.2012.
16
Idem.
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Parcerias como essa entre Natura e Fase permitiram que a empresa penetrasse numa área
que,por vezes, nem o Estado tem acesso. Todavia, a viabilidade do negócio não dependeria
apenas dessa penetração, mas também da manutenção de suas relações com os parceiros e
com as comunidades fornecedoras.
Aspectos regulatórios
Além do custo elevado dos insumos finais, a Natura também arcava com um custo extra,
derivado da legislação ambiental, especialmente da Medida Provisória n. 2.186-16, de 23 de
agosto de 2001. Essa lei dispunha sobre o acesso a patrimônio genético e ao conhecimento
tradicional, sua proteção e a repartição de benefícios.
Contudo, havia dúvidas sobre o que seria uma repartição “justa e equitativa”, o que
dificultava o uso dos insumos da biodiversidade pela Natura e por outras empresas e órgãos
de pesquisa. Mesmo assim, a companhia pagava essa repartição de benefícios às
comunidades, a qual, em valores agregados, somou mais de 1,5 milhões só em 2011. 18 Esse
procedimento aumentava ainda mais os custos finais dosprodutos não só pelo pagamento do
benefício em si, mas também pelo custo jurídico da obtenção dos protocolos para autilização
dos insumos.
O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão do Ministério do
MeioAmbiente (MMA), tabula as autorizações concedidas ano a ano a empresas,
universidades e órgãos de pesquisa. Apenas como exemplo, em 2009, foram concedidas dez
autorizações, cinco das quais para a Natura.
Devolta à Amazônia
Já era perto do meio-dia, e a “cabocla” continuava rumo a Moju. Mauro e Raoni estavam
cada vez mais perto da comunidade, para a reunião anual de negociação de fornecimento, e
começaram a discutir várias questões críticas. Seria esse um modelo de negócios capaz de
gerar vantagens competitivas para a Natura, ao mesmo tempo garantindo desenvolvimento
sustentável para as comunidades amazônicas? Se quisessem expandir a base de fornecedores,
o modelo seria escalável? Dado o potencial de venda de produtos da biodiversidade,
conseguiriam suprir esses insumos de forma estável e competitiva? Seria possível replicar o
modelo se quisessem buscar fornecedores em outras regiões do país ou da América Latina? A
“cabocla” finalmente se aproximava da margem do rio, junto à comunidade mojuense. A
reunião seria longa, mas Mauro e Raoni sabiam que teriam que manter um bom equilíbrio
entre as “quatro pernas” do modelo de negócios da Natura UIB: financeira, ambiental, social e
humana.