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Foto do Instagram de Michel Scherer -

Divulgação do retorno da Slow Baking.


Biscoito polvilho #lutasempre

Consumir a Luta - uma etnografia gastronômica sobre o fazer político

O objetivo inicial desta pesquisa era investigar o cenário gastronômico paulistano tendo
como foco as “cozinhas" de diferentes nacionalidades que caracterizam a cidade. Entre as pessoas
em situação de imigração e refugio, aqueles que decidiram por ser cozinheiros e empreendedores no
setor gastronômico, variavam entre cozinheiros formados a empreendedores por necessidade.
Independente da motivação inicial para trabalhar com a comida entendida como nacional de seus
países, essas pessoas enfrentavam um cotidiano exaustivo das horas de trabalho diante do fogo e
grande dificuldade em administrar as questões financeiras, visto que além das questões burocráticas
que pouco favorecem os empreendedores no Brasil, dentre os anos de 2019 e 2022, época em que
essa pesquisa foi realizada, inflação e a pandemia de covid-19 afetaram profundamente seus
cardápios e lucros. Ao voltar a minha atenção para os clientes desses restaurantes “típicos”,
aspectos como cosmopolitismo e classe social transpareceram nas conversas e, claro, na
possibilidade de arcarem com o custo de uma refeição fora de casa. Nesse primeiro momento noto
algumas questões que me acompanharam no desenvolvimento da pesquisa: 1) a cozinha como uma
alternativa à falta de oportunidades no mercado formal de trabalho; 2) o impacto sanitário, social e
econômico da pandemia de covid-19; 3) a importância da narrativa em torno da alimentação -
amparada, nesse primeiro momento, por questões identitárias relacionadas à origem da receita
comercializada.

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Final de 2021 é o momento em que assina-lo como o início das minhas idas a campo. Com o
avanço da vacinação, alguns eventos voltaram a acontecer e, como previsto, estavam cheios. O
primeiro que fui relacionado a pesquisa foi no Dia da Consciência Negra, realizado no Evvivah. Lá,
Hortense preparou o almoço de comidas congolesas (ligeiramente adaptadas para o paladar
brasileiro) e, ao final do almoço, ela conversou conosco como era ser uma imigrante negra africana
no Brasil. Hortense tem uma clara agenda política, atenção a língua portuguesa, uma capacidade de
oratória que chama a atenção e domínio do jargão jurídico, visto que ela exercia a advocacia na
República Democrática do Congo. Naquele dia, me apresentei para aquela que seria minha grande
amiga, informante e companheira de pesquisa, que me convidou para visitar a Cozinha não naquele
sábado, no próximo.
Não conhecia quase nada sobre a Ocupação 9 de Julho. Sabia que Hortense vivia lá depois
de sua família lidar com o trauma de ter perdido um amigo também africano em um caso de
xenofobia. Sabia que o perfil do Instagram promovia conteúdos diários com os espaços em aparente
ruína e grafitados, cheios de pessoas e de algumas senhoras de avental colorido. Até então não sabia
sobre o evento dos almoços de domingo. Cheguei na portaria procurando Hortense e dona Irene
apontou o caminho para a cozinha, que ficava no mesmo andar da entrada. Segui à direita e lá não
encontrei Hortense. Como era sábado, dia de pré-preparo, todos estavam um tanto aturdidos, pois o
chef daquele final de semana, o blogueiro JB, não apareceu para dar as instruções do corte dos
legumes. Coloquei-me a disposição, já que gostava muito de cozinhar, e me pediram para lavar as
beterrabas e suas folhas. O prato seria um arroz orgânico, com beterraba, limão e tomilho. Foi
minha primeira experiência lavando caixas e mais caixas de um único legume. Nem preciso dizer
que saí encharcada. Vi que a maior parte da equipe ocupada na sala com o corte dos legumes na sala
ao lado da cozinha principal, enquanto Dona Nice fazia um prato completamente distinto nesse
cômodo. Quando terminei minha atividade na pia, fui convidada para almoçar. As pessoas ainda
não se sentiam a vontade de conversar comigo, o que achei que era normal. Terminei de comer,
lavei meu prato e procurei com o que mais eu poderia ser útil.
Quando estava me dirigindo para o corte das cebolas, Hortense apareceu e me reconheceu.
Viu que eu estava com a caixa de cebolas e disse que usaríamos o cortador de legumes,
carinhosamente conhecido como cabrita entre os integrantes da cozinha. Descascamos as cebolas e
começamos a “cabritar”. Hortense manejava a alavanca sem nenhum conflito e pouco esforço, no
entanto, me incomodei com o trabalho excessivo da parte dela e com a minha inércia, oferecendo-
me para seguir cortando a cebola. Na primeira tentativa, mal consegui afundar o legume na tela
quadriculada. Segunda tentativa e a mesma resultante. Hortense riu sem dó da minha fraca
performance no instrumento e pediu para que eu seguisse colocando a cebola descascada e cortada
na metade na cabrita enquanto ela as picava. Com essa fase finalizada, finalmente nos sentamos e

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começamos a descascar e picar o alho. Distraída, tomei um susto quando ao desviar meus olhos dos
dentes picados e da faca, me vi com um foco de câmera no rosto. Du bateu uma foto minha e
dezenas de Hortense. Perguntei para ela se era sempre assim e ela respondeu: “e a gente nunca se
acostuma”.
Cheguei cedo no dia seguinte e já havia uma grande movimentação, principalmente na
cozinha secundária, onde eu havia lavado as beterrabas. Mais tarde, descobri que a comida que
fervia nas duas panelas enormes nada tinham a ver com o preparo de chef e sim com as marmitas
preparadas pelo projeto Lute como quem cuida para a população em situação de vulnerabilidade. O
tempo foi passando e o humor das pessoas foi se modificando e elas ficaram mais agitadas. Estou
perto de algumas auxiliares de cozinha que nada falam comigo quando Hortense se aproxima brava.
Já eram 10:30 e não tínhamos notícias do chef! Como prepararíamos o arroz? Em que momento
adicionaríamos a beterraba? E o limão? O prato precisava sair às 11 horas, no mais tardar 11:30, se
não, nos atrapalharíamos no serviço do almoço presencial! As auxiliares que estavam próximas
então indagaram se eu não sabia como devia ser preparado, ao que Hortense respondeu: “como ela
saberia se está comigo!”. Algumas semanas depois, essas mesmas auxiliares falaram que
comentavam de mim pelas costas, pois achavam que eu estava acompanhando o chef e não tinha
competência de passar as instruções. No fim, preparamos o prato conforme as ordens de Hortense.
Nesse dia, passei a fazer parte da equipe da Cozinha 9 de Julho.
Ao voltar para as anotações desse meu primeiro momento em campo, encontro outros
aspectos pertinentes para as reflexões sobre esse momento da pesquisa e sobre as dinâmicas e
relações na Cozinha. O primeiro deles é relação entre classe trabalhadora em luta e a classe média
(artística) também em luta, criando através do encontro e da comida uma aliança que compõe o bem
sucedido projeto “Lute como quem cuida”. Entendida que há uma distinção interna entre os
componentes, outro aspecto interessante é a expectativa que existe na performance de cada um dos
integrantes: tem os moradores que trabalham como cozinheiros e auxiliares de cozinha, existem as
lideranças do movimento, os artistas que auxiliam na parte administrativa, organizacional e de
divulgação e os chefs e sua possível equipe. Um terceiro aspecto que chama a atenção é o da fofoca,
tanto como instigadora de atritos como um meio de resolução de certos problemas.
Nesses apontamentos, dos muitos caminhos possíveis para o desenvolvimento dessa
pesquisa, escolhi no consumo e a luta como os fios condutores dessa tese. Sendo o primeiro
movimento para a compreensão do fenômeno “Cozinha da Ocupação 9 de Julho” é entender como
um movimento de mulheres que se destacou no início dos anos 2000 do movimento de moradores
de cortiços do centro se torna uma marca e como o próprio aspecto da luta é relevante na divulgação
dessa marca. Para isso, precisarei me voltar a história dos movimentos do centro, a consolidação do
Movimento Sem Teto do Centro e a ocupação do Cambridge (2012). Essa ocupação é importante

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pois dela se deriva o filme “Era o Hotel Cambridge” (2016), em que figura da Carmem Silva e dos
moradores de ocupação passam a fazer parte do repertório da classe média progressista,
principalmente da paulistana.
Ao realizarem o filme no Cambridge e se aliarem na ocupação da Funart em São Paulo -
protesto contra o encerramento das atividades do Ministério da Cultura pelo então presidente Temer
- artistas e trabalhadores sem teto uniram suas lutas, construíram a cozinha do Cambridge e
começaram a promover almoços esporádicos. Esses almoços depois, no decorrer das conquistas do
movimento, se tornaram o principal produto da marca “Ocupação 9 de Julho”. Quando já era um
evento conhecido e consolidado entre os frequentadores, a pandemia chegou e paralisou todas as
atividades. Nesse momento de crise, muitos moradores perderam seus empregos e a situação de
precariedade entre a população mais vulnerável se agravou. Fome passou a ser pauta de notícias.
Dona Carmem, liderança do MSTC, e Du, fotografo e coordenador dos almoços, tiveram a ideia de
criar o “Lute como quem cuida”, em que junto ao Movimento Sem Terra, venderiam almoços para
o público que frequentava a ocupação e com o dinheiro, além da refeição do cliente, preparariam
mais duas ou três marmitas para comunidades atenderem aqueles que precisassem, dando a
oportunidade dos frequentadores da ocupação ajudarem os moradores do movimento e de outras
localidades através do consumo dos pratos comercializado.
Preparando esses pratos, não há um par de mãos que não estivesse calejado, com alguma
queimadura, corte ou enrugado pelo contato com a água. O trabalho manual da cozinha nos
mantinha em pé por várias horas, cansava dos pulsos aos cotovelos pela repetição, deixavam nossas
costas doloridas, os pés inchados e o corpo, no final do dia, nos traía. Eram raros os dias que os
integrantes da cozinha que efetivamente trabalhavam não saíam “moídos" pela jornada extensiva e a
intensidade das ações. Durante a semana, todos os cozinheiros e auxiliares da 9 de Julho, garantiam
sua renda a partir de outros trabalhos manuais: Besouro e Emílio como cozinheiros, Cecília e Eliana
como faxineiras, Dona das Dores, Dona Aparecida e Dona Tida fazendo bolos e doces para o
“Maravilhas da Terra”, Rita, Antônio e Mineiro cuidavam de suas casas, Mirtes era porteira e
Hortense organizava os eventos do Espaço Wema.
No sábado de manhã, lá estavam as olheiras, o cansaço da semana e as dores nos membros
do corpo. Somo a esse acúmulo físico, as preocupações familiares e financeiras. O trabalho manual
no Brasil ainda é muito discriminado e mal remunerado. Gostaria de nessa parte da tese explorar a
temática do corpo e do trabalho manual, ligados à uma construção histórica, realizadas por
percepções racistas, classistas e escravagistas de como o corpo da classe trabalhadora e o trabalho
manual é compreendido através da precariedade. Outro aspecto relativo à corpo que interessa a essa
pesquisa são as performances de gênero e raça ligadas à cozinha brasileira e mobilizadas na
divulgação dos materiais da Cozinha da 9 de Julho.

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Para elucidar melhor essa proposta, apresento mais um causo de campo. Na cozinha
principal, eu e Besouro mexíamos com vigor as enormes panelas de pirão. Uma era regada por
caldo de carne e a outra por caldo de legumes. Era o último prato que preparávamos e alguns outros
integrantes da cozinha nos aguardavam para montarmos as marmitas à serem entregues para os
clientes. Enquanto isso, a outra cozinha estava a todo vapor também finalizando as quentinhas da
comunidade, que estavam atrasadas naquele dia. Hortense já estava fadigada, no canto da cozinha
principal, mexendo no seu celular. O pirão custava a dar o ponto. Cada vez que entrava na cozinha,
Dona Carmen exclamava conosco que aquela não era consistência de pirão e que deveríamos por
mais farinha. Quanto mais farinha, mais denso e pesado o prato ficava. Bolhas surgiram nas minhas
mãos calejadas. Elas estavam vermelhas pelo esforço e pelo calor. Vi que era realmente algo fora do
comum quando percebi as mesmas bolhas nas mãos de Besouro, cozinheiro profissional.
Foi quando um fotografo de um jornal de grande circulação entrou na cozinha. Isso não era
incomum. Entre curiosos indiscretos, que tiravam as fotos sem pedirem permissão (o que eu
chamava de safari) e jornalistas educados que conversavam com a equipe e perguntavam se
poderiam tirar fotos, a segunda categoria era melhor aceita. Esse senhor entrou, pediu licença para
tirar as fotos e bateu várias de Besouro e algumas minhas. No entanto, ele não desviava o olhar de
Hortense. Ele então pediu para que ela mexesse um pouco o pirão, pedido que ela recusou de
imediato, disse estar cansada. Ele insistiu para que ela para que ela somente segurasse a colher e
Hortense respondeu que não era ela que estava mexendo, por isso e por seu semblante cansado, ela
não tiraria a foto. O fotografo ficou sem graça, nos agradeceu e saiu da cozinha.
Ele não era excessão. Nas entrevistas, nos desfiles, na divulgação das atividades da cozinha,
as cozinheiras negras eram o destaque. No intuito de adensar discussão que Machado faz em seu
livro “Um pé na cozinha”, pretendo pensar no papel das mulheres negras na construção da
imagética da cozinha brasileira como um meio de comunicar uma certa experiência ao público
majoritariamente branco e de classe média que frequenta a ocupação.
Há um aspecto relevante entre os frequentadores e os chefs convidados que vou explorar de
maneira mais atenta no decorrer da tese: a lutas, disputas e debates que os ingredientes e os
alimentos vem fomentado nos últimos anos. Num cenário gastronômico como o de São Paulo
encontramos uma pluralidade enorme, seja nas comidas regionais e nacionais, ou nos modelos de
serviço, ou na caracterização dos negócios e nos engajamentos com o público consumidor. Em toda
a cena, em um país que ainda se comporta como um exportador de commodities, vemos chefs,
produtores e consumidores reivindicando pautas em prol de uma comida saudável, regional, sem
veneno e de procedência de pequenos produtores. Nessa parte da tese eu pretendo responder as
perguntas: como a comida vem sendo mobilizada como forma de luta? Contra quem se luta

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utilizando a comida? Quais são os meios de lutar? Como se dá esse embate? Qual é o papel das
redes sociais e do consumo?
Desse modo, a tese teria três partes. A primeira sobre a construção da luta e da marca da
“Cozinha da Ocupação 9 de Julho”, em que exploraria elementos históricos do MSTC, da trajetória
de Carmen Silva e Preta Ferreira, a relação estabelecida com uma classe artística paulistana e como
eles estão relacionados às percepções e repercussões da ocupação. Na segunda parte me deterei nos
aspectos mais miúdos e quase privados da luta. Relações entre o corpo e trabalho serão o foco dessa
seção. Além disso, pretendo trazer mais elementos ao debate sobre as mulheres negras e sua relação
com a cozinha brasileira. Na terceira e última parte trarei o debate sobre alimentação e suas disputas
no cenário brasileiro atual.

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