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Paul R.

Ehrlich Carl Sagan


Donald Kennedy Walter Orr
Roberts

O INVERNO NUCLEAR
Tradução João Guilherme Linke

Editora Francisco Alves


1985
Este livro é dedicado à memória de Robert W. Scrivner (1935-1984)

Com firmeza e brandura, a paixão de Robert pela paz


idealizou a conferência e a tomou realidade. Este livro é dele.
Comitê de Orientação, Conferência sobre o Mundo após a Guerra
Nuclear
PREFÁCIO
Em junho de 1982, dois executivos de fundações, Robert W.
Scrivner do Rockefeller Family Fund e Robert L. AlIen da Henry P.
Kendall Foundation, tiveram um encontro com Russell W. Peterson,
presidente da Sociedade Nacional Audubon, para tratar de uma
crescente preocupação comum: nos debates públicos sobre a guerra
nuclear e os efeitos destrutivos imediatos de explosões e radiações
sobre vidas humanas e cidades, estaria sendo dada atenção suficiente
aos efeitos biológicos de mais longo prazo? O que faria uma guerra
nuclear à atmosfera, à água, aos solos - aos sistemas naturais de que
toda a vida depende?
Allen, Peterson e Scrivner concordaram em que se deveriam
buscar meios de levar o movimento de defesa ambiental a examinar o
assunto, e se propuseram apurar que progressos estaria fazendo a
comunidade científica. Eles conheciam o relatório de 1975 da Academia
Nacional de Ciências dos Estados Unidos, "Efeitos Mundiais à Longo
Prazo de Detonações Múltiplas de Armas Nucleares", e o relatório de
1979 da Comissão de Avaliação Tecnológica do Congresso dos Estados
Unidos, "Os Efeitos de uma Guerra Nuclear". Haviam também estudado
uma edição especial da revista Ambio (vol. XI, no. 2-3, 1982), órgão da
Real Academia Sueca de Ciências, que acabava de ser publicada e
continha dados científicos novos sobre os impactos climáticos e
biológicos de uma guerra nuclear.
Scrivner, Allen e Peterson reuniram alguns cientistas e ecologistas
para tratar da organização de uma conferência pública sobre os efeitos a
longo prazo de uma guerra nuclear. Entre eles estava Carl Sagan,
professor de Astronomia e Ciências Espaciais e diretor do Laboratório de
Estudos Planetários da Universidade Comell. Ele informou que um
pequeno grupo de cientistas estava empenhado num estudo
possivelmente importante ligado aos efeitos climáticos de uma guerra
nuclear. Esse estudo, "Consequências Atmosféricas e Climáticas a
Longo Prazo de um Conflito Nuclear", por Richard P. Turco, Owen B.
Toon, Thomas P. Ackerman, James B. Pollack e Sagan, ficou depois
conhecido como o relatório TTAPS, iniciais dos sobrenomes dos autores.
O grupo TTAPS começara por examinar os efeitos atmosféricos
de grandes quantidades de poeira, e ampliara o estudo para incluir a
fumaça e a fuligem produzidas por incêndios extensos, depois de
verem dados sobre o tema publicados na Ambio por Paul J. Crutzen,
do Instituto de Química Max Planck de Mogúncia, República Federal da
Alemanha, e John W. Birks, da Universidade do Colorado ("A
Atmosfera depois de uma Guerra Nuclear: Crepúsculo ao Meio-Dia").
O novo e vital fator do estudo TTAPS foi o impacto da enorme
quantidade de pó e fumaça gerada por explosões nucleares e pelos
incêndios resultantes; esse manto de pó e fumaça, imaginaram eles,
teria efeitos atmosféricos que alterariam o clima e se propagariam a
grandes distâncias das áreas de explosão. O estudo quantificava,
através de modelos matemáticos, os efeitos de uma guerra nuclear
quanto ao grau em que partículas em suspensão impediriam a luz solar
de alcançar a Terra. Foram utilizados vários cenários para indicar os
níveis de megatonagem e locais de detonação, quer no ar quer no
solo. As respostas que vinham surgindo apontavam para uma série
potencialmente catastrófica de consequências atmosféricas, climáticas
e radiológicas. As temperaturas reduzir-se-iam dramaticamente,
mesmo no verão, a níveis bem abaixo do ponto de congelamento da
água; a luz do dia seria na maior parte reduzida; essas condições
poderiam durar vários meses e possivelmente estender-se muito além
das regiões atacadas, inclusive ao Hemisfério Sul.
Allen, Scrivner, Peterson e o seu grupo animaram-se ao tomarem
conhecimento de que havia outro trabalho científico em curso. Um
novo estudo sobre o assunto estava sendo levado a efeito pela
Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. E o Comitê
Científico de Problemas do Meio Ambiente (SCOPE) do Conselho
Internacional de Uniões Científicas planejava um estudo sobre
"Consequências Ambientais de uma Guerra Nuclear".
Aquele grupo informal evoluiu para um Comitê de Orientação com
o fim de examinar a conveniência de promover uma grande conferência
pública através da qual o estudo TTAPS e as conclusões sobre as
consequências biológicas de uma guerra nuclear pudessem ser
conhecidas por educadores, cientistas, administradores de empresas,
autoridades civis e outros líderes comunitários e representantes de
outras nações, bem como por ecologistas. Entre os quais acederam
em formar o Comitê de Orientação estavam vários cientistas altamente
reputados: Paul R. Ehrlich, professor de ciências biológicas e de
estudos populacionais na Universidade Stanford; Peter H. Raven,
diretor do Jardim Botânico do Missouri, em Saint Louis; Walter Orr
Roberts, presidente emérito da Corporação Universitária para
Pesquisas Atmosféricas; Carl Sagan, e George M. Woodwell, diretor do
Centro de Ecossistemas do Laboratório Biológico Marinho de Woods
Hole, Massachusetts. Woodwell foi nomeado presidente da
Conferência. O Comitê designou Chaplin B. Barnes, ex-membro da
Sociedade Nacional Audubon e do Conselho de Qualidade Ambiental,
para diretor-executivo da Conferência e coordenador do
empreendimento.
Por sugestão do Dr. Sagan, resolveu-se submeter o relatório
TTAPS a um exame crítico minucioso num simpósio de eminentes
especialistas em ciências físicas. A seguir os dados seriam mostrados
a um grande número de experientes biólogos e ecologistas para que
estes se pronunciassem quanto à extensão dos impactos mundiais à
longo prazo sobre a espécie humana e os sistemas de sustentação de
vida do planeta. Ficou entendido que somente se os dados fossem
sancionados nesse exame a conferência pública proposta seria
programada.
Uma Junta Científica Consultiva composta de sessenta e um
cientistas dos Estados Unidos e de mais oito países foi constituída para
auxiliar na preparação da Conferência e colaborar na disseminação de
informações após a mesma. Preparando o programa dos trabalhos, o
Comitê de Orientação decidiu que discussões políticas, referências a
desarmamento, controle de armas e fatores sociais, que de ordinário
seriam relevantes num debate a respeito dos impactos de uma guerra
nuclear, não teriam lugar na conferência proposta. Na organização do
programa científico da Conferência, ficou decidido que se trataria
unicamente das consequências físicas, atmosféricas e biológicas de uma
guerra nuclear. O Comitê achou que a inclusão de outras considerações
como estratégia nuclear e implicações econômicas, políticas e sociais
desviariam a atenção da mensagem científica central.
Em fins de abril de 1983, cerca de cem cientistas dos Estados
Unidos e de outros países reuniram-se para o processo do exame prévio
na Academia Americana de Artes e Ciências em Cambridge,
Massachusetts. Os cientistas convidados representavam uma grande
variedade de campos. Depois da primeira assembleia, organizada e
presidida pelo Dr. Sagan (que ainda convalescia das complicações quase
fatais de uma apendicectomia a que se submetera no mês anterior),
cerca de quarenta físicos e dez biólogos analisaram e avaliaram a
minuta preliminar do estudo TTAPS. Em termos gerais, o grupo
concordou com as conclusões do relatório quanto ao potencial de
reduções consideráveis na quantidade de luz solar que chega à
superfície da Terra e de alterações climatológicas de vulto, embora
sugerindo alguns pequenos ajustes. Em aditamento aos efeitos
climatológicos de temperaturas glaciais e virtual escuridão, o grupo de
ciências físicas discutiu agressões como a exposição à radiação e a
precipitações, exposição à radiação ultravioleta da luz solar devida ao
empobrecimento da camada de ozônio e ação deletéria de gases tóxicos
desprendidos pela combustão de materiais sintéticos.
Terminada a reunião dos especialistas em ciências físicas, o Dr.
Raven convocou um grupo de biólogos, juntamente com dez dos
cientistas presentes à reunião anterior, para examinarem os impactos
potenciais das condições de pós-guerra nuclear nos sistemas de
sustentação vital da Terra. Foram considerados a escuridão prolongada
e alterações climáticas extremas, e os respectivos efeitos sobre o
fitoplâncton e o zooplâncton, sobre outras formas vivas vegetais e
animais e sobre a agricultura. Trocaram-se ideias sobre os efeitos
sinérgicos das condições de pós-guerra nuclear sobre elementos de
ecossistemas marinhos, de água doce e terrestres. Analisaram-se os
efeitos sobre a vida,animal e vegetal da exposição prolongada a radiação
ionizante e à luz ultravioleta. Outras discussões centraram-se na
interrupção em grande escala dos serviços normais de ecossistemas
naturais, imprescindíveis à sustentação da vida humana e da sociedade,
inclusive a produção de alimentos para o homem bem como para os
animais de criação e para os animais selvagens; clima e condições de
tempo; eliminação de resíduos e reciclagem de fertilizantes; preservação
do solo e controle de pragas das lavouras. Ao deixarem as reuniões de
Cambridge, os biólogos estavam todos de acordo em que esses efeitos
sobre a biosfera podiam ser devastadores num grau anteriormente não
previsto, e haviam concluído que não se podia afastar a possibilidade de
os efeitos biológicos a longo prazo de uma guerra nuclear virem a
acarretar a exterminação da humanidade e da maior parte das espécies
selvagens do planeta.
Com a afirmação dos cientistas congregados de que a análise era
válida, e de que as condições tinham de ser encaradas com muita
seriedade, o Comitê de Orientação decidiu levar avante os planos para a
Conferência, e trinta e uma instituições ou organizações científicas,
ambientais e populacionais, nacionais e internacionais, dispuseram-se a
contribuir para patrociná-la:

Amigos da Terra
Associação das Nações Unidas dos Estados Unidos da
América Associação Nacional dos Professores de Ciências
Causa Comum
Centro de Ligação do Ambiente
Coalizão Global Amanhã
Conselho de Defesa dos Recursos Naturais
Consórcio de Terras Públicas
Crescimento Demográfico Zero
Federação Americana de Paternidade Planejada
Federação Canadense da Natureza
Federação dos Cientistas Americanos
Federação Internacional de Institutos de Estudos Superiores
Federação Nacional da Vida Selvagem
Fundo de Defesa Ambiental
Instituto Americano de Ciências Biológicas
Instituto do Espaço Aberto
Instituto de Política Ambiental
Instituto de Recursos Mundiais
O Instituto de Ecologia (TIE)
Programa do Ambiente das Nações Unidas
Sierra Club
Smithsonian Institution
Sociedade Americana de Microbiologia
Sociedade Ecológica da América
Sociedade do Mundo Silvestre
Sociedade Nacional Audubon
União dos Cientistas Engajados
União Internacional de Ciências Biológicas
União Internacional para a Conservação da Natureza e dos
Recursos Naturais
Universidade das Nações Unidas

Durante o verão de 1983, um grupo de vinte biólogos sob a


direção do Dr. "Ehrlich ampliou a definição dos efeitos das alterações do
clima sobre a biosfera.Nesse mesmo intervalo, o grupo TTAPS
aprimorou seus dados e entregou-os à publicação científica. E nesse
ínterim, na União Soviética, o Dr. Vladimir V. Aleksandrov, do Centro de
Computação de Modelagem de Climas da Academia de Ciências da
URSS em Moscou (um dos cientistas que participaram das reuniões de
Cambridge), comprovou as principais projeções do estudo TTAPS
através de modelos de computador por ele próprio elaborados.
Cerca de seis semanas antes da Conferência, Allen, do Comitê de
Orientação, em conversa com Kim Spencer e Evelyn Messinger da
Internews, desenvolveu a ideia de adicionar uma nova dimensão à
Conferência aproveitando a tecnologia disponível de um link bidirecional
de satélite com cientistas soviéticos em Moscou. Allen, Spencer e
Messinger propuseram-se organizar e produzir um programa de noventa
minutos que permitiria a cientistas de alto nível dos Estados Unidos e da
União Soviética debater as teses da Conferência sobre as
consequências climáticas e impactos biológicos de uma guerra nuclear.
Spencer entabulou entendimentos com a Gosteleradio, a única
rede de televisão da União Soviética, e Allen promoveu diversas
comunicações pessoais de alto nível entre cientistas americanos e
soviéticos com o fim de obter a participação de especialistas da
Academia Nacional de Ciências da URSS.
Quando da abertura de O Mundo após a Guerra Nuclear, ou
Conferência sobre as Consequências Biológicas Globais a Longo Prazo
de uma Guerra Nuclear, em 31 de outubro, no Hotel Sheraton
Washington em Washington, D.C., estavam presentes mais de
quinhentos participantes e uma centena de representantes da mídia.
Entre os participantes contavam-se cientistas e embaixadores ou outros
representantes de mais de vinte países, bem como autoridades civis,
educadores, conservacionistas e líderes religiosos, cívicos, empresariais,
filantrópicos, diplomáticos, militares e de controle de armas vindos de
todas as partes do território americano. A Conferência teve ampla
cobertura dos meios de informação dos Estados Unidos, da União
Soviética e de outros países.
A Conferência foi oficialmente encerrada com a fala do Dr. Roberts
(ver p. 183), mas quase ninguém deixou o recinto. Pois, naquele ponto,
os participantes se reuniram para o histórico evento subsidiário que foi a
Conexão Moscou. Era a primeira vez que as comunicações por satélite
eram usadas para pôr em contato, ao vivo, um grupo de cientistas de
Moscou com um grupo de cientistas nos Estados Unidos para um amplo
intercâmbio de informações científicas.
Às 4h da tarde, hora de Moscou (8 da manhã em Washington), de
1º. de novembro, as exposições de Sagan e Ehrlich no dia da abertura
foram transmitidas para um grupo de cientistas soviéticos, que a seguir
se reuniram para discutir seus comentários. Às 10 da noite, hora de
Moscou, teve início a Conexão Moscou entre o grupo soviético, reunido
num estúdio de TV em Moscou, e quatro cientistas norte-americanos
num salão de conferências em Washington.
Os participantes do grupo americano eram o Dr. Thomas Malone,
diretor emérito do Instituto de Pesquisas Holcomb, da Universidade
Butler, Paul Ehrlich, Walter Orr Roberts e Carl Sagan. Os principais
debatedores em Moscou eram o acadêmico Yevgeniy Velikhov, vice-
presidente da Academia de Ciências da URSS, Yuri Israel, membro da
mesma Academia e chefe da Comissão de Hidrometeorologia e Controle
do Meio Ambiente, Alexander Bayev, especialista em biologia e genética
molecular, secretário do Departamento de Fisiologia Biofísica, Bioquímica
e Química da Academia de Ciências da URSS, e Nikolai Bochkov,
acadêmico da Academia de Ciências Médicas e diretor do Instituto de
Genética da Academia de Ciências da URSS.
Durante os noventa minutos do link de satélite, os cientistas
soviéticos e americanos trocaram perguntas e comentaram trabalhos em
curso. E alguns dados sobre efeitos de uma guerra nuclear obtidos pelos
soviéticos complementaram e ampliaram as exposições feitas na
Conferência.
Georgiy Skryabin, primeiro-secretário científico da Academia de
Ciências da URSS, expressou sentimentos "ambivalentes". "Por um
lado", disse Skryabin, "há o sentimento de grande preocupação com
respeito à possível tragédia que nos defronta, que paira sobre todos nós
mulheres, crianças, velhos, e sobre toda a vida da Terra. Por outro, há
nesta Conferência um grande motivo de satisfação, que é o fato de que
os grandes cientistas aqui presentes - nossos colegas americanos e
cientistas russos - chegaram a um consenso. Estão todos unidos na
opinião de que não deve haver uma guerra nuclear, de que esta
significaria desastre e morte para a humanidade. Eu, pessoalmente,
sinto-me contente e confortado com isso, pois hoje em dia a autoridade
dos cientistas é considerável, e todos nós devemos procurar fazer valer
nossa influência para pôr um termo à corrida armamentista, para que
não venha a ocorrer jamais uma guerra nuclear".
Alexander Kuzin, membro correspondente da Academia de
Ciências da URSS, declarou: "É assim responsabilidade direta dos
cientistas da União Soviética e dos Estados Unidos levar ao
conhecimento de todos os enormes perigos que acompanhariam a
deflagração de qualquer espécie de conflito nuclear, de modo a prevenir
a própria possibilidade de uma guerra nuclear, que sem dúvida nenhuma
não só resultaria na ruína da atual civilização senão que ameaçaria a
vida como tal neste planeta que amamos." Quando a Conexão Moscou
se aproximava do final, Malone observou que a troca de opiniões
proporcionada pela Conferência "poderá vir a ser vista em anos
vindouros - justificadamente - como a virada decisiva nos rumos da
humanidade, e haverá de elevar o nível de consciência entre os
condutores da política".

Como seguimento à Conferência, foi fundado em Washington,


D.C., o Centro de Consequências da Guerra Nuclear, com o fim de dar
continuidade à disseminação das conclusões da ciência. Através do
Centro, estão sendo postos à disposição dos interessados materiais
impressos e audiovisuais sobre as consequências climáticas e biológicas
de uma guerra nuclear. O endereço do Centro é: 3244 Prospect Street,
NW, Washington, D.C., 20007.
ADVERTÊNCIA
LEWIS TROMAS, M.D.

As descobertas científicas descritas neste livro poderão vir a


revelar-se, num mundo que tenha a boa sorte de continuar a sua
história, como tendo sido os mais importantes resultados de pesquisa
em toda a longa história da ciência.
A primeira descoberta já é largamente conhecida na comunidade
científica de climatologistas, geofísicos e biólogos aqui e no estrangeiro,
e foi confirmada em detalhe por cientistas soviéticos das mesmas áreas.
Modelos de computador demonstram que uma guerra nuclear
envolvendo o emprego de uma simples fração do total das bombas
americanas e russas poderia transformar o clima de todo o Hemisfério
Norte, mudando-o bruscamente do seu presente estado sazonal para
uma longa noite escura e gélida. Esta será seguida, passados alguns
meses, pelo assentamento da poeira e fuligem nucleares, e depois por
uma espécie nova e maligna de luz solar com proporção aumentada da
sua faixa ultravioleta, potencialmente capaz de cegar muitos dos
animais terrestres. O ozônio da atmosfera, que normalmente protege a
Terra da perigosa radiação ultravioleta, seria substancialmente reduzido
por uma guerra nuclear. Nas mesmas pesquisas, novos cálculos da
extensão e intensidade das precipitações radioativas indicam a
exposição de grandes extensões de território a níveis de radiação muito
mais altos do que se julgava. O relatório é conhecido como TTAPS, sigla
derivada dos nomes dos pesquisadores: Turco, Toon, Ackerman,
Pollack e Sagan.
O segundo trabalho, elaborado por Paul R. Ehrlich e outros
dezenove biólogos respeitados, demonstra que as predições do TTAPS
significam nada menos que a extinção de grande parte da biosfera
terrestre, muito possivelmente envolvendo o Hemisfério Sul tal como o
Norte.
Em conjunto, essas duas descobertas mudam radicalmente as
perspectivas de um conflito termonuclear. Elas foram submetidas a um
exame crítico minucioso por cientistas representantes das disciplinas
envolvidas, aqui e em outros países. Estudos paralelos e suplementares
vêm sendo feitos, e já se evidencia um grau de concordância inusitado
com respeito aos pormenores técnicos e às conclusões tiradas. Na
opinião de alguns juízes, o relatório TTAPS teria até talvez minimizado os
danos climatológicos implicados pelos dados. O relatório dos vinte
biólogos, sumariado pelo Professor Ehrlich, representa o consenso a que
chegaram quarenta especialistas em ciências biológicas num simpósio
realizado em Cambridge, Massachusetts, na primavera de 1983.
É um mundo novo, a demandar uma nova diplomacia e uma nova
lógica.
Até aqui, a comunidade internacional de estadistas, diplomatas e
analistas militares tem-se inclinado a encarar a perspectiva de uma
guerra nuclear como um problema unicamente dos adversários
possuidores das armas. O controle de armamentos e as negociações
intermináveis visando à redução dos explosivos nucleares têm sido
considerados responsabilidade, e até prerrogativa, das poucas nações
em confronto definido. Agora tudo isso mudou. Nenhum país da Terra
está livre do perigo da destruição se duas nações quaisquer, ou grupos
de nações, se aventurarem num reencontro nuclear. Se a União
Soviética e os Estados Unidos, e seus respectivos aliados do Pacto de
Varsóvia e da OTAN, se pusessem a lançar seus mísseis além de um
mínimo dúbio e ainda indeterminado, estados neutros como a Suécia e a
Suíça sofreriam os mesmos efeitos dilatados, a mesma morte lenta que
os participantes diretos. A Austrália e a Nova Zelândia, o Brasil e a África
do Sul, têm quase tanto por que se preocupar quanto a Alemanha
Ocidental se uma conflagração em grande escala se verificar no extremo
norte.
Até aqui, todos temos tendido a ver num conflito com armas
nucleares um esforço de um par de opositores de resolver pendências
como domínio territorial ou disputa ideológica. Agora, com os novos
conhecimentos diante de nós, ficou claro que qualquer território
conquistado será ao cabo um deserto estéril, e que qualquer ideologia
será consumida na morte da civilização e na perda permanente da
memória humana da cultura.
Até agora, os riscos de uma guerra dessa espécie foram
convencionalmente calculados pelo número de mortos de um e de outro
lado ao final da batalha, soldados e não-combatentes somados. As
expressões "aceitável" e "inaceitável", significando tantos ou tantos
milhões de baixas humanas, têm sido utilizadas para estabelecer
julgamentos frios sobre a necessidade de novos e mais precisos
sistemas de armas. Daqui por diante, as coisas são diferentes. É
desnecessário falar da estimativa inquestionável de que em um conflito
total de, por exemplo, 5.000 megatons, algo como um bilhão de pessoas
morreriam imediatamente por ação das explosões, do calor e da
radiação. Por outro lado é desnecessário citar o fato provável de que
outro bilhão viria a morrer depois, em consequência dos efeitos
retardados sobre os sistemas de sustentação vital e da precipitação
radioativa.
Algo mais terá acontecido ao mesmo tempo, algo em que os seres
humanos deveriam ver um risco igual ao da perda de suas vidas. O
complexo, coerente, belamente organizado ecossistema da Terra - aquilo
que alguns denominam biosfera e a que outros chamam natureza - terá
sofrido um golpe mortal, ou quase. Algumas de suas partes hão de
persistir, é razoavelmente certo, e a vida do planeta irá continuar, mas
talvez unicamente em nível comparável ao que existia por volta de um
bilhão de anos atrás, quando os procariontes (criaturas semelhantes às
bactérias atuais) se uniram em combinações simbióticas e criaram as
células nucleadas de que nós somos sem dúvida os descendentes
diretos.
A última grande extinção de vida planetária ocorreu há cerca de 65
milhões de anos, quando os dinossauros e inúmeras outras criaturas
terrestres e marinhas desapareceram simultaneamente. Supõe-se
geralmente que esse evento tenha sido provocado por uma vasta
explosão de pó, que teria escurecido o sol por um período longo o
bastante para deter a fotossíntese, provavelmente em consequência da
colisão de um asteroide com a Terra. É esse gênero de evento que
predizem os modelos usados nestes estudos.
A persistência e multiplicação de armas nucleares, a provável
proliferação de tais armas em outros países que hoje não as possuem, e
os esforços bloqueados, adiados e fracassados de livrar-nos dessas
ameaças à vida do planeta, inclusive à nossa própria, parecem-me hoje
uma ordem de problemas diferente do que parecia até recentemente. Já
não é um assunto de política, a ser deixado à sensatez e previdência de
uns poucos estadistas e de uns poucos chefes militares, nuns poucos
Estados nacionais. É um impasse global, que envolve toda a
humanidade.
Minha esperança agora é que a comunidade científica internacional
em todos os países analise cuidadosamente os dados e conclusões a
que chegamos, que amplie esses estudos de todas as maneiras que
possa imaginar e que aconselhe seus governos adequadamente e
insistentemente. E espero que os jornalistas do mundo achem modos de
informar os cidadãos da Terra, em detalhe e reiteradamente, sobre os
riscos futuros.
Já não temos escolhas a fazer ou as opções de alguns meses
atrás a questionar. Simplesmente temos de parar, e logo, e livrar a Terra
de uma vez por todas dessas armas que na verdade não são armas,
senão instrumentos de pura danação. No pé em que estão as coisas,
nós colocamos em perigo muito mais que a humanidade em si.
Arriscamos infligir um dano permanente à vida de toda a admirável
criação.
A coisa mais linda que já vi numa fotografia, em toda a minha vida,
é o planeta Terra visto da Lua, suspenso no espaço, evidentemente vivo.
Embora à primeira vista ele pareça feito de uma multiplicidade de coisas
vivas diferentes, melhor reparando, cada peça que nele trabalha, nós
inclusive, está ligada por interdependência a todas as demais. Segundo
um modo de dizer, é o único ecossistema autenticamente fechado que
nos é dado conhecer. Em outras palavras, é um organismo. Nasceu,
calcula-se, há 3,8 bilhões de anos, e eu lhe desejo feliz aniversário e
uma longa existência futura, para os nossos filhos, e os seus netos, e os
netos de seus netos.
Tenho em alta conta a nossa espécie, com todo o seu verdor e
imaturidade como membro da biosfera. Na escala do tempo evolutivo,
nós só chegamos alguns instantes atrás e ainda temos muito que
crescer. Se formos bem-sucedidos, podemos tornar-nos uma espécie de
mente coletiva da Terra, o pensamento da Terra. No momento, apesar
da nossa juventude como espécie, somos sem dúvida a mais engenhosa
e inteligente das peças componentes do sistema. Confio em que
teremos a vontade de continuar funcionando, e de manter o melhor que
possamos a vida do planeta. Por isso, vejo estes relatórios não apenas
como uma advertência, mas também, se devidamente divulgados e
reconhecidos a tempo, como uma extraordinária boa nova. Acredito que
a humanidade como um todo, conhecendo a verdade dos fatos, saberá
o que tem de ser feito com as armas nucleares.
Mas se os fatos permanecerem obscuros, ou forem erroneamente
tomados por fantasias teóricas arcanas, que se podem calmamente
desprezar, nesse caso não vejo esperança para nós.
INTRODUÇÃO
DONALD KENNEDY

Este não é um assunto agradável. Em primeiro lugar, as


consequências de uma guerra nuclear são realmente pavorosas, e não
é nada divertido dizer às pessoas que são mais pavorosas ainda do que
lhes disseram antes. Depois, infelizmente não existe uma saída simples
para as dificuldades em que nos colocam as armas nucleares - embora
alguns teimem que existe. Ao contrário, há uma necessidade contínua
de lidar com o perigo, e de enfrentar uma política de segurança
nacional que se mostra terrivelmente refratária ao raciocínio lógico. É
nessas circunstâncias desanimadoras que se discutem as
consequências biológicas a longo prazo de uma guerra nuclear.
Antes de começar, quero levar ao conhecimento do leitor algumas
qualificações que me faltam para o meu papel de introdutor, e em
seguida expor uma ou duas convicções. Não sou um veterano do
movimento antinuclear, nem tenho experiência em matéria de
desarmamento ou de controle de armas. Ademais, é com prazer que
deixo a outros a proficiência técnica na disciplina inexata que é a
estratégia nuclear - a base tecnológica e aleatória da détente. Quanto
às convicções, devo dizer que conservo a crença antiquada de que
continuaremos a necessitar de um organismo de defesa no país, de
que, queiramos ou não, as armas nucleares continuarão por algum
tempo a exercer uma função integrante na nossa estratégia de
segurança nacional e na de outros, e de que, em vista disso, teremos
de seguir nos esforçando em compreender tais armas se quisermos
finalmente controlá-las e negociar racionalmente com a outra parte.
Estas revelações devem mostrar, penso eu, que não sou nem uma
fonte técnica indicada para uma conferência de controle de armamentos,
nem um candidato promissor a chefe de claque num comício pela paz.
Este volume não se destina a refletir nenhum desses propósitos. É, sim,
um relatório de análises científicas sérias das consequências de uma
guerra nuclear. E para introduzir esse assunto eu tenho uma perspectiva
que imagino relevante. Durante um período em que prestei serviços ao
governo, chefiei um órgão de regulação que se ocupava em grande
parte com os perigos ligados a produtos químicos tóxicos, e de modo
mais geral com as consequências da introdução prematura de novas
tecnologias. No curso daqueles anos, e nos tempos imediatamente
precedentes e seguintes, estive intimamente envolvido em atividades de
estimativa de riscos: avaliação das consequências do uso de defensivos
agrícolas, definição de tolerâncias para contaminação por poluentes
industriais, estimativa de efeitos de aditivos alimentares, etc. Nessa
função, era uma preocupação considerável a forma de estimar os riscos,
tanto mais em circunstâncias em que os dados são necessariamente
incompletos.
Creio que três lições tiradas dessa experiência são aplicáveis ao
assunto em pauta. Primeiro, um dos grandes desafios da metodologia de
avaliação de riscos é formular decisões com o máximo de segurança
possível em face de grandes incertezas. Para levar a bom termo esse
princípio, é essencial que se tenha tanta consciência daquilo que não se
sabe quanto daquilo que se sabe.
Esse desafio torna-se muito mais difícil pela atitude do público em
relação ao risco. É esta a segunda lição: as pessoas são ambivalentes
com respeito ao risco. Aplicam-se enormes recursos pessoais e sociais
na salvação de uma vida identificada em perigo, mas consigna-se muito
menos para proporcionar uma proteção estatisticamente muito maior a
indivíduos não identificados da população global. Aprovamos
entusiasticamente leis que previnem riscos involuntários de pequena
monta; mas as revogamos prontamente se elas restringem liberdades
pessoais. Em suma, não hesitamos em gastar grandes somas para tirar
uma garotinha do poço em que ela caiu, mas relutamos em diminuir o
limite de velocidade, ou até em proibir certos produtos cancerígenos se
eles são do agrado das pessoas.
Essa ambivalência torna-se ainda mais definida quando a
probabilidade e a gravidade dos riscos são consideradas
separadamente. Há uma diferença de atitudes em relação a riscos
estatísticos modestos amplamente distribuídos, como o aumento de
mortes por câncer devido a uma toxina ambiental, e a riscos de baixa
probabilidade com consequências desastrosas generalizadas, como um
conflito com armas nucleares. Embora estejamos apenas começando a
desenvolver uma ciência das atitudes humanas com respeito à aversão
ao risco, os resultados até aqui obtidos sugerem que as pessoas tratam
eventos de baixa probabilidade com consequências altamente negativas
de um modo que se afasta acentuadamente das opções que seriam de
prever com base nas teorias correntes de "expectativa utilitária". Tais
pesquisas podem vir a revelar alguma coisa de grande utilidade sobre as
atitudes da população em relação à guerra nuclear. E podem ser mais
importantes ainda no que toca à questão crucial de como os
responsáveis pelas decisões, nos terríveis últimos momentos, irão
decidir.
A terceira e última lição que me seria dado tirar do domínio mais
convencional da estimativa de riscos tem a ver com a escala de tempo
em que nós reconhecemos as consequências. Aqui a analogia com o
mundo das substâncias tóxicas é de fato perfeitamente exata.
Quando, depois da guerra, a revolução da indústria química
começou a causar preocupação com os riscos humanos ligados a
substâncias tóxicas, a preocupação era quase inteiramente limitada aos
efeitos imediatos ou "agudos". Os primeiros programas de ensaios
criados para avaliar esses perigos foram os chamados testes LD50, que
mediam a quantidade de um determinado composto que se constituía
em dose letal para 50 por cento dos organismos utilizados no teste. Mais
tarde, foi-se aos poucos chegando à conclusão de que os efeitos
"crônicos" à longo prazo - a possibilidade de produzir câncer, ou de
aumentar a propensão de um indivíduo para cardiopatias e infarto, ou de
gerar defeitos congênitos na prole - eram muito mais importantes, e
inteiramente impossíveis de medir empregando os testes usuais de curto
prazo. A subsequente experiência confirmou que esses riscos crônicos
são muitíssimo mais sérios que os agudos, e hoje em dia não passa pela
cabeça de ninguém avaliar a segurança de uma substância nova sem
realizar experiências de longa duração para avaliar o seu potencial
carcinogênico, efeitos fetais, etc.
É a posição em que nos encontramos com respeito à guerra
nuclear: estamos começando a compreender os efeitos retardados - os
equivalentes, para o ambiente, do câncer, das cardiopatias, do infarto.

Agora quero chamar atenção para um aspecto central na evolução


dos nossos conhecimentos sobre as consequências de uma guerra
nuclear: é o caráter errático e acidental das nossas descobertas. O que
sabemos hoje, e é certamente bem menos do que desejaríamos saber,
chegou-nos em grande parte através de revelação não planejada, e não
por estudo sistematizado. Em decorrência das armas detonadas sobre
cidades japonesas no final da Segunda Grande Guerra, tivemos uma
triste verificação de efeitos agudos - a devastação causada pela
explosão primária e pelas ondas de choque e o impacto da
radioatividade local em seres humanos. Mas só depois dos testes do
Atol de Biquini em 1954 foi que ficamos sabendo dos perigos de
contaminação a distância por precipitação radioativa após transporte
atmosférico. Ainda hoje, quase três décadas passadas, causa-nos
espanto a magnitude e alcance do fenômeno. Por exemplo, o famoso
vazamento de radiação de um reator avariado em Three Mile Island -
incidente que gerou desassossego generalizado e centenas de páginas
de depoimentos no Congresso - depositou menos de um décimo da
quantidade de radiação (em forma de 131 I) depositada na mesma
região da Pensilvânia pela precipitação da nuvem produzida pelo teste
de uma única bomba na China dois anos antes. Entre outras
descobertas tardias e fortuitas estão os efeitos no cinturão de Van Allen,
o pulso eletromagnético (EMP) e seus efeitos nas comunicações
eletrônicas e, mais recentemente, a injeção de NOx (óxidos de
nitrogênio) na camada de ozônio. Discorrendo sobre esses eventos, um
observador fez o seguinte comentário: "A incerteza é uma das principais
conclusões... como acentua a derivação acidental e imprevista de muitas
das nossas descobertas." Essas palavras não foram escritas por um
crítico acadêmico da política governamental: são de um atual
subsecretário da Defesa do governo Reagan.
A conclusão é clara, e não muito tranquilizadora. Nós temos de
aprender a esperar o inesperado. A presente Conferência coloca-nos
bem no meio de outro e ainda mais momentoso conjunto de revelações
sobre os riscos crônicos ligados a uma guerra nuclear. Num sentido
importante, a genealogia desta Conferência começa com o trabalho
extraordinário da organização denominada Médicos pela
Responsabilidade Social. Eles fizeram as primeiras avaliações
quantitativas das circunstâncias médicas que prevaleceriam
imediatamente após um ataque nuclear, e demonstraram a insuficiência
das atuais instituições, programas e planos médicos para avir-se com
essas circunstâncias. Tais revelações levantaram sérios
questionamentos com respeito a toda a estrutura da prontidão da
defesa civil e lançaram graves dúvidas sobre as asserções confiantes
dos planejadores da defesa de que a recuperação após um conflito
nuclear poderia completar-se num número de anos relativamente curto.
Os resultados expostos nesta Conferência sumariam análises
científicas mais sérias das consequências ecológicas e climatológicas
duradouras de um conflito nuclear. Em particular, anteriormente os riscos
ecológicos receberam pouquíssima atenção na avaliação de estratégias
nucleares. Estudos mais antigos feitos sob o patrocínio do Departamento
da Defesa (por exemplo, o de Mitchell) consistiam em pouca coisa mais
que analogias com cataclismos naturais. O resumo final do estudo Rand
de Mitchell é ilustrativo: "Destruições em grande escala produzidos por
incêndios, secas, enchentes e outras catástrofes já defrontaram o mundo
com problemas de reconstrução e reconstituição de comunidades
bióticas, semelhantes aos que se prefiguram para o meio ambiente de
pós-ataque." De que modo essa similaridade possa ser de serventia na
avaliação dos riscos efetivos, deixo ao leitor imaginar.
Na verdade, não é de todo justo condenar aqueles primeiros
estudos: nossa visão atual é mais clara e mais sinistra em virtude de uma
série de razões. Primeiro, certas verificações recentes (por exemplo, a
sensibilidade de alguns ecossistemas a chuvas ácidas, e em particular a
sensibilidade das plantas à radioatividade e à temperatura) foram no
sentido de piorar as previsões. Segundo, nossa visão geral da
complexidade e sutileza dos sistemas ecológicos mudou profundamente
ao longo das duas últimas décadas; hoje compreendemos de forma muito
mais completa a sua fragilidade. Por fim, o número e a precisão dos
nossos sistemas de armamentos mudaram de tal modo que podem
ampliar o caráter altamente destrutivo de um conflito armado.
É surpreendente, portanto, que ainda hoje estejamos recebendo
informações tranquilizadoras baseadas em estimativas há muito
superadas. Órgãos de emergência distribuem ainda hoje um folheto
redigido em 1979 pela Agência de Prontidão da Defesa Civil. Nele lê-se a
seguinte conclusão, em moldes idênticos à da metáfora do relatório de
1963: "Nenhum peso lógico de ataque nuclear poderia induzir no
equilíbrio natural transformações de vulto que se aproximassem em
espécie ou grau das que a civilização humana até aqui já produziu." Ainda
que fosse verdade que a magnitude das transformações ecológicas
provavelmente resultantes do maior ataque nuclear admissível fossem
menores do que as produzidas pela civilização humana ao longo de toda
a sua história, existe certamente uma enorme diferença entre o impacto
de grandes mudanças deflagradas em milissegundos e as que se
consumaram ao longo de milênios.
Em outro trecho, o mesmo folheto cita do estudo de 1963 da
Academia Nacional de Ciências e informação reconfortante de que “não
são de esperar desequilíbrios ecológicos capazes de impossibilitar a vida
normal". Não há qualquer menção a um estudo muito mais recente da
mesma Academia sobre os efeitos mundiais à longo prazo de múltiplas
detonações de armas nucleares. Este último relatório é de 1975, quatro
anos antes da elaboração dó folheto da Agência de Prontidão. Suas
conclusões são muito mais sombrias, como era de esperar: os efeitos
dos óxidos de nitrogênio sobre a camada de ozônio foram reconhecidos,
e as perspectivas de alterações climáticas foram mais seriamente
levadas em conta. No entanto, o governo, prestando contas aos seus
cidadãos, contornou a informação mais recente para promover um falso
sentimento de tranquilidade com base numa fonte ultrapassada. É de
preocupar quando se usam dados obsoletos para informar decisões de
política geral.
Por si mesmas, as estimativas ecológicas da Academia dão
margem substancial a uma apreensão ainda maior. Mas parece-me
oportuno acentuar que os dados novos mais impressionantes
apresentados nesta Conferência, na verdade os mais inquietantes dentre
todos os efeitos crônicos potenciais de uma guerra nuclear até hoje
enumerados, são as perspectivas de sequelas climáticas de vulto. Tais
sequelas são de tal modo profundas que provavelmente eclipsariam
todos os demais efeitos retardados até hoje conhecidos.
Esta nova ótica resulta em parte de um novo paradigma geral de
pensamento científico sobre os processos que influenciaram a história da
Terra e moldaram-lhe a forma atual. No século XVIII e início do XIX,
acreditava-se que as grandes formações terrestres houvessem resultado
de processos catastróficos, infligidos à Terra e seus ocupantes por um
Criador iracundo. Uma revolução importante contra esse modo de ver,
encabeçada pelo geólogo inglês Charles Lyell, reconheceu a importância
de processos graduais como a erosão, a sedimentação e a formação de
recifes, e substituiu a concepção catastrofista por outra, baseada na
doutrina do uniformitarismo. Hoje as ciências da Terra estão passando
por uma segunda revolução, deflagrada pelas notáveis descobertas da
tectônica de placas, e o acento voltou a incidir sobre eventos mais
dramáticos. Cresce progressivamente a convicção de que grandes
intervenções descontínuas como erupções vulcânicas e colisões de
asteroides tiveram efeitos profundos na história da Terra e da vida nela
existente. Uma hipótese particularmente cativante, por exemplo, é a de
que a colisão de um asteroide com a Terra há 65 milhões de anos, e a
nuvem de poeira atmosférica que ela produziu, persistindo durante longo
tempo, levou a alterações climáticas que acarretaram as extinções em
massa do final do período cretáceo. Quando pela primeira vez
anunciada, a ideia de que os dinossauros teriam morrido no escuro
evocou um grande ceticismo por parte dos biologistas meus
colegas. Hoje, porém, é largamente admitido que eventos
significantes da mesma natureza, ainda que não da mesma magnitude,
têm ocorrido no tempo histórico por obra de erupções vulcânicas. "Anos
sem verão" registrados em anais antigos associam-se no tempo a
depósitos glaciais de chuvas ácidas, por exemplo, e aberrações
meteorológicas mais contemporâneas foram ligadas a erupções como a
do EI Chichón, no México, há dois anos.
Conclusões como essas tornaram-nos muito mais cônscios da
sensibilidade do clima do mundo a perturbações repentinas. Sabe-se,
faz algum tempo, que explosões nucleares podem introduzir poeira e
aerossóis em circulação duradoura na alta atmosfera. Cálculos recentes
indicam que incêndios de grandes dimensões acresceriam um efeito
sinérgico, suprindo partículas adicionais e aumentando
substancialmente as forças de convecção que injetam materiais na
circulação da alta atmosfera. Essa nova informação tornou real pela
primeira vez a probabilidade de que modificações de temperatura e luz
ambiente, prolongando-se por várias estações no Hemisfério Norte,
podem resultar de um conflito nuclear em grande escala. É uma
atuação de alarmante gravidade.
Consideradas em conjunto, todas essas informações deveriam
suscitar uma mudança radical no modo que nós como cidadãos
avaliamos nossos riscos, e no modo que os nossos estrategistas
nacionais os veem. Já não é admissível pensar nas sequelas de uma
guerra nuclear em termos de minutos, de dias, ou sequer de meses.
Seria como avaliar um produto tóxico, na época em que vivemos, em
termos do que ele faz a uma pessoa em cinco minutos. O que ficamos
sabendo a partir das coisas que os biólogos e físicos atmosféricos nos
estão dizendo hoje é que a escala de tempo apropriada é anos, e que
os processos que temos de considerar não nos são familiares nem em
espécie nem em escala. As estimativas de risco sobre as quais os
nossos estrategistas vêm trabalhando e que vêm citando aos nossos
cidadãos são grosseiramente otimistas.
Antes de terminar, quero focalizar um outro aspecto da análise de
riscos. É um aspecto que mencionei de passagem mais atrás: a noção
de "racionalidade" por parte dos detentores do poder de decisão ao
confrontar questões de probabilidade e gravidade de um risco. Não
apenas há motivos para duvidar que esses indivíduos, confrontados
com riscos de alta gravidade e baixa probabilidade, se comportem de
acordo com padrões utilitários racionais de opção, como há precedentes
históricos explícitos fazendo acreditar que se comportarão de modo
mais político - e humano - do que aquele que o modelo do "agente
racional" indicaria. Em seu excelente livro The Essence of Decision,
Graham Allison analisa o tratamento pelo governo dos Estados Unidos
da crise dos mísseis cubanos em 1962 do ponto de vista de diferentes
modelos comportamentais. Ao lê-lo, é impossível fugir à conclusão de
que nenhum chefe de Estado, nenhuma autoridade do governo,
nenhum oficial militar superior se comporta como "agente racional" ao
tomar decisões quando o destino de países e do mundo pende na
balança. Estruturas burocráticas, lealdades políticas e antecedentes -
além de outras não-linearidades comportamentais que mal estamos
começando a sondar - desempenham papéis ponderáveis. No entanto a
estrutura da prontidão militar e o equilíbrio estratégico fundam-se na
expectativa de resposta racional e contrarresposta racional. A
racionalidade será particularmente difícil de manter nos primeiros
estágios de um conflito nuclear quando a incerteza e a necessidade de
decisões rápidas predominarão. É por isso que se afigura tão
improvável a chefes militares experimentados e a outros que uma
guerra nuclear possa jamais manter-se limitada.
Seja como for, a avaliação de riscos deveria proceder-se sobre
hipóteses de pior caso. É por isso que os cenários adotados pelos
grupos de trabalho desta Conferência, como a maior parte dos demais,
envolvem a detonação de frações consideráveis do arsenal nuclear do
mundo. Mas há também uma razão adicional: a alta probabilidade de
que, no contexto real das decisões de um confronto nuclear, será tão
difícil confinar a retaliação e a reação que o curso esperado de um
conflito dessa espécie é que ele prossiga sem limite.
Finalizando, quero especificar o que é novo e o que não é neste
volume. É de extrema significação que um grande grupo de biólogos
ilustres tenha chegado a um consenso refletido sobre as consequências
ecológicas de um conflito nuclear. (Em geral não se faz ideia de como é
difícil que biólogos, principalmente ilustres, concordem nalguma coisa.) O
grupo que se ocupou dos efeitos atmosféricos e climáticos, em seu
relatório conjunto, levanta algumas possibilidades desalentadoras com
respeito a esses aspectos de um pós-guerra nuclear. Mas, como eu
tentei ilustrar, essas descobertas são parte de um processo ordenado na
evolução do pensamento científico, através do qual pouco a pouco
viemos deslocando o foco de nossas atenções dos efeitos mais imediatos
e mais óbvios para os mais complexos e duráveis. Essa transição
desloca-nos também para uma zona em que os efeitos são
possivelmente ainda mais sérios, posto que muito mais difíceis de
estimar com precisão. De fato, a história do desenvolvimento da ciência
nuclear e a complexidade de muitos dos efeitos de maior alcance de que
aqui se tratará sugerem que a incerteza deveria ser uma advertência
temática para os planejadores de políticas. O que as nossas projeções
mais ponderadas mostram é que um choque nuclear em grande escala
haverá de produzir, entre os seus muitos efeitos plausíveis, as maiores
convulsões biológicas e físicas deste planeta nos últimos 65 milhões de
anos – um tempo mais de 30 mil vezes maior que o decorrido do
nascimento de Cristo, e mais de 100 vezes o tempo de existência até
aqui da nossa espécie. É preciso que a avaliação dos riscos prováveis se
constitua num pano de fundo para todos aqueles que detêm a
responsabilidade pelas decisões de segurança nacional, aqui e em outros
lugares.
Assim como existe uma continuidade entre as descobertas atuais e
os resultados de trabalhos científicos anteriores, quero ressaltar que
existe igualmente uma continuidade entre as opiniões dos cientistas aqui
apresentadas e as dos seus ilustres colegas não citados neste livro. E
quero encerrar enfatizando as últimas, já que é fácil muitas vezes rejeitar
más notícias desconfiando do mensageiro. Projeções anteriores sobre os
efeitos retardados de uma guerra nuclear, baseadas nos conhecimentos
então disponíveis, foram feitas em 1975 pela Academia Nacional de
Ciências e em 1979 pela Comissão de Avaliação Tecnológica do
Congresso. A Academia, que foi instituída por Abraão Lincoln para
assessorar o governo dos Estados Unidos em assuntos científicos, é
composta por quase mil e trezentos dos mais reputados cientistas do
país. Em aditamento ao estudo de 1975 sobre efeitos a longo prazo, ela
está procedendo a uma análise de consequências atmosféricas e
climáticas, que esperamos venha ampliar e manter sob atenção as
conclusões descritas nesta Conferência pelo Dr. Sagan. Em
consequência dessa iniciativa, os membros da Academia, em abril do ano
passado, aprovaram uma resolução insólita - insólita no sentido de que
rompeu uma reserva habitual da Academia em assuntos que pudessem
ser considerados objeto de controvérsia política. Embora este seja um
livro de descobertas científicas e não de recomendações de conduta,
quero levar ao conhecimento dos leitores o julgamento firmado pelos
meus colegas acadêmicos sobre a matéria, pelo que termino
reproduzindo a Resolução da Academia Nacional de Ciências sobre
Guerra Nuclear e Controle de Armamentos:

Considerando que a guerra nuclear é uma ameaça sem


precedentes à humanidade;

Considerando que uma guerra nuclear total poderia eliminar


centenas de milhões de vidas e destruir a civilização tal como a
conhecemos;

Considerando que qualquer emprego de armas nucleares, inclusive


em assim chamadas "guerras limitadas", muito provavelmente redundaria
numa escalada para a guerra nuclear total;

Considerando que a ciência não aponta nenhuma possibilidade de


defesa eficaz contra uma guerra nuclear e mútua destruição;

Considerando que a proliferação de armas nucleares em outros


países com governos instáveis em áreas de alta tensão aumentariam
substancialmente o risco de uma guerra nuclear;

Considerando que por mais de dois anos não houve progressos no


sentido de obter limitações e reduções de armas estratégicas, quer
através da ratificação do SALT II quer da retomada de negociações
sobre armas nucleares estratégicas;
Fica resolvido que a Academia Nacional de Ciências pede ao
presidente e ao Congresso dos Estados Unidos, e aos poderes
correspondentes da União Soviética e de outros países que têm um
interesse similar nessas matérias vitais:

Que intensifiquem de modo considerável, sem precondições e com


urgência, esforços no sentido de alcançar um acordo equitativo e
comprovável entre os Estados Unidos, a União Soviética e outras nações
que têm um interesse similar nessas matérias vitais;

Que acionem todos os meios práticos possíveis capazes de reduzir


o risco de uma guerra nuclear por acidente ou erro de interpretação;

Que adotem todos as medidas práticas para inibir a proliferação


continuada de armas nucleares em outros países;

Que sigam observando todos os acordos existentes de controle de


armamentos, inclusive o SALT II; e

Que evitem doutrinas militares que considerem explosivos nucleares


como armas de guerra comuns.
A ATMOSFERA E AS CONSEQUÊNCIAS
CLIMÁTICAS DA GUERRA NUCLEAR

CARL SAGAN

Hoje é o Dia das Bruxas do ano que precede 1984, e sinceramente


eu gostaria que o que irei dizer-lhes em seguida fosse apenas uma
história de fantasmas, apenas algo inventado para assustar crianças por
um dia. Infelizmente, não é uma simples história. Nossas últimas
pesquisas revelaram o fato surpreendente de que uma guerra nuclear
pode arrastar em sua esteira uma catástrofe climática, a que damos o
nome de "inverno nuclear", sem precedentes durante a ocupação da
Terra pelo homem.
Foi por acidente que esbarramos com esses resultados, por uma
via tortuosa, por uma dessas circunstâncias não raras na ciência em que
estudando alguma coisa pelo interesse puramente intelectual que ela
oferece se é levado a conclusões de inesperada utilidade prática. Para
mim, a coisa começou em 1971, com a exploração de Marte pela
Mariner 9. A Mariner 9 foi a primeira espaçonave a orbitar ao redor de
outro planeta. Os engenheiros do projeto garantiram que ela só
funcionaria por três meses após a entrada em órbita. Chegando a Marte,
a nave encontrou o planeta completamente coberto por uma tempestade
global de pó. Ao fim de um mês, durante o qual foi fotografado um disco
quase inteiramente desprovido de detalhes, passamos a alimentar sérios
receios de que quando a poeira assentasse por completo, limpando a
atmosfera marciana, a nave já estaria inoperante. Com efeito, a
tempestade levou três meses para dissipar-se, mas a nave funcionou
muito melhor do que disseram os engenheiros - e por todo o ano
seguinte foi-nos dado examinar o planeta de um polo a outro no primeiro
reconhecimento orbital detalhado de outro planeta.
Durante aqueles três primeiros meses, pouca coisa houve a
observar, além da poeira em suspensão. Havia a bordo da nave um
instrumento chamado espectrômetro interferométrico de infravermelho,
capaz de examinar a atmosfera em vários comprimentos de onda e
assim sondar os diferentes níveis da atmosfera - desde as grandes
altitudes até a superfície. Pudemos observar a temperatura da
atmosfera e a da superfície variarem com o tempo. Os resultados
mostraram que a atmosfera estava consideravelmente mais quente do
que é normalmente em Marte, e a superfície consideravelmente mais
fria. À medida que a poeira assentava, a atmosfera foi arrefecendo e a
superfície esquentando - ambas as temperaturas caminhando para os
seus valores usuais, ou "ambientes" - Não foi difícil entender as razões
disso. Os ventos haviam arrastado uma grande quantidade de poeira
dos desertos marcianos para a atmosfera. A luz do sol fora absorvida
pelo pó na alta atmosfera, que com isso se aquecera. Da mesma forma,
a luz do sol fora impedida de alcançar a superfície, e esta esfriara. Um
espectador em Marte teria observado, depois que a tempestade de
poeira se desencadeou, o frio e a escuridão se propagando sobre a face
do planeta. Após vários meses (a tempestade começara alguns meses
antes da chegada da Mariner 9 a Marte), quase toda a poeira se
depositara, e as condições voltaram ao normal.
Essas tempestades de poeira são comuns em Marte, e por mais de
um século têm sido observadas da Terra. Caracteristicamente, elas
surgem sempre nos mesmos poucos locais do planeta, propagam-se
primeiro em longitude, depois em latitude, e em questão de poucas
semanas no máximo cruzam tipicamente o equador marciano, passando
ao outro hemisfério. Ora, a pressão atmosférica na superfície de Marte é
mais ou menos a mesma da estratosfera da Terra. Marte gira, como a
Terra, uma vez em 24 horas, e o seu eixo de rotação é inclinado em
relação ao seu plano orbital de um ângulo quase igual ao da Terra. Há, é
claro, diferenças entre Marte e a Terra - entre elas a ausência de mares
em Marte e o fato de ele estar mais afastado do Sol. Mas pareceu-nos
que a experiência marciana podia ser relevante para a Terra.
Alguns de nós, tendo pouca coisa a ver nos primeiros três meses
depois da entrada em órbita além da tempestade de poeira, ocupamo-
nos em calcular o grau de aquecimento atmosférico e de esfriamento
superficial para uma dada quantidade de poeira levantada. Um cálculo
aproximado não era muito difícil, e vários diferentes grupos puderam
determinar não só qualitativa como quantitativamente as mudanças de
temperatura que a tempestade de poeira temporariamente produzira em
Marte. Meus colegas (e ex-alunos) James B. Pollack e O. Brian Toon,
ambos hoje no Centro de Pesquisas Ames da NASA, estavam ansiosos
por aplicar esse repositório computacional a problemas terrestres.
Aplicamo-nos a tentar compreender o que acontece com o clima da
Terra quando um grande vulcão entra em erupção e distribui aerossóis
estratosféricos à volta do planeta. Em alguns casos, conhecemos a
quantidade de poeira introduzida na alta atmosfera, as dimensões das
partículas de pó (em geral menos de um micro [um décimo milésimo de
centímetro]) e a sua composição (geralmente ácido sulfúrico e silicatos).
Como a estratosfera é muito seca, a chuva não remove esses aerossóis;
e como a convecção na estratosfera é muito atenuada, os movimentos
do ar não tendem a transportá-los para fora. Dessa forma, eles descem
lentamente pelo próprio peso -lentamente porque as suas dimensões
são muito reduzidas -, levando mais de um ano para que a estratosfera
fique limpa. Ao mesmo tempo, existem medições, para muitas explosões
vulcânicas, de um declínio pequeno porém definido da temperatura
global - para todas as explosões vulcânicas dos últimos poucos séculos,
um esfriamento de um grau ou menos. Verificamos que era possível
calcular esses declínios de temperatura com razoável precisão; os
métodos desenvolvidos para Marte, e desde então consideravelmente
ampliados, funcionaram bastante bem para a Terra.
Foi proposto então por Alvarez e outros que a extinção dos
dinossauros e muitas outras espécies 65 milhões de anos atrás, no limite
entre os períodos cretáceo e terciário, ter-se-ia dado devido à colisão
com a Terra de um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro, e a
consequente efusão na atmosfera de enormes quantidades de poeira.
Com o concurso de Richard Turco da R&D Associates de Marina del
Rey, Califórnia, Pollack e Toon calcularam que essa colisão teria
acarretado um escurecimento e um esfriamento de grandes proporções.
Devo frisar, no entanto, que a nossa tese sobre as consequências
climáticas de uma guerra nuclear não está vinculada a essa explicação
das extinções do cretáceo/terciário. Os dinossauros podem ter morrido
de gripe sem afetar a validade das nossas conclusões.
Nós sabíamos, naturalmente, que explosões nucleares
arremessam grandes quantidades de poeira fina na atmosfera, e durante
anos havíamos falado em calcular os efeitos climáticos prováveis que
daí adviriam. Num seminário realizado no Centro de Pesquisas Ames
(dedicado em parte à questão da origem da vida), em 1981, decidimos
dar andamento àquele estudo. Um ano mais tarde o nosso esforço
recebeu novo impulso por obra de um trabalho muito interessante
realizado por Paul Crutzen, do Instituto de Química Max Planck de
Mogúncia, República Federal da Alemanha, e John Birks, da
Universidade do Colorado. Crutzen e Birks tinham feito uma estimativa
preliminar da quantidade de fumaça produzida pela queima de florestas
e cidades que seria descarregada na atmosfera numa guerra nuclear.
Evidentemente esta seria uma importante fonte adicional de partículas
finas capazes de obscurecer a luz do sol.
Chego assim à questão dos efeitos de uma guerra nuclear. As
consequências imediatas da explosão de um único artefato termonuclear
são conhecidas e bem documentadas - radiação da bola de fogo,
emissão primária de nêutrons e raios gama, deslocamento de ar e
incêndios. A bomba de Hiroshima, que matou entre 100.000 e 200.000
pessoas, era um artefato de fissão com potência de cerca de 12
quilotons (o equivalente explosivo de 12.000 toneladas de TNT). Uma
ogiva termonuclear moderna emprega um mecanismo mais ou menos
parecido com o da bomba de Hiroshima como detonador - o "fósforo"
que acende a fusão nuclear. Uma arma termonuclear americana típica
pode ter uma potência em torno de 500 quilotons (ou 0,5 megaton,
sendo um megaton o equivalente explosivo de um milhão de toneladas
de TNT). Hoje existem muitas armas na faixa de 9 a 20 megatons nos
arsenais estratégicos dos Estados Unidos e da URSS. A arma mais
potente até hoje detonada tinha 58 megatons.
Armas nucleares estratégicas são aquelas projetadas para serem
transportadas por mísseis lançados de bases terrestres ou de
submarinos, ou por bombardeiros, até alvos situados nos territórios
inimigos. Numerosas armas de potência aproximadamente igual à da
bomba de Hiroshima são hoje reservadas para missões militares
"táticas" ou "de teatro", ou são designadas "munições" e relegadas a
mísseis ar-ar ou terra-ar, torpedos, cargas de profundidade e artilharia.
Se bem que as armas estratégicas tenham em geral maior potência do
que as armas táticas, nem sempre é este o caso Os modernos mísseis
(por exemplo, Pershing 2, SS-20) e aviões (por exemplo, F-15, MIG-23)
táticos ou de teatro têm raios de ação suficientes para tornar cada vez
mais artificial a distinção entre armas "estratégicas" e ''táticas" ou "de
teatro". Ambas as classes de armas podem ser expedidas por mísseis
lançados de bases terrestres, do mar e de aviões, e por sistemas de
alcance tanto intermediário como intercontinental. Não obstante, pela
contagem usual existem cerca de 18.000 armas termonucleares
estratégicas e de teatro e um número igual de detonadores de fissão nos
arsenais estratégicos americano e soviético, com uma potência total de
cerca de 10.000 megatons. O número total de armas nucleares
(estratégicas mais táticas e de teatro) nos arsenais dos dois países está
próximo de 50.000, com uma potência somada de quase 15.000
megatons. Para simplificar, eliminaremos aqui a distinção entre armas
estratégicas e de teatro e adotaremos, sob a rubrica "estratégicas", uma
potência acumulada de 13.000 megatons. As armas nucleares do resto
do mundo - principalmente Inglaterra, França e China - montam a muitas
centenas de ogivas e algumas centenas de megatons de potência total
adicional.
Ninguém sabe, é claro, quantas ogivas com que total de potência
seriam detonadas numa guerra nuclear. Em decorrência de ataques a
aviões e mísseis estratégicos, e em decorrência de falhas tecnológicas,
é certo que menos que a totalidade do arsenal do mundo seria
detonado. Por outro lado, é geralmente admitido, mesmo entre a
maioria dos planejadores militares, que seria quase impossível conter
uma "pequena" guerra nuclear antes que ocorresse uma escalada no
sentido de incluir grande parte dos arsenais mundiais. (Fatores de
aceleração são mau funcionamento de comandos e controles, falhas de
comunicações, a necessidade de decisões instantâneas sobre os
destinos de milhões de pessoas, medo, histeria e outros fatores
referentes a uma guerra nuclear real, travada por homens de carne e
osso.) Basta esta razão para que qualquer tentativa séria de estudar as
possíveis consequências de uma guerra nuclear deva contemplar de
preferência um conflito em grande escala, na faixa de 5.000 a 7.000
megatons - entre aproximadamente um terço e metade dos estoques
estratégicos do mundo -, e é o que várias investigações têm feito.
Contudo, muitos dos efeitos adiante referidos podem ser deflagrados
por guerras muito menores.
Aeroportos estratégicos, silos de mísseis, bases navais,
submarinos no mar, fábricas e depósitos de armas, centros de comando
e de controle civil e militar, instalações de detecção de ataque e alarme
antecipado, etc., são objetivos prováveis ("ataque de contraforça").
Embora se declare com frequência que cidades não seriam visadas per
se, muitos dos objetivos acima referidos estão localizados nelas ou nos
seus arredores, principalmente na Europa. Além disso, existe a classe
dos alvos industriais ("ataque de contravalor"). As modernas doutrinas
nucleares requerem que instalações de "apoio bélico" sejam atacadas.
Muitas dessas instalações são necessariamente industriais por
natureza, e empregam uma força de trabalho de dimensões
consideráveis. Quase sempre estão localizadas nas proximidades de
grandes centros de transporte, de modo que matérias-primas e
produtos acabados possam ser eficientemente transferidos para outros
setores de indústria ou para tropas no campo. Assim, essas instalações
são, quase por definição, cidades, ou se encontram perto ou no interior
de cidades. Outros objetivos classificados como de "apoio bélico" podem
ser os próprios sistemas de transporte (estradas, canais, rios, ferrovias,
aeroportos civis, etc.), refinarias, depósitos e dutos de petróleo, usinas
hidrelétricas e nucleares, emissoras de rádio e televisão, e assim por
diante. Um ataque cruzado de contravalor poderia assim envolver a
quase totalidade das grandes cidades dos Estados Unidos e da União
Soviética, e possivelmente a maior parte das grandes cidades do
Hemisfério Norte. Existem no mundo menos de 2.500 cidades com
população acima de 100.000 habitantes, portanto a destruição de todas
essas cidades está perfeitamente dentro da capacidade dos arsenais
nucleares do mundo.
Estimativas recentes de mortes imediatas por efeito de explosão,
radiação primária e incêndios num conflito de grandes dimensões em
que cidades fossem alvejadas variam de algumas centenas de milhões a
- mais recentemente, num estudo da Organização Mundial de Saúde em
que se supôs que os objetivos não se restringiriam exclusivamente aos
países da OTAN e do Pacto de Varsóvia - 1,1 bilhão de pessoas. É
possível, portanto, que algo como a metade da população do planeta
fosse morta ou seriamente lesada pelos efeitos diretos de uma guerra
nuclear. Anarquia social; falta de eletricidade, combustíveis, transportes,
abastecimento de alimentos, comunicações e outros serviços civis;
ausência de atendimento médico; interrupção de medidas sanitárias;
multiplicação de doenças e de distúrbios psíquicos graves - fariam sem
dúvida um número considerável de vítimas a mais. Mas uma série de
outros efeitos - alguns inesperados, alguns impropriamente analisados
em estudos precedentes, alguns por nós só recentemente descobertos -
torna o quadro ainda muito mais sombrio.
A destruição de silos de mísseis, instalações de comando e
controle e outros locais resguardados requer - dadas as atuais limitações
de precisão dos mísseis - armas nucleares de potência bastante
apreciável detonadas no solo ou a pequena altura. Explosões de alta
potência no solo vaporizarão, fundirão e pulverizarão a superfície da
área de impacto e propelirão grandes quantidades de vapores
condensados e poeira fina para a região superior da troposfera e para a
estratosfera. As partículas são carreadas principalmente na bola de fogo
ascendente; algumas sobem pela coluna da nuvem em cogumelo.
Contudo, em sua maioria os alvos militares não são muito resguardados.
A destruição de cidades pode ser realizada, como se viu em Hiroshima e
Nagasaki, por explosões de potência inferior a menos de 1.000 metros
acima da superfície. Explosões de baixa potência no ar sobre cidades ou
florestas próximas tenderão a provocar incêndios extensos, em alguns
casos cobrindo uma área total de 100.000 quilômetros quadrados, ou
mais. Incêndios em cidades geram enormes quantidades de fumaça
negra que se eleva pelo menos à camada superior da baixa atmosfera,
ou troposfera (Fig. 1A). Se ocorrerem tempestades ígneas, a coluna de
fumaça sobe vigorosamente, como a tiragem de uma chaminé, e
possivelmente (a questão ainda não foi esclarecida) arrasta parte da
fuligem para a parte inferior da alta atmosfera, ou estratosfera. A fumaça
produzida por incêndios em florestas ou capim ficaria a princípio restrita
à baixa troposfera.
Figura 1A Representação aproximada da estrutura habitual de
temperaturas da atmosfera da Terra nas latitudes médias norte (ou sul).
Na superfície, aquecida pelo sol, a temperatura média anual é de 13º.C.
A temperatura decresce com a altitude até uma altura (h) de cerca de 13
km, onde é de -55º.C. Essas baixas temperaturas são conhecidas dos
alpinistas e dos aviadores. A região inferior da atmosfera terrestre,
chamada troposfera, é agitada por ventos e turbulências, e nela ocorre a
formação de chuvas. Assim, na troposfera partículas finas são
dissipadas ou lavadas pela chuva com relativa rapidez.
A troposfera (e as chamadas "variações do tempo") terminam na
tropopausa, a cerca de 13 km de altitude. Acima vem a estratosfera.
Nesta, as temperaturas são mais constantes com a altitude; os ventos
verticais e a turbulência são moderados; não há chuva; e partículas
finas se dissipam muito lentamente.
A fumaça de incêndios fica limitada em sua maior parte à
troposfera, e as partículas de fuligem se depositam em tempo
relativamente curto. Já a poeira produzida por detonações de alta
energia no solo - em silos e outras instalações resguardadas - é injetada
em considerável proporção na estratosfera e se precipita com relativa
lentidão. A energia explosiva apenas capaz de injetar algum material na
estratosfera é cerca de 10 quilotons, como mostra a figura. A bola de
fogo e a nuvem estabilizada produzidas por uma explosão de 1 megaton
(MT) sobem quase totalmente à estratosfera.

A fissão do detonador (geralmente plutônio) existente em todo


engenho nuclear e as reações no revestimento (geralmente urânio 238)
acrescentado como "reforçador" de energia de fissão produzem uma
salada de produtos radioativos que são também arrastados na nuvem.
Cada um desses produtos, ou radioisótopos, tem uma meia-vida
característica (definida como o tempo necessário para que se reduza à
metade, por desintegração, o seu nível original de radioatividade). A
maioria dos radioisótopos têm meias-vidas muito curtas, e se
desintegram em horas ou dias. Partículas introduzidas na estratosfera,
principalmente por explosões de alta energia (Fig. 1A), precipitam-se
muito lentamente - caracteristicamente em cerca de um ano, sendo que
ao fim desse tempo a maior parte dos produtos de fissão, mesmo
quando concentrados, ter-se-á reduzido a níveis bem menos perigosos.
Partículas introduzidas na troposfera por explosões de baixa energia
(Fig. 1A) e por incêndios precipitam-se mais depressa - por coagulação,
assentamento gravitacional, lavagem pela chuva, convecção e outros
processos - antes que a radioatividade se tenha reduzido a níveis
relativamente inócuos. Assim, a rápida precipitação de resíduos
radioativos troposféricos tende a produzir doses maiores de radiação
ionizante do que a precipitação mais lenta de partículas radioativas da
estratosfera.
Explosões nucleares de mais de um megaton de energia
desprendida
geram uma bola de fogo radiante que sobe através da troposfera e
penetra em cheio na estratosfera (Fig. 1A). As bolas de fogo produzidas
por armas de potência compreendida entre 100 e 1.000 quilotons (1.000
quilotons = 1 megaton) atingem parcialmente a estratosfera. As altas
temperaturas da bola de fogo inflamam quimicamente parte do
nitrogênio do ar, produzindo óxidos de nitrogênio, que por sua vez
atacam quimicamente e destroem o gás ozônio da média estratosfera.
Mas o ozônio absorve a radiação ultravioleta do sol, biologicamente
perigosa. Assim, a exaustão parcial da camada estratosférica de ozônio,
ou ozonosfera, por explosões nucleares de alta energia, aumentará o
fluxo de radiação solar ultravioleta na superfície da Terra (depois que a
fuligem e a poeira tiverem assentado). Depois de uma guerra nuclear
em que milhares de engenhos de alta potência fossem detonados, o
aumento da luz ultravioleta potencialmente prejudicial à vida poderia ser
de várias centenas por cento. Os maiores aumentos ocorreriam nas
ondas de menor comprimento, que são as mais perigosas. Os ácidos
nucleicos e as proteínas, que são as moléculas básicas da vida da
Terra, são especialmente sensíveis à radiação ultravioleta. Assim, um
aumento do fluxo de radiação solar ultravioleta na superfície da Terra
seria uma ameaça à vida.
Esses quatro efeitos - obscurecimento por fumaça na troposfera,
obscurecimento por poeira na estratosfera, precipitação de resíduos
radioativos e destruição parcial da camada de ozônio - constituem as
quatro principais consequências ambientais adversas que se
verificariam depois de "terminada" uma guerra nuclear. É bem possível
que haja outras que ainda não sabemos. A poeira e, principalmente, a
fuligem escura absorvem a luz visível do sol, aquecendo a atmosfera
(Figuras 1B e 1C) e esfriando a superfície da Terra.
Figuras 1B e 1C. Quando a alta atmosfera se aquece (pela
absorção de luz do sol por partículas em suspensão levantadas numa
guerra nuclear), a superfície esfria, porque as mesmas partículas
impedem a luz de lá chegar. Na Figura 1B, construída de acordo com os
cálculos do TTAPS, vê-se a estrutura da atmosfera da Terra em latitudes
médias norte 30 dias depois de uma guerra nuclear "de referência"
(Quadro 1, Caso 1). Como na Figura 1A, o eixo vertical representa a
altura (h) e o eixo horizontal a temperatura do ar em graus centígrados.
A Figura 1C mostra a estrutura de temperaturas depois de 120 dias. Em
ambos os casos a estrutura atmosférica usual (Fig. 1A) se desfez, a
temperatura na baixa atmosfera é mais constante com a altitude, e
surgiu uma nova região de inversão térmica.
Do mesmo modo que acontece com inversões térmicas sobre
cidades como Los Angeles, a estrutura alterada de temperatura é muito
estável, e as partículas que chegaram a essas altitudes se dissipam
muito mais devagar do que seria normalmente o caso. Como a influência
dessa inversão térmica não foi ainda introduzida nos cálculos do TIAPS
(os cálculos não são "totalmente interativos"), os tempos de restauração
das condições normais que aparecem na Figura 2 podem ter sido
grandemente subestimados. No caso de 30 dias, a região em que a
temperatura quase não varia com a altitude atingiu o solo, e nesse
sentido pode-se dizer que a guerra nuclear traz a estratosfera à
superfície da Terra.
A comparação entre as três figuras serve também para explicar por
que correntes de partículas finas tendem, depois de algum tempo, a
transpor o equador e invadir o Hemisfério Sul. Considere-se, por
exemplo, uma altitude de 10.000 m no Hemisfério Norte. Algumas
semanas depois da guerra de referência, as temperaturas ali são da
ordem de 0º.C (Fig. 1B). À mesma altitude, no Hemisfério Sul por ora
livre de poeira e fumaça (Fig. 1A), as temperaturas são 500 mais baixas.
Porções de ar, e as partículas nelas contidas, fluirão "declive abaixo", de
regiões mais quentes para mais frias. Em física, fluxos tendem a seguir
gradientes. As grandes diferenças de temperatura induzirão correntes
ascendentes no sentido sul no Hemisfério Norte e correntes
descendentes no sentido norte no Hemisfério Sul. O efeito resultante
pode ser o de difundir o ar carregado de poeira à toda a volta do globo e
elevá-lo ainda mais acima da superfície.

Todos esses quatro efeitos foram considerados em nosso último


estudo, designado pelas iniciais dos seus autores, TTAPS. Pela primeira
vez se demonstra que temperaturas extremamente baixas, o "inverno
nuclear", se sucederiam por um tempo prolongado a uma guerra nuclear.
(O estudo também explica o fato de não terem sido detectados efeitos
climáticos do gênero após a detonação de algumas centenas de
megatons durante o período de testes atmosféricos de engenhos
nucleares pelos Estados Unidos e União Soviética, encerrado pelo
Tratado Limitado de Proibição de Testes em 1963: as explosões se
sucederam ao longo de vários anos, virtualmente não simultâneas, e,
como ocorreram sobre descampados, atóis de coral, tundras e áreas
desérticas, não provocaram incêndios.) Os novos resultados foram
submetidos a análises detalhadas, e muitos cálculos confirmativos já
foram feitos depois, inclusive pelo menos dois na União Soviética.
Ao contrário do que se afirmou em estudos precedentes, os efeitos
parecem não limitar-se às latitudes médias do Hemisfério Norte, onde
basicamente ocorreria o intercâmbio nuclear. Existem hoje provas
substanciais de que o aquecimento pela luz solar da poeira e fuligem
atmosféricas sobre objetivos situados em latitudes médias norte alteraria
profundamente a circulação global (ver legenda das Figs. 1B e 1C).
Partículas finas seriam transportadas para o outro lado do equador em
questão de semanas, como acontece em Marte, levando o frio e a
escuridão ao Hemisfério Sul. (Além do mais, certos estudos sugerem
que mais de 100 megatons seriam destinados a objetivos situados na
faixa do equador e no Hemisfério Sul, gerando assim partículas finas
localmente.) Embora fossem menores o esfriamento e o escurecimento
superficiais no Hemisfério Sul do que no Norte, também ali poderiam
ocorrer perturbações climáticas e ambientais de grandes proporções.
Em nosso estudo, selecionaram-se algumas dúzias de diferentes
cenários, cobrindo uma ampla gama de guerras possíveis, e em cada
parâmetro básico foi considerada a margem de incerteza (p. ex., ao
estabelecer a quantidade de partículas finas introduzidas na atmosfera).
Cinco casos representativos são mostrados, no Quadro 1, variando de
um ataque pequeno, de baixa energia, contra cidades exclusivamente,
utilizando em potência apenas 0,8% dos arsenais estratégicos do
mundo, a um conflito de grandes dimensões com o emprego de 75%
dos estoques mundiais. Os casos "nominais" pressupõem os parâmetros
alternativos mais prováveis; os casos "severos" pressupõem parâmetros
adversos, mas sempre na faixa do plausível.
As temperaturas continentais no Hemisfério Norte previstas variam
conforme as curvas mostradas na Figura 2. A alta capacidade calorífica
de água garante que as temperaturas dos mares cairão no máximo uns
poucos graus. Sendo as temperaturas moderadas pelos mares
contíguos, as das regiões costeiras serão menos extremas que as do
interior dos continentes. Contudo, o acentuado contraste entre os
continentes gelados e os mares apenas ligeiramente esfriados produzirá
borrascas contínuas de extraordinária violência ao longo das costas, e a
lavagem e arrastamento preferencial de radioatividade indicam que nem
o interior dos continentes nem os litorais serão poupados. As
temperaturas mostradas na Figura 2 são valores médios para as áreas
continentais do Hemisfério Norte, sem levar em conta até aqui a
influência dos mares nem a descontinuidade inicial das nuvens.
Sabe-se que mesmo quedas de temperatura bem menores trazem
consequências sérias. A explosão do vulcão Tambora na Indonésia em
1815 foi a causa provável de um declínio na temperatura média global
de menos de 1º.C, devido ao obscurecimento do sol pela poeira fina
propelida para a estratosfera. O frio verificado no ano seguinte foi de tal
ordem que 1816 ficou conhecido na Europa e na América como,
respectivamente, "o ano sem verão" e "mil-e-oitocentos-e-morrer-de-
frio". Um esfriamento de 1º.C acabaria por completo com as lavouras de
trigo do Canadá. Pequenas variações globais estão geralmente
associadas a variações regionais muito maiores. Nos últimos mil anos,
os desvios máximos de temperatura global ou do Hemisfério Norte foram
da ordem de 1º.C. Numa glaciação, uma baixa prolongada típica da
temperatura global em relação às condições preexistentes é de cerca de
10º.C. Mesmo os casos mais modestos ilustrados na Figura 2 dão
baixas temporárias dessa ordem. O caso de referência é muito mais
adverso. Diferentemente, porém, da situação numa glaciação, as
temperaturas globais após a guerra cairiam bruscamente, e é provável
que levassem apenas de alguns meses a alguns anos para restabelecer-
se, em vez de milhares de anos. Não é de se esperar que um inverno
nuclear induzisse a um novo período glaciário, pelo menos de acordo
com a nossa análise preliminar.
Com o obscurecimento do sol, a luz diurna pode cair aos níveis de
um lusco-fusco crepuscular ou pior. Na zona dos objetivos de médias
latitudes do Hemisfério Norte, a escuridão pode ir ao ponto de não se
enxergar, mesmo ao meio-dia. Nos Casos 1 e 14 (Quadro 1), os níveis
médios hemisféricos de luz caem a uns poucos por cento dos seus
valores normais, sendo comparáveis aos que ocorrem na base de nuvens
de chuvas densas. Com essa iluminação, muitos vegetais ficam próximos
do chamado ponto de compensação, que é o nível de luz em que a
fotossíntese é apenas suficiente para manter o metabolismo da planta.
No Caso 17, a iluminação média de todo o Hemisfério Norte cai durante o
dia a cerca de 0,1% do normal, um nível de luz em que na maior parte
das plantas a fotossíntese cessará de todo. Nos Casos 1 e,
especialmente, 17, a restauração completa da iluminação diurna normal
leva um ano ou mais (Figura 2).

Figura 2. Nesta figura mostra-se como a temperatura média das


áreas continentais do Hemisfério Norte (afastadas das costas) varia com
o tempo após uma guerra nuclear. A temperatura é indicada no eixo
vertical, em graus centígrados à esquerda e em graus Fahrenheit à
direita. A temperatura "ambiente" é a média calculada de todas as
estações e latitudes. Assim, temperaturas normais de inverno em
latitudes norte temperadas serão inferiores às representadas, e
temperaturas normais tropicais serão mais altas que as representadas. A
linha tracejada horizontal superior indica a temperatura média da Terra
(13º.C ou 56º.F) e a linha tracejada horizontal inferior indica o ponto de
congelamento da água pura (0º.C ou 32º.F). O eixo horizontal representa
o tempo em dias a contar do começo da guerra nuclear até quase um
ano depois. Cada curva representa um cenário diferente de guerra
nuclear, com a energia total despendida na guerra variando de 100
megatons (MT) a 10.000 MT. A influência moderadora dos mares
(provavelmente resultando em baixas de temperatura de 50 a 70% das
mostradas) não é considerada, conforme exposto no texto.
Os casos aqui mostrados, tirados de uma compilação muito maior
dos relatórios TTAPS, são definidos com maior detalhe no Quadro 1.
Compreendem uma mistura de ataques de contravalor contra indústrias e
cidades em que o principal efeito é a fumaça de incêndios carreada para
a troposfera, e ataques de contraforça a silos de mísseis, nos quais
supõe-se (de modo muito otimista) que não há produção de fumaça, mas
grandes quantidades de poeira invadem a atmosfera a grandes altitudes.
Os casos definidos como "nominais" pressupõem os valores mais
prováveis dos parâmetros (como as dimensões das partículas de pó ou a
frequência de tempestades ígneas) que são imperfeitamente conhecidos.
Os casos denominados "severos" representam valores adversos mas não
implausíveis desses parâmetros.
No Caso 14 a curva acaba quando a temperatura atinge, a menos
de um grau, os valores ambientes. Nos outros quatro casos, as curvas
terminam ao fim de 300 dias, mas simplesmente porque os cálculos não
foram levados adiante. Nesses quatro casos as curvas prosseguirão nas
direções indicadas pelas setas. Em termos aproximados, o Caso 1 é a
soma dos Casos 11 e 14. O Caso 16 pressupõe um conflito limitado a
explosões no solo, de energia razoavelmente alta, destinadas à
destruição de silos, e alta percentagem de poeira fina resultante. Segue-
se uma descrição mais detalhada de cada um dos cinco casos:

Caso 1: É o caso de referência do TTAPS, em que 4.000 megatons


são usados pelos dois lados em ataques de contraforça, e 1.000
megatons destinados a cidades e arredores. O efeito principal é o
derivado da fuligem produzida em conflagrações urbanas. A temperatura
mínima de -23ºC (-9ºF) é atingida algumas semanas após o conflito, e as
temperaturas voltam ao ponto de congelamento em cerca de três meses.
Contudo a recomposição das condições ambientes não ocorre antes de
um ano, em razão da lenta precipitação da poeira atmosférica.

Caso 11: Neste os Estados Unidos e/ou a URSS detonam um total


de 3.000 megatons sobre silos de mísseis e outros objetivos afastados
de cidades e florestas. Admite-se (irrealisticamente) que os incêndios
sejam desprezíveis. Nas áreas continentais as temperaturas caem
durante um período de três meses, e como a remoção da poeira
estratosférica é muito lenta, levam mais de um ano para retornar aos
seus valores usuais (ambientes).

Caso 14: O conflito é limitado a apenas 100 megatons consistindo


exclusivamente de engenhos de baixa potência detonados no ar sobre
cidades. Neste calculo não há produção de poeira - só fumaça das
cidades incendiadas, da qual pouca coisa alcança a estratosfera. A
temperatura mínima de -23ºC (-9ºF) é atingida em poucas semanas, e as
temperaturas normais se restabelecem em cerca de 100 dias. À medida
que a fuligem se deposita, a luz do sol volta a alcançar o solo. Cem
megatons corresponde aproximadamente a 0,8% dos arsenais nucleares
dos Estados Unidos e URSS.

Caso 16: Emprego de 5.000 megatons em que os ataques são


principalmente contra silos, com Maior produção de poeira fina por
megaton liberado do que no Caso 11, mais otimista, e em que a queima
de cidades é insignificante. Aqui, as temperaturas mínimas só são
atingidas depois de quatro meses, quando baixam a -25ºC (-13º F).
Como as grandes quantidades de poeira levadas à estratosfera se
precipitam muito lentamente, é preciso mais de um ano para que as
temperaturas em terra voltem ao ponto de congelamento, e muito mais
ainda para chegarem aos níveis normais.

Caso 17: Neste caso são empregados cerca de 3/4 dos arsenais
estratégicos americanos e russos, numa combinação de ataques a silos e
a cidades. Depois de mais de dois meses, atingem-se temperaturas
mínimas de -47ºC (-53ºF) - temperaturas típicas da superfície de Marte.
A fuligem assenta-se com relativa rapidez, sendo que a lentidão da
recuperação é devida à poeira estratosférica. As temperaturas não
voltam ao ponto de congelamento antes de um ano.

À medida que as partículas finas precipitam-se na atmosfera,


transportando radioatividade para o solo, os níveis de luz aumentam e a
superfície se aquece. Agora a camada empobrecida de ozônio permite à
luz solar ultravioleta chegar à superfície da Terra em maior proporção. No
caso de referência, de 5.000 megatons, verifica-se que a precipitação
primária, os penachos de radioatividade arrastados dos objetivos na
direção do vento, distribui em 30% das áreas continentais de médias
latitudes do Hemisfério Norte uma dose aproximada de radiação de 250
rads. Além disso, uma dose de cerca de 100 rads é descarregada mais
ou menos uniformemente em todo o hemisfério. Esta é uma combinação
de emissores externos e matérias radioativas ingeridas. Os
conhecimentos correntes estabelecem a dose média letal de radiação
ionizante com exposição corporal entre aproximadamente 400 e 500
rads. Isto se prestados cuidados médicos amplos. No caso de crianças e
velhos, de doentes ou vítimas de outras agressões do meio ambiente por
causa de uma guerra nuclear, e especialmente na falta de assistência
médica adequada, a dose média letal é consideravelmente reduzida -
talvez a 350 rads, ou menos. Assim, a precipitação radioativa -
particularmente nas médias latitudes norte, que têm a maior densidade
demográfica do planeta - seria, por si mesma, extremamente perigosa
num meio de pós-guerra nuclear. O Quadro 2 mostra o cronograma
relativo das várias consequências adversas de uma guerra nuclear.
Talvez a conclusão mais surpreendente e inesperada do estudo que
fizemos seja a de que mesmo uma guerra nuclear de proporções
relativamente limitadas pode ter consequências climáticas funestas, no
caso de ataques a cidades (ver Caso 14 na Figura 2; neste, os centros
de 100 grandes cidades da OTAN e do Pacto de Varsóvia são
incendiados). Há indicação de um limiar muito próximo em que
consequências climáticas severas são desencadeadas - por 100 ou mais
explosões nucleares sobre cidades, em razão da fumaça gerada, ou por
2.000 a 3.000 detonações de alta energia no solo ou a pequena altura,
em silos de mísseis por exemplo, em razão da poeira produzida e de
incêndios secundários. Partículas finas podem ser injetadas na atmosfera
em proporções crescentes com efeitos de pequena monta até que esses
limiares sejam transpostos. Daí por diante, os efeitos crescem
rapidamente de intensidade. Essas estimativas são, porém,
extremamente grosseiras.
Em cálculos dessa complexidade sempre existem incertezas. Há
fatores que tendem a influir no sentido de efeitos mais intensos ou mais
prolongados; outros tendem a moderar os efeitos. Os cálculos detalhados
do TTAPS aqui referidos são unidimensionais; isto é, admitem o
movimento vertical das partículas finas em conformidade com as leis
físicas aplicáveis, mas não levam em conta a dispersão em latitude e
longitude. Quando a fuligem ou a poeira se afasta do local de referência,
as coisas melhoram ali e pioram alhures. Além disso, partículas finas
podem ser transportadas por sistemas meteorológicos para outros locais,
onde são arrastadas mais depressa para a superfície. Isto atenuaria o
obscurecimento não apenas localmente como em termos globais. É
justamente esse afastamento das latitudes médias setentrionais que
envolve a zona equatorial e o Hemisfério Sul nos efeitos da guerra
nuclear. Seria conveniente efetuar um cálculo tridimensional acurado da
circulação atmosférica geral após uma guerra nuclear. Estimativas
preliminares sugerem que a circulação geral poderia moderar a amplitude
das variações calculadas para o interior dos continentes em uns 30%,
reduzindo um pouco a intensidade dos efeitos, mas mantendo-os ainda
em níveis catastróficos (p. ex., uma baixa de 30ºC em vez de 40°C).
Para estabelecer uma certa margem de segurança, desprezaremos essa
correção em nossa exposição subsequente.
Depois, existem os claros nas nuvens. Muito poucos alvos
acessíveis estão nos oceanos Atlântico e Pacífico. Se esses claros
móveis (um no Atlântico, outro no Pacífico) aparecessem a intervalos
regulares sobre a maior parte dos lugares do Hemisfério Norte, os efeitos
do escurecimento e do frio seriam até certo ponto amenizados. No
entanto, incêndios ateados, por exemplo, no oeste da América do Norte
ou nas taigas eurasianas continuariam a lavrar, alguns talvez por
semanas, e outros novos seriam provocados: lançamentos retardados
podem ser dirigidos contra alvos temporariamente situados sob um claro
para facilitar a verificação por satélite da destruição do objetivo. De mais
a mais, em diferentes altitudes os ventos se movem com velocidades
diferentes, e um claro a uma certa altitude pode estar acima ou abaixo de
uma camada espessa de nuvens em outra. A poeira injetada na
estratosfera pelo vulcão mexicano El Chichón, na erupção de 4 de abril
de 1982, levou 10 dias para chegar à Ásia, duas semanas para chegar à
África, e circunavegou o globo em três semanas, deixado atrás de si uma
delgada fita de partículas com cerca de 100 de latitude de largura. (Em
poucos meses, cerca de 10 a 20% dos resíduos estratosféricos foram
transportados para o Hemisfério Sul.) Havendo muitas fontes de
partículas em vez de uma, os claros irão fechar-se ainda mais depressa.
Assim sendo, parece improvável que os claros móveis permanecessem
abertos ou descobertos por mais de uma ou duas semanas, ou que
descontinuidades em grande escala pudessem minorar os efeitos
climáticos de modo sensível.
Há necessidade de estudar melhor vários outros aspectos do
problema: por exemplo, possíveis descontinuidades em pequena escala;
possibilidade de quedas rápidas de temperatura (como sugerido por
Covey e outros: ver as observações de Stephen Schneider neste livro,
pp. 122-127); o tempo que levam penachos isolados de fumaça para
espalhar-se (em nuvens densas as partículas coagulam e sedimentam
mais rapidamente que em nuvens difusas); circulação atmosférica local
em regiões costeiras e implicações para a lavagem pelas chuvas (ver as
observações de Georgiy Golitsyn neste livro, pp. 120-122); variações
diurnas de temperatura e movimentos induzidos em nuvens de fuligem
nas primeiras fases. Alguns desses efeitos poderiam melhorar em parte
as condições; outros poderiam agravá-las até certo ponto.
Há também efeitos que podem piorar em muito os resultados: por
exemplo, em nossos cálculos admitimos que a lavagem de partículas
finas ocorreria em toda a extensão da troposfera. Em circunstâncias
reais, pelo menos a alta troposfera pode ser muito seca, e a poeira ou
fuligem inicialmente introduzida nessa região pode levar muito tempo
para ser lavada. Há ainda um efeito muito importante que deriva da
drástica alteração da estrutura atmosférica, promovida pelo aquecimento
das nuvens e esfriamento do solo. Com isso cria-se uma região em que a
temperatura é aproximadamente constante com a altitude na atmosfera
inferior, e encimada por uma inversão térmica de grandes proporções
(Figuras 1B e 1C). Depois disso, em toda a extensão da atmosfera as
partículas seriam transportadas para cima ou para baixo muito
lentamente - como na estratosfera atual. Este é um segundo motivo para
que a persistência das nuvens de fuligem e poeira possa ser muito maior
do que a por nós calculada. Neste caso, as condições extremas de
escuridão e frio podem prolongar-se por prazos consideráveis,
possivelmente ultrapassando um ano. Na exposição subsequente
desprezaremos este efeito, assim como vários outros - por exemplo,
fenômenos de detonações múltiplas em que uma primeira explosão
nuclear amplifica a combustão e a altura de transporte de fuligem de uma
segunda explosão nuclear.
É possível conceber cenários de guerra nuclear muito piores do que
estes por nós apresentados. Por exemplo, se os centros de comando e
controle forem neutralizados logo no início da guerra - por exemplo, por
"decapitação" (ataque inicial de surpresa contra centrais de operações
civis e militares e sistemas de comunicações), é de imaginar que a guerra
se prolongaria por semanas, com comandantes locais tomando decisões
independentes e descoordenadas. Pelo menos em parte, lançamentos
retardados de mísseis seriam possivelmente ataques retaliativos contra
cidades inimigas remanescentes. A geração de um manto adicional de
fumaça por um período de semanas ou maior depois do início da guerra
ampliaria a magnitude, e especialmente a duração, das consequências
climáticas. Ou é possível, dentro dos limites da plausibilidade, que
cidades e florestas fossem incendiadas em número maior do que o por
nós suposto, ou que as emissões de fumaça fossem maiores, ou que
uma fração maior dos arsenais mundiais (armas táticas e armas
estratégicas) fosse empregada. Naturalmente, dentro dos mesmos
limites, também são possíveis casos menos severos.
Portanto, esses cálculos não são, nem poderiam ser, prognósticos
seguros de todas as consequências de uma guerra nuclear. Poderão ser
aperfeiçoados em vários aspectos, e está-se trabalhando nisso. Mas
parece haver um consenso quanto às conclusões gerais: na esteira de
uma guerra nuclear é provável que haja um período, com uma duração
de meses pelo menos, de frio intenso e escuridão radioativa, seguido -
depois da precipitação da fuligem e poeira - de um período longo de
maior quantidade de radiação ultravioleta atingindo a superfície.

Tem-se observado uma tendência sistemática de subestimar os


efeitos de armas nucleares e de uma guerra nuclear. A energia liberada
na primeira explosão nuclear perto de Alamogordo, no Novo México, em
16 de julho de 1945, foi subestimada por quase todos os que projetaram
e construíram a arma. A amplitude da precipitação decorrente dos
primeiros testes de artefatos nucleares foi subestimada; a inutilização ou
destruição de satélites por explosões de armas nucleares no espaço foi
uma surpresa; o empobrecimento da ozonosfera por detonações de alta
potência não foi prevista; e o inverno nuclear foi para muitos - inclusive
nós - motivo de assombro. O que mais nos terá passado despercebido?
Um efeito adicional, possivelmente grave, é a produção de gases
tóxicos por incêndios em cidades. Hoje todo mundo sabe que nos
incêndios em arranha-céus modernos mais gente é vitimada pelos gases
tóxicos de combustão do que pelo fogo. A queima de uma grande
variedade de materiais de construção, matérias isolantes e revestimentos
gera grandes quantidades de pirotoxinas, entre elas monóxido de
carbono, cianetos, cloreto de vinil, óxidos de nitrogênio, ozônio, dioxinas e
furanos. Devido às diferentes práticas no emprego de materiais
sintéticos, o incêndio de cidades na América do Norte e na Europa
ocidental provavelmente geraria mais pirotoxinas do que na União
Soviética, e a de cidades com grande proporção de construções recentes
mais que a de cidades mais antigas não reconstruídas. Em cenários de
guerra nuclear nos quais uma grande quantidade de cidades são
incendiadas, um smog bastante denso de pirotoxinas poderia persistir por
meses. A extensão desse perigo é ignorada.
Outra consequência provavelmente ponderável e dificilmente
avaliável de uma guerra nuclear são os chamados sinergismos. Um
exemplo muito simples é o que diz respeito ao comprometimento do
sistema imunológico humano pelo duplo efeito da radiação ionizante
imediata e da radiação ionizante devida à precipitação, bem como pelo
aumento do fluxo ultravioleta após o inverno nuclear. Ao mesmo tempo
que os sobreviventes serão muito mais vulneráveis a doenças, os
serviços médicos terão entrado em colapso; predadores de insetos como
as aves terão sido dizimados preferencialmente pelo frio, pela escuridão
e pela radiação; os insetos terão proliferado desmedidamente porque
resistem melhor a essas agressões ambientais e porque os predadores
que restringem a sua multiplicação terão sido grandemente reduzidos em
número; a radiação pode produzir variedades excepcionalmente
virulentas de micro-organismos transmitidos por insetos vetores; e
centenas de milhões ou bilhões de cadáveres estarão começando a se
descongelar. Em muitos outros casos a interação de diversas agressões
ambientais entre as relacionadas no Quadro 2 produzirá consequências
resultantes adversas muito mais intensas do que a simples soma dos
efeitos componentes. Quase todos os sinergismos são de magnitude
ignorada; no entanto quase todos amplificarão consequências adversas.
Visto isto, se o peso da evidência histórica e a natureza dos
sinergismos indicam que as consequências de uma guerra nuclear seriam
ainda mais graves do que as deduzidas no presente estudo do inverno
nuclear, que dizer da aplicação de critérios moderados? Considerando a
magnitude do que está em jogo na resposta, qual será a postura
adequada? Admitir que os efeitos de uma guerra nuclear serão menos
sérios do que geralmente se supõe, ou mais?
Já não é possível afirmar que os efeitos realmente sérios de uma
guerra nuclear ficariam limitados aos países combatentes. A biologia das
latitudes equatoriais, por exemplo, é muito mais vulnerável a baixas de
temperatura, mesmo pequenas, que a de latitudes maiores, norte ou sul.
A agricultura - pelo menos no Hemisfério Norte, que produz o grosso da
exportação de grãos do planeta - seria devastada mesmo por uma
"pequena" guerra nuclear. As consequências ecológicas irradiadas pela
Terra inteira seriam provavelmente de grande envergadura, e se, como
agora demonstrado pelo nosso estudo e por vários outros, o frio e a
escuridão se propagassem ao Hemisfério Sul, a guerra nuclear
significaria uma catástrofe global sem precedentes. Já não é possível
conceber que nações distantes do conflito possam assistir de camarote à
guerra, e herdar um ambiente de pós-guerra livre das importunações da
política das grandes potências. Ao contrário, é muito mais provável que
não haja em toda a Terra um único refúgio a salvo da guerra nuclear.
Esta é uma das muitas implicações dos estudos mais recentes no que
toca à doutrina, à diplomacia e à política internacional. A discussão
desses temas transcende as metas deste encontro e o programa desta
Conferência, mas em outra oportunidade eu já fiz uma exposição
preliminar dessas implicações.
Se houver ataques a cidades, vemos (Figura 2) que mesmo uma
guerra que envolvesse apenas 100 megatons (em 1.000 detonações de
100 quilotons sobre 100 ou mais grandes cidades) pode produzir o
inverno nuclear. Mas 100 megatons é menos de 1 % dos arsenais
estratégicos globais. A Figura 3 mostra o crescimento do número de
armas estratégicas nos arsenais americano e soviético em função do
tempo. A área hachurada representa, muito aproximadamente, a zona-
limiar em que, ao que agora se afigura, poderia desencadear-se o
inverno nuclear. Bem abaixo desse limiar nenhuma combinação de falhas
de comunicações, erros de computador, interpretações equivocadas,
governantes psicopatas ou outros requisitos deflagraria a catástrofe
climática. Os Estados Unidos cruzaram esse limiar - naturalmente sem
sabê-lo - em princípios dos anos 50. A União Soviética o transpôs -
igualmente sem sabê-lo - em meados dos 60. Durante todo esse tempo
os governos dos Estados Unidos, da União Soviética e de outras nações
vêm tomando decisões fundamentais, envolvendo a vida e morte de cada
habitante do planeta, sem saber das consequências de uma guerra
nuclear, e na suposição de que essas consequências seriam bem mais
brandas do que agora se mostra ser o caso. E os arsenais globais, hoje
cerca de 20 vezes o limiar do inverno nuclear, vêm crescendo. A Grã-
Bretanha, a França e a China têm arsenais estratégicos pelo menos
próximos do limiar. Outros países estão acumulando armas nucleares ou
a capacidade de fazê-las. As curvas da Figura 3 tornam-se mais e mais
verticais.

Figura 3. A história da corrida de armas nucleares estratégicas (e


de teatro). O diagrama mostra três zonas: uma zona inferior em que o
inverno nuclear não seria provocado, uma superior em que quase
certamente ele ocorreria, e uma de transição, hachurada. Os limites
desta são mais incertos do que os representados, e dependem, entre
outras coisas, da estratégia de seleção de objetivos. Mas o limiar está
provavelmente compreendido entre uma centena e alguns milhares de
armas estratégicas contemporâneas.
Entre 1945 e o presente, o crescimento dos estoques soviético e
norte-americano é representado pelas linhas cheias. A linha ponto-traço
mostra a soma dos dois arsenais, que fica próxima da dos arsenais totais
do mundo. Se bem que a distinção entre armas táticas e estratégicas ou
de teatro tende a tornar-se imprecisa, aquelas não são computadas
nesta compilação. A redução dos estoques estratégicos americanos nos
anos 60 reflete principalmente a crescente dominância dos mísseis
balísticos sobre os bombardeiros. Nem todas as fontes publicadas
concordam perfeitamente quanto aos números. Os dados aqui usados
foram tirados de Harold Brown (1981), "Relatório do Secretário da Defesa
ao Congresso sobre o Orçamento do Ano Fiscal de 1982, Pedido de
Autorização do Ano Fiscal de 1983 e Programas de Defesa para o Ano
Fiscal de 1986" e "Estimativa Orçamentária da Defesa Nacional, Ano
Fiscal de 1983", Gabinete do Subsecretário da Defesa, Contadoria,
março de 1982, entre outras fontes. As linhas tracejadas à direita da
figura representam extrapolações das tendências atuais.

E assim voltamos ao Dia das Bruxas. Este encontro sobre "O


Mundo após a Guerra Nuclear" está sendo realizado, em função de
circunstâncias corriqueiras como a disponibilidade de acomodações de
hotel em Washington, num 31 de outubro. O Dia das Bruxas é
comemorado hoje como um festival de duendes e fantasmas e coisas
que sabemos que não são reais. Os horrores da guerra nuclear, ao
contrário, não são fantasias, não são projeções do nosso inconsciente,
mas realidades que temos de enfrentar no mundo das emoções pessoais
e da prática política. A guerra nuclear merece, e muito, a nossa
preocupação, e não somente em 31 de outubro.
De qualquer modo, se devêssemos realizar esta reunião numa data
de significado simbólico, o Dia das Bruxas parece-me uma boa escolha.
Originalmente, na era pré-cristã, era um festival dos celtas chamado
Samhain. Assinalava o começo do inverno. Era celebrado com enormes
fogueiras. Tirava o seu nome do Senhor dos Mortos e era a ele
consagrado. O Dia das Bruxas em sua forma original combinava os três
elementos capitais do cenário TTAPS: fogo, inverno e morte.
As armas nucleares são feitas por criaturas humanas. O confronto
estratégico global entre os Estados Unidos e a União Soviética foi
concebido e executado por criaturas humanas. Não há nisso nada
inevitável. Se formos suficientemente motivados, poderemos livrar a
espécie humana dessa armadilha que insensatamente armamos para nós
mesmos. Mas o tempo é muito curto.

AGRADECIMENTOS

Este artigo não teria sido possível sem a alta competência científica
e dedicação dos meus coautores do relatório TTAPS, Richard Turco,
Brian Toon, Thomas Ackerman e James Pollack. Também sou grato, por
estimulantes discussões e/ou cuidadosas revisões de uma versão
anterior deste artigo, a Hans Bethe, Mark Harwell, John P. Holdren, Eric
Jones, Carson Mark, Theodore Postol, Joseph Rotblat, Stephen
Schneider, Edward Teller e Albert Wohlstetter; e agradeço
encarecidamente o incentivo, as sugestões e as apreciações criticas de
Lester Grinspoon, Steven Soter e, especialmente, Ann Druyan. Shirley
Arden, Mary Maki, Mary Roth e Joanne Vago prestaram, com sua
habitual e grande competência, serviços logísticos essenciais à
preparação deste trabalho e à organização da conferencia preparatória
de Cambridge, Massachusetts. Finalmente, minha gratidão aos
companheiros do Comitê de Consequências Mundiais à Longo Prazo de
uma Guerra Nuclear.

Perguntas

DR. VIKAS SAINI (Junta Diretora, Nuclear Free America): Eu tenho


duas perguntas sobre as suposições do modelo. A primeira é quanto aos
efeitos no Hemisfério Sul: trata-se estritamente da transferência de
efeitos de detonações no Hemisfério Norte, ou o senhor inclui objetivos
no Hemisfério Sul?

SAGAN: Não, não estamos supondo nenhum ataque apreciável


contra objetivos no Hemisfério Sul. O cenário da revista Ambio prevê
cerca de 100 megatons dirigidos contra alvos no Hemisfério Sul e
latitudes tropicais. A poeira e fumaça produzidas em tais alvos atingiriam
o sul mais depressa do que aerossóis transportados do Hemisfério Norte.
Quaisquer ataques contra objetivos no Hemisfério Sul agravariam ainda
mais os nossos resultados.

SAINI: A segunda pergunta refere-se a certos resultados


imprevistos da detonação de armas nucleares em relação com o cinturão
de radiação de Van Allen. Gostaria de saber se o senhor está a par deste
assunto e de ouvir seus comentários sobre o que parece ser um dos
aspectos mais inquietantes da presente conjuntura: a saber, a
militarização do espaço.

SAGAN: A iminente introdução de armas no espaço é uma questão


política que foge aos propósitos desta reunião. É verdade que quando um
artefato nuclear é detonado em determinada altitude, partículas
carregadas são injetadas no cinturão de radiação de Van Allen. Mas não
creio que isso tenha efeitos climáticos da magnitude de que aqui estamos
falando.

DR. GEORGE B. FIELD (professor de Astronomia Aplicada da


Universidade Harvard e cientista senior do Observatório Astrofísico
Smithsonian): Eu gostaria de pedir um esclarecimento sobre um ponto.
Nos últimos minutos o senhor acenou com uma pequena esperança aos
que pensam em termos de controle de armas. Disse que se pudéssemos
limitar a 1.000 o número de armas nucleares nos Estados Unidos e União
Soviética, seriam evitadas algumas das terríveis consequências que
acaba de descrever. Por outro lado, numa parte anterior da sua
exposição, o senhor falou de um cenário em que havia a aplicação de
apenas 100 dessas armas, e os efeitos nesse cenário eram ainda mais
terríveis.

SAGAN: Lamento se não fui claro. Naquele caso eu falei de 100


megatons, em armas de 100 quilotons de potência cada. Portanto, falei
de 1.000 armas. Não há incoerência.

FIELD: Na sua opinião esse é o caso marginal?

SAGAN: Mais ou menos. Poderia ser menos em se tratando de


ataques a cidades, e poderia ser bem mais no caso de ataques de
contraforça a silos de mísseis com armas de alta potência. [Isto é
discutido com maior detalhe na Ref. 19.]

DR. LARRY SMARR (professor-adjunto de Física e Astronomia


da Universidade de Illinois): Os recentes relatórios da EPA (Agência de
Proteção Ambiental) e da revista Science sobre o efeito de estufa
mencionam os efeitos térmicos devidos ao CO2. Eu presumo que
enormes quantidades de CO2 seriam um subproduto dos incêndios. De
que modo o senhor levou em conta esse fato, e até que ponto poderia o
aquecimento devido ao CO2 contrabalançar o esfriamento decorrente da
poeira?

SAGAN: A pergunta é muito oportuna, pois este é um ponto que se


presta a confusão: a saber, dois relatórios, um dos quais afirma que a
queima de combustíveis fósseis lança na atmosfera gases que aquecem
a Terra, e outro, que acabam de ouvir, dizendo que uma guerra nuclear
impregnaria a atmosfera de partículas que esfriariam a Terra. Alguém
poderia imaginar que os dois efeitos se anulam. Mas não é essa a nossa
conclusão, por mais de um motivo.
Primeiro, mesmo o CO2 produzido por todos os incêndios em vista
não chegaria a contribuir apreciavelmente para o efeito de estufa. O valor
atual de 0,03% de CO2 em volume na atmosfera da Terra representa
cerca de três ordens de grandeza mais CO2 do que o que seria
desprendido no incêndio de cidades e florestas.
Veja-se também que o efeito de estufa devido ao CO2 é uma
tendência a longo prazo. Não há como revertê-la num intervalo de
décadas. Aqui estamos falando de um pulso repentino de baixa de
temperatura no sistema, provocado pela guerra nuclear, o qual em
seguida se irá amortecendo no curso de alguns anos, superposto ao
lento aumento de temperatura decorrente da queima de combustíveis
fósseis.

DR. ARNOLD W. WOLFENDALE (professor de Física da


Universidade de Durham, Inglaterra): Minha pergunta é relativa ao
importante tópico da análise crítica de resultados. Evidentemente, tudo
que é novo e surpreendente deve ser analisado por muitos especialistas.
O excelente relatório de 1975 da Academia Nacional de Ciências recebeu
apreciações mais favoráveis. Eu gostaria de saber se os autores daquele
relatório foram consultados ou solicitados a pronunciar-se sobre as suas
conclusões.

SAGAN: A questão da análise crítica é essencial. Foi por isso que


retardamos tanto a divulgação pública desses resultados alarmantes.
Os resultados que os senhores ouviram hoje aqui foram submetidos
durante cinco dias a uma reunião, na Academia Americana de Artes e
Ciências em Cambridge, Massachusetts, em abril de 1983, de quase uma
centena de biólogos, meteorologistas e físicos nucleares - indivíduos de
variadas convicções políticas, entre eles representantes dos laboratórios
bélicos do governo.
Tanto o estudo físico que acabei de expor como o estudo biológico
de que irá falar o Dr. Ehrlich passaram igualmente pelo processo de
análise crítica para publicação na revista especializada Science. Além
disso, houve mais uns seis ou oito estudos diferentes - dois deles na
União Soviética - buscando confirmar ou contestar as nossas conclusões.
Todos eles corroboram os nossos resultados.

WOLFENDALE: Quer dizer que os autores do relatório de 1975


retrataram as suas conclusões?

SAGAN: Tenho grandes esperanças de que o novo painel da


Academia Nacional se ocupará dessa importante matéria. Vou explicar
em poucas palavras o motivo das diferenças entre os nossos resultados
respeitantes ao inverno nuclear e os do estudo de 1975 da Academia.
Primeiro, os efeitos climáticos fundaram-se em argumentos tirados
da analogia com a explosão vulcânica do Cracatoa, não na construção
efetiva de modelos. Em 1883, alegou-se, a explosão de um vulcão teve
como únicos efeitos globais um declínio de temperatura de cerca de meio
grau, e belos pores-do-sol em todo o mundo. A energia explosiva total
naquele evento foi (possivelmente) comparável à energia total que
estamos considerando para o caso de uma guerra nuclear; logo, não há
o que temer.
Esse argumento deixa de levar em conta vários fatos: primeiro, o
grosso do material ejetado na explosão do Cracatoa caiu por lá mesmo,
no estreito da Sonda. Segundo, ejetos vulcânicos, principalmente silicatos
e ácido sulfúrico, têm coeficientes de absorção muito menores que a
fumaça escura produzida numa guerra nuclear. Terceiro, as funções de
distribuição de tamanhos de partículas são diferentes, e, quarto, trata-se
aqui de milhares de fontes simultâneas de partículas finas. O evento do
Cracatoa foi um evento isolado. Há outras diferenças importantes. Tudo
considerado, o evento do Cracatoa é compatível com os cálculos aqui
referidos.

DR. ROBERT EHRLICH (presidente do Departamento de Física da


Universidade George Mason, Virgínia): O fato de que um ataque de 100
megatons, menos de 1% do total dos arsenais, acarrete resultados tão
catastróficos indica que a causa principal do problema climático advém da
fumaça produzida por incêndios das cidades. Eu me pergunto se os
senhores terão considerado - num ataque nuclear que envolvesse todas
as cidades de mais de 100.000 habitantes do Hemisfério Norte - qual a
probabilidade de que a metade da área das cidades se convertesse em
fumaça e de que os incêndios se prolongassem por semanas ou meses.
E se a sua estimativa dessa probabilidade coincide com as de outros.

SAGAN: Sim. Esta é uma das muitas partes do nosso estudo a que
o Dr. Turco emprestou a sua grande competência. Creio que a resposta
é, possivelmente, uma semana; meses, não. As proporções dos
incêndios seriam consideráveis por causa da enorme concentração de
depósitos de combustíveis nas cidades.

RALPH NADER (defensor dos direitos do consumidor): Carl,


permita-me que lhe pergunte sobre as inferências técnicas das suas
conclusões. Supondo um ataque inicial bem-sucedido de um Inimigo A
contra um Inimigo B, em que nível um ataque inicial bem-sucedido, de
acordo com os seus cálculos, implicaria suicídio para o agressor?

SAGAN: Ou, dito de outro modo, haveria um sublimiar de ataque


inicial, abaixo daquele limiar de inverno nuclear de, digamos, 1.000
ogivas? Seria um ataque inicial eficaz autodissuasório? Desculpe, Ralph,
mas penso que tenho de considerar este ponto como pertencente ao
domínio da política. Não desejo estender-me sobre ele; mas creio que
para assegurar a neutralização dos principais objetivos estratégicos fixos,
seria preciso ultrapassar o limiar do inverno nuclear.

NADER: Acho que você está exagerando em suas reservas. A


minha pergunta foi basicamente em termos do efeito de ricochete. Para
colocá-la de modo mais simples, qual seria o limiar de um efeito de
ricochete no período de um primeiro lançamento, num ataque inicial?

SAGAN: Há uma grande probabilidade de que se a Nação A atacar


a Nação B com um primeiro ataque eficaz, de contraforça apenas, a
Nação A cometerá suicídio, ainda que a Nação B não levante um dedo
em retaliação.

MASON RUMNEY (secretário-executivo da First Steps Foundation):


Eu tenho uma pergunta. Por que supor que o ataque de 100 metagons
seria contra cidades, onde há combustíveis estocados, e não contra
bases de ICBM, onde não há?

SAGAN: Este é simplesmente um entre uma vasta gama de


cenários possíveis.

DR. HERBERT SCOVILLE, JR. (presidente da Associação de


Controle de Armas, ex-diretor-substituto da Agência Central de
Inteligência): Que proporção do efeito de longo prazo requer que a
fumaça alcance a estratosfera?

SAGAN: Normalmente a fumaça de incêndios não atinge a


estratosfera, e nós não admitimos que isto ocorra em grau apreciável.
Praticamente todos os nossos efeitos devidos à fumaça são
troposféricos. No caso de referência, admite-se que a fumaça presente
na baixa troposfera seja lavada pelas chuvas em tempo bastante curto.
Na hipótese, provável ou improvável, de um penacho de fumaça
alcançar a estratosfera, os efeitos serão muito piores e muito mais
persistentes do que os calculados. Não foi suposta qualquer proporção
apreciável de fuligem estratosférica. Segundo pelo menos algumas
opiniões autorizadas, entre elas a de George Carrier da Harvard, é um
efeito improvável. Eu, pessoalmente, diria que é ainda uma questão em
aberto.

DR. MICHAEL J. PENTZ (deão da Faculdade de Ciência, The Open


University em Milton Keynes, Reino Unido, e presidente da SANA,
Cientistas contra as Armas Nucleares): Tenho uma pergunta relativa ao
Quadro 1 do artigo principal, o conjunto de cenários que os senhores
estudaram. Interessaram-me muito os números 11 e 16. O senhor pode
explicar as hipóteses subjacentes, isto é, com respeito aos ataques de
contraforça de 3.000 e 5.000 megatons respectivamente? O número que
me interessa é o da coluna "Percentagem de energia, objetivos urbanos
ou industriais" , que em ambos os casos o senhor dá como zero.
O motivo por que isso me deixa curioso é que recentemente a
SANA elaborou um modelo de computador de um ataque
predominantemente de contraforça contra objetivos no Reino Unido
envolvendo 343 objetivos e uma energia total de 220 megatons,
combinando explosões no solo e no ar. Para nós era de imediato evidente
que uma grande proporção desses objetivos de contraforça estão
situados no centro ou nas proximidades de cidades grandes e áreas
densamente povoadas. Creio que isto é bastante típico da maior parte da
Europa. Por isso me intriga o zero. Talvez haja um ponto decimal que os
senhores possam inserir para incluir no quadro a Grã-Bretanha e a
Europa.

SAGAN: Tudo o que o senhor diz, menos no que se refere à


omissão do ponto decimal, é correto. O que nos propusemos fazer está
na tradição científica da separação de variáveis. O que estamos dizendo
é: imagine-se um ataque só de contraforça na faixa de milhares de
megatons. Que efeitos se produziriam se não houvesse a queima de uma
única árvore nem de uma única casa? É um limite inferior para os efeitos.
O que cabe fazer, creio, é examinar o Caso I, o caso de
referência, com 5.000 megatons, que leva em conta o incêndio de
cidades.

PENTZ: Em 20% apenas?

SAGAN: Sim, de fato.


PENTZ: Entendo que isso possa ser realista com respeito à
localização dos principais objetivos de contraforça nos Estados Unidos e
talvez na União Soviética. Mas não seria realista com respeito à Grã-
Bretanha.

SAGAN: Absolutamente certo. Vê-se, portanto, que a situação da


Europa é bem pior do que a que descrevemos. Este é mais um exemplo
de como os nossos cálculos são cautelosos.

SRA. MYRTLE JONES (presidente da Sociedade Audubon de


Mobile Bay): Esta é uma conferência oportuna, e o seu artigo na Parade
de ontem [30 de outubro de 1983] foi muito bem elaborado e ajudou-me
a compreender o que o senhor disse hoje. O senhor mencionou de
passagem o fato de que esteve no Congresso hoje de manhã. Eu
gostaria de saber se em ambas as Casas, e como foi recebido.

SAGAN: Foi um encontro informal com membros das duas Casas,


apenas para transmitir-lhes uma ideia das últimas conclusões. Eu diria
que eles se interessaram.

SRA. JONES: Interessaram-se positivamente?

SAGAN: Não sei bem o que isso significa. Mas não há dúvida que
o inverno nuclear traz fortes implicações políticas, embora, ao
começarmos o estudo, não tivéssemos ideia de que isto iria acontecer.

J. SALATUN (vice-marechal-do-ar reformado da Força Aérea


Indonésia e membro do Parlamento em Jacarta): Eu tenho duas
perguntas.
Primeira: em que pese o pessimismo, não devemos esquecer que
se passaram 38 anos desde a Segunda Guerra Mundial, com bombas
nucleares e sem outra guerra mundial. Minha pergunta é: qual a
probabilidade de uma guerra nuclear?

SAGAN: A arte da profecia é uma arte perdida. Se houvesse


um meio preciso de fazer tal previsão, ela seria extremamente
importante. Mas veja como é precária a nossa capacidade de prever até
mesmo os aspectos menores da política mundial, como, por exemplo,
que pequeno país será invadido amanhã.
Portanto, esperar algum prognóstico exato quanto à probabilidade
de uma guerra nuclear, parece-me que é querer demais. É verdade que
passamos 38 anos sem uma guerra nuclear. É possível, quem sabe, que
venhamos a sobreviver por um período mais longo. Mas o senhor se
disporia a apostar a sua vida nisso? Não garanto que seja uma perfeita
analogia, mas a situação me faz lembrar um homem caindo do alto de
um edifício e dizendo a um funcionário de escritório, ao passar por uma
janela aberta: "Até aqui, tudo bem.”

SALATUN: A segunda pergunta é: o que me diz da possibilidade de


que as suas conclusões venham a incitar um novo esforço e
simplesmente forçar a destruição?

SAGAN: Acho que também esta é uma questão política. Posso


perguntar-lhe, vice-marechal, qual o senhor crê seja a probabilidade, ante
o conhecimento do inverno nuclear e a descoberta de que a Indonésia é
fundamentalmente ameaçada ainda que nem um único engenho nuclear
caia em seu território, de que a Indonésia de repente passe a interessar-
se muito mais no confronto nuclear entre as grandes potências?

SALATUN: Bem, tudo que podemos fazer é rezar a Deus que a


coisa não aconteça. Mas no meio tempo devemos preparar-nos para o
pior.

SAGAN: Na minha opinião, os senhores podem fazer mais do


que rezar.

Dr. GERALD O. BARNEY (presidente da Barney and Associates,


Inc.): No curso da preparação do Relatório Global 2000 ao Presidente,
ficou claramente evidente para mim, e creio que para muitos outros, que
é aconselhável quando da elaboração de estudos importantes dar acesso
aos modelos detalhados empregados no processo, já que muitas vezes
há coisas escondidas nos modelos de computador que não são de
imediato compreensíveis nas publicações que informam os resultados.
Eu gostaria de saber se o modelo utilizado no trabalho em causa
está disponível, e qual o procedimento para obter fitas ou cópias do
programa detalhado.

SAGAN: É um pedido perfeitamente legítimo e, é claro,


acolheremos com prazer essas solicitações. Está sendo preparada uma
exposição bem mais extensa dos resultados do TTAPS, na qual serão
fornecidos detalhes mais completos. Mas sem dúvida teremos a maior
satisfação em atender ao seu pedido.
Entretanto, faço notar mais uma vez que todos os cálculos
independentemente realizados empregaram códigos completamente
diferentes. Como todos convergiram para a mesma direção, não creio
que as nossas conclusões tenham advindo de algum dado capcioso
embutido no programa de computador. Mas, é claro, cada segmento do
programa pode ser investigado.

H. JACK GEIGER, M.D. (professor de Medicina Comunitária do City


College da City University de Nova York): Eu tenho uma preocupação
baseada em alguma experiência da engenhosidade com que aqueles cujo
objetivo é defender a ideia da possibilidade de vitória e de sobrevivência
numa guerra nuclear podem tentar distorcer ou reinterpretar esses
dados, particularmente no que toca a conceitos como limiar. Que
elementos determinam o limiar tal como o senhor o define: número total
de armas, potência total, ou uma função mista dos dois?

SAGAN: É uma função mista dos dois, e também envolve


fortemente a estratégia de seleção de objetivos. Note que nas condições
atuais de precisão e de potência estocada, quando se passa muito abaixo
de 20 quilotons esbarra-se em dificuldades significativas para destruir
objetivos resguardados. Creio que de fato existe uma limitação inferior
nas condições atuais, se as várias nações estão pretendendo preservar a
opção de um ataque de contraforça plausível.

Dr. ED PASSERINI (presidente da Carrying Capacity, Inc., de


Washington, D.C.; professor de Humanidades e Ambiente da
Universidade do Alabama): Esta pergunta mais ou menos complementa a
de Jack. Há uma tendência no sentido de menores potências e maior
precisão de direcionamento. O senhor vê necessidade de realizar um
estudo adicional para verificar qual seria o efeito de um ataque de
sublimiar com direcionamento de alta precisão?

SAGAN: Bem, como eu disse a Ralph Nader, duvido muito da


possibilidade de um ataque de sublimiar, com a presente configuração de
precisão e potências, ter eficácia plausível para um primeiro ataque
decisivo contra objetivos fixos. [Essas possibilidades futuras são
discutidas na Ref. 19.]

DR. FRANCIS B. PORZEL (Fundação para a Dinâmica Unificada):


Não posso deixar passar esta oportunidade para dizer-lhe que faz quase
exatamente 32 anos que foi detonada a primeira bomba de hidrogênio.
Creio que seria de grande utilidade para o relatório se o senhor
fizesse referência a experiências passadas, aos testes atômicos.
Observando os gráficos, eu noto que houve vários períodos na década
de 50 em que a União Soviética e os Estados Unidos realizaram
operações de teste que somadas chegaram perto da faixa de 100
megatons; só a primeira, Bravo, em 1954, produziu 14 megatons.
O senhor disse que o modelo é unidimensional e por isso não se
aplica ao caso. Mas eu gostaria que o senhor esclarecesse que
precauções deveriam ser adotadas em relação ao seu modelo se se
quisesse aplicá-lo àquela experiência.

SAGAN: Dito de outra forma, o que prediz o modelo para as


explosões atmosféricas de armas nucleares nos anos 50? A resposta é
que não prediz nenhum efeito detectável. O motivo é, lembre-se, que os
100 megatons têm de ser consagrados em atear uns 100 incêndios
urbanos. Não foi o que se fez. Houve poeira mas não fuligem. A maneira
mais fácil de explicar isso é por meio do conceito de profundidade ótica. A
luz transmitida através de uma cobertura absorvente pura é
aproximadamente e, a base dos logaritmos naturais, elevado a menos
profundidade ótica. Quando a profundidade ótica é em torno de um
décimo, a atenuação é um menos profundidade ótica. É muito pequena.
Quando a profundidade ótica chega a um, o que ficou longe
de acontecer nos anos 50, a atenuação passa a ser apreciável. E quando
a profundidade ótica é por volta de 10, a atenuação torna-se critica.
Sendo este um processo não-linear, o que aconteceu na década de 50,
deduzimos, não teria quaisquer efeitos sobre o clima. e de fato não se
observou nenhum. Mas o que ocorre pelos nossos cálculos é uma
profundidade ótica de muitas unidades. Os efeitos consequentes são
importantes.

SRA. MARION EDEY (diretora-executiva da Liga dos Eleitores


Conservacionistas): Minha pergunta é: quais os efeitos da camada de
ozônio no Hemisfério Sul?

SAGAN: No meu entender, as soluções de continuidade da


ozonosfera deslocam-se rapidamente e se propagam do Hemisfério
Norte para o Sul.

PHILLIP GREENBERG: As opiniões hoje manifestadas levam-me a


fazer um breve comentário. Estou levando na devida conta a decisão de
evitar debates de natureza política e, considerando as circunstâncias,
acho-a justa e compreensível.
Ademais, creio que todos entendemos que há certas implicações
políticas que fluem desse estudo, e noto em vários casos, da parte dos
interpelantes e da parte do senhor aí na tribuna, uma tendência a
questionar a cautela das suposições.
Acho que seria um erro mesmo da parte dos senhores da
comunidade científica preocupar-se em demasia com a questão da
cautela das suposições. Pois embora ela seja apropriada num trabalho
científico, no campo político, quando se consideram eventos de grande
consequência, ainda que de baixa probabilidade, a questão da cautela se
inverte.
Portanto direi simplesmente que acho importante nos debates, e
certamente nas críticas que o senhor terá de suportar dos seus colegas
que defendam pontos de vista diferentes sob o prisma político, ter em
mente que cautela é coisa diferente segundo a consideramos no contexto
científico ou no político.

SAGAN: Concordo plenamente. É um truísmo na administração de


crises e na estatística atuarial que o importante não é só a probabilidade
do evento, e nem só o custo do evento se ele vier a ocorrer, e sim o
produto dos dois. Nós estamos bem conscientes disso e na verdade, até
aqui, deparamos com muito poucas críticas do tipo a que o senhor se
refere.

DR THOMAS C. HUTCHINSON (professor do Departamento de


Botânica da Universidade de Toronto, Canadá): Que proporção dos
oceanos do Hemisfério Norte é provável que viesse a congelar-se por
efeito de um ano de menos 25 graus centígrados?

SAGAN: Em sistemas de água doce, a profundidade típica de


congelamento será de um metro, um metro e meio, por aí. Sem dúvida
haverá no mar mais massas de gelo flutuantes, mas não há possibilidade
de que os mares propriamente venham a congelar-se, dada a sua grande
capacidade calorífica e elevada inércia térmica.
Vemos assim que talvez algumas coisas não irão tão mal entre a
vasta ladainha das que irão, se formos insensatos o bastante para
permitir que aconteça a guerra nuclear.
CONSEQUÊNCIAS BIOLÓGICAS DE UMA
GUERRA NUCLEAR
PAUL R. EHRLICH

É um privilégio, ainda que melancólico, poder apresentar-lhes o


consenso de um grande e ilustre grupo de biólogos sobre os efeitos
biológicos prováveis de uma guerra nuclear em grande escala. Esse
consenso foi alcançado durante um simpósio realizado logo em seguida
ao dos físicos referido por Carl Sagan, e no curso da preparação de dois
documentos sobre os impactos de uma guerra nuclear. Aqueles dos
senhores que conhecem bem o mundo da ciência sabem que conseguir o
assentimento de mais de 50 cientistas, sem qualquer divergência de
monta, a um amplo conjunto de conclusões é em si mesmo um fato
inusitado. Conseguir que concordem sobre conclusões que dizem
respeito a uma questão de enorme e grave interesse público é
extraordinário.
Para os senhores, depois da exposição do Professor Sagan a razão
desse consenso deve ter ficado clara. O ambiente que a maior parte dos
seres humanos e dos outros organismos depois de um holocausto
nuclear terá de enfrentar será tão modificado, e tão maligno, que danos
extremos e generalizados aos sistemas vivos são inevitáveis. Por
exemplo, é perfeitamente possível que os impactos biológicos de uma
guerra, sem contar os diretamente resultantes de explosão, fogo e
radiação instantânea, viessem a ocasionar o fim da civilização no
Hemisfério Norte. Para um biólogo é tão fácil concordar com isso como é
para todos nós concordar que o uso acidental de cianeto em vez de sal
de cozinha no molho teria grandes probabilidades de pôr fim a um jantar.
Minha principal missão neste momento é apresentar-lhes alguns
fundamentos técnicos para explicar por que muitos biólogos -
especialmente ecologistas - estão convencidos de que aqueles que em
nações diversas detêm o poder de decisão subestimam grandemente os
riscos de uma guerra nuclear.
Efeitos Diretos

Vou-me concentrar de modo especial nas consequências indiretas


geralmente ignoradas de uma guerra dessa espécie para o ser humano,
as quais se transmitiriam através de efeitos em sistemas ecológicos. Mas
não vou minimizar os efeitos diretos possíveis, por bem conhecidos que
sejam, pois estes serão realmente horríveis. Vejam o que estudos
recentes indicam que aconteceria numa grande guerra termonuclear, em
que entre 5.000 e 10.000 megatons de armas fossem detonados - a
maior parte no Hemisfério Norte. (para pôr essa guerra em perspectiva,
consideram que isso equivaleria grosso modo à explosão de entre meio e
três quartos de milhão de bombas atômicas do tamanho da de
Hiroshima, o que representa não mais que uma fração dos arsenais
nucleares atuais dos Estados Unidos e União Soviética.)
Até certo ponto, os efeitos irão depender da dimensão da guerra,
distribuição das explosões, número de explosões no solo e de explosões
no ar, e outros fatores. Mas quero frisar novamente o que o Dr. Sagan
tão bem sublinhou: que os resultados biológicos são pujantes. Isto
significa que é sumamente difícil conceber uma guerra nuclear em
grande escala que não levasse a um desastre ecológico de dimensões
sem precedentes.
Em nosso artigo para a revista Science, nós nos concentramos
mais que o relatório TTAPS numa guerra de 10.000 megatons, porque
achamos que a população devia ser informada dos efeitos dessa
hipótese plausível. Por isso demos atenção especial ao caso de 10.000
megatons. Mas as descrições gerais dos efeitos aplicam-se a todos os
cenários de guerra em grande escala.
A previsão, segundo uma das estimativas, é de que somente as
explosões causariam 750 milhões de mortes. Um número de pessoas
igual ao que existia no planeta quando a nossa nação foi fundada seria
vaporizado, desintegrado, esmagado, reduzido a polpa e espalhado na
paisagem pela força explosiva das bombas. Outro estudo prediz que 1,1
bilhão de pessoas seriam mortas e outras tantas lesadas pelas
explosões, pelo calor e pela radiação. Vale dizer, quase a metade da atual
população do mundo - compreendendo a maior parte dos habitantes das
nações ricas do Hemisfério Norte - poderia converter-se em baixas no
espaço de poucas horas.
Também é cristalinamente claro que a própria estrutura da
sociedade industrial seria destruída por um tal tipo de guerra.
Praticamente todas as áreas metropolitanas - que são os centros
políticos, industriais, financeiros, de transportes, de comunicações e
culturais das sociedades simplesmente deixariam de existir. Grande parte
do saber da humanidade desapareceria com elas. Atendimento médico e
outros serviços de socorro essencialmente não mais existiriam - não
haveria de onde partir assistência. Os sobreviventes das nações um dia
ricas não somente enfrentariam as cargas psicológicas esmagadoras de
terem testemunhado a maior catástrofe da história humana, como
saberiam não haver esperança de remédio.
Uma situação como essa é de tal modo estarrecedora que muitos a
entenderão como uma estimativa de pior hipótese do mal potencial
causado ao Homo sapiens na Terceira Guerra Mundial. Ao contrário,
como veremos a seguir, eu descrevi somente a ponta visível do iceberg.
Os destinos dos dois ou três bilhões de pessoas que não morressem
imediatamente inclusive as de nações muito distantes dos objetivos -
poderiam sob vários aspectos ser piores. Essas, é claro, sofreriam a
ação direta das temperaturas glaciais, da escuridão e da precipitação
radioativa à médio prazo de que falou o Dr. Sagan. Mas os efeitos de
maior alcance à longo prazo seriam produzidos indiretamente pelo
impacto destes e de outros fatores sobre os sistemas ambientais do
planeta.

Ecossistemas

Para entender isso, é preciso saber alguma coisa a respeito de


sistemas ecológicos - ecossistemas na forma abreviada da biologia. Um
ecossistema é uma comunidade biológica - todos os vegetais, animais e
micróbios que vivem numa certa área - combinada ao meio físico em que
vivem esses organismos. O meio abrange a radiação solar, os gases da
atmosfera, águas correntes, fragmentos de rocha no solo, e assim por
diante. E a essência de um ecossistema é uma teia de processos que
ligam os organismos uns aos outros e ao seu ambiente físico.
Esses processos incluem um fluxo unidirecional de energia através
do ecossistema e um movimento cíclico de materiais no seu interior.
Muitos dos senhores estão familiarizados com o processo da
fotossíntese, pelo qual as plantas verdes "captam" a energia do sol. Parte
dessa energia é a seguir transferida ao longo de "cadeias alimentares",
sendo utilizada primeiro pelas plantas no seu crescimento e para acionar
seus outros processos vitais, depois pelos herbívoros que comem essas
plantas, depois pelos carnívoros que comem os herbívoros e uns aos
outros, e finalmente por agentes de decomposição que desagregam
resíduos e organismos mortos.
A energia do sol alimenta todos os ecossistemas importantes, não
apenas através da fotossíntese como também de processos puramente
físicos, como o de evaporar a água da superfície dos mares e das terras
de modo que esta continue a circular. Assim, vê-se de imediato por que
qualquer evento que impeça o acesso da luz solar à superfície da Terra
pode ter efeitos catastróficos sobre o funcionamento dos ecossistemas.
Mas, e daí? É preciso entender que todos os seres humanos estão
encerrados em ecossistemas e deles dependem totalmente para a
produção agrícola e para uma série de outros "serviços públicos"
gratuitos. Esses serviços incluem a regulação dos climas e manutenção
da composição gasosa da atmosfera; suprimento de água doce; remoção
de resíduos; reciclagem de elementos nutrientes (inclusive os
indispensáveis à agricultura e à silvicultura); geração e preservação de
solos; controle da grande maioria das pragas potenciais das lavouras e
vetores de enfermidades humanas; suprimento de alimentos do mar; e
manutenção de uma vasta "biblioteca" genética, da qual a humanidade já
tirou a própria base da civilização - inclusive todas as plantas cultivadas e
animais de criação.
A danificação de ecos sistemas significa a interrupção desses
serviços. E os dois ou três bilhões de indivíduos que sobrevivessem aos
efeitos instantâneos de uma guerra termonuclear precisariam deles mais
ainda do que precisamos hoje.

Agressões aos Ecossistemas


A que espécies de agressões estariam sujeitos os ecossistemas na
eventualidade de um conflito nuclear em grande escala entre os Estados
Unidos e a URSS? O Professor Sagan realçou as duas que
provavelmente seriam as mais importantes - escuridão generalizada e frio
intenso nas áreas continentais. Entre as demais, que não seriam
desprezíveis, teríamos incêndios florestais; neblina tóxica (que poderia
engolfar todo o Hemisfério Norte); enriquecimento da luz solar (quando
voltasse a penetrar) em comprimentos de onda da faixa perigosa do
ultravioleta (UV-B), que, entre outras coisas, danificam o material
genético (ADN); níveis acrescidos de radiação nuclear; chuvas ácidas;
contaminação por substâncias tóxicas de águas subterrâneas,
superficiais e litorâneas; assoreamento e poluição por resíduos de lagos,
rios e orlas marítimas e tempestades violentas em regiões costeiras.
Quando da descrição de alguns dos impactos desses fenômenos,
convirá ter em mente que a maioria deles estarão ocorrendo
simultaneamente em muitas regiões. Além disso, em muitos casos os
impactos de duas ou mais agressões simultâneas serão provavelmente
sinérgicos - isto é, maiores que a simples soma dos efeitos isolados. Por
exemplo, os níveis de radiação remanescente provinda de precipitações
globais (ou seja, exposição à radiação não atribuível à precipitação local
devida a uma determinada bomba) poderão ser muito mais altos do que
os estimados em análises anteriores, porque as precipitações da alta
troposfera foram de modo geral desprezadas.
Também é importante entender que as conclusões dos biólogos
quanto aos efeitos ecossistêmicos são muito menos dependentes das
características particulares das detonações do que o são as
consequências diretas de explosão, calor e radiação inicial. Só no caso
de uma guerra nuclear de pequena escala, realmente limitada, haveria a
probabilidade de os nossos cálculos não serem aplicáveis. Guerras desse
tipo são possíveis, mas que uma guerra nuclear, uma vez iniciada, possa
ser contida, é duvidoso; para muitos analistas, guerras nucleares
limitadas são altamente improváveis. Seja como for, os detentores do
poder de decisão devem ser completamente informados das
consequências possíveis de conflitos nucleares generalizados, que têm
toda a probabilidade de causar a longo prazo efeitos devastadores.
É bem possível que as nossas conclusões subestimem essas
consequências, visto que ainda sabemos muito pouco a respeito do
funcionamento detalhado dos ecossistemas globais para avaliar todas as
interações sinérgicas entre os insultos a que os seres humanos e os
ecossistemas seriam submetidos. O fato é que, mesmo se os efeitos
climáticos não abarcassem todo o Hemisfério Norte ou todo o globo, os
impactos de uma guerra nuclear sobre os ecossistemas do planeta
seriam consideráveis.

Gelo e Trevas

Temperaturas reduzidas teriam efeitos dramáticos sobre populações


animais, muitas das quais seriam aniquiladas pelo frio inusitado. Contudo
o fator central dos efeitos nos ecossistemas é o impacto da guerra sobre
as plantas verdes. A atividade destas dá origem à chamada produção
primária - a apropriação de energia (através da fotossíntese) e a
acumulação de substâncias nutritivas necessárias ao funcionamento de
todos os componentes biológicos dos ecossistemas naturais e cultivados.
Sem a atividade fotossintética das plantas, virtualmente todos os animais,
seres humanos inclusive, cessariam de existir. Toda carne é na verdade
"erva".
Tanto o frio como a escuridão são adversos às plantas e à
fotossíntese. O Quadro 1 mostra as modificações de luz e temperatura
que podem decorrer de uma guerra nuclear. Note-se que, por exemplo,
as temperaturas superficiais nos continentes, longe das costas, podem
ficar abaixo do ponto de congelamento da água em todo o Hemisfério
Norte durante um ano inteiro, e que um frio próximo desse ponto também
pode assolar o Hemisfério Sul durante meses.
Os impactos de temperaturas tão baixas sobre as plantas
dependeriam, entre outras coisas, da época do ano em que ocorressem,
da sua duração, e da tolerância das diferentes espécies vegetais ao
resfriamento. Um resfriamento brusco é particularmente prejudicial.
Depois de uma guerra nuclear, prevê-se que as temperaturas cairiam
verticalmente em curto espaço de tempo; assim, é improvável que
plantas normalmente resistentes ao frio se aclimatassem antes de serem
expostas a temperaturas letais. Além disso, mesmo temperaturas bem
acima do ponto de congelamento podem ser nocivas a algumas plantas,
e outras agressões não mostradas no Quadro 1 intensificariam os danos
infligidos à vegetação pelo resfriamento ou congelação. Acresce que
plantas doentes ou lesadas têm uma capacidade reduzida de aclimatar-
se ao frio.
Tudo isso se resume em que virtualmente todas as plantas
terrestres no Hemisfério Norte seriam lesadas ou destruídas numa guerra
que ocorresse durante a estação do crescimento ou pouco antes.
Provavelmente a maior parte das culturas anuais seria prontamente
exterminada, e muitas plantas perenes sofreriam igualmente danos
graves se a guerra ocorresse no período do seu crescimento ativo.
Obviamente, os danos seriam menores se ela acontecesse na fase de
hibernação.
Se fosse no outono ou no inverno, as fontes principais de alimento
para a humanidade - trigo, arroz, milho e outros cereais - teriam sido
colhidas. Mas provavelmente o tempo permaneceria anormalmente frio
por muitos meses, impedindo o cultivo na primavera e no verão
subsequentes, ainda que outras condições fossem favoráveis. Outrossim,
como as temperaturas de inverno estariam muito abaixo das mínimas
normais, muitas plantas perenes (por exemplo, árvores frutíferas e
componentes importantes da vegetação natural) provavelmente
morreriam. De modo geral, as sementes estocadas de plantas de zonas
temperadas não seriam afetadas pelo frio, mas as de muitas plantas
tropicais o seriam.
Se bem que em latitudes mais setentrionais uma guerra no outono
ou no inverno teria provavelmente um impacto menos violento sobre as
plantas do que na primavera ou no verão, ainda assim poderia haver um
sério impacto nos trópicos, onde as plantas crescem o ano inteiro. As
únicas partes do Hemisfério Norte onde as plantas não seriam
devastadas por um frio intenso seriam zonas costeiras e ilhas, onde a
temperatura seria moderada pelos oceanos. As faixas costeiras, porém,
experimentariam condições atmosféricas de extrema turbulência, em
vista das enormes diferenças de temperatura que se criariam entre a
terra e o mar.
Lembrem-se de que o frio é apenas um dos castigos a que as
plantas verdes seriam submetidas. O bloqueio da luz solar, causa do frio,
também reduziria ou eliminaria a atividade da fotossíntese. Isto traria
inúmeras consequências, que se transmitiriam em cascata através das
cadeias de alimento, inclusive as que dão sustento à espécie humana. A
produtividade primária diminuiria mais ou menos na proporção da
diminuição da luz, ainda que a vegetação não sofresse outras espécies
de danos. Se o nível de iluminação caísse a 5% ou menos dos níveis
normais - como provavelmente aconteceria por vários meses nas
latitudes médias do Hemisfério Norte -, a maioria das plantas teria o seu
crescimento interrompido. Assim, mesmo se as temperaturas
permanecessem normais, a produtividade das culturas e dos
ecossistemas naturais seria enormemente reduzida pela intercepção da
luz do sol decorrente de uma guerra. Combinados, o frio e a escuridão
constituiriam uma catástrofe sem precedentes para esses sistemas.

Luz Ultravioleta

Quando o frio e a escuridão abrandassem, as plantas verdes


passariam a sofrer outro sério insulto. As bolas de fogo nucleares
introduziriam na estratosfera grandes quantidades de óxidos de
nitrogênio. A consequência seria uma forte redução do escudo protetor
estratosférico de ozônio - da ordem de 50%. Normalmente, o ozônio filtra
a radiação UV-B. Nas semanas ou meses imediatamente seguintes à
guerra, a fuligem e a poeira em suspensão impediriam essa UV-B
acrescida de alcançar o solo. Mas a escassez de ozônio persistiria por
mais tempo que a fuligem e a poeira, e, quando a atmosfera limpasse, os
organismos seriam submetidos a níveis de radiação UV-B muito mais
altos que os considerados perigosos para os ecossistemas e para os
seres humanos.
Uma das respostas das plantas ao aumento da UV-B é a redução
da fotossíntese. Além disso, folhas que se desenvolvem em baixa
luminosidade são duas ou três vezes mais sensíveis à UV-B do que as
desenvolvidas em plena luz do sol. Dessa forma, a UV-B irá potenciar os
danos antes causados por baixos níveis de luz. Sabe-se que os sistemas
imunológicos do Homo sapiens e de outros mamíferos são suprimidos
mesmo por doses baixas de UV-B. Assim, os mamíferos submetidos a
radiação ionizante acrescida (que também inibe o sistema imunológico), a
doenças e a uma série de outras agressões num mundo de pós-guerra
teriam comprometida uma de suas principais defesas. Há também
indicações de que a exposição prolongada a um excesso de UV-B poderia
provocar de modo generalizado a perda da visão. As pessoas e outros
animais sobreviventes poderiam ver-se novamente em trevas pouco
tempo depois que o céu tivesse clareado.

Precipitação Radioativa

Os ecos sistemas do Hemisfério Norte seriam também submetidos


a níveis muito mais altos de radiação ionizante originada da precipitação
radioativa do que se imaginava antes. Uma estimativa sugere que um
total de uns 5 milhões de quilômetros quadrados estendendo-se dos
pontos de detonação na direção do vento ficariam expostos a 1.000 ou
mais rems de radiação, principalmente nas primeiras 48 horas. Esses
níveis de radiação seriam letais para todas as pessoas expostas e para
muitas outras espécies animais e vegetais sensíveis.
Até 30% das áreas continentais de médias latitudes do Hemisfério
Norte seriam expostas a mais de 500 rems de radiação no primeiro dia.
Tal dose causaria a morte de cerca de metade dos indivíduos adultos
sadios a ela expostos. No entanto, submetidos a outros fatores de
debilitação, poucos adultos nessas áreas se manteriam sadios, e a
radiação poderia acabar de liquidar muitos milhões de sobreviventes
feridos, doentes, enregelados, famintos e sedentos. Os que não
morressem ficariam doentes por semanas e propensos ao câncer pelo
resto de suas vidas. O número total de pessoas afetadas certamente
passaria de um bilhão, podendo mesmo abranger a totalidade das
populações do Hemisfério Norte - dependendo dos detalhes do conflito
nuclear.
Níveis mais baixos de exposição anormal, ainda centenas de vezes
maiores que a radiação normal "de fundo", ocorreriam em metade ou
mais do hemisfério, tornando os sobreviventes mais suscetíveis à
doença, acarretando a produção de câncer e provocando mutações
genéticas.
Os efeitos ecossistêmicos de níveis elevados de radiação são mais
difíceis de prever. Organismos não-humanos são diferentemente
suscetíveis a lesões por radiação. Entre os mais vulneráveis estão a
maioria das coníferas que formam florestas extensas nas zonas mais
frias do Hemisfério Norte. É possível que sobreviesse a morte de
coníferas numa superfície equivalente a 2% de toda a área de terras do
Hemisfério Norte. Isto, por sua vez, criaria condições propícias à
propagação de incêndios de enorme extensão.
Além das coníferas, aves e mamíferos destacam-se entre os
grupos mais sensíveis. Combinada a outras agressões, a precipitação,
em muitas regiões, poderia agravar a ruptura da mecânica normal de
ecossistemas. Além do que, isótopos radioativos entrariam em ciclos
alimentares, ganhando no processo maior concentração, e talvez
somando novos riscos para os sobreviventes humanos.

Fogo, Smog e Sinergismos

Essa narrativa de modo algum esgota os impactos que os


ecossistemas experimentariam. É claro que muitos deles seriam
destruídos ou lesados pelas explosões, pelo fogo e pela radiação de
milhares de detonações de armas nucleares. Poços de petróleo, jazidas e
depósitos de carvão, turfeiras, etc., poderiam continuar queimando por
meses ou anos. Incêndios florestais secundários, cobrindo talvez 5% ou
mais da área continental do Hemisfério Norte, teriam efeitos
devastadores diretos sobre os ecossistemas - especialmente aqueles não
adaptados a queimas periódicas. Explosões múltiplas no ar sobre a
Califórnia no fim do verão ou princípio do outono poderiam calcinar
grande parte do estado, ocasionando enchentes e erosão de dimensões
calamitosas durante a estação chuvosa subsequente. Assoreamento,
escoamentos tóxicos e chuvas radioativas poderiam causar a
mortandade de uma grande parte da fauna de águas doces e costeiras.
Sobreviventes humanos procurando alimentar-se de mariscos como
mexilhões a beira-mar provavelmente verificariam estarem eles mortos
ou com radioatividade concentrada de tal ordem que seria letal consumi-
los.
Há grande incerteza com respeito à extensão de tempestades
ígneas, porque as condições de combustível e de inflamação que as
originam são pouco conhecidas. Em certas circunstâncias, essas
conflagrações gigantescas podem aquecer o solo o suficiente para matar
as sementes dormentes nele contidas - os "bancos de sementes" dos
quais depende a regeneração da flora. A tempestade ígnea relativamente
pequena que destruiu Hamburgo na Segunda Guerra Mundial lançou
labaredas no céu a 4.500 metros de altura e fumaça a 12.000 metros. A
temperatura do fogo foi suficiente para fundir alumínio, e abrigos
subterrâneos ficaram tão quentes que quando se abriram, dando entrada
ao oxigênio, materiais inflamáveis e até cadáveres explodiram em
chamas. Essa tempestade cobriu cerca de 15 quilômetros quadrados; as
muitas tempestades ígneas produzidas numa guerra nuclear
provavelmente seriam cada qual cem ou mais vezes maior.
Os incêndios e as tempestades ígneas gerariam um smog
hemisférico de espessura variável, enriquecido a sotavento de cidades
incendiadas por diversas substâncias altamente tóxicas, como os cloretos
de vinil. Uma provável consequência da injeção na atmosfera de óxidos
de enxofre e nitrogênio produzidos por incêndios seriam chuvas
fortemente ácidas localizadas. E a modificação da dinâmica da atmosfera
poderia resultar em estiagens prolongadas noutras regiões. Em geral, a
sujeição de ecossistemas a várias combinações de escuridão, frio, fogo,
radiação ultravioleta, smog, chuvas ácidas e seca seria de molde a
provocar surtos sem precedentes de doenças e pragas das plantas, os
quais poderiam estender-se, no espaço e no tempo, muito além da
devastação direta produzida pela guerra.
Em muitos casos, como dito atrás, o impacto de dois fatores
adversos simultâneos seria muito maior que a soma dos seus efeitos se
eles ocorressem separadamente. Alguns desses sinergismos são fáceis
de identificar. Por exemplo, a falta de luz solar é de molde a intensificar
os efeitos de outros fatores adversos sobre as plantas porque se
requereria energia (e portanto insolação) adicional para resistir a esses
efeitos e para reparar os danos por eles provocados. Não temos meios
de quantificar outros sinergismos que sem dúvida nenhuma ocorreriam
em ecossistemas radicalmente alterados em virtude de um ataque. No
entanto tudo indica que podemos prever com segurança que haveria
muitos deles - e que de modo geral eles se revelariam muito mais
destrutivos do que alguns dos efeitos isolados.

O que Aconteceria aos Vertebrados e aos


Organismos do Solo

O desastre que acometeria grande parte ou a maioria das espécies


vegetais do Hemisfério Norte por obra dos efeitos de uma guerra nuclear
concorreria para um desastre comparável ou maior para os animais
superiores. Herbívoros e carnívoros selvagens e animais de criação ou
sucumbiriam prontamente ao frio ou morreriam de fome ou de sede
porque as águas superficiais ficariam congeladas. Se a guerra ocorresse
no outono ou no inverno, animais hibernantes em regiões mais frias
talvez sobrevivessem, só para enfrentar condições extremamente hostis
numa primavera e num verão de frio e escuridão.
Os animais necrófagos que resistissem às temperaturas glaciais
previstas teriam condições de florescer no período de pós-guerra, tendo
em vista os bilhões de corpos insepultos de homens e animais. Com as
altas taxas de multiplicação que os caracterizam, depois do degelo, ratos,
moscas e baratas poderiam, pouco tempo decorrido da Terceira Grande
Guerra, ocupar o lugar de espécies dominantes.
Os organismos do solo não dependem diretamente da fotossíntese,
e em muitos casos podem manter-se em estado de vida latente por
períodos prolongados. Esses estariam relativamente imunes ao frio e à
escuridão. Mas em muitas regiões a perda da vegetação de superfície
exporia o solo a um intenso processo de erosão pelo vento e pela água.
Com isso, ainda que os organismos do solo não sejam excessivamente
suscetíveis aos efeitos retardados sobre a atmosfera de uma guerra
nuclear, é provável que ecossistemas inteiros do solo fossem de qualquer
maneira destruídos.

Impactos em Sistemas Agrícolas


Os ecossistemas agrícolas seriam submetidos aos mesmos tipos de
impactos que os ecossistemas naturais, mas merecem atenção especial
porque atualmente sustentam populações humanas muito acima das
cargas suportáveis pelos ecossistemas naturais.
As reservas de alimentos básicos nos centros de população
humana são pequenas, e a maior parte da carne e dos gêneros é suprida
pela produção corrente. Somente os cereais são armazenados em
quantidades maiores, mas os locais de armazenagem situam-se
geralmente em pontos distantes. Por isso, depois de uma guerra nuclear,
as reservas de alimentos do Hemisfério Norte estariam destruídas ou
contaminadas, guardadas em locais inacessíveis, ou em pouco tempo
esgotadas. As pessoas que sobrevivessem aos outros efeitos da guerra
logo estariam morrendo de fome. Além disso, países que hoje dependem
de grandes importações de alimentos, ainda que intocados por explosões
nucleares, sofreriam a imediata e completa cessação do ingresso de
suprimentos. Teriam de voltar-se para os ecossistemas agrícolas e
naturais locais. Para muitos países em desenvolvimento, isso poderia
significar a inanição de grandes parcelas dos seus habitantes.
A recuperação da agricultura após a guerra seria com certeza
muitíssimo difícil. Em sua maioria as culturas requerem complementos
substanciais de energia e de fertilizantes. Além disso, safras
aproveitáveis requerem insolação integral, água adequada, supressão de
pragas e ausência relativa de agentes adversos como poluição do ar e
UV-B. Poucos desses requisitos estariam presentes no mundo do pós-
guerra imediato.
Depois que as condições ambientais voltassem mais ou menos ao
"normal" (exceto pela perda de solos irrecuperáveis), a facilidade da
restauração da agropecuária em escala apreciável iria depender da
possibilidade de reorganização dos sistemas sociais (determinada por
fatores como disponibilidade de energia e condição psicológica da
população) e da proporção em que sementes e animais de criação
reprodutores houvessem sobrevivido. Como as sementes destinadas à
grande maioria das culturas norte-americanas, europeias e soviéticas não
são colhidas e armazenadas em fazendas individuais, a variedade
genética já limitada de plantas cultivadas seria ainda mais reduzida por
perdas inevitáveis de sementes estocadas. Além disso, é provável que as
variedades que sobrevivessem se adaptassem mal aos meios ambientes
de pós-guerra em que seriam plantadas.
Nas primeiras estações, o mais certo é que o clima permanecesse
mais hostil e imprevisível do que de costume, resultando em colheitas
incertas e, com frequência relativa, em frustrações de safras. Mesmo
alterações climáticas pequenas podem ter grandes efeitos sobre a
agricultura. Por exemplo, uma simples queda de 3ºC na temperatura
média de julho empurraria o limite norte da produção confiável de milho
vários graus de latitude para o sul, até o sul do Iowa e o centro do Illinois.
Por fim, deve-se observar que os ecossistemas agrícolas
dependem inevitavelmente dos ecossistemas naturais em que estão
embutidos. Alterações causadas nestes pela guerra, especialmente se
afetando a sua capacidade de prestar serviços de suprimento de água
doce, controle de pragas e polinização, também poderiam retardar a
recuperação da agricultura.

O que Aconteceria com os Trópicos

Até aqui, concentrei minhas observações nos efeitos produzidos na


Zona Temperada Norte, terreno provável da guerra. Mas o que
aconteceria nos trópicos e no Hemisfério Sul? Naturalmente, isso
dependeria em grande parte da exata configuração dos alvos escolhidos
e de quantas tempestades ígneas se produzissem (pois estas poderiam
injetar enormes quantidades de material na estratosfera, onde ele seria
facilmente transportado do Hemisfério Norte para o Sul).
Em qualquer cenário de guerra, a propagação do frio e da escuridão
às extensas áreas tropicais do Hemisfério Norte é altamente provável, e
é pelo menos possível que se estendesse igualmente às áreas tropicais
do Hemisfério Sul. Ainda que o frio e a escuridão ficassem em grande
parte confinados às regiões temperadas do norte, pulsos de ar frio
poderiam penetrar bastante fundo nas zonas tropicais. Portanto é
oportuno mencionar as prováveis consequências de tal propagação.
Muitas plantas de zonas tropicais e subtropicais não possuem
mecanismos de liberação que lhes permitam suportar estações frias.
Nessas regiões, danos em grande escala seriam infligidos às plantas pelo
esfriamento, ainda que as temperaturas não chegassem a cair ao ponto
de congelamento. Além disso, considera-se que vastas áreas de
vegetação tropical estão muito próximas do "ponto de compensação"
fotossintético - a quantidade de dióxido de carbono que absorvem é
apenas ligeiramente maior que a que liberam. Se o nível de luz caísse,
essas plantas definhariam, mesmo em ausência de resfriamento. Se a
luz permanecesse escassa por um tempo prolongado, ou se a baixos
níveis de iluminação se combinassem baixas temperaturas, florestas
tropicais poderiam desaparecer em grande parte, levando consigo quase
por inteiro um dos recursos não-renováveis mais preciosos da Terra:
suas reservas de diversidade genética, compreendendo a maioria das
espécies animais e vegetais. Animais tropicais, seres humanos neles
incluídos, são também muito mais sujeitos a morrer de frio que os seus
semelhantes das zonas temperadas. Em resumo: onde regiões tropicais
fossem afetadas por alterações climáticas, as consequências poderiam
ser muito mais sérias do que as provocadas por mudanças similares
numa zona temperada.
Mais que isso, mesmo na ausência de frio e escuridão, a
dependência dos povos tropicais de alimentos e fertilizantes importados
criaria problemas de suma gravidade. Um grande número de habitantes
seria forçado a deixar as cidades e a tentar cultivar áreas remanescentes
de floresta tropical úmida, acelerando a sua destruição na medida em
que os sistemas fossem levados muito além da sua capacidade de carga.

O que Aconteceria aos Sistemas Aquáticos

Finalmente, o que aconteceria às partes do planeta que são


cobertas de água? Os organismos aquáticos tendem a ser protegidos de
variações dramáticas da temperatura do ar pela lentidão com que as
variações se propagam à água. Assim, em geral, os sistemas aquáticos
sofreriam ruptura menos acentuada que os terrestres. Não obstante,
muitos sistemas de água doce se congelariam a profundidades não
pequenas (ou completamente). Por exemplo, após uma guerra nuclear
na primavera, formar-se-ia um metro ou mais de gelo em todas as
massas de água doce, pelo menos na Zona Temperada Norte. Isto
reduziria ainda mais os níveis de iluminação em lagos, charcos, rios e
arroios num mundo escurecido. Haveria baixa de oxigênio, e muitos
organismos aquáticos seriam exterminados. Além disso, a profundidade
de congelamento tornaria extremamente difícil o acesso de pessoas e
outros animais sobreviventes à superfície da água.
Nos mares, a escuridão inibiria a fotossíntese nas minúsculas
plantas verdes (algas) que formam a base de todas as cadeias
alimentares marinhas importantes. A reprodução dessas plantas,
conhecidas coletivamente como fitoplâncton, seria retardada ou
interrompida em muitas regiões, e o fitoplâncton que sobrevivesse seria
em pouco tempo devorado pelos pequenos animais flutuantes
(zooplâncton) que dele se alimentam. Próximo à superfície do mar, a
produtividade do fitoplâncton é reduzida pelos níveis atuais de UV-B;
depois de uma guerra, um aumento dessa espécie de radiação seria uma
agressão adicional. No Hemisfério Norte, as cadeias alimentares
marinhas poderiam ser rompidas por um lapso suficientemente longo
para causar a extinção de muitas espécies valiosas de peixes,
principalmente após uma guerra nuclear de primavera ou de verão.
Não apenas a vida marinha seria dizimada em águas costeiras ricas
como as de Georges Bank, como as águas seriam agitadas por
tremendos temporais. Na proporção em que se encontrassem no porto
ao ocorrer a guerra, as frotas pesqueiras e os pescadores de ofício que
hoje colhem as riquezas do oceano teriam sido em grande parte
convertidos em partículas dispersas, que contribuiriam para sombrear os
mares. Os sobreviventes aptos e dispostos a pescar teriam grande
dificuldade em encontrar combustível e instalação portuárias e de
processamento utilizáveis. De modo geral, não há muito por que acreditar
que, pelo menos no Hemisfério Norte, as formas de vida marinha que
servem de importante fonte de alimento para o homem fossem
acessíveis aos sobreviventes.

O que Aconteceria com a Terra

Podem-se elaborar cenários de guerra plausíveis em que os efeitos


atmosféricos predominantes, frio e escuridão, se estenderiam
virtualmente à totalidade do planeta. Nessas circunstâncias, a
sobrevivência humana se restringiria quase que exclusivamente a ilhas e
faixas costeiras do Hemisfério Sul, e a população humana poderia
reduzir-se aos níveis da pré-história.
Muitos de nós, lendo o livro de Jonathan Schell The Fate of the
Earth, nos comovemos fortemente pelo modo impressionante em que ele
apresenta a sua tese, mas eu desconfio que os biólogos em sua maioria,
como eu mesmo, acharam um tanto exagerado imaginar que a nossa
espécie viesse a desaparecer literalmente da face do planeta. Com base
no que sabíamos então, não parecia verossímil.
Depois, os biólogos tiveram de considerar a possibilidade de que o
frio e a escuridão se espalhassem sobre a Terra inteira e sobre todo o
Hemisfério Sul. Ainda assim pareceu-lhes improvável que isso resultasse
de pronto na morte de todas as pessoas do Hemisfério Sul. Imaginou-se
que em ilhas, por exemplo, longe das fontes de radioatividade e onde as
temperaturas seriam moderadas pelos oceanos, alguns habitantes
haveriam de sobreviver. De fato, é provável que restassem sobreviventes
esparsos em várias partes do Hemisfério Sul, e mesmo numas poucas
partes do Hemisfério Norte.
Mas cabe inquirir sobre a persistência a longo prazo desses
pequenos grupos de população, ou de indivíduos isolados. O ser humano
é um animal social por excelência. Depende em alto grau das estruturas
sociais que construiu. Terá de arrostar um meio enormemente alterado,
que não apenas lhe será estranho senão muito mais adverso do que
jamais enfrentou. Os sobreviventes retornarão a uma espécie de estágio
de caçador-apanhador. Mas os caçadores e apanhadores do passado
possuíram sempre um íntimo conhecimento cultural do ambiente em que
viviam; sabiam como tirar o seu sustento da terra. Depois de um
holocausto nuclear, populações sem essa espécie de bagagem cultural
estarão de repente se esforçando por viver num ambiente que jamais foi
experimentado por ninguém em parte alguma. Com toda a probabilidade,
enfrentarão um meio totalmente novo, condições meteorológicas sem
precedentes e altos níveis de radiação. Se forem grupos muito reduzidos,
haverá a possibilidade de cruzamento consanguíneo. E, é claro, os
sistemas sociais, econômicos e de valores serão completamente
esfacelados. O estado psicológico dos sobreviventes não é fácil de
imaginar.
É consenso do nosso grupo que, nessas condições, não há como
excluir a possibilidade de os sobreviventes dispersos simplesmente não
serem capazes de reconstruir suas populações, de, num lapso de
dezenas ou mesmo centenas de anos, acabarem por desvanecer-se. Em
outras palavras, não há como excluir a possibilidade de uma guerra
nuclear acarretar a extinção do Homo sapiens.

Sumário

Permitam-me uma breve recapitulação. Uma guerra nuclear em


grande escala, ao que nos é dado prever, deixaria quando muito
sobreviventes esparsos no Hemisfério Norte, e esses sobreviventes
enfrentariam frio intenso, fome, falta de água, smog espesso, etc.,etc., e
enfrentariam tudo isso na penumbra ou no escuro, e sem o apoio de uma
sociedade organizada.
Os ecossistemas de que em grau extremo eles seriam dependentes
sofreriam fortes distorções, transformando-se em modos que dificilmente
podemos predizer. Seus processos seriam entravados. Os ecologistas
não conhecem suficientemente esses sistemas complicados para
poderem prever a sua exata condição depois de "recuperados". Se a
biosfera voltaria a ser um dia algo parecido ao que é hoje, ninguém é
capaz de dizer.
É altamente improvável que a sociedade do Hemisfério Norte
perdurasse. Na zona tropical do Hemisfério Sul, os eventos dependeriam
em grande parte do grau de propagação dos efeitos atmosféricos do
norte para o sul. Mas podemos estar certos de que, ainda que não
houvesse essa propagação, as populações que vivem nessas áreas
seriam fortissimamente afetados pelos efeitos da guerra - pelo simples
fato de ficarem isoladas do Hemisfério Norte.
E, repetindo, se os efeitos atmosféricos se alastrassem por todo o
planeta, não podemos ter certeza de que o Homo sapiens sobreviveria.
Figura 1. Deslocamento urbano provável: Uma semana após uma
guerra nuclear, a quantidade de luz solar ao nível do solo a grandes
distâncias dos objetivos do Hemisfério Norte possivelmente se reduziria a
uma pequena percentagem da normal. Os sobreviventes urbanos
defrontar-se-iam com frio intenso, falta de água, falta de alimentos e de
combustíveis e pesadas cargas de radiação, poluentes e doenças.
Provavelmente tentariam abandonar as cidades em busca de comida.

Figura 2. Impacto na agricultura: No caso de uma guerra de


primavera ou de verão, temperaturas abaixo do ponto de congelamento
destruiriam ou comprometeriam praticamente todas as culturas no
Hemisfério Norte. Os baixos níveis de iluminação inibiriam a fotossíntese,
e as consequências propagar-se-iam em cascata ao longo de todas as
cadeias alimentares. Os animais de criação morreriam ou se debilitariam
grandemente por efeito da radiação: Os que sobrevivessem em pouco
tempo morreriam de sede, pois as águas doces superficiais estariam
congeladas no interior dos continentes.

Figura 3. Vazamentos químicos: Explosões nucleares nas


vizinhanças de cidades incendiariam instalações de armazenagem de
petróleo e gás e romperiam tanques contendo produtos tóxicos, que se
derramariam nas águas correntes, matando os organismos aquáticos.
Figura 4. O frio e a escuridão que se seguiriam a uma guerra
nuclear no Hemisfério Norte provavelmente haveriam de estender-se às
zonas subtropicais e tropicais de ambos os hemisférios, causando danos
generalizados às plantas e animais daquelas regiões e afetando
seriamente ou destruindo florestas tropicais úmidas, o grande
reservatório da diversidade orgânica da Terra. Em lugares como a
América Central (figura) as populações teriam de perambular à procura
de abrigo e alimento.

Figura 5. Aqui se mostra uma paisagem tranquila nas matas do


norte. Um castor acabou de construir a sua represa, dois ursos pretos
vagueiam à cata de comida, uma borboleta do gênero Papilio adeja no
primeiro plano, um mergulhão passa nadando calmamente, um martim-
pescador espreita um peixe suculento.
Figura 6. Depois de uma guerra nuclear, formar-se-la nos si temas
de água doce uma camada de gelo de considerável espessura, acabando
com o alimento dos animais selvagens. A precipitação radioativa mataria
as coníferas.

Figura 7. Coníferas mortas e secas serviriam de acendalhas para


extensos incêndios florestais.
Figura 8. Uma vista em corte do oceano em condições normais
mostra representantes da vida marinha em várias profundidades. Entre
eles, arraias do mar, cavalas, arenques, meros: atuns, caranhos-
vermelhos, jubarte, polvo gigante e tubarão. As águas rasas da
plataforma continental sustentam estrelas-do-mar e -corais. Um barco de
pesca apanha camarões. Os pequenos organismos do plâncton servem
de alimento a outros seres marinhos.

Figura 9. Aqui se vê a mesma seção de oceano da Figura 8 depois


de uma guerra nuclear. Em consequência do escuro e da cessação da
fotossíntese, o fitoplâncton em pouco tempo se extingue, as cadeias
alimentares se rompem e a vida marinha degenera. Silte e toxinas
drenados da terra contaminam a zona costeira. O diferencial térmico
entre as massas continentais intensamente frias e os oceanos mais
quentes origina violentas tempestades ao longo do litoral. As fontes
marinhas de alimento para a humanidade se perdem e o acesso às
remanescentes é muito dificultado.

Perguntas

DR. OWEN CHAMBERLAIN (professor de Física da Universidade


da Califórnia em Berkeley; Prêmio Nobel de Física de 1959): O senhor
pode fazer o favor de repetir alguns pontos capitais sobre a cultura do
trigo? Que queda de temperatura se requer para eliminá-la? Imagino que
é fácil perder-se a produção de um ano simplesmente porque o sol foi
insuficiente para operar um ciclo vital completo do trigo, mas o senhor
mencionou alguns dados com respeito à queda de temperatura.

EHRLICH: Eu me referi ao cenário do Dr. Sagan de 3.000 megatons


de contraforça - creio que algo em torno de 80C de queda. Veja que não
se trata. apenas da temperatura que uma planta em pé pode suportar
num dado espaço de tempo. Por exemplo, se a temperatura média cai, o
período de crescimento é abreviado. Na verdade, é uma questão
complicada, a que os ecologistas têm dificuldades em responder com
precisão. Mas eu julgo razoável afirmar que esse grau de declínio de
temperatura, em termos de média em toda a área, é mais que suficiente
para estancar a produção de trigo. Além disso, as variedades hoje
cultivadas são altamente adaptadas às exatas condições em que são
cultivadas. Assim, ainda que fosse teoricamente possível cultivar o trigo,
depois da guerra não haveria tempo para reformular a agricultura e
desenvolver e plantar variedades ajustadas às novas condições.

ARTHUR KUNGLE, JR. (presidente do Library Tree Project): Além


dos problemas de suprimento de grãos, o senhor ou os seus colegas
consideraram os efeitos das modificações de luz, temperatura e
radioatividade nos organismos do solo, nos micorrizos e em diferentes
categorias de algas?

EHRLICH: Eu prefiro parafrasear a pergunta: consideramos o que


aconteceria ao sistema ecológico enormemente complexo existente nos
solos? A resposta é sim, consideramos, e estamos convencidos de que
haveria uma larga variedade de efeitos. O solo não é simplesmente rocha
decomposta. É um sistema vivo, que inclui, por exemplo, os fungos
micorrízicos, que desempenham uma função capital no transporte de
substâncias nutritivas do solo para muitas árvores. Quando se olha uma
floresta, pode parecer que as plantas dominantes são árvores. Na
verdade, são micorrizos. Se os fungos micorrízicos morressem, as
árvores desapareceriam. Infelizmente, nosso conhecimento dos ecos
sistemas do solo é ainda muito precário. A química é muito complexa, a
biologia é mal compreendida. Não há dúvida de que haveria problemas,
mas ninguém sabe dizer exatamente quais seriam. Esse é um assunto
muito sério, e eu desconfio que é um dos aspectos em que os nossos
prognósticos foram moderados.

WARD MOREHOUSE (presidente da Council on International and


Public Affairs, Inc.): Mesmo num mundo sem guerra nuclear, muitos
biólogos, ao que me consta, estão preocupados com a perda acelerada e
aparentemente irreversível das reservas mundiais de material genético.
No caso de uma guerra nuclear, qual seria o impacto provável sobre
essas reservas genéticas, em que medida elas seriam irreparavelmente
perdidas e até que ponto isso afetaria a capacidade dos ecossistemas
agrícolas de se regenerarem?

EHRLICH: Em nossa opinião, haveria a perda de uma grande parte


da variedade genética das plantas de cultivo, obviamente, pela perda de
estoques de sementes, e também, se os eventos se estendessem às
zonas tropicais, uma enorme perda de variedade. Mas creio que cabe
observar que na opinião de muitos - embora neste caso eu fale por mim
mesmo - basicamente o que uma guerra nuclear faria em talvez uma
hora e meia é o que o Homo sapiens aparentemente está em vias de
fazer dentro dos próximos 50 a 150 anos. O efeito de uma guerra nuclear
em todas essas frentes é condensar a ação num tempo muito menor.

DR. GERALD O. BARNEY (Barney and Associates, Inc.): Para levar


o público em geral e os nossos governantes a entenderem a gravidade
deste assunto, é importante examinar as coisas com base na hipótese
pior. E a sua análise, se bem entendo, aplica-se principalmente ao caso
de 10.000 megatons...
EHRLICH: Não é verdade.

BARNEY: Poderia dizer-nos alguma coisa sobre a variação de


caso para caso e de que modo as conclusões a que os senhores
chegaram variam de um cenário para outro?

EHRLICH: A conclusão básica dos biólogos é que mesmo o cenário


de 100 megatons com ataque a cidades, ou o ataque de contraforça de
3.000 megatons, teriam consequências biológicas incrivelmente
desastrosas. O ataque "cirúrgico" de 3.000 megatons, destruindo a
agricultura de grãos em grande parte do Hemisfério Norte, poderia,
mesmo que nem uma única pessoa fosse diretamente morta ou lesada,
produzir uma catástrofe sem precedentes na história da nossa espécie.
Alguns números, por exemplo os níveis de radiação, foram tirados do
caso de 10.000 megatons porque nos pareceu conveniente apresentar
aos biólogos as condições-limite, e alertar os detentores do poder de
decisão sobre os riscos máximos plausíveis.
Mas, como observado pelo Dr. Sagan e como agora eu quero
sublinhar, esses resultados subsistem ao longo de uma ampla gama de
cenários. Os detalhes podem variar. Mas, em qualquer cenário, enormes
perturbações afetariam os sistemas ecológicos do Hemisfério Norte pelo
menos. E isto por sua vez afetaria em grau catastrófico os sobreviventes
humanos. Para os biólogos a principal incerteza não é o que aconteceria
nas latitudes médias do Hemisfério Norte, mas que proporção desses
efeitos invadiria inicialmente as zonas tropicais do Hemisfério Norte e em
seguida as do Hemisfério Sul. Dada a maneira como funciona o mundo
do ponto de vista biológico, se se considera o comércio de alimentos e
outras coisas, os resultados seriam terríveis mesmo sem a propagação
dos efeitos atmosféricos ao sul do equador.

DR. PETER SHARFMAN (Comissão de Avaliação Tecnológica do


Congresso dos Estados Unidos): Aceitando que a sua conclusão mais
importante é a contestação da afirmativa do estudo de 1975 da Academia
Nacional de Ciências, de que com toda a probabilidade a espécie humana
sobreviveria, parece-me ainda assim que o senhor deveria focalizar
melhor algumas das variações, como aparentemente fizeram o Dr. Sagan
e seus colaboradores. Olhando rapidamente, pois não tive tempo para
mais, a família de curvas gerada pelos relatórios TTAPS, noto que
algumas delas são fortemente onduladas, e outras mais suaves.
Evidentemente faz muita diferença para a agricultura quando o senhor
fala de uma guerra no verão, que é provavelmente o pior caso, ou logo
após a colheita, que provavelmente é o melhor. E a simples afirmativa de
que os resultados subsistem para quase todas as variações não é tão
convincente quanto seria a análise de alguns efeitos ou ausência de
efeitos em algumas das variações mais definidas.

EHRLICH: Ninguém disse que não vamos prosseguir aprofundando


o assunto. É claro que, estudando mais, provavelmente encontraremos
situações em que se 5.000 megatons explodissem numa certa época do
ano os efeitos seriam menos graves que se os mesmos 5.000 megatons
explodissem em outra época do ano. Por exemplo, uma guerra de
inverno pode ter efeitos piores nos trópicos, e os desdobramentos podem
ser piores, pois na primavera a agricultura é muito mais sensível que em
qualquer
outra época do ano. É certo que haverá variações dos efeitos
biológicos. O que subsiste é que eles serão terríveis, e que haverá
tantos, e de tal modo superpostos, e de tal modo sinérgicos, que é difícil
ver em qualquer desses cenários uma situação em que o impacto sobre
as populações por intermédio dos sistemas ecológicos não fosse pelo
menos tão brutal quanto os efeitos diretos.
Eu não estou dizendo que todos os cenários produziriam os
mesmos efeitos. Nem poderia dizê-lo, pois os próprios físicos não são
ainda capazes de proporcionar-nos todos os detalhes. E ainda que os
tivéssemos, o conhecimento de como funcionam os sistemas ecológicos
é tão incipiente que previsões detalhadas do que aconteceria se eles
fossem perturbados de diferentes maneiras são sumamente difíceis.
Afinal, normalmente não podemos realizar experiências - e no caso da
guerra nuclear não desejamos fazê-lo. Desconfio que este é um desses
casos, tanto em relação a efeitos atmosféricos como a efeitos sobre
ecossistemas, em que teremos de nos contentar com generalidades,.
pois nestas próximas décadas não teremos resultados mais precisos, se
é que os teremos um dia.
DR. JACK VALLENTYNE (cientista senior do Centro Canadense
de Águas do Interior em Burlington, Ontário): Desejo fazer um comentário
e uma pergunta. O comentário é que eu acho que muitos aspectos da
sua exposição são terríveis, e não acho que o senhor os tenha
exagerado. Mas em diversas passagens o senhor empregou os verbos
no futuro. E isto implica uma certeza que em realidade não existe.

EHRLICH: Mea culpa. Eu tenho esperança de que as coisas não


"acontecerão". Espero que, com informações como estas, os povos do
mundo se reunirão e encontrarão meios de acertar suas diferenças por
maneiras outras que não a de explodir o planeta. É claro que concordo
com o senhor. Não devemos usar o tempo futuro.

VALLENTYNE: Minha pergunta é que não é para mim intuitivamente


óbvio que o ambiente marinho viesse a sofrer consequências tão graves.
Provavelmente uma grande quantidade de substâncias nutritivas é
despejada nele. Existem coisas como os pesqueiros de 16cios no lago
Erie que, tão logo cessasse a pesca comercial, voltariam a multiplicar-se.
Da mesma forma os do Mar do Norte. Os predadores - os pescadores
humanos estariam menos presentes.

EHRLICH: Estou de acordo. A recuperação será provavelmente


mais rápida nos ambientes marinhos. Mas de imediato eles sofrerão
muito com a diminuição da luz, que exterminará o fitoplâncton.
É de presumir que o fitoplâncton não será uniformemente eliminado
em toda parte. Haverá de reconstituir-se, e alguns dos sistemas
recompor-se-ão. É opinião dos biólogos marinhos neste estudo que se
perderia um bom número de espécies, ou pelo menos grandes
populações, de peixes comerciais. É provável que os sistemas marinhos
se restaurassem mais depressa, mas não estariam imunes só pelo
amortecimento térmico da água.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria de observar


que, se o senhor não vai discutir política, nós teremos de entregar o
assunto à Providência divina. E não está certo o senhor impor o seu
ponto de vista político se nós não vamos discuti-lo. Os pressupostos
referentes ao nível de 100 megatons envolvem uma série de questões.
EHRLICH: Nós não vamos tratar de política nesta conferência. Mas,
pelo que sei, todos os biólogos que participaram deste estudo, sem
exceção, e creio que todos os físicos igualmente, têm ideias próprias em
matéria de política. Imagino que todos eles teriam muito prazer em
discuti-las em reuniões apropriadas. Aqui, não pretendemos impor
nenhum ponto de vista político. O ataque de 100 megatons a cidades não
é uma previsão. O grupo TTAPS fez simplesmente o que os cientistas
sempre fazem quando abordam um assunto muito complicado - tomou
alguns casos hipotéticos para analisá-los de forma mais detida. Este é
simplesmente um caso hipotético. Ninguém imagina que haverá uma
guerra nuclear em que exatamente 100 megatons (1.000 bombas de 100
quilotons cada) serão distribuídos por exatamente 1.000 cidades como é
o caso no cenário. Nem ninguém imagina que haverá um ataque cirúrgico
de exatamente 3.000 megatons. Mas para elaborar modelos é preciso
partir de algum ponto.
Eu, pessoalmente, acho que a equipe TTAPS fez um
trabalho brilhante selecionando uma série de modelos que cumprem a
função dos modelos em ciência, que é a de proporcionar uma maneira de
refletir sobre o mundo, de raciocinar a respeito de questões complexas,
com um certo grau de simplificação. Na reunião anterior de físicos e
climatologistas que examinaram o estudo TTAPS, basicamente não
houve reclamações quanto ao modo como foram escolhidos os modelos,
embora tenha havido uma porção de perguntas cuidadosamente
formuladas a respeito de outros pontos. Mas ao término da reunião,
todos os presentes acharam que o grupo TTAPS realizou um magnífico
trabalho analisando com bom senso, embora com recursos limitados, um
tema de importância capital, com base num conjunto de modelos
perfeitamente razoáveis.
Mas o emprego dos modelos nada tem a ver com política. Eles
estão aí, qualquer um é capaz de entender os resultados, e os
condutores da política podem fazer uso deles e tirar suas próprias
conclusões.

DR ROBERT EHRLICH (Universidade George Mason, Virgínia):


Pelo que entendi, os principais danos biológicos são causados pelo frio e
pela escuridão. Mas o senhor disse, em sua exposição, que os demais
efeitos - em particular a precipitação radioativa, a destruição da camada
de ozônio, etc. - também seriam, individualmente, catastróficos para o
ambiente. Não é verdade?

PAUL EHRLICH: Em graus variáveis. Depende do efeito e do lugar,


mas é verdade.

ROBERT EHRLICH: Creio que o Dr. Sagan mencionou que o efeito


relativo à camada de ozônio é basicamente o mesmo referido no estudo
de 1975 da Academia Nacional de Ciências, e que naquele estudo o
efeito da destruição da camada de ozônio, ou da fração da mesma que
se deduziu seria destruída, foi dado como significante mas certamente
não catastrófico.

PAUL EHRLICH: Eu não vou argumentar com o senhor a respeito


de palavras como significante e catastrófico. Mas não conheço nenhum
ecologista que ache possível expor ecos sistemas naturais a um tal fluxo
de UV-B e esperar que não ocorra toda uma série de graves alterações,
muitas das quais ainda não somos capazes de prever. Esse é um dos
efeitos significantes que poderia ser, por si só, catastrófico.

DR. ED PASSERINI (Carrying Capacity, Washington, D.C.): O


senhor deu a entender que um aspecto favorável era a possibilidade de
que algumas árvores de folhas grandes sobrevivessem. Mas nem o
senhor nem o Dr. Sagan, embora mencionando frio, escuridão e
tempestades no mar, falaram muito de chuva. Ora, considerando os
perfis de temperatura em função da altitude que temos diante de nós, e a
quantidade de poeira que teremos, parece lógico que em pouco tempo
haveria lavagem pela chuva. Isto é, que a evaporação dos mares
produziria precipitações locais e grande parte das chuvas que
normalmente se deslocam para terra não chegariam lá. Os senhores
analisaram estes aspectos e qual a sua influência nos efeitos?

EHRLICH: Isso foi examinado e discutido. É certo que algumas


árvores poderiam mudar as folhas e sobreviver por possuírem reservas,
por exemplo. Mas provavelmente seriam castigadas pela seca.
Provavelmente seriam afetadas pelo frio. Quando tentassem lançar
novas folhas, é provável que estas fossem comidas. Não há garantia de
que as árvores sobrevivessem muito tempo. Elas estariam lançando
renovos frágeis e delicados num ambiente em que estariam presentes
herbívoros inusitados. Pessoas ameaçadas de morrer de inanição
lançariam mão de brotos tenros. Ratos e coelhos famintos buscariam
alimentos que normalmente não consomem.
Além do mais, a vegetação que não morresse pelo frio, pela falta de
luz e pela radiação enfrentaria uma atmosfera enfumaçada contendo
muitos poluentes fitotóxicos, especialmente nocivos a folhas novas e
frágeis. Não cabe muito conjeturar se a W-B desorientaria tantos
polinizadores que os ecos sistemas passariam a sofrer sérios distúrbios
quando a maior parte das plantas tivesse sido eliminada pelo frio, e o
restante pela escuridão e pelo smog. Restariam muito poucos animais e
plantas para serem desorientados, cegados, privados de defesa
imunológica, queimados, etc., pela UV- B.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: O senhor arriscaria um


palpite sobre quanto tempo seria necessário, admitindo-se que o homem
sobrevivesse, para que se restaurasse uma civilização comparável, por
exemplo, à de 5.000 anos atrás? E depois, possivelmente, uma
comparável à de hoje? A minha impressão é de que isso levaria da
ordem de centenas de milhares de anos, se é que viria a acontecer. Não
umas poucas gerações, nem mesmo dez gerações. Eu gostaria de ouvir
a sua opinião.

EHRLICH: Eu diria simplesmente que isso dependeria em grande


parte do cenário, e de coisas que nós não sabemos. O que importa,
penso eu, para a maior parte dos seres humanos, é que o mundo em
que vivemos hoje simplesmente deixaria de existir. Quanto ao que viria
substituí-lo e quanto a qual seria o curso da evolução biológica e social, é
matéria de adivinhação, e iria depender basicamente de quantos
artefatos e que parcela de conhecimentos fossem conservados. Se todos
os artefatos, todo o conhecimento e todos os recursos explorados se
perdessem, de fato a humanidade teria recuado, em tempo evolutivo,
centenas de milhares de anos. E uma nova evolução cultural, se viesse a
processar-se, é bem possível que seguisse um curso totalmente
diferente.
Contudo, se alguns centros importantes de estudo fossem
preservados, e se algumas metrópoles organizadas subsistissem no
Hemisfério Sul, a cultura humana poderia retornar bem mais depressa a
níveis "adiantados". Mas eu diria que há nisso uma boa dose de
arrogância e atitude pessoal. Eu vivi entre os esquimós, e poderia
demonstrar que em muitos sentidos a cultura deles é bem mais
adiantada do que a nossa hoje.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria de fazer uma


pergunta a respeito do que muitos considerariam um aspecto secundário
do modelo. Nos anos 60 e 70, a maior parte dos estudos sobre
ecossistemas naturais não levava em conta a possibilidade de
tempestades ígneas, ou a considerava remota - ou que não temos dados
suficientes, ou que pouco sabemos a respeito de tempestades ígneas. O
senhor comentou que o seu grupo foi cauteloso em relação a esse ponto.
E eu gostaria de saber se essa cautela foi a mesma dos anos 60 e 70.

EHRLICH: Bem, acho que é basicamente um problema de falta de


dados. Uma questão de como conduzir a experimentação. Há na
literatura tentativas de determinar o volume de combustíveis requerido
para produzir uma tempestade ígnea. Há muitas informações coligidas
sobre incêndios florestais em termos de aquecimento do solo, etc., e
sabe-se que mesmo em ecossistemas de chaparral, que são adaptados
ao fogo, em certas circunstâncias, quando o solo é úmido, pode haver
perdas importantes de nitrogênio do solo, destruição de sementes, etc.
Talvez o que realmente nos falte saber é o que acontece se houver
incêndio simultâneo em grandes extensões de território. Ocorreria urna
tempestade ígnea em vez de urna propagação de frentes de fogo? Isto,
que me conste, ninguém sabe.

INTERPELANTE: Mas os melhores exemplos que temos de


tempestades ígneas são as explosões de Hiroshima, Nagasaki e Dresda.

EHRLICH: Não, isso não é exato. As observações in loco não foram


imediatas nem suficientemente completas em Nagasaki e Hiroshima. E
há controvérsias quanto à exata natureza dos incêndios nesses casos.
As melhores observações que temos são de Dresda e Hamburgo, onde
havia grandes depósitos de combustíveis e as áreas incendiadas foram
relativamente limitadas. Nós tiramos muito poucas conclusões, em
relação ao que seria teoricamente possível, dos eventos de Hiroshima e
Nagasaki. Até hoje se discute na literatura a respeito das sequelas
médicas, e se houve de fato uma tempestade ígnea.

VICE-MARECHAL-DO-AR J. SALATUN (membro do Parlamento da


Indonésia): Pouco depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki, lembro-
me de ter lido nos jornais declarações de cientistas dizendo que nos
próximos 75 anos nada cresceria naquelas duas cidades. A história
mostrou que estavam enganados, pois um ano depois houve colheita de
melões, hortigranjeiros e outras plantas. Em face disto, minha pergunta
é: qual o grau de precisão das suas conclusões?

EHRLICH: Creio que são perfeitamente sólidas. É possível que


alguns cientistas tenham feito declarações como essa, se bem que não
consigo imaginar em que se teriam baseado, considerando o estado da
ciência naquela ocasião. Mas sempre houve cientistas fazendo
declarações absurdas, individualmente, em diferentes lugares. No
entanto, o que aqui apresentamos representa pelo menos o consenso de
um grupo muito grande de cientistas. Há que ter em mente que nada
deixa um cientista mais feliz do que mostrar que as conclusões de outros
são falsas. Eu tenho grande confiança nestes resultados. Nós os
estamos expondo e continuaremos a fazê-lo sob rigorosa crítica
científica. Se houver mudanças significativas - o que parece
extremamente improvável -, é assim que a ciência marcha. Mas o fato de
terem crescido melões em Hiroshima e Nagasaki depois das bombas não
tem muito a ver com a natureza dos efeitos de que estamos falando.

THOMAS M. LEVENSON (repórter da revista Discover): Existe um


limiar no número de extinções de qualquer gênero, além do qual as
extinções se sucederão em cascata ao longo da cadeia alimentar?

EHRLICH: Pelo que sabemos com base em modelos de


ecossistemas, parece provável que haveria limiares em certas extinções.
O problema é que não sabemos onde; não temos como fixar números.
Os biólogos ainda não determinaram se existem no planeta entre 2 e 5
milhões de espécies diferentes, ou 30 milhões. Nossa ignorância é
profunda. Mas, pelo que sabemos a respeito de sistemas ecológicos, é
de supor que haja limiares dessa natureza, e em sistemas menores nós
os encontramos. Se certas espécies chamadas fundamentais são
exterminadas, segue-se de imediato a extinção de outras espécies na
mesma área.

DR. THOMAS C. HUTCHINSON (Universidade de Toronto): De que


ordem seria a acumulação de poeira ou de solo em termos de campo
aberto?

EHRLICH: A acumulação de poeira no Hemisfério Norte dependeria,


entre outras coisas, do padrão dos ventos. Evidentemente haveria uma
enorme precipitação de pó em várias áreas, e o pó por si mesmo é
muitas vezes biocida, como o senhor deve saber. Esta seria apenas uma
agressão a mais que as plantas e os insetos sofreriam.
PAINEL SOBRE AS
CONSEQUÊNCIAS ATMOSFÉRICAS E
CLIMÁTICAS
DR. GEORGE M. WOODWELL (presidente da Conferência): Neste
momento tenho o prazer de abrir este tópico a novos debates, como
parte do processo geral de apressar a difusão e verificação das
conclusões. Agora será a vez das perguntas difíceis.
O primeiro painel é presidido pelo meu colega Dr. Thomas F.
Malone.

DR. THOMAS F. MALONE (presidente do Painel sobre


Consequências Atmosféricas e Climáticas): Em prosseguimento às
magníficas exposições gerais proferidas por Carl Sagan e Paul Ehrlich,
passaremos a examinar alguns detalhes e embasamentos importantes
dessas apresentações.
Tendo em vista o impacto quase inacreditável das armas nucleares,
vale a pena relembrar que na Segunda Guerra Mundial a arma de maior
poder, isoladamente, foi a bomba arrasa-quarteirão de 10 toneladas.
Quando a bomba atômica foi lançada em Hiroshima, esse poder
explosivo foi multiplicado por mil. A invenção da bomba H elevou a carga
útil outras mil vezes. Agora estamos falando de uma arma única de poder
um milhão de vezes maior que as empregadas na Segunda Guerra
Mundial. É por isso que há consequências globais. Está em jogo a
sobrevivência da espécie humana. Ao longo de bilhões de anos, as
espécies da Terra tiveram em média uma duração de 10 milhões de
anos. Este é simplesmente um valor médio, e nós já percorremos a
metade dele. A pergunta é: será que venceremos mais cinco milhões de
anos de modo a cumprir a outra metade?

DR. JOHN P. HOLDREN (membro do painel): Não falo como um


dos autores responsáveis pelas conclusões apresentadas nesta
Conferência, mas como participante convidado, com algum conhecimento
de arsenais nucleares, seleção de objetivos e cálculo de precipitações.
Gostaria de abordar aqui duas questões que talvez lhes tenham ocorrido.
A primeira é se os modelos apresentados constituem uma base
verossímil para a análise das consequências de possíveis guerras
nucleares, dadas as dimensões dos arsenais existentes e o
conhecimento disponível de como esses arsenais poderiam ser usados.
A segunda questão é se os vários números que ouvimos com
referência a doses de radiação oriunda de precipitação radioativa são de
fato intrinsecamente coerentes e compatíveis com os calculados por
outros analistas.
Em 1983 os arsenais mundiais de armas nucleares estratégicas
utilizáveis consistiam de 19.000 ogivas, ou cerca de 10.000 megatons
(Quadro 1). O termo "utilizáveis" refere-se ao número de ogivas
instaladas em mísseis e bombas carregadas em aviões de bombardeio
que poderiam ser lançadas se os dois lados utilizassem todos os seus
projéteis e veículos transportadores uma única vez. Isto é, recarga de
mísseis e voos múltiplos de bombardeios não são considerados.

QUADRO 1. ARSENAIS NUCLEARES MUNDIAIS, 1983

Categoria No. De Ogivas


Megatons

"Estratégicas" utilizáveis EUA 9.800


4.000
URSS 8.600
6.000
Outro 300
200
Sub-Total 19.000
10.000

Teatro, Navais e Reserva EUA 16.000


2.000
URSS 14.000
3.000
Outro 600
150
Sub-Total 30.000
5.000

Totais 50.000
15.000

Nessa categoria, os Estados Unidos têm 9.800 ogivas somando


cerca de 4.000 megatons, a União Soviética tem 8.600 ogivas somando
cerca de 6.000 megatons. Os números soviéticos incluem os mísseis de
médio alcance SS-4, SS-5 e SS-20 apontados para a Europa e para a
Ásia, pois essas armas têm funções principalmente estratégicas.
Analogamente, os números para os Estados Unidos incluem os
bombardeiros supersônicos FB-111 de asas retráteis, que são arrolados
na parte estratégica das forças nucleares norte-americanas.
Arsenais nucleares menores são mantidos pela França, Reino Unido
e China. Embora sejam arsenais modestos comparados aos das
superpotências, as megatonagens são ainda menores se lembrarmos
que mesmo um conflito na faixa de 100 megatons pode, em certas
circunstâncias, produzir as terríveis consequências atmosféricas e
biológicas examinadas nesta assembleia.
A segunda categoria inclui armas nucleares "de teatro", de campo
de batalha, de defesa aéreas e navais, bem como as reservas de ambos
os lados não-instaladas no momento em sistemas de lançamento. Nesta
categoria estão 16.000 bombas e ogivas dos arsenais dos Estados
Unidos, totalizando 2.000 megatons, e aproximadamente 14.000 bombas
e ogivas da União Soviética; não temos dados seguros sobre a
megatonagem do arsenal de teatro da URSS, mas ela deve ser da ordem
de 3.000 megatons.
A França, o Reino Unido e a China têm cerca de 600 ogivas com
talvez 150 megatons, embora estes sejam números bastante incertos. As
somas totalizam aproximadamente 30.000 ogivas e 5.000 megatons nas
várias categorias não-estratégicas.
Chega-se assim a um total global em torno de 50.000 bombas e
ogivas - representando cerca de 15.000 megatons.
Ora, neste contexto vemos que o cenário de referência apresentado
nesta Conferência nada tem de extravagante. O cenário de referência do
relatório TTAPS, de 5.000 megatons, corresponde ao uso de mais ou
menos um terço dos estoques mundiais totais, ou cerca de metade dos
estoques estratégicos. Está na mesma classe de outros cenários de
referência elaborados e usados por outros grupos há vários anos.
Por exemplo, o cenário do estudo publicado no número "The
Aftermath" da revista Ambio, publicação internacional sobre meio
ambiente da Real Academia Sueca de Ciências (que é de certo modo um
precursor do presente trabalho) era de 5.700 megatons. Um conjunto
recente de cenários organizados no Laboratório Nacional Lawrence
Livermore para análise das mesmas questões adota como cenário de
referência 5.300 megatons.
Pode-se perguntar se números mais altos que também já foram
explorados - por exemplo, 10.000 megatons - são plausíveis, isto é, se
há cenários realistas em que se pudessem atingir totais tão elevados.
Infelizmente, a resposta é afirmativa. Em circunstâncias adversas, pode-
se conceber uma guerra nuclear começando com o emprego de armas
nucleares de campo de batalha, ao que se seguiria uma escalada para o
emprego de armas de teatro e finalmente para o dos arsenais
estratégicos. Se isso acontecesse, as piores circunstâncias poderiam
com efeito resultar numa guerra nuclear envolvendo totais da ordem de
10.000 megatons ou mais.

Planos atuais de "modernização" dos arsenais nucleares


estratégicos, se executados, resultarão no aumento do número de
ogivas, possivelmente sem aumento da megatonagem total. Nas duas
últimas décadas, a megatonagem diminuiu enquanto o número de ogivas
aumentava, porque a potência média reduzida das ogivas modernas
supercompensa o crescimento do número de unidades. Seja como for, a
multiplicação de incêndios produtores de fuligem é mais sensível ao
número de ogivas detonadas que à megatonagem total.
Outra questão importante que pode ter sido suscitada pela
exposição do Dr. Sagan é a da dose de radiação produzida por
precipitação.
As pessoas podem absorver radiação de fontes externas e internas.
Geralmente a dose externa é calculada contando apenas a dose recebida
em todo o corpo de fontes externas de raios gama. A radiação também
pode ser absorvida pela ingestão de alimentos e água contaminados por
substâncias radioativas.

O Quadro 2 mostra algumas estimativas de radiação por


precipitação tiradas do estudo TTAPS e as compara com números
obtidos em outros estudos.

QUADRO 2. DOSES DE RADIAÇÃO DAS PRECIPITAÇÕES À


MÉDIO PRAZO

Dose
externa
corpor
al
Estudo Área e Tipo de Radiação (rems)
_______________________________________________________

TTAPS Hemisfério Norte, Média, só gama


20
5.000 megatons Hemisfério Norte, Médias Latitudes
só gama 40-
60
Hemisfério Norte, Médias Latitudes
Total
100

Knox, LLNL Hemisfério Norte, Médias Latitudes


5.300 megatons Só gama 20
Hemisfério Norte, áreas críticas
Só gama 40-
100
Hemisfério Norte, Médias Latitudes,
Ataque contra instalações de energia
Nuclear
+200-300

TTAPS Curto Prazo, 30% da área


Continental de Médias Latitudes Maior
500

(Caso exposto por Ehrlich e outros)

No cenário de 5.000 megatons do TTAPS, a dose externa corporal


de raios gama à médio prazo foi calculada em 20 rems, em média, para o
Hemisfério Norte.
A dose à médio prazo não inclui a dose a curto prazo proveniente
das precipitações isoladas de milhares de explosões nucleares.
Representa unicamente a contribuição da precipitação à médio prazo,
definida como a que ocorreria no período compreendido entre alguns dias
e mais ou menos um mês após o conflito nuclear. A maior parte dos
cálculos precedentes concentrou-se ou na precipitação à curto prazo
(dentro dos primeiros dias) ou na de longo prazo (mais de um mês depois
do conflito) vinda da estratosfera. A precipitação intermediária é
produzida pelo material radioativo em partículas elevado à alta troposfera
e baixa estratosfera que cai no intervalo compreendido entre alguns dias
e um mês depois das explosões.
As doses hemisféricas estimadas devem-se à categoria
intermediária anteriormente desprezada, e contribuem adversamente
para a dose total a que os sobreviventes das explosões e dos efeitos
térmicos seriam submetidos.
Nas latitudes médias do Hemisfério Norte, ocorreriam precipitações
locais à médio prazo muito mais intensas como resultado da
concentração de explosões nucleares nessa região. O grupo TTAPS
estimou que nessas latitudes a dose externa corporal seria de 40 a 60
rems. E, considerando tudo, não apenas a exposição corporal aos raios
gama mas também a possibilidade de doses internas fornecidas por
emissores radioativos ingeridos com alimentos e água, a dose média total
para os habitantes das latitudes médias chegou à faixa de 100 rems.
Para efeito de comparação, podemos tomar um estudo recente
realizado por Joe Knox no Laboratório Nacional Lawrence Livermore
(LLNL). No cenário de 5.300 megatons do LLNL, a dose de radiação
gama para latitudes médias do Hemisfério Norte foi de 20 rems, a
comparar com o valor de 40-60 rems do estudo TTAPS para as mesmas
latitudes.
Temos assim uma concordância bastante aproximada, se
considerarmos a ampla faixa de disparidades possíveis entre os
pressupostos adotados com relação à distribuição das explosões. Os
pressupostos dizem respeito ao número de explosões no solo, a baixa
altura e a grande altura, à distribuição de potências das bombas, etc.
Para mim, esse grau de concordância é bastante expressivo. Ao
incluir nos cálculos as áreas críticas do Hemisfério Norte, o grupo de
Knox obteve números na faixa de 40 a 100 rems. E, em comunidades
informais, Knox e seus colegas do Laboratório Livermore sugeriram que a
contribuição das doses internas poderia ser algo maior do que a admitida
pelo grupo TTAPS. Isso tenderia a reduzir a talvez a metade a
discrepância inicial entre os resultados do TTAPS e os do LLNL com
respeito à dose de radiação gama nas latitudes médias do Hemisfério
Norte.
Finalmente, quero colocar em perspectiva o número a que Paul
Ehrlich se referiu ontem ao falar nos estudos dos biólogos. Lembrem-se
de que os biólogos consideraram um cenário de 10.000 megatons, e que
o número mais alto a que chegaram, 500 rems em cerca de 30% da área
continental do Hemisfério Norte, resultou de incluir-se como fator a
precipitação a curto prazo oriunda dos penachos. de explosões isoladas.
É claro que um cenário de 10.000 megatons envolve um grande número
de explosões. Esses números são perfeitamente coerentes em método e
em contexto geral com os outros números aqui mencionados.
Repetindo: tanto os números do TTAPS como os de Knox
representam tentativas de calcular não a precipitação à curto prazo dos
penachos individuais de milhares de armas detonadas, mas a
precipitação a médio prazo ocorrente entre alguns dias e um mês. Esse
tipo de precipitação é a que foi mais desprezada em cálculos anteriores.
Essa precipitação da escala intermédia de tempo contribui
substancialmente para a dose total.
Knox e seus colegas calcularam um número terrificante para uma
hipótese não considerada no estudo TTAPS. A do que aconteceria se as
instalações de força nuclear do Hemisfério Norte - reatores, usinas
de reprocessamento e depósitos de rejeitos - fossem deliberadamente
alvejados com armas de poder suficiente para vaporizar esses
repositórios de materiais nucleares. A resposta é uma contribuição
adicional à dose de exposição corporal nas latitudes médias de 200 a 300
rems, o que representa uma cifra realmente atordoante.
DR. RICHARD P. TURCO (membro do painel): Tratarei em termos
gerais de alguns aspectos dos incêndios produzidos num ataque nuclear.
Um dos efeitos mais impressionantes de uma explosão nuclear é a sua
capacidade de queimar e carbonizar uma vasta área à sua volta. Cerca
de um terço do total da energia de uma explosão nuclear a baixa altura é
emitido pela bola de fogo em forma de uma intensa pulsação de "luz de
bomba". Sob o aspecto espectral, essa luz é muito semelhante à luz
solar, salvo pelo fato de ser altamente concentrada. Por exemplo, a uma
distância de 10 quilômetros de uma explosão aérea de 1 megaton a baixa
altura, o brilho da bola de fogo atingiria 1.000 vezes o do sol em um ou
dois segundos, para em seguida enfraquecer rapidamente. Mas nesse
breve intervalo, tecidos, papel e outros materiais irradiados pela luz de
bomba seriam calcinados e se inflamariam. A pele exposta sofreria
queimaduras de terceiro grau.
O único emprego bélico de armas nucleares ocorreu em Hiroshima
e Nagasaki em agosto de 1945. Duas bombas relativamente pequenas
na faixa de 10 a 20 quilotons de força explosiva - foram detonadas no ar
sobre os centros daquelas cidades. O que podemos dizer sobre as
características dos incêndios nucleares urbanos com base nas
experiências japonesas? Primeiro, as áreas queimadas foram muito
extensas: cerca de 13 quilômetros quadrados em Hiroshima e de 7
quilômetros quadrados em Nagasaki. Dentro das zonas de fogo, a maior
parte dos materiais combustíveis foi consumida. Enormes penachos de
fumaça ergueram-se acima dos incêndios, e na direção do vento caíram
chuvas negras oleosas. Segundo uma narração, em Hiroshima "a
temperatura caiu rapidamente em meio à chuvarada, e em pleno verão
as pessoas tremiam de frio". Isso sugere que já de início houve um forte
efeito sobre a luz e o aquecimento, com sensível queda de temperatura
sob o penacho de fumo do incêndio.
As fotografias das duas cidades ilustram graficamente a imensa
área que pode ser reduzida a cinzas e escombros por uma bomba
nuclear mesmo pequena.
Em Hiroshima e Nagasaki, vários efeitos nucleares concorreram
para o vulto dos incêndios. A luz de bomba provocou em vários pontos a
combustão com ou sem chamas de materiais diversos numa extensa
área. O jato de ar da explosão apagou alguns desses focos primários,
mas ateou incêndios secundários espalhando detritos incandescentes,
derramando combustíveis e produzindo fagulhas. A geração de incêndios
em seguida a um terremoto é muito semelhante à geração dos incêndios
secundários produzidos por uma explosão nuclear. O pé de vento
também destroçou estruturas, espalhou materiais inflamáveis e impediu
combate eficiente ao fogo causando baixas nas equipes, estrago de
equipamentos, ruptura de encanamentos de água e obstrução de ruas. A
bola de fogo nuclear em ascensão produziu atrás de si uma tiragem, e a
forte circulação assim estabelecida ativou as chamas.
Os efeitos observados das explosões nucleares e incêndios no
Japão corroboram a nossa concepção das consequências de um ataque
nuclear maciço. É perfeitamente razoável extrapolar a destruição
registrada em Hiroshima e Nagasaki para figurar a produzida num ataque
contra uma cidade moderna muito maior. Essa extrapolação também se
justifica através de avaliações teóricas detalhadas - efetuadas por órgãos
de governo - dos efeitos de explosões nucleares em grandes centros
urbanos. Deve-se notar que as tempestades ígneas da Segunda Guerra
Mundial em Hamburgo, Dresda e outras cidades alemãs pressagiam a
ferocidade dos incêndios nucleares que ocorreriam em metrópoles
modernas. Contudo os incêndios prefigurados numa guerra nuclear futura
seriam numa escala inédita e muito mais intensos, deixando longe as
conflagrações da Segunda Guerra.
Há cinco estágios na evolução de um incêndio nuclear urbano. No
primeiro estágio, o relâmpago de luz de bomba vaporiza e incendeia
matérias inflamáveis numa extensa área. No segundo - o estágio de
sopro - a onda de pressão explosiva propaga-se pela cidade, derrubando
edifícios, ateando incêndios secundários e criando condições adversas ao
trabalho dos bombeiros. Neste ponto a bola de fogo começa a subir,
criando fortes correntes de convecção sobre a área incendiada. O
terceiro estágio do incêndio desenvolve-se na esteira da explosão. Em
meio à devastação geral, muitos dos pequenos incêndios iniciais crescem
de intensidade, produzindo densos penachos de fumaça. Há certas
dúvidas sobre o curso deste estágio. É possível que, na maioria dos
casos, os incêndios continuariam a intensificar-se e a propagar-se, talvez
por vários dias. Essa queima destrutiva acabaria consumindo uma grande
parte da cidade.
Nas cidades mais compactamente edificadas, poderia, ocorrer o
quarto e mais espetacular estágio - uma "tempestade ígnea". Nesta,
muitos incêndios grandes independentes se fundem numa única e
violenta massa de fogo que envolve todo o núcleo da cidade. Numa
tempestade ígnea há um rápido desprendimento de energia térmica e um
poderoso fluxo de ar acima do fogo, com ventos ao nível do solo
soprando impetuosamente para o centro com a força de um furacão. As
tempestades ígneas criam gigantescos cúmulos sobre a área incendiada.
e densas chuvas negras na direção dos ventos. No quinto e último
estágio de um incêndio nuclear urbano, só resta o esqueleto abrasado da
cidade, coberto por um manto de fumaça acre.
Estes são apenas alguns rápidos vislumbres do que poderia
acontecer logo após um ataque nuclear. Embora uma grande soma de
trabalho já tenha sido aplicada em estimar os efeitos do fogo nuclear,
entre outros por Paul Crutzen, John Birks e o grupo TTAPS, é necessário
ainda muito mais para apurar a nossa compreensão. Não obstante, todas
as informações científicas aqui referidas levam a crer que a inimaginável
destruição imediata de um ataque nuclear pode ser apenas um prelúdio
de consequências retardadas ainda mais catastróficas para os
sobreviventes.

DR. PAUL J. CRUTZEN (membro do painel): Meu interesse neste


assunto começou há cerca de três anos, quando fui convidado a escrever
um artigo para a Ambio, a revista internacional de estudos do ambiente
da Real Academia Sueca de Ciências.
Devo confessar que, ao receber o convite para pôr-me a refletir nas
consequências atmosféricas de uma guerra nuclear senti uma grande
relutância; até tentei passar adiante a incumbência. Mas a editora-chefe,
Jeannie Peterson, insistiu em que eu escrevesse a respeito, e eu por fim
capitulei e passei a trabalhar no tema, junto com o Dr. John Birks.
Começamos, por reexaminar a questão da perturbação do ozônio.
Sabia-se pelo estudo de 1975 da Academia Nacional de Ciências dos
Estados Unidos que haveria empobrecimento de ozônio quando os óxidos
de nitrogênio produzidos por explosões nucleares atingissem a
estratosfera. Depois disso, porém, viemos a verificar que os óxidos de
nitrogênio, embora destruam o ozônio na estratosfera, quando
depositados na troposfera têm o efeito oposto, produzindo ozônio. Foi
este o primeiro ponto por nós considerado. Quando NO e NO2 entram
em ação, a oxidação do monóxido de carbono com duas moléculas de
oxigênio dá origem a CO2 e ozônio como produtos finais.
Isso constituía uma importante modificação em relação ao que se
conhecia a partir do relatório de 1975. Tendo conseguido assim alguma
coisa sobre que trabalhar, estabelecemos novas estimativas da formação
de ozônio na troposfera pelas reações do smog anteriormente
mencionadas nesta Conferência.
Enquanto esse trabalho prosseguia, voltamos também nossa
atenção para a absorção de luz solar pelo dióxido de nitrogênio, que é
parte do esquema. Apuramos que os resultados eram significativos.
Entretanto, trabalhando nesse assunto, ocorreu-nos de repente que no
caso de ataques a cidades, pressuposto no cenário de guerra nuclear
elaborado pela Ambio, seriam ateados inúmeros incêndios. O fumo,
naturalmente, invadiria a atmosfera. E assim passamos a raciocinar
sobre a absorção de luz solar pelas partículas de fuligem negra em
suspensão.
A ideia ocorreu-nos apenas três meses antes da data aprazada
para a entrega do artigo à Ambio. Havíamos levantado uma questão
momentosa a respeito da qual tínhamos pouquíssimas informações,
elevamos cerca de dois meses à procura de estudos que tratassem do
problema. Não encontramos nenhum (sabemos hoje que nada existia na
literatura). A princípio isso deixou-nos muito, nervosos. Imaginamos que
os militares já deviam ter investigado o assunto, mas que não teríamos
acesso às conclusões. Não somos especialistas em física de aerossóis e
transferência de radiação; mesmo assim, resolvemos enveredar por esse
rumo. Na primeira fase da análise, examinei principalmente um fenômeno
de que possuía algum conhecimento: incêndios florestais. Juntamente
com alguns colegas, eu andara pesquisando efeitos atmosféricos de
incêndios florestais nas regiões tropicais do Brasil.
Estimamos a quantidade de fuligem que seria produzida numa
guerra nuclear. Para grande surpresa nossa, verificamos que a fumaça e
fuligem dos incêndios interceptaria uma grande porção da luz solar que
normalmente chega à superfície da Terra.
Darei ciência aos senhores de alguns resultados de outro estudo
que realizei com o Dr. Ian Galbally da CSIRO na Austrália, em que
procuramos estimar a quantidade de fumaça que seria produzida por
incêndios urbanos e industriais. Embora na memória original de Crutzen-
Birks esse ponto fosse mencionado como potencialmente de enorme
importância, estes novos resultados não constaram daquele trabalho.
No novo estudo, o Dr. Galbally e eu consideramos a coagulação e
as propriedades ópticas das partículas de aerossol. As partículas que nos
interessam são principalmente as da faixa compreendida entre um
décimo de micro e um micro. Em sua maior parte, as partículas
produzidas por incêndios florestais têm inicialmente cerca de um décimo
de micro de diâmetro. Por coagulação, elas aumentam de tamanho.
Enquanto não ultrapassam um micro, são eficientes no bloqueio da luz
solar; e as partículas dessa faixa de tamanho são as que persistem por
mais tempo na atmosfera. Calculando as propriedades ópticas efetivas
das partículas em função das suas dimensões (relação entre os
tamanhos das partículas e os comprimentos de onda), aplicamos fatores
de eficiência medidos para absorção e dispersão da luz. Consideramos
também a coagulação de partículas, pois quando estas se agregam
tornam-se menos eficientes por grama de material em absorver e
dispersar a luz.
Ao calcular a quantidade de material que queimaria no caso de
incêndios em cidades, admitimos que um pulso de calor de 20 calorias
por centímetro quadrado seria suficiente para iniciar incêndios extensos.
Pode ser uma estimativa moderada. Coincide com a experiência no caso
de Nagasaki, mas no de Hiroshima um pulso de calor da ordem de
apenas 7 calorias por centímetro quadrado foi suficiente para atear
incêndios em massa.
Nossos cálculos, baseados no cenário de guerra nuclear da Ambio,
mostram que mais ou menos meio milhão de quilômetros quadrados de
cidades queimariam. Admitiu-se que a massa de matérias combustíveis
em cidades fosse da ordem de 40 quilos por metro quadrado. Parece-me
que esse valor foi consideravelmente subestimado, pois na maior parte
das grandes cidades, pelo menos no leste dos Estados Unidos e na
Europa, a massa de matérias combustíveis deve ser em torno de 200
quilos ou mais por metro quadrado.
Admitiu-se também que só metade do material queimaria, porque o
sopro das detonações apagaria incêndios. Como esse sopro também
pode atear outros incêndios, esta é uma área de incerteza. Em razão
dessa indeterminação, é possível que tenhamos calculado por baixo. Isto
reflete uma decisão consciente que adotamos no trato da questão.
Mesmo partindo de hipóteses moderadas, os resultados são tão
impressionantes que não há risco de exagero, principalmente quando
demonstrando a importância de um estudo desse alcance. Nossa
intenção era evitar que as nossas estimativas pecassem por excesso. No
total, nossa análise mostrou uma produção de 300 a 400 milhões de
toneladas de fumaça, das quais 30% seriam de carbono elementar, que
absorve fortemente a luz (Quadro 1).

Nosso estudo indica que na faixa situada entre 30 e 60 graus


de latitude norte, onde de início ocorreriam os incêndios (área total de
aproximadamente 6 x 10 elevado a 13 metros quadrados), praticamente
nenhuma luz solar penetraria. A luz solar ao nível do solo seria menos de
um milionésimo da normal.
Em seguida, a fumaça seria transportada em grandes extensões,
da troposfera, e depois de um mês cobriria a maior parte do Hemisfério
Norte. Entrando na atmosfera, as partículas têm uma vida de 10 a 30
dias, e quando alcançam a estratosfera a sua duração é ainda maior,
resultando em diferentes graus de transmissão da luz solar à superfície
da Terra.
Nossos cálculos mostram que ao fim de um mês, considerando uma
vida de 30 dias das partículas em suspensão na atmosfera, e também o
efeito da coagulação, não mais que 10% da luz solar alcançariam o solo.
Com persistência mais curta das partículas, é claro, a quantidade de luz
atingindo a superfície seria maior. Mas mesmo nesses casos, de 10 a
20% da luz solar seriam interceptados.
Inversamente, se a persistência das partículas em suspensão fosse
maior, a situação seria muitíssimo pior. Neste ponto eu encerro a minha
intervenção, pois o grupo TTAPS dispõe dos modelos para prosseguir
daqui. Eles já apresentaram os seus impressionantes resultados, e com
relação a esse trabalho eu nada tenho a criticar. São especialistas de alta
competência em pesquisas climáticas, e dispõe dos melhores modelos no
campo da radiação. Por isso, suas conclusões devem ser vistas com
grande seriedade.

DR. GEORGIY S. GOLITSYN (membro do painel): Há cerca de


meio ano, pediram-me que refletisse nas consequências atmosféricas e
climáticas de um conflito nuclear global.
Por muitos anos eu me ocupei de estudos planetários e participei
nos programas espaciais da União Soviética para Marte e Vênus.
Dediquei cerca de um ano e meio ao estudo das tempestades de poeira.
As tempestades de poeira de Marte originam-se numa faixa
bastante estreita, temperada, de latitudes do hemisfério sul do planeta.
Em poucas semanas uma tempestade de poeira espalha-se sobre o
planeta inteiro. Esse efeito de expansão deve-se principalmente à forte
realimentação não linear. A luz solar é absorvida pelas nuvens de poeira,
aquecendo a atmosfera no seu interior, ao passo que nas regiões
adjacentes a atmosfera é limpa e permanece fria. Em consequência, cria-
se uma circulação local de mesoscala que concorre para espalhar a
nuvem por sobre todo o globo com grande rapidez.
O próximo membro do painel irá mostrar como isso atua nos
modelos de circulação geral. Mas os modelos devem ser verificados, e eu
penso que o exemplo de Marte serve bem para aferir as nossas
previsões.
O exame dos resultados do estudo, marciano suscitou esta
pergunta: Que importância tem isso para a humanidade? Vemos agora
que eles servem a uma necessidade básica: têm relação com a nossa
sobrevivência. Mostram o que poderia acontecer.
Durante uma tempestade de poeira a temperatura cai
consideravelmente; isto foi registrado por sondas Viking ao longo de
vários anos na superfície de Marte. Com a chegada de uma tempestade
de poeira a temperatura baixa entre 10 e 15ºC. Nosso modelo simples
mostra claramente essa queda de temperatura.
Com o advento de tempestades de poeira, o gradiente vertical de
temperatura da atmosfera marciana torna-se muito estável. A atmosfera
torna-se quase isotérmica. E isso tem uma profunda influência na
estrutura da circulação geral. Com o aumento da estabilidade estática, a
chamada instabilidade baroclínica da atmosfera, responsável pela
formação de ciclones, é amortecida. Na atmosfera limpa de Marte os
ciclones são muito regulares, muito mais regulares que na Terra. Mas
quando chega a poeira, os ciclones deixam de existir, em conformidade
com a teoria. É de esperar que o mesmo acontecesse na Terra, com a
nuvem de fumaça e pó cobrindo o nosso planeta.
Como foi mencionado por Carl Sagan, eu tenho algumas
concepções sobre como e por que uma nuvem dessa espécie poderia
influir seriamente no ciclo hidrológico. Esse ciclo é importantíssimo - e
não só para nós seres humanos - porque continuamente recicla o
suprimento de água da Terra. E é principalmente pelas chuvas que a
poeira, fuligem e outros aerossóis são eliminados da atmosfera.
No caso da formação de uma nuvem nuclear de fumaça e poeira, o
que sucederia ao ciclo hidrológico? Haveria muito maior estabilidade
estática - um gradiente quase isotérmico - e até mesmo inversões. Com
isso, o ritmo de trocas de água entre a superfície e a atmosfera por efeito
de calor poderia ser seriamente afetado. Isto está bem claro, porque a
micrometeorologia da camada limítrofe é bem conhecida.
Há uma outra observação que eu fiz quando estudava as
tempestades de poeira, há uns 10 ou 12 anos. A atmosfera, quando
carregada , de partículas pesadas, como poeira, adquire estabilidade
adicional porque a poeira é mantida em suspensão pelas turbulências.
Deste modo a estabilidade atmosférica é aumentada, reduzindo
grandemente as trocas de calor e água com a superfície subjacente.
Por esta simples razão, haverá menos umidade absoluta, isto é,
menos vapor de água na atmosfera. A atmosfera se aquecerá, como foi
demonstrado por Carl Sagan, e como o nosso modelo também mostra.
A umidade relativa da atmosfera diminuirá consideravelmente, e as
condições necessárias à condensação de gotículas de água estariam
praticamente ausentes.
As condições de condensação seriam ainda menos favoráveis numa
atmosfera densamente carregada de partículas de aerossol. A
competição entre os centros de condensação, se os dois primeiros
efeitos estivessem operando, impediriam as gotículas de água de atingir
as dimensões de gotículas de chuva.
Outro efeito climático potencial que me ocorreu relaciona-se com a
diferença de temperatura entre os mares e os continentes. Os mares não
esfriariam tanto quanto os continentes, e assim se conservariam mais
quentes que estes. Isto poderia resultar numa circulação do tipo da
monção, no caso a monção de inverno.
Eu concordo com as pessoas que disseram aqui haver razões para
esperar muitas outras consequências negativas que ainda não nos
ocorreram.

DR. STEPHEN H. SCHNEIDER (membro do painel): Eu gostaria de


falar-lhes sobre "solidez". É uma palavra que os senhores ouviram várias
vezes nesta Conferência, principalmente na sessão de perguntas e
respostas. Refere-se ao fato de que os cálculos resistem a críticas.
Os senhores também ouviram Paul Crutzen, Carl Sagan e outros
declararem que houve em cada um dos elementos grandes incertezas,
as quais se traduziram em divergências com respeito a detalhes, mas em
concordância quanto aos princípios gerais. "Como é possível?", ouvi
várias pessoas murmurarem no auditório. Por isso abordarei esse ponto.
Mostrar-lhes-ei também os pressupostos básicos adotados num
modelo tridimensional de cálculo que desenvolvemos. Começamos com
o nosso modelo de circulação geral, e introduzimos nele um aerossol de
fumaça. O valor que aplicamos é de 200 milhões de toneladas métricas,
distribuídas uniformemente entre 300 e 700 de latitude norte. Esse valor
baseia-se no "caso de referência" do último estudo da Academia Nacional
de Ciências, presidido por George Charrier. Essa quantidade de fumaça
leva a uma profundidade ótica de absorção igual a três.
A profundidade ótica é um valor determinado pela quantidade de
partículas em suspensão na atmosfera no trajeto de um feixe luminoso
diretamente incidente. Nossa profundidade ótica de absorção de três foi
aplicada a uma faixa entre 30 e 70 graus de latitude norte. Se a nuvem
de fumaça cobrisse o hemisfério inteiro, a profundidade ótica seria cerca
de 1,5. E se certos processos, de que falarei adiante, fizessem a fumaça
espalhar-se globalmente sem nenhuma forma de eliminação, a
profundidade óptica seria da ordem de 0,7.
Diria alguém: "Então o que há de sólido? A profundidade óptica
parece estar diminuindo muito rapidamente." Mas agora deve-se
considerar a quantidade de luz que passaria; é o que se chama
transmissão. Como os raios do sol têm uma trajetória oblíqua, o ângulo
típico multiplica o percurso dos raios por dois. Assim, para uma
profundidade ótica de absorção igual a três entre 30ºN e 70ºN, apenas
cerca de 0,2 a 1% da luz do sol atravessaria a nuvem de fumaça no
cenário de latitudes médias, o que quase certamente resultaria em
escurecimento e frio, como foi dito. Em base hemisférica, passariam
cerca de 5% da luz solar, pois no Hemisfério Norte 95% seriam
absorvidos pela nuvem de fumaça. Isto é perfeitamente coerente com o
cenário de referência do TTAPS.
Em base global, 200 milhões de toneladas de fumaça resultam em
que a transmissão seria da ordem de 25%, significando que 75% da luz
solar seriam absorvidos acima da superfície. Isto ainda implica um
distúrbio climático de grandes proporções.
Os resultados mostram-se sólidos porque o valor de 200 milhões de
toneladas métricas adotado para a quantidade total de fumaça está longe
de representar o pior caso; um caso pior pode envolver uma quantidade
várias vezes maior de fumaça e pó. Há quem argumente que processos
de eliminação e outros fenômenos poderiam reduzir esse valor. No
entanto, dada a natureza exponencial da profundidade ótica, fica ainda
uma boa probabilidade, pelo menos em extensas áreas do Hemisfério
Norte, de que a maior parte da luz solar seria absorvida acima da
superfície durante as primeiras semanas depois dos incêndios.
O que significam essas profundidades óticas de absorção no cálculo
de um modelo de clima? Existem diferenças entre modelos de uma, duas
e três dimensões, e o tempo não me permite abordar mais que um ou
dois detalhes dessas diferenças. Os modelos unidimensionais usados nos
relatórios TTAPS supõem a atmosfera passiva, isto é, que basicamente
ela fica como está e irradia energia para cima e para baixo. Introduz-se a
fumaça, ou a poeira, e calculam-se as temperaturas com base na troca
de energia radiante. O que acontece no mundo real, é claro, é que a
fumaça e a poeira se dispersarão absorvendo energia solar que
modificará as temperaturas atmosféricas, o que, por sua vez, causará
uma perturbação nos movimentos da atmosfera, que transportarão a
fumaça em diversas direções. Isso pode agravar ou reduzir os efeitos
climáticos; isto é, pode produzir realimentação negativa ou positiva dos
resultados do modelo de clima. O que agora podemos fazer com o nosso
modelo tridimensional é contar apenas metade da história. Podemos
introduzir a fumaça, que então perturba os movimentos; podemos
observar como os movimentos são perturbados, como isso influi na
temperatura e a probabilidade de a fumaça ser transportada para fora da
zona de guerra. Infelizmente, nem nós do NCAR (Centro Nacional de
Pesquisas Atmosféricas) nem ninguém mais foi ainda capaz de tomar
essa fumaça e transportá-la de um lado para outro no modelo de modo
realista, o que, como eu disse antes, poderia melhorar ou piorar a
situação. Falarei agora de alguns resultados de modelo que dão margem
a especulações quantitativas com relação a uma e outra possibilidade.
Trabalhando com um modelo tridimensional, meus colegas Curt
Covey e Starley Thompson e eu consideramos primeiro um caso de
julho em que 200 milhões de toneladas métricas de fumaça se
distribuíssem uniformemente entre aproximadamente 30 e 70 graus de
latitude no Hemisfério Norte. Verificamos que haveria perturbações
importantes da temperatura da atmosfera. Haveria altas temperaturas
atmosféricas no plano superior da nuvem, e intenso esfriamento abaixo
dela, próximo à superfície, nas áreas continentais. A temperatura na
nuvem aumentaria da ordem de 80ºC, e o ar abaixo da nuvem ficaria
mais frio. Nesse caso a temperatura máxima na alta atmosfera seria de
uns 300 graus Kelvin (27ºC) e ocorreria entre 50 e 70 graus de latitude e
a uns 8.000 metros de altitude. Também isto é coerente com os
resultados do TTAPS, ainda que os números sejam diferentes, porque o
nosso modelo é sazonal e tridimensional, levando em conta os efeitos
dos ventos, e o TTAPS é um modelo unidimensional, com base em
médias anuais e sem efeitos dos ventos.
Vejamos agora as temperaturas superficiais, ainda para um caso de
julho. Temos três ilustrações (Fig. 1). A primeira (t = 0) é o caso de
controle, representando as temperaturas normais típicas de um dia de
julho. Nas áreas hachuradas as temperaturas são inferiores a 270 graus
Kelvin ou menos três graus centígrados.
A segunda ilustração mostra o que acontece dois dias depois da
injeção de uma nuvem de fumaça entre as latitudes de 30ºN e 70ºN. Há
temperaturas de congelamento da água no noroeste dos Estados Unidos,
bem como em bolsões na Europa central, no planalto tibetano e numa
parte da URSS. O que aconteceu, naturalmente, é que a luz do sol foi em
grande parte interceptada e as temperaturas de julho caíram abaixo do
ponto de congelamento no espaço de apenas dois dias. A princípio esses
resultados nos surpreenderam, até que nos lembramos de que a
diferença de temperatura da noite para o dia é da ordem de 5 a 20ºC.
Assim, dois dias sem quase nenhuma luz alcançando a superfície da
Terra equivalem mais ou menos a quatro noites contínuas; portanto não
chega a ser tão espantoso que as temperaturas caiam tão depressa.
Figura 1: Temperatura superficial no modelo NCAR de perturbação
por fumaça: simulação de julho, em três instantes dados. t = 0 dias é o
tempo imediatamente anterior à introdução de fumaça na atmosfera. As
isotermas são traçadas de 10 em 10 graus K. As áreas com
temperaturas inferiores a 2700K (i.e., abaixo do ponto de congelamento
da água) são hachuradas. O valor máximo das isotermas na zona tropical
é de 300ºK (27ºC). (Fonte: C. Covey, S.H. Schneider e S. L. Thompson,
"Global Atmospheric Effects of Massive Smoke Injections from a Nuclear
War: Results from General Circulation Model Simulations", Nature, Vol.
308, pp. 21-25, março de 1984.)

A terceira ilustração representa a situação 10 dias após a


introdução da fumaça na atmosfera do modelo. A essa altura o frio se
espalhou e a temperatura caiu bem abaixo do ponto de congelamento em
regiões extensas da América do Norte e da Eurásia. Na Europa faz
menos frio que no Dia 2, em parte porque a perturbação resultou em
ventos mais fortes do mar para a terra, o que tende a reduzir o efeito de
esfriamento. Em média, as temperaturas na superfície das terras caem
20ºC em julho, e talvez metade disso no caso de abril.
Também usamos o modelo para estudar as alterações dos ventos.
Considere-se, por exemplo, o mês de abril (ver Fig. 2). Em condições
normais, o ar sobe na faixa do equador e zona tropical, depois inflete
para fora e desce nas zonas subtropicais dos dois hemisférios. Essa é a
maneira normal, e recebe o nome de circulação tropical de Hadley. Mas
16 a 20 dias depois do aparecimento da fumaça, o comportamento dos
ventos seria muito diferente. Daqui a pouco, Vladimir Aleksandrov irá
mostrar-lhes uma simulação russa que é bastante semelhante à nossa
no NCAR.
Em contraste com a circulação normal de Hadley, o comportamento
alterado dos ventos de julho, ou de abril, seria como o de um outro
planeta. Em razão das mudanças na circulação atmosférica,
provavelmente a fumaça subiria nas latitudes médias e em seguida seria
arrastada para o Hemisfério Sul. Sem dúvida isto vem reforçar
quantitativamente certas especulações do ano passado de que a fumaça
ou poeira seria carreada para o alto, atingindo a estratosfera e passando
para o outro lado do equador. Infelizmente no modelo NCAR a fumaça
não interage com os ventos, de modo que é difícil dizer se a nuvem se
espalharia mais depressa ou mais devagar do que indicam os nossos
mapas de ventos alterados. Também, a resolução do nosso modelo é
muito grosseira para permitir uma simulação realista dos efeitos da
chamada "mistura de mesoscala", que poderiam remover e dispersar a
fumaça em tempos diferentes dos previstos.
Nossos estudos também mostram que as mudanças de circulação
variam consideravelmente de uma estação para outra. São muito mais
pronunciadas em julho e menos em janeiro, embora sejamos levados a
crer que uma parte da fumaça poderia ser transportada para fora das
latitudes médias do Hemisfério Norte em qualquer estação. É preciso
examinar os resultados obtidos de modelos tridimensionais com
processos interativos de radiação, remoção e transporte para chegar a
um grau razoável de segurança quantitativa. No entanto tudo que até
aqui vimos sugere que, embora os detalhes dos diversos estudos
atmosféricos das consequências de uma guerra nuclear variem, o quadro
básico de grave preocupação subsiste. E nós continuamos trabalhando
para comprovar com precisão a solidez dos resultados finais.

DR. VLADIMIR ALEKSANDROV (membro do painel): Eu gostaria de


exibir alguns dos resultados por nós obtidos com emprego de um modelo
tridimensional hidrodinâmico de clima no Centro de Computação da
Academia de Ciências da URSS. O programa de clima que usamos foi
criado alguns anos atrás. O trabalho que vou apresentar foi inspirado
pela minha participação num seminário em Cambridge em abril de 1983,
promovido pela Conferência sobre o Mundo após uma Guerra Nuclear.
Aplicando o cenário TTAPS, nós espalhamos os poluentes - fuligem
e poeira - uniformemente sobre o Hemisfério Norte no tempo zero, isto é,
imediatamente após uma guerra nuclear. A fuligem e a poeira em
suspensão absorvem energia, de modo que a nuvem de poluentes se
aqueceria; mas embaixo, próximo à superfície da Terra, haveria queda de
temperatura.
Quarenta dias depois da formação da nuvem de fuligem e poeira
(Fig. 3), a temperatura no Hemisfério Norte teria caído em 20 graus
centígrados. E ao fim de oito meses, 243 dias após o Dia 0, a baixa de
temperatura ainda seria da ordem de 10 graus centígrados.
A taxa de declínio, ou o gradiente vertical de temperatura do ar,
mostra como a temperatura atmosférica varia com a altitude. Nosso
modelo demonstrou que haveria fortes desvios da taxa normal de declínio
em seguida a uma guerra nuclear. Isto poderia alterar a circulação geral,
suprimindo consideravelmente o movimento vertical da atmosfera. O
ciclo hidrológico seria interrompido, impedindo a lavagem natural da
poeira e fuligem da atmosfera pelas chuvas.
Figura 2: Circulação atmosférica no modelo do INCAR para a
simulação de abril. As setas indicam a direção do movimento. O tempo
médio corresponde aos Dias 16 a 20. A área da carga de fumaça
introduzida é indicada pelo retângulo tracejado. São mostrados o caso de
controle (simulação sem fumaça) e o caso de perturbação (ensaio de
fumaça). O padrão circulatório normal é drasticamente alterado no caso
de perturbação (Fonte: S. L. Thompson, V. V. Aleksandrov, G. L.
Stenchikov, S. H. Schneider, C. Covey e R. M. Chervin, “Global Climatic
Consequences of Nuclear War: Simulations with Three-Dimensional
Models”, no prelo, Ambio).
Figura 3: A variação das temperaturas do ar na superfície (graus
centígrados) com a latitude, do Pólo Norte ao Pólo Sul, nos Dias 40, 243
e 378 após o começo de uma guerra nuclear.
Figura 4: Circulação atmosférica nos Dias 0 (a) e 297 (b).

Figura 5: A mudança de temperatura do ar na superfície no Dia 40.


Linhas cheias – temperatura de 0ºC ou menos. Cada isoterma representa
uma diferença de cinco graus para mais ou para menos em relação à
vizinha.

Figura 6: A mudança de temperatura do ar na superfície no Dia


243. As linhas cheias indicam temperatura de 0ºC ou menos. As linhas
interrompidas indicam temperaturas acima de 0ºC.

Também estudamos a função fluxo; Stephen Schneider já mostrou


os resultados análogos do seu estudo. Verificamos que os padrões de
circulação geral da atmosfera mudariam drasticamente: mesmo 297 dias
após a injeção da fuligem e poeira (Fig. 4b), os padrões de circulação
natural ter-se-iam alterado a um ponto tal que a fuligem e a poeira
atmosféricas produzidas no Hemisfério Norte seriam transportadas para
o Hemisfério Sul. Assim, a situação do Hemisfério Sul, incluídas as zonas
tropicais, seria tão má quanto a do Hemisfério Norte.
Num espaço de 40 dias a contar do Dia O (Fig. 5), a temperatura
superficial na parte ocidental dos Estados Unidos teria baixado em até 30
graus centígrados, no leste dos Estados Unidos em até 40ºC, na Europa
em até 50ºC, no golfo Pérsico em até 50ºC e no Ártico em até 15ºC.
Oito meses (242 dias) após a injeção de poeira e fumaça na
atmosfera, a temperatura nos Estados Unidos e na União Soviética ainda
estaria 30ºC abaixo da normal (Fig. 6). Na Arábia Saudita estaria 20ºC
abaixo da normal; na África, até 10ºC abaixo da normal. Ao fazermos
esses cálculos, nós não levamos em conta o transporte de fuligem e
poeira dos Hemisférios Norte e Sul (embora devêssemos tê-lo feito). Se
tivéssemos considerado esse efeito em nossos cálculos, a situação no
Hemisfério Sul seria ainda mais séria que a mostrada nas ilustrações.
Eu gostaria de ressaltar a importância de um certo efeito que
descobrimos quando trabalhávamos nessa simulação. Oito meses depois
do surgimento da fuligem e poeira, a parte superior da troposfera torna-
se muito quente e altitudes menores muito frias. Em consequência, os
sistemas de montanhas altas seriam submetidos a um aquecimento
intenso: o ar no planalto tibetano ficaria até 20ºC mais quente que o
normal, e nas Montanhas Rochosas até 7ºC mais quente que o normal.
Isso causaria a fusão da neve e das geleiras das montanhas,
provavelmente resultando em enchentes de dimensões continentais -
repito, para frisar: de dimensões continentais.
Agora voltamos nossa atenção para a dinâmica da função fluxo da
circulação geral. Devido às perturbações causadas pela fuligem e poeira,
o ramo sul da Célula de Hadley aumentaria de intensidade e Se
deslocaria para o sul em 35 dias a contar do Dia 0. Em consequência, a
fuligem e poeira do Hemisfério Norte seriam carreadas para o Hemisfério
Sul. Ao mesmo tempo, a intensidade do ramo norte da Célula de Hadley
de circulação geral reduzir-se-ia umas 10 vezes. A mesma tendência
continuaria até o Dia 70. Até o Dia 105, o padrão da função de fluxo
normal estaria completamente alterado.
Eu gostaria de frisar que as nossas experiências foram
extremamente simples. O meio que estudamos, o ar, é fluido, portanto
procuramos calcular como esse fluido reagiria à variação de densidade
ótica induzi da pelas consequências de uma guerra nuclear.
Foi nesta Conferência que vi pela primeira vez as ilustrações
apresentadas por Steve Schneider relativas ao trabalho feito no Centro
Nacional de Pesquisa Atmosférica. Tive grande satisfação em ver que
embora os seus experimentos sejam completamente diferentes dos
nossos - os modelos são diferentes e os computadores também - os
resultados são basicamente os mesmos.

Perguntas

DR. THOMAS MALONE: Este painel mostrou que existem análises


científicas amplas e diversificadas que corroboram a apresentação de
Carl Sagan.

DR GEORGE M. WOODWELL: Estamos todos impressionados pelo


caráter óbvio dessas revelações. Ao mesmo tempo que impressionado,
sinto-me um tanto curioso quanto ao porquê de não termos sabido isso
antes. É raro alcançar uma tal unanimidade entre a comunidade
científica, e isto deve significar que estamos tratando de matéria de
senso comum. Por que, então, terão sido precisos 38 anos para que
essa brilhante e capacitada comunidade científica se pusesse de acordo
num tema de tanta importância e magnitude?

MALONE: Estávamos à espera de que um Paul Crutzen nos


estimulasse as ideias.

JOHN STEINBACK: Se a temperatura sobe radicalmente, rompendo


o ciclo hidrológico, não ocorreria uma acumulação gradual de evaporação
na atmosfera? E após um tempo, quando as partículas de pó
começassem a assentar, não sobreviriam a certa altura, bem depois do
cataclismo, chuvas torrenciais de grande intensidade que desnudariam
por completo a vegetação?

DR. STEPHEN SCHNEIDER: Eu confio muito pouco nas projeções


dos nossos modelos além de uma ou duas semanas, simplesmente
porque eles não são interativos: não misturam a fumaça a outras coisas.
Portanto, qualquer coisa que eu dissesse seria pura especulação intuitiva.
E a resposta intuitiva que eu lhe daria é: "Depende." As temperaturas dos
mares não mudariam muito. A evaporação poderia diminuir. Nosso
modelo sugere que as camadas inferiores da atmosfera teriam maior
umidade relativa, mas menor umidade absoluta, e as camadas mais altas
muito pouca umidade e ausência de nuvens. O que aconteceria em
relação a chuvas é muito difícil de prever, se bem que, em ocorrendo
modificações de tamanha envergadura, quase tudo pode acontecer.

DR. ALAN ROBOCK (professor de Meteorologia do Departamento


de Meteorologia da Universidade de Maryland): Recentemente, Cliff Mass
e eu fizemos um estudo que, penso eu, constitui um bom análogo para o
que aconteceria com a nuvem de poeira. Nós examinamos as
temperaturas superficiais depois da erupção vulcânica do Monte St.
Helens, quando a atmosfera ficou saturada de pó por vários dias.
Verificamos que as temperaturas superficiais não baixaram, mas que
permaneceram relativamente constantes. As noites foram mais quentes
do que seriam sem a poeira, e os dias mais frios do que seria de esperar.
Interpretamos o fato como significando que a superfície estava entrando
em equilíbrio com a atmosfera saturada de pó, e que, completamente
isolada da radiação solar provinda do espaço exterior, não esfriava
porque era aquecida pela radiação infravermelha da poeira.
Eu perguntaria aos elaboradores do modelo: os senhores levaram
em consideração a radiação de ondas longas em seus cálculos? Porque
se se elimina a radiação de ondas curtas haverá, naturalmente, um efeito
de esfriamento. Mas a camada quente de poeira em suspensão deveria
produzir um efeito de aquecimento na superfície.

SCHNEIDER: Eu gostaria de comentar esse ponto. A situação de


pós-guerra nuclear não seria, a meu ver, análoga à do Monte St. Helens.
As propriedades dos aerossóis de fumaça nuclear, ao que nos é
dado observar, são tais que a opacidade ao infravermelho é uma ordem
de grandeza inferior à opacidade à luz visível. Para uma profundidade
ótica de 3 a 5 no espectro visível, a profundidade ótica no infravermelho é
menos de 1. Por isso a luz solar é bloqueada em grandes altitudes, e a
superfície ainda esfria pela irradiação de energia de infravermelho para o
espaço através da camada de fumaça. Daí resulta uma inversão
progressiva, e esta é a explicação para o esfriamento da superfície.
De fato, se houvesse dez vezes mais fumaça, talvez se evitasse um
esfriamento pronunciado da superfície, pois se a opacidade da atmosfera
ao infravermelho é suficientemente grande, a atmosfera torna-se quase
isotérmica, como no caso da nuvem de cinzas do Monte St. Helens. É
irônico que, no caso peculiar de um excesso de fumaça, o efeito de
esfriamento da superfície poderia desaparecer. (posteriormente, quando
parte da fumaça se dissipasse, o esfriamento ocorreria.) Só quando a
opacidade visível da fumaça está na faixa de 1 a 10 é que a opacidade
ao infravermelho é tão baixa que na verdade deixa de ser um fator
importante. Pelo menos é o que mostram os modelos unidimensionais de
radiação-convecção.

DR. PETER SHARFMAN (Comissão de Avaliação Tecnológica do


Congresso dos Estados Unidos): Refletindo a exposição anterior do Dr.
Sagan, não consigo perceber de que forma a quantidade de fuligem na
atmosfera responde a diferentes fatores: número de armas,
megatonagem total, ou talvez megatonagem equivalente total; ou
percentagem de explosões sobre áreas urbanas, florestas ou silos de
mísseis; ou explosões de superfície em silos de mísseis. Alguém do
painel poderia explicar como essas coisas se relacionam?

DR. RICHARD TURCO: Os valores relativos à quantidade de


fuligem são função da potência explosiva total sobre áreas urbanizadas e
sobre florestas; naturalmente, isso depende dos cenários. No estudo
TTAPS nós levamos em conta um grande número de cenários e uma
ampla gama de suposições com respeito a ataques dirigidos a cidades ou
arredores de cidades. As emissões de fuligem dependem em alto grau do
número de explosões sobre áreas urbanas, as quais contêm a maior
concentração de matérias inflamáveis que produzem a fumaça mais
escura. Não obstante, explosões sobre florestas e pastagens podem
gerar quantidades adicionais de fumaça. Outros fatores importantes são
a carga de materiais combustíveis e a probabilidade de queima, e quanto
a isto os dados disponíveis são limitados.

DR. J. ALLAN KEAST (professor de Biologia da Universidade


Queens em Kingston, Ontário, Canadá): Poderia o Dr. Schneider ou o Dr.
Aleksandrov pormenorizar o mecanismo de transferência de material do
Hemisfério Norte para o Sul? Segundo o Dr. Aleksandrov, uma
transferência substancial começaria em cerca de 35 dias. O Dr. Sagan,
se bem entendi, mencionou uma diferença de temperatura que afetaria
em grau considerável esse movimento. De acordo com o cenário que nos
foi apresentado, haveria a formação inicial de uma frente de fumaça no
Hemisfério Norte, que em seguida se deslocaria rapidamente para o Sol.
Que mecanismo determinaria isso, e o deslocamento não seria de
penachos em vez de em massa?

ALEKSANDROV: Nossos enfoques iniciais deste problema mostram


que a transferência deve refletir-se no modelo elaborado. Embora os
resultados possam até certo ponto variar, a variação deve-se a que a
transferência da nuvem de fuligem e poeira para o Hemisfério Sul
produziria resultados bastante diferentes na situação por mim
apresentada e na que foi apresentada pelo Dr. Schneider. Portanto é
essencial considerar a transferência para o Hemisfério Sul.

SCHNEIDER: O cavalheiro da Universidade Queens está


absolutamente certo; o mecanismo de transporte que encontramos não é
um movimento meridional médio de baixa velocidade. Lembre-se,
também, de que o nosso modelo não é interativo. Nós verificamos que o
movimento médio em direção ao Sul em abril e julho é da ordem de 3 a 5
metros por segundo no ramo superior da Célula de Hadley alterada, de
modo que levaria três semanas para deslocar a fuligem das latitudes
médias para a zona tropical se fosse esse o mecanismo de transporte.
O movimento médio é o resíduo de muitos jatos pequenos, e
esses jatos têm velocidades entre 20 e 50 metros por segundo. Isto
significa que feixes ou manchas de fuligem poderiam partir, por exemplo,
da costa leste dos Estados Unidos ou da Sibéria e chegar aos trópicos
em tempo bastante curto.
Nós estudamos feixes a 500 e 200 milibares (cerca de 5 e 12 mil
metros de altitude, respectivamente). Aliás, em um dos casos que
estudamos, uma mancha de fumaça poderia ter alcançado a Austrália em
mais ou menos três dias. É certo que isto não bastaria necessariamente
para cobrir de fumaça todo o Hemisfério Sul, mas se grandes nuvens de
fuligem fossem transportadas milhares de quilômetros e persistissem
ainda que por poucos dias, poderiam resultar quedas bruscas de
temperatura no espaço de alguns dias. O quadro geral seria a princípio
bastante descontínuo; haveria um grande número de feixes, que
acabariam por misturar-se.

DR. PAUL CRUTZEN: De início, nas nuvens de fumaça,


principalmente na parte superior das nuvens, o aquecimento pela
radiação solar seria tão desmedido que se formariam sistemas locais de
circulação intensa. Eu calculei uma taxa de aquecimento de 40 graus por
hora na parte de cima das nuvens. Pode-se imaginar o que aconteceria
então: a fumaça subiria rapidamente para a alta atmosfera.

ALEKSANDROV: Os penachos projetados da nuvem de pó e


fuligem podem formar gradientes de temperatura fortemente acentuados,
dependendo da latitude. No caso mencionado pelo Dr. Schneider, o
quadro será absolutamente tridimensional, e só modelos tridimensionais
podem resolver essas questões.

DR. MARTIN H. EDWARDS (diretor do Departamento de Física do


Colégio Real Militar do Canadá; ex-presidente da Federação Canadense
da Natureza): Os que não querem acreditar nos resultados destes
estudos irão recorrer ao que esperam seja uma única falha fatal na
argumentação, e eu estou certo de que alegarão o fato de já ter havido
milhares de testes de armas nucleares. Houve até casos de um único
teste produzindo 58 megatons, e não ocorreu nenhum efeito climático
catastrófico. Acho que deve ser esclarecida a improcedência dessa
crítica potencial, e pediria ao painel que o fizesse.

DR. JOHN HOLDREN: Como foi dito várias vezes ontem, os testes
realizados, embora somando uma megatonagem bastante considerável,
representam eventos isolados e foram todos levados a efeito em
condições que não produziram grandes incêndios. Um dos pontos
capitais que deve ser repetidamente enfatizado é a fonte primária da
diferença entre os cálculos apresentados nesta Conferência e cálculos
anteriores. Os novos cálculos levam em conta os incêndios em grande
escala e a grande produção de fuligem que, naturalmente, não ocorreu
nas circunstâncias de nenhum teste nuclear, mas que ocorreria numa
ampla gama de circunstâncias em caso de uma guerra nuclear real.
DR. JOSEPH ROTBLAT (professor emérito de Física da
Universidade de Londres; Conferências do Conselho Pugwash sobre
Ciência e Assuntos Mundiais): Que hipóteses foram adotadas com
respeito à duração do conflito nuclear? Levaria uma hora, dias,
semanas? E qual a sensibilidade do seu modelo à duração do conflito?

TURCO: Nossa suposição foi de que uma guerra nuclear duraria um


tempo muito curto, da ordem de dias. Embora haja outros conceitos de
guerra nuclear, em que o conflito se estenderia por meses, consideramos
mais realista supor que a troca de ataques seria bastante breve. O efeito
de uma guerra prolongada dependeria da duração absoluta. Se o conflito
durasse uma semana, os efeitos óticos e climáticos seriam
provavelmente piores porque o material seria mais extensamente
dispersado pelos ventos atuantes durante um maior período de injeção.
Se o conflito se estendesse por meses ou anos - se é que um tal
conceito de guerra nuclear sequer mereça ser considerado -, os efeitos
do inverno nuclear seriam possivelmente reduzidos, porque haveria
tempo para que nuvens isoladas de fumaça e poeira fossem eliminadas
por processos naturais antes que outras fossem injetadas, e não
ocorreria a acumulação de detritos.

ROTBLAT: Minha observação é que, no seu cenário, 43% das


explosões são no ar. Ora, se se começasse por outras armas que
produzissem uma certa carga de partículas, especialmente na atmosfera,
e depois ocorressem explosões no ar, os produtos seriam aprisionados
na troposfera e poderiam resultar ulteriormente numa precipitação
atmosférica maior. Também devemos considerar as informações
apresentadas pelo Dr. Golitsyn, que podem contrabalançar este aspecto.
Os cálculos aqui apresentados dão um nível de radiação secundária
de cerca de 50 rads. Esses 50 rads, em raios gama externos, distribuir-
se-iam por um espaço de tempo mais longo. Portanto não produziriam
sintomas sérios. A taxa de degeneração das células sanguíneas é maior
do que a taxa em que seria recebida a radiação. Assim, creio que não
devemos incluir esse efeito como causa de afecções iniciais. Por quê?
Porque há efeitos sérios à longo prazo - efeitos carcinogênicos e
possivelmente genéticos. A mim me parece que os efeitos aqui descritos
já são tão sérios que a consideração dos efeitos da radiação pouco
acrescenta às conclusões.

TURCO: O comentário sobre a exposição à precipitação radioativa é


justo. Nós só enfatizamos os valores da exposição retardada à radiação
porque a sua ordem de grandeza é maior que a anteriormente estimada.
Isto faz ressaltar a necessidade de contínua reavaliação e atualização
dos efeitos potenciais de uma guerra nuclear.

JOHN A. HARRIS (Clube de Roma): Em sua exposição, o Dr. Sagan


disse que se A atacasse e destruísse B, A seria apanhado em sua
própria rede. Eu gostaria de saber o que o painel pensa a respeito, pois
isso tem implicações políticas tremendas, como os senhores obviamente
sabem. Também gostaria de saber se os soviéticos pensam do mesmo
modo.

MALONE: Haverá alguém neste painel que discorde da afirmação


de Carl Sagan de que um primeiro ataque seria de fato suicida? Não foi o
que você disse, Carl?

SAGAN: Alguns primeiros ataques não seriam suicidas. Um primeiro


ataque pode não ultrapassar o limiar. Mas a essência da maioria dos
cenários de primeiro ataque, como eu os entendo, é neutralizar
decisivamente uma fração considerável da capacidade de retaliação do
outro lado. De pronto isto sugere o emprego de grande potência
explosiva, que excederia o limiar.
Há pouco, George Woodwell colocou uma questão importante, pois,
pelo que sei, os conhecimentos básicos de física e química necessários à
previsão do inverno nuclear já existiam entre 10 e 20 anos atrás. Afinal,
existem grandes departamentos nos órgãos de defesa dos Estados
Unidos e da União Soviética, com verbas de centenas de milhões de
dólares por ano, cuja responsabilidade é analisar as consequências de
uma guerra nuclear. Ademais, é função deles informar ao presidente dos
Estados Unidos e ao presidente da União Soviética o que pode acontecer
se tais ou quais linhas de ação forem seguidas.
É portanto uma boa pergunta, para a qual também eu gostaria de
ter a resposta: por que não era tudo isso do conhecimento dos órgãos de
defesa 20 anos atrás?

SCHNEIDER: Eu gostaria de responder à pergunta sobre se nós do


painel concordamos com a declaração de que um primeiro ataque seria
suicida. Vários dos doutores meus colegas e eu discutimos este ponto; é
o que chamamos de "cenário de feedback de primeiro ataque", em que o
atacante é vencedor durante duas semanas, até que a nuvem nuclear de
fumaça e poeira volta sobre ele. Mas, naturalmente, a afirmação só vale
se a escala do primeiro ataque for suficientemente grande para
ultrapassar o limiar de que falamos aqui. Só que não devemos tomar o
termo "limiar" muito literalmente, pois não existe uma linha mágica
subitamente cruzada quando se passa dos 100 megatons. Como foi dito
ontem, os números correspondentes aos efeitos de superesfriamento
baseiam-se em toda uma série de suposições; e se estas forem
exageradamente otimistas, o "limiar" para efeitos climáticos sérios pode
situar-se abaixo de 100 megatons. Em suma, eu vejo a questão dos
efeitos climáticos como um espectro contínuo com probabilidade
decrescente de consequências agravadas, isto é, quedas rápidas
localizadas de temperatura no extremo mais favorável do espectro, e
inverno nuclear global prolongado no outro extremo.
Mas se a megatonagem total atingir ou ultrapassar as vizinhanças
do chamado limiar, e muitas cidades forem atingidas, não há motivo para
duvidar que o atacante sofra os mesmos efeitos ambientais de escuridão
e frio que o atacado.

DR. KARL Z. MORGAN (professor-adjunto do Departamento de


Física e Astronomia da Universidade Estadual dos Apalaches; antes, do
Laboratório Nacional de Oak Ridge): Com respeito à radiação, a ênfase
parece ter sido colocada na exposição corporal, talvez em relação direta
com a leucemia. Contudo dever-se-ia dar mais atenção às afecções
malignas que atacariam órgãos específicos, como os pulmões, o cólon e
a tiroide.
Eu gostaria de comentar outro ponto relativo à radiação. Ouvimos
várias vezes que a dose letal para 50% dos indivíduos expostos (LD50)
seria em torno de 400 a 450 rems. No entanto, havendo lesão do sistema
imunológico ou do sistema reticular do endotélio, há bons motivos para
crer que a LD50 seria por volta de 50 a 100 rems.
Por enquanto há poucos dados em relação ao homem; só há
registro de 10 casos de morte por síndrome de radiação, e num desses
casos, a dose estimada de radiação foi de menos de 200 rems.

HOLDREN: Eu gostaria de frisar que o objetivo central do trabalho


apresentado nesta Conferência não foi analisar as consequências
relativamente imediatas de altas doses de radiação, tendo sido este um
dos aspectos mais exaustivamente estudados da guerra nuclear em
pesquisas precedentes. Os novos valores no tocante à exposição à
radioatividade surgiram mais ou menos como um resultado inesperado do
estudo dos efeitos retardados. Foi o cálculo da precipitação à médio
prazo, em particular, que concorreu para valores de dose total maiores
que os anteriormente estimados. Um estudo detalhado da adição da
precipitação à médio prazo às consequências já bem estudadas da
precipitação imediata exigiria uma grande soma de trabalho.
Eu concordo que as questões que o senhor levantou devem ser
examinadas. E acrescentaria que as doses de radiação são importantes
no contexto deste estudo, não apenas em termos de efeitos diretos no
homem câncer, alterações genéticas, etc. - como são de alto interesse
para o ecologista, em termos de consequências para os sistemas
ecológicos de doses de radiação na faixa de dezenas e centenas de rems
atuando em grande escala e em vastas extensões. Há muitos detalhes a
serem estudados no futuro. No entanto transcenderia os fins deste
estudo inicial entrar nos pormenores deste tema.

SRA. MYRTLE JONES (Sociedade Audubon de Mobile Bay): É com


grande satisfação que vejo o comparecimento dos soviéticos aqui e sua
participação neste evento. Minha pergunta é: seria possível uma
conferência desta natureza na Rússia, com pessoas das mais diversas
profissões discutindo este tema? E haveria a possibilidade de os seus
governantes e os nossos e os governantes da China e da Inglaterra se
reunirem em tomo de uma mesa, serem cientificados destas descobertas
e chegarem a soluções razoáveis?

DR. GEORGIY GOLITSYN: Em maio último tivemos em Moscou


uma conferência semelhante a esta, em que várias consequências -
biológicas, climatológicas e sociopsicológicas - foram debatidas. Os
trabalhos foram divulgados nas Atas da Academia de Ciências de
setembro.

SRA. JONES: Em inglês?

GOLITSYN: Por enquanto só em russo, mas eu tenho comigo


algumas cópias, caso alguém se interesse. Imaginei que poderiam ser
traduzidas neste país.
PAINEL SOBRE CONSEQUÊNCIAS
BIOLÓGICAS
DR. GEORGE M. WOODWELL (presidente do Painel sobre Efeitos
Biológicos): Em se tratando de problemas complexos como estes, que
afetam a Terra inteira, e em que a experimentação e a própria coleta de
dados são difíceis, requerem-se equipes de especialistas e equipamentos
complicados para incrementos aparentemente insignificantes de
progresso. Num mundo cada vez mais complicado, cada vez mais
intensivamente explorado, é essencial que haja muitas dessas equipes
realizando pesquisas redundantes. É esse o custo do uso intensificado da
biosfera: pesquisa e análise constantes de modo a assegurar que as
informações fundamentais, as ideias, os fluxos de perguntas e respostas
se mantenham, e a evitar surpresas, como estamos fazendo no
momento. A matéria é tão nova para os biólogos quanto para os
meteorologistas. A comunidade científica está criando um começo, uma
nova partida para um Grande Problema.
Nós congregamos um grupo de cientistas ilustres para iniciar esse
processo.

DR. JOHN HARTE (membro do painel): Todos nós dependemos dos


ecossistemas que nos cercam como um doente em tratamento intensivo
depende de frascos de soro e equipamentos médicos de sustentação de
vida. Empreender uma guerra nuclear seria como atirar uma banana de
dinamite acesa numa unidade de tratamento intensivo, rompendo as
ligações vitais que garantem a sobrevivência. Entre as funções essenciais
de sustentação de vida exercidas por um meio ambiente natural normal e
saudável está a regulação do ciclo hidrológico, que minimiza a ocorrência
de chuvas excessivas e secas prolongadas; um exemplo são as encostas
revestidas de vegetação, que moderam as enxurradas e abrandam a
correnteza dos rios. Outra dessas funções é a minoração da poluição do
ar e das águas e o tratamento de resíduos sólidos por processos naturais
atmosféricos e microbiais. Uma terceira é a moderação do clima, de novo
exemplificada pelo papel das grandes reservas de vegetação viva,
capazes de criar um microclima essencial à sua própria existência.
Nos primeiros três a seis meses após uma guerra nuclear, estas e
outras funções ecológicas seriam virtualmente suspensas. A perda de um
ano de produção agrícola será discutida por outros oradores. Quanto a
mim, quero abordar vários aspectos relacionados à água e em seguida
tecer alguns comentários gerais sobre as perspectivas de
restabelecimento à longo prazo de funções ecológicas prejudicadas.
Ao tomar conhecimento, ano passado, dos resultados do estudo
TTAPS com respeito às baixas violentas de temperatura superficial,
ocorreu-me que os reservatórios de água doce que abastecem as
populações humanas e os animais de criação ficariam congelados. Meus
cálculos mostraram que haveria a formação de uma camada de gelo de
aproximadamente um metro nas águas superficiais de regiões interiores.
Sem combustível nem eletricidade para derreter o gelo ou bombear água
de poços para a superfície, muitas pessoas e animais de criação
morreriam de sede. Os níveis reduzidos de precipitação pluviométrica
previstos agravariam o problema. Nesse contexto é oportuno observar
que os sinergismos parecem trabalhar a nosso favor nas situações
normais, e voltar-se contra nós quando nós e a natureza sofremos uma
debilitação. Outro exemplo disto: com as canalizações congeladas, não
haveria o escoamento dos dejetos, exacerbando o problema das
epidemias, já agravado pela redução das resistências às moléstias e
infecções induzida pela radiação.
O efeito de um período de escuridão prolongada em organismos
aquáticos foi estimado através de experiências em meu laboratório e de
modelos matemáticos elaborados pelos Drs. Chris McKay e Dave Milne.
Os dois tipos de pesquisa produziram resultados semelhantes. Cadeias
alimentares compostas de fitoplâncton, zooplâncton e peixes devem
sofrer grandemente com a extinção da luz. Com apenas alguns dias de
escuridão, o fitoplâncton - base da cadeia alimentar - morreria ou entraria
em estado de vida latente. Na zona temperada, em cerca de uns dois
meses no fim da primavera ou no verão, e em três a seis meses no
inverno, os animais aquáticos mostrariam drásticos declínios de
população, que para muitas espécies poderiam ser irreversíveis. Essas
estimativas (baseadas na redução da luz) provavelmente subestimam as
consequências para a vida marinha das condições de pós-guerra nuclear,
pois não levam em conta os efeitos térmicos, nem os do aumento de
turbidez das águas provocado pela erosão das costas e pela deposição
de fuligem e poeira. A sensibilidade da vida marinha à escuridão
prolongada seria provavelmente maior nos trópicos do que na zona
temperada, porque nos trópicos as reservas nutritivas são menores e as
necessidades metabólicas maiores. Nas regiões polares, onde a
adaptação a invernos escuros é uma condição de vida, a sensibilidade
seria reduzida. Os lagos de água doce tornar-se-iam altamente anóxicos
depois que a poeira assentasse e a temperatura subisse. Grandes
quantidades de resíduos orgânicos, inclusive cadáveres em
decomposição, tornariam letal a água de abastecimento. Há poucas
razões para pensar que as principais formas de vida aquática que hoje
nos servem como fontes de alimento viessem a sobreviver a uma guerra
nuclear de primavera ou de verão em número suficiente para serem de
proveito para o homem, pelo menos nos primeiros anos do pós-guerra.
Anos depois da guerra, a capacidade de sustentação de vida do
meio terrestre estará ainda grandemente reduzida, ainda que os níveis
de luz e temperatura estejam próximos das condições de antes da
guerra. A favorabilidade do clima local, a arabilidade do solo, a constância
e qualidade da água e a disponibilidade de recursos gênicos seriam
seriamente degradadas pelos meses de condições extremas que se
seguiriam à guerra. A destruição de extensas áreas de vegetação pelo
fogo ou pela escuridão resultaria em condições locais alteradas de clima
e de solo que muito dificilmente seriam propícias ao replantio. Com
muitos de seus inimigos naturais exterminados, pragas de insetos
frustrariam as tentativas de retomada da produção agrícola, como o faria
a erosão do solo nas terras escalvadas e desprotegidas. A radiação
ultravioleta provavelmente persistiria como agressão ecológica por bem
mais de um ano.
Seriam os poucos sobreviventes restantes capazes de restabelecer
com os ecossistemas sustentadores de vida as ligações vitais
necessárias à sobrevivência? Esse restabelecimento só poderia ocorrer
depois de recuperados os ecossistemas, e somente se os
remanescentes da sociedade fossem capazes de mobilizar a organização
social e a tecnologia requeridas para a exploração dos ecossistemas
restaurados. O tempo necessário para que ocorresse a segunda
condição é difícil de estimar, mas certamente seria no mínimo tão longo
quanto para a primeira, pois sem ecossistemas que assegurem as
necessidades básicas da vida, é impossível uma sociedade tecnológica
organizada. Provavelmente a restauração dos ecossistemas devastados
exigiria não menos de um decênio - estimativa baseada na experiência de
ecologistas com dados tirados de exemplos históricos de ecossistemas
muito combalidos. Sendo a recuperação tão demorada, o mais provável é
que a pequena população humana remanescente continuaria a minguar,
aumentando assim as probabilidades de extinguir-se por completo.

DR. OWEN CHAMBERLAIN (Universidade da Califórnia em


Berkeley): O senhor sabe se existem planos para testar a sensibilidade
do fitoplâncton às mudanças de temperatura?

HARTE: Os únicos planos de que tenho conhecimento, pelo menos


para o futuro próximo, são planos de examinar os efeitos da escuridão
prolongada. Os efeitos das mudanças de temperatura na vida marinha
não são de tão grande interesse em vista da grande capacidade térmica
dos oceanos, que impediria oscilações maiores na temperatura das
águas oceânicas.

INTERPELANTE NÃO IDENTIFICADO: Os senhores examinaram a


possível proliferação de bactérias, fungos e organismos inferiores, bem
como de insetos?

HARTE: Isso deverá ser feito. Muitos ecologistas estão hoje


interessados em estudar essas questões experimentalmente. Pelo menos
com respeito a pequenos organismos, como o plâncton e os fungos,
pode-se iniciar esse estudo no laboratório. Espero que isso venha a
acontecer futuramente, mas por ora não posso anunciar resultados sobre
efeitos de escuridão prolongada em organismos do solo.

DAVID MCGRATH (diretor-adjunto da Global Tomorrow Coalition em


Washington, D.C.): Até aqui ninguém mencionou especificamente a
questão de se a ausência de fotossíntese por um período longo reduziria
de forma apreciável a quantidade de oxigênio na atmosfera, e quais as
consequências disso.
HARTE: Isso não nos preocupa muito. Os números sugerem que as
variações do oxigênio, bem como do dióxido de carbono (C02), seriam
insignificantes. São efeitos de importância terciária, por isso não nos
empenhamos muito em analisá-los.

WOODWELL: Eu os promoveria a secundários.

DR. JOSEPH A. BERRY (membro do painel): Minha


incumbência aqui hoje é examinar algumas das bases técnicas da
previsão de que a fotossíntese seria fortemente inibida em escala global
pelas condições da atmosfera do pós-guerra. E eu gostaria de lembrar-
lhes que, como foi salientado repetidamente nas exposições, a
fotossíntese constitui o principal suprimento de energia química à
biosfera e a principal força motriz para a operação dos ecossistemas
naturais e cultivados.
Para que se dê a fotos síntese, duas coisas são basicamente
necessárias. Primeiro, a luz tem de penetrar até a superfície da Terra,
onde as plantas estão localizadas. E, segundo, a luz deve ser absorvida
pelos pigmentos fotossintéticos das plantas em condições, sob outros
aspectos, favoráveis. Vejamos a pergunta: de que modo a redução da luz
que penetra a atmosfera afetaria a fotossíntese? Muitas experiências
demonstraram que a fotossíntese total de florestas e culturas é
proporcional à intensidade da luz recebida (Fig. 1). Mesmo em dias
normais, a fotossíntese varia com a luz, atingindo o seu máximo ao meio-
dia com céu limpo e decrescendo em períodos nublados e de manhã ou
de noite. A soma total de fotossíntese num dado intervalo de tempo é
proporcional à soma total de luz recebida. Segue-se que uma redução de
luz causaria uma redução proporcional do total de fotossíntese. Essa
relação não leva em conta o fato de que as plantas têm de manter-se a si
mesmas e produzir excedentes que sirvam de alimento para o homem ou
forragem para os animais.
Figura 1: A fotossíntese total de plantas cultivadas (expressa sob a
forma de energia equivalente dos produtos formados, em watts por metro
quadrado) é proporcional à energia luminosa absorvida. Estes dados são
de algodoais, medidos em condições de campo num dia típico de verão
sem nuvens. (Reproduzido de Baker e outros, Crop Science 12: 431
[1972].)

Em geral, requerem-se pelo menos 15 a 20% da fotossíntese total


diária para suprir a demanda respiratória das plantas. Em ecossistemas
complexos, que compreendem grandes quantidades de biomassa
permanente e muitos consumidores neles encerrados, como é o caso
das florestas tropicais úmidas, essa fração ainda é maior,
correspondendo quase à fotossíntese total. Sendo a fotossíntese total
proporcional à luz, se a intensidade da luz se reduz a 15 ou 20% da
normalmente recebida, a produtividade liquida das plantas cultivadas
cessará. E em florestas úmidas cessará mesmo antes disso.
Naturalmente, isso importa na interrupção do crescimento de brotos,
frutos e sementes, que são as partes mais nutritivas e comestíveis das
plantas. Sendo as plantas consumidas pelos animais, a biomassa vegetal
poderia ser drasticamente reduzida por um período extenso de escassez
de luz. Quando os níveis de iluminação voltassem ao normal, haveria
menos biomassa para absorver a luz e portanto menos fotossíntese até
que a cobertura vegetal fosse restabelecida.
Outro fator a influenciar a densidade da biomassa vegetal é o frio
extremo que segundo as previsões se seguiria a um conflito nuclear, já
que as baixas temperaturas podem lesar ou mesmo matar as plantas
(Quadro 1). Existem no mundo regiões térmicas muito diferentes, e as
plantas dessas regiões têm sensibilidades correspondentes a baixas
temperaturas. As plantas tropicais, por exemplo, vivem em áreas onde
raramente ou nunca ocorrem temperaturas de congelamento, e estas
podem matá-las. Em áreas de invernos rigorosos, os gomos dormentes
das plantas, quando convenientemente pré-condicionados, toleram
temperaturas de até -80ºC. Em qualquer habitat, a tolerância das plantas
à temperatura corresponde de modo geral às temperaturas mais baixas
passíveis de ocorrerem neste habitat (ver Fig. 2). É provável que as
temperaturas no ambiente de pós-guerra cairiam abaixo das mínimas
normais. E é provável que as baixas temperaturas matassem as plantas,
especialmente nas áreas em que o frio não é um fator ecológico normal.
Nos habitats mais frios, o efeito das baixas temperaturas
dependeria de estarem as plantas em hibernação ou em seu estado ativo
de verão. As folhas ativas das plantas de qualquer região são muito
sensíveis às baixas temperaturas. Temperaturas de 4 ou 5ºC já podem
afetar seriamente o desempenho de plantas tropicais. Espécies de
coníferas nativas em regiões alpinas podem ser prejudicadas no verão,
quando estão crescendo ativamente, por temperaturas de -10ºC. Assim,
numa guerra de verão, em que essas espécies experimentariam um
rápido declínio de temperatura, é provável que suas folhas fossem
lesadas, deixando menos biomassa disponível para continuar a
fotossíntese quando a luz voltasse ao normal.
O que aconteceria com a fotossíntese em base mundial nos anos
seguintes a um conflito nuclear? A produtividade fotossintética do mundo
tem sido provavelmente muito constante ao longo do tempo geológico,
mais ou menos 5% do valor de 100%. No primeiro ano, em razão da
forte redução da luz que alcança a superfície da Terra, é de prever que a
produtividade fotossintética do Hemisfério Norte cairia para uns 10-20%
da normal. Muito provavelmente, a que restasse ocorreria nos trópicos.
No segundo ano, embora a luz, a força motriz essencial da fotossíntese,
tivesse re tomado, a biomassa - as folhas das plantas, as algas do
oceano - seria menos densa, donde absorveria menos luz e operaria
menos fotossíntese. Com isso, tenho a impressão de que a fotossíntese
não se restabeleceria tão depressa quanto a luz. A continuação de baixas
temperaturas e a presença de luz ultravioleta (UV-B) também retardaria o
desenvolvimento de folhas e algas. Imagino que a cobertura vegetal e a
fotossíntese acabariam por voltar aos níveis normais de antes da guerra,
levando talvez entre uma e algumas décadas. É muito difícil prever como
se apresentariam finalmente os ecossistemas contendo essa biomassa.

DR. THOMAS C. HUTCHINSON (Universidade de Toronto): Supõe-


se que todas as plantas que existem no momento estariam no
lugar, prontas para recuperar-se?

BERRY: Não é o que se supõe. É claro que se todas as plantas


estivessem aí e prontas para recuperar-se, a perspectiva seria de que a
fotossíntese retornaria em pouco tempo aos níveis anteriores, já que a
previsão é de que a luz se restabeleceria bastante rapidamente no
segundo ano. Acho que basicamente a demora na recuperação do
potencial fotossintético é na verdade a demora na restauração da
cobertura vegetal na superfície da terra.

HUTCHINSON: O senhor sugere então que haveria uma demora


de uns quatro anos no restabelecimento de uma cobertura vegetal?

BERRY: Sim, mas isto é uma simples conjetura. Depende do


grau em que as plantas fossem afetadas no primeiro ano.

MARK A. HARWELL (membro do painel): Esta Conferência


concentrou-se nas consequências de médio e longo prazos de uma
guerra nuclear, com atenção especial para as novas e surpreendentes
análises das alterações climáticas previstas para o caso de uma guerra
nuclear em grande escala e para as óbvias e inevitáveis catástrofes
biológicas que adviriam de tais agressões à biosfera global. Uma vez
percebidas a natureza e a magnitude das consequências atmosféricas,
foi fácil para o grande grupo de ecologistas e biólogos que se reuniu em
Cambridge em abril de 1983, para uma discussão preliminar dessas
questões, concordar com o que diz respeito às consequências biológicas
correspondentes. Esse consenso foi apresentado aqui por Paul Ehrlich e
detalhado no artigo composto por um comitê biológico, que trata das
consequências retardadas e indiretas em particular. Minha intenção aqui
não é repetir esses relatos, mas enfatizar alguns pontos referentes à
interação homem-ecossistema e apresentar uma breve descrição geral
dos impactos totais sobre o homem, pelos efeitos imediatos de
detonações nucleares e no período mais longo subsequente a uma
guerra nuclear, com base numa série de análises a que procedi nos
últimos meses.
Primeiro, quero assinalar as íntimas vinculações que existem entre
o homem e o meio. Praticamente toda a vida da Terra depende em última
análise da luz solar para obter a energia que passa através dos sistemas
ecológicos e impulsiona a multiplicidade de fluxos de matéria necessários
à manutenção dos organismos vivos. As plantas e os animais são
essencialmente máquinas movidas à energia solar, inclusive a espécie
que mais nos interessa, o Homo sapiens.
O homem depende dos sistemas ecológicos para a maior parte das
suas funções de conservação. Em primeiro lugar, é claro, estão o
alimento e a água incontaminada. Também são essenciais abrigo,
energia, melhoramento do clima, purificação do ar, controle de pragas e
doenças e uma série de outros serviços.
Há que fazer distinção entre dois tipos de ecos sistemas - naturais e
manipulados. Estes são principalmente os sistemas agrícolas, mas
também compreendem outros sistemas de manipulação de recursos
como as florestas e os minerais. Em geral, esta classe pode ser definida
de modo aproximado como sistemas de base biológica que são
diretamente controlados pelo homem e pelos sistemas societários. Eu
faço essa distinção pelo seguinte: hoje a população do mundo é de mais
de 4,5 bilhões. Embora possa não haver consenso entre os ecologistas e
outros quanto à capacidade de carga da Terra para sustentar a espécie
humana mediante ecossistemas naturais e manipulados, uma coisa é
certa: a capacidade de carga dos ecossistemas naturais, por si sós, é
muito inferior à população humana atual. Quer dizer, os ecossistemas
naturais simplesmente não podem sustentar 4,5 bilhões de caçadores-
colhedores; não há o que caçar ou colher em quantidade bastante para
alimentar tantos indivíduos - mesmo com ecossistemas sadios.
Os sistemas biológicos manipulados que sustentam os seres
humanos dependem totalmente da sociedade humana organizada para
manutenção e reforço. Obviamente, um sistema não produzirá alimentos
se o homem não suprir as sementes, o cultivo, os adubos e em muitos
casos a água, além de várias outras atividades que mantêm produtivos
os ecos sistemas manipulados. Além disso, mesmo com produção
adequada de alimentos, a população humana não poderia ser abastecida
sem uma extensa rede de sistemas de transporte e distribuição. O
problema é que esse apoio humano aos sistemas manipulados deixaria
de ser operativo após uma guerra nuclear da escala considerada nesta
Conferência.
Assim, após uma guerra nuclear, o homem perderia o sustento dos
sistemas manipulados mesmo sem as agressões climáticas e outras até
aqui mencionadas. Os sobreviventes humanos seriam obrigados a
recorrer ao mundo natural em busca de um nível de sustento que a Terra
não poderia fornecer mesmo em condições saudáveis, justamente
quando os sistemas naturais estariam padecendo distúrbios sem
precedentes. Em suma, os sistemas naturais hoje só poderiam sustentar
uma pequena fração da população do mundo; depois de uma guerra
nuclear, esses sistemas não estariam em boa forma, e sua capacidade
de prover às necessidades humanas estaria drasticamente reduzida.
Um tópico relacionado diz respeito às vinculações entre o homem e
o meio depois de passado o pior, isto é, nos anos subsequentes ao
inverno nuclear do que falamos. Dependendo de quanto se tenha
reduzido o nível de população humana, e de até que pontos os sistemas
ecológicos tenham regredido, é provável que a recuperação humana não
possa operar-se mais depressa que o ritmo de recuperação dos sistemas
naturais, e a dependência acrescida do homem em relação a esses
sistemas naturais pode levar a um retardamento dos processos de
recuperação. Para dar apenas um exemplo, um grupo de sobreviventes
famintos poderia despojar sistemas ecológicos da sua energia excedente
a custo captada para crescimento, reprodução, reservas nutritivas, etc.,
dessa forma retardando os processos naturais requeridos para o
restabelecimento e recuperação dos ecossistemas.
Já foram mencionados os problemas que seriam encontrados pelos
sobreviventes que tentassem recorrer aos ecossistemas costeiros para
sustento. Foi dito que as regiões costeiras seriam batidas por
tempestades de grande violência, produzidas pelo acentuado gradiente
de temperatura entre as massas de ar continentais e marítimas; elas
receberiam um quinhão desigual de radionuclídeos e destruição de
habitats por várias razões, entre as quais: porque as áreas urbanas
localizam-se predominantemente em regiões costeiras; devido às táticas
de barragem da guerra antissubmarina; e porque os estuários ficam a
jusante da maioria dos sistemas e recebem uma parte desproporcionada
das águas de escoamento. Acresce que os ecossistemas marinhos são
particularmente vulneráveis tanto às reduções de luz como aos aumentos
de UV-B, o que poderia resultar na devastação da base alimentar do
fitoplâncton. Concluiu-se que essas perturbações, conjugadas à
insuficiência de energia e de barcos para pesca ao largo, indicam
pequena capacidade de sustentação do homem depois de uma guerra
nuclear. A questão agora é que com os ecossistemas terrestres as coisas
não seriam muito melhores.
Por exemplo, praticamente todos os sistemas de água potável nas
áreas continentais do Hemisfério Norte congelariam por completo, a
profundidades de 1 a 1,5 metro. E seriam cobertos por precipitação de
radionuclídeos, fuligem e substâncias tóxicas, de modo que água de
beber para os seres humanos e outra biota seria escassa. Além disso,
quando finalmente viesse o degelo, haveria enchentes de grandes
proporções, possivelmente agravadas pelo aumento de temperatura que
ocorreria à médio prazo em regiões de montanha, como sugerido nesta
Conferência por Aleksandrov da URSS.
Entre outros fatores, haveria um impacto desproporcionado nos
componentes comestíveis das plantas terrestres. Por exemplo, o solo
congelado inutilizaria tubérculos e raízes. Frutos, bagas e brotos não
seriam produzidos em condições de pouca luz e baixas temperaturas.
Assim, praticamente toda a biomassa permanente dos ecossistemas
terrestres seria constituída por compostos de celulose. Infelizmente, os
seres humanos não podem consumir nem digerir troncos de árvores.
Tal como o homem, a maior parte dos outros vertebrados terrestres
sofreria mortalidade em massa. Suas carcaças congeladas só
temporariamente forneceriam alimento aos homens. As populações
animais, ao se restaurarem, provavelmente seriam dizimadas para servir
de alimento tão rapidamente quanto se reproduzissem, mantendo muito
baixos os níveis de população, já que os humanos despenderiam
quantidades incomuns de energia na obtenção de carne. Somente as
espécies capazes de multiplicação rápida reconstituiriam em tempo curto
as suas populações; mas estas são as espécies nocivas, que não se
prestam a fornecer energia e que trazem consigo uma série de
influências negativas, entre elas a propagação de doenças.
Mesmo sem outras formas de intervenção humana, a recuperação
de ecossistemas poderia levar mais tempo do que à primeira vista pode
parecer. Perda de solos e substâncias nutrientes, perda de sementes,
efeitos continuados de UV-B acrescida, temperaturas relativamente
baixas com possível redução de chuvas, exposição continuada ao ozônio,
a radionuclídeos e a outros fatores adversos, tudo isso tenderia a
retardar a recuperação. Reações à longo prazo a alguns anos de luz e
temperatura alteradas poderiam resultar em menor produtividade florestal
e alterações nas composições de espécies durante dezenas de anos.
Numa palavra, os ecossistemas terrestres não proporcionariam sustento
fácil aos sobreviventes.
Vejamos agora um panorama das baixas humanas causadas por
efeitos diretos e indiretos de uma guerra nuclear. Um estudo recente da
Organização Mundial de Saúde prevê 1,1 bilhão de mortes e 1,1 bilhão
de lesões diversas em todo o mundo como decorrência de explosões e
outros efeitos imediatos. O estudo da Ambio indicou três quartos de
bilhão de casos fatais em toda a Terra. Meus colegas e eu analisamos
em maior detalhe os efeitos na população americana.
Utilizando um cenário muito semelhante ao proposto pela Ambio de
uma guerra nuclear representativa em grande escala, envolvendo
aproximadamente 5.700 megatons de energia total, eu considerei os
efeitos de um ataque combinado de contraforça (i.e., contra objetivos
militares) e contravalor (contra alvos civis e industriais) aos Estados
Unidos, em que todas as áreas urbanas de mais de 100.000 habitantes e
a maior parte das instalações militares e principais concentrações
industriais fossem alvejadas. Preparei um diagrama sintético dos efeitos
resultantes (ver Quadro 2).
As mortes produzidas pelas explosões poderiam atingir de 50 a 80
milhões de americanos, de uma população em risco (i.e., dentro
das áreas urbanas atacadas) de 110 milhões, com mais 30 milhões de
feridos graves em consequência de explosões. A exposição direta à
radiação infravermelha e as queimaduras resultantes poderiam matar
outros 1 a 15 bilhões, e de 1 a 7 milhões poderiam morrer nos incêndios
e tempestades ígneas nas áreas urbanas. A radiação ionizante inicial não
aumentaria o número de mortos e feridos, pois para as armas
consideradas no cenário (100 quilotons a 1 megaton de potência cada) as
áreas letais determinadas por explosão e radiação térmica excedem
aquelas em que os nêutrons rápidos e raios gama das detonações
nucleares seriam fatais; os que em outras condições morreriam por
radiação inicial aguda já estariam mortos. No entanto a precipitação local
poderia matar entre 12 e 18 milhões de pessoas que tivessem sido
expostas no primeiro dia, e mais 40 ou 50 milhões seriam expostas a
níveis mortais de precipitação nos dias e semanas subsequentes.
No total, uns 125 a 170 milhões de americanos morreriam no nosso
cenário de referência, e mais 30 a 50 milhões sofreriam lesões exigindo
cuidados médicos, tudo isso pelos efeitos imediatos e diretos das
detonações. Portanto, restariam entre 10 e 75 milhões de americanos e
entre 2 e 3 bilhões de habitantes do mundo para enfrentar o inverno
nuclear e os anos seguintes.
A maior parte dos outros efeitos relacionados no citado Quadro 2
(i.e., a prazo mais longo e por mecanismos indiretos) já foi referida neste
livro e não será repetida aqui. Alguns outros aspectos devem ser
comentados.
A poluição do ar poderia produzir efeitos dilatados; por exemplo, o
estudo TTAPS prevê concentrações médias de ozônio durante vários
meses, nas latitudes médias, de 150 partes por bilhão em volume,
próximas dos níveis que em exposições de apenas duas horas causam
lesões evidentes à maior parte das espécies vegetais.
A escassez de alimentos resultante do inevitável colapso dos
sistemas agrícolas, da paralisação dos sistemas de transporte e
distribuição e da incapacidade das plantas cultivadas de sobreviver às
alterações de clima poderia levar à morte pela fome centenas de milhões
ou bilhões de pessoas em todo o mundo. Isto abarcaria não apenas as
nações diretamente envolvidas na guerra, como também países distantes
do conflito direto mas fortemente dependentes das exportações de
alimentos da América do Norte. A demora no restabelecimento de
agroecossistemas, devida a impedimentos físicos e societários, teria
grandes reflexos no ritmo de recuperação das populações humanas
durante muitos anos depois de uma guerra nuclear.
Os sistemas médicos também deixariam de existir, como declarou a
organização dos Médicos pela Responsabilidade Social, e pouca ou
nenhuma assistência restaria para os milhões de indivíduos afetados.
Com o passar do tempo, grandes surtos de moléstias contagiosas
matariam milhões, especialmente nas primeiras fases do pós-guerra,
quando as pessoas se aglomerariam em abrigos para proteger-se das
intempéries, da radiação e de bandos de outros indivíduos, numa ocasião
em que sistemas sanitários e água incontaminada teriam virtualmente
desaparecido. Com isso, ocorreriam principalmente doenças entéricas.
Mais tarde, alastrar-se-iam epidemias e pandemias veiculadas por
animais transmissores, como peste bubônica e hidrofobia.
Finalmente, um fator importante para os sobreviventes humanos
seria a tremenda sobrecarga psíquica que afetaria a todos em todo
o mundo. Concomitantemente, haveria o colapso dos sistemas
societários em geral, na medida em que a civilização organizada deixaria
de existir, e em que a espécie humana, reduzida ao nível do indivíduo ou
de pequenos grupos, seria lançada de repente num mundo de condições
extremamente hostis, em que estaria em competição sem precedentes
por recursos drasticamente reduzidos. É quase impossível prever que
condutas os sistemas societários iriam adotar, mas sem dúvida nenhuma
a competição intensa por recursos limitados imporia à espécie um
consequente tributo adicional.
O quadro evidente que resulta dessas considerações é que o
mundo de pós-guerra nuclear seria um lugar inóspito para a maioria ou
para a totalidade dos homens da Terra. Uma guerra nuclear de qualquer
categoria que não a mais limitada constitui não simplesmente uma guerra
entre os combatentes, mas uma guerra contra a biosfera e contra todos
os seus habitantes humanos. As consequências humanas dificilmente se
restringiriam às mortes imediatas nas proximidades das detonações; ao
contrário, uma guerra nuclear afetaria fundamentalmente todos os seres
humanos existentes e todas as gerações previsíveis que se seguissem,
se, aliás, o Homo sapiens não chegasse ao estado irreversível da
extinção.

WOODWELL: Os efeitos aqui descritos como produto inevitável de


quase qualquer uso hostil de armas nucleares constituem não apenas
uma transformação fundamental do habitat do homem, como uma
transformação do habitat de todos os organismos da Terra, uma
transformação radical e irreversível da biosfera. Nós não conhecemos
nenhum outro lugar onde ocorra vida - não há vida em Vênus, nem em
Marte, nem em Júpiter, nem na Lua - em parte alguma. As circunstâncias
físicas de cada um desses vizinhos mais próximos da Terra estão muito
além dos limites compatíveis com a sustentação da vida, em cada um
deles por motivos diferentes. E está claro agora como seria fácil libertar
na biosfera uma quantidade de energia suficiente para modificar
radicalmente a Terra, limitando, e talvez eliminando, grandes segmentos
da biota. Que espécies de transformações ocorreriam de início? O que
sobreviveria? O que desapareceria primeiro?
Nós pensamos no homem como ocupando na biosfera um posto
dominante. No entanto a sua agricultura cobre não mais de 10% da
superfície das terras; o resto do planeta é constituído por comunidades
naturais, afetadas mas não manipuladas pelo homem. A biosfera é
fortemente influenciada por essas comunidades. Por exemplo, o teor de
dióxido de carbono da atmosfera foi e continua sendo modulado, talvez
determinado, pelo menos dentro de certos limites, pelo metabolismo das
florestas.
Em todas as concepções de como a biosfera opera, as florestas
têm papel preponderante; são elas a principal vegetação da maior parte
da porção da Terra habitada pelo homem; elas contêm de duas a três
vezes mais carbono do que a atmosfera; são elas o principal reservatório
de diversidade biótica em termos globais. As florestas oferecem um foco
apropriado para a compreensão do caráter das alterações bióticas que
seriam de esperar. Qual seria esse caráter? O que representariam tais
alterações para o homem, se a essa altura ele ainda existisse? Apesar da
falta de experiência direta, é possível inferir como seria esse mundo. Paul
Ehrlich sugeriu que extinções seriam comuns. Extinção, é claro, significa
a eliminação de uma espécie - a eliminação do pool gênico. As extinções
são irreversíveis; geralmente ocorrem quando o habitat é drasticamente
alterado. A experiência, pelo menos nesse contexto, é limitada. Que
espécies são vulneráveis? Quais são resistentes? Se o homem
sobrevivesse, como se apresentaria o mundo?
Alguns exemplos podem ser usados como base de dedução. Entre
elas, as devastadoras deformações da paisagem produzidas pela fusão
de minérios de cobre e outros em Copperhill no Tennessee, em
Palmerton na Pensilvânia e em Sudbury no Ontário. Mas um dos estudos
mais pertinentes e mais facilmente interpretados é uma análise, ao longo
de 15 anos, das mudanças provocadas numa floresta de carvalhos e
pinheiros na região central de Long Island, Estado de Nova York, por
exposição crônica a radiação ionizante. A exposição variou de alguns
milhares de roentgens por dia a níveis residuais, que são de menos de
1/10 de roentgen por ano no meio normal. Exposições de alguns
roentgens por dia produziram alterações drásticas na floresta. Essas
alterações, embora produzidas por radiação ionizante, uma agressão
incomum na maior parte da biosfera, foram semelhantes às observadas
em outras partes em resposta a gradientes de exposição a condições
climáticas extremas, como na transição de floresta para tundra, e à
poluição, como em Sudbury e outros lugares. Tais alterações são hoje
reconhecidas como causadas por uma larga gama de perturbações;
constituem o que chamamos de empobrecimento biótico. Em termos
hemisféricos, e talvez globais, os princípios gerais do empobrecimento
biótico, definidos principalmente nesses exemplos, aplicar-se-iam após
praticamente qualquer uso de armas nucleares numa guerra.
O estudo de Long Island, realizado no Laboratório Nacional
de Brookhaven, tinha por fim examinar os efeitos ecológicos da radiação
ionizante. Uma fonte potente de raios gama, que são semelhantes aos
raios X, foi colocada no centro de uma floresta cuidadosamente
escolhida. No primeiro ano da experiência determinou-se o padrão de
alteração em torno da fonte. Nos anos seguintes as alterações
simplesmente tornaram-se mais pronunciadas e o círculo de danos,
maior.
A floresta foi afetada sistematicamente. As árvores em geral
mostraram-se mais vulneráveis; o pinheiro, Pinus rigida, de todas as
espécies era a mais sensível, mas pinheiros e carvalhos foram
eliminados em conjunto, deixando intacta uma comunidade de arbustos,
ervas e gramíneas, musgos e líquens. Com exposições mais altas foram
eliminados os arbustos lenhosos; depois as ervas e gramíneas; e com
exposições ainda mais altas só restaram certos musgos e líquen. E no
interior de cada um desses grupos houve uma seleção; as formas de
menor corpo e crescimento mais lento mostraram-se mais resistentes.
Líquens crustáceos resistiram mais que as formas eretas folhosas e
fruticosas.
Os princípios gerais extraídos dessa experiência e de outras
similares com empobrecimento biótico sistemático são simples mas
importantes. Em geral, as espécies mais vulneráveis a qualquer tipo de
alteração crônica ou aguda do habitat são as de grande corpo e ciclos
reprodutivos longos. As mais resistentes são as de pequeno corpo e alto
potencial reprodutivo. Neste grupo reconhecemos espécies que
competem eficazmente com o homem e lhes damos o nome de "pragas".
São as ervas daninhas e os insetos dos jardins, as espécies de beira de
estrada e de outros locais cronicamente perturbados. Todo meio crônica
ou intensamente perturbado é sujeito a esse padrão de alteração - e no
nosso mundo existem hoje muitos desses locais. O olho exercitado
percebe constantemente ao nosso redor essa contínua sucessão de
transições.
Uma guerra nuclear acarretaria uma série de transições quase
inimagináveis. Num mundo de pós-guerra as espécies pequenas e de
multiplicação rápida seriam grandemente favorecidas; as grandes se
extinguiriam. O homem é vulnerável a essa espécie de mudança; são-no
igualmente a maior parte dos mamíferos, as árvores, muitos arbustos e
muitas plantas superiores. As mais resistentes são as formas inferiores:
bactérias, fungos, certos musgos, líquens, algas e protozoários.
As florestas seriam raras nesse novo mundo, inicialmente
destruídas em grandes extensões por explosões, fogo e radiação, e mais
tarde, em escala continental, pela escuridão e pelo frio prolongado. É
difícil exagerar a gravidade do desastre, mas é provável que em alguns
bolsões as florestas fossem preservadas e sobrevivessem indivíduos de
uma diversidade de espécies: refúgios, talvez.
A questão é vasta, fundamental e premente, e requer análises
muito mais profundas. Mas, a este primeiro exame, os efeitos possíveis
estendem-se muito além dos limites dos estudos objetivos correntes da
ecologia e entram num novo domínio, suficientemente incerto para levar
a supor que as extinções previstas nessa onda de empobrecimento
venham a incluir, pelo menos potencialmente, o Homo sapiens.

DR. THOMAS EISNER (membro do painel): Inicialmente, minha


intenção, como último expositor deste painel, era apresentar um sumário
das consequências biológicas de uma guerra nuclear. Mas isso seria
repetitivo, tendo em vista o que foi dito pelos que me antecederam.
Portanto, vou falar de dois pontos específicos, e terminar fazendo um
apelo.
O primeiro ponto diz respeito à conceituação de uma grandeza.
Qual a dimensão do arsenal nuclear do mundo, perguntam-nos com
frequência, e como é possível "sentir" essa magnitude? Vamos expressá-
lo assim. A bomba de Hiroshima tinha um poder explosivo (equivalente de
TNT) de 13.000 toneladas. Sabemos o que a bomba fez, pois vimos as
fotografias. O estoque nuclear estratégico do mundo, em contraste, tem
um poder explosivo potencial de mais de 13.000 megatons. Quer dizer,
nós temos hoje a capacidade de desencadear o equivalente a um milhão
de Hiroshimas. Tentem imaginar o que isso significa. Suponham que eu
começasse a largar bombas do tamanho da de Hiroshima, uma de cada
vez, a partir deste momento, à razão de uma por segundo, 60 por
minuto, 3.600 por hora. Quando acabariam as minhas bombas? A
resposta espantosa é: 11,6 dias. Para esgotar o arsenal mundial nas 48
horas de duração desta Conferência, eu precisaria lançar as minhas
bombas num ritmo ininterrupto de seis por segundo! Não admira que uma
guerra nuclear - mesmo uma guerra limitada em que menos da metade
do arsenal do mundo fosse detonada - deva produzir uma catástrofe de
amplitude inaudita.
Meu segundo ponto diz respeito ao grau em que nós, os biólogos
que participamos desta Conferência, concordamos com as conclusões
aqui expressas. Repetidamente têm-me perguntado no curso destes
trabalhos se nós estamos de acordo com os prognósticos dos físicos
especialistas em atmosferologia, e se as nossas opiniões coincidem em
todos os aspectos relativos às implicações biológicas dessas previsões.
Em primeiro lugar, deve ficar claro que não existem divergências quanto
aos efeitos à curto prazo de um conflito nuclear, isto é, quanto aos efeitos
das explosões, do fogo e da radiação, que num conflito de 5.000 a
10.000 megatons devem resultar em mais de um bilhão de mortes
imediatas e em número igual de feridos graves. E, segundo, deve ficar
clara a nossa convicção de que um "inverno nuclear", com todo o seu
cortejo de calamidades biológicas, é sem dúvida nenhuma uma
perspectiva bem real como decorrência de uma guerra nuclear. Estamos
convencidos de que um período prolongado de temperaturas glaciais e
baixos níveis de iluminação, conjugado à exposição acrescida a radiação
ionizante e ultravioleta, pode destruir o sistema de sustentação biológica
da civilização, com certeza no Hemisfério Norte e possivelmente, pelo
extravasamento dos efeitos climáticos e biológicos, em áreas não
alvejadas do Hemisfério Sul. Embora estejamos de acordo nos pontos
principais, alguns de nós conjeturam se não estaríamos subestimando os
efeitos biológicos. Sinergismos e efeitos em cascata são uma
consequência comum de rupturas ambientais, e tendem a ser
imprevisíveis e só verificáveis a posteriori. O que é previsível em matéria
de consequências biológicas de uma guerra nuclear já é bastante mau;
não seriam as consequências reais ainda piores? Por 40 anos nós
permanecemos na ignorância da possibilidade de um inverno nuclear. O
que mais nos terá passado despercebido? Chegaremos a ver a extinção
da espécie humana como consequência inevitável de uma guerra
nuclear? E a essa altura, com a contínua escalada das armas, não
teremos avançado para ainda mais perto do abismo?
O apelo que quero fazer é simples. Há muitos anos tenho pensado
na guerra nuclear, mas não me pareceu que a questão devesse suscitar
o meu envolvimento direto na qualidade de biólogo. Tenho-me ocupado
de conservação, e como ecologista e naturalista entusiasta, tenho
dedicado meu tempo a iniciativas educacionais e a esforços de
preservação da Terra. Agora dei-me conta de que o impacto de uma
guerra nuclear é abrangente e fundamentalmente biológico. Daí o meu
apelo, que quero estender aos eleitores americanos que alguns anos
atrás me nomearam presidente da AAAS (Associação Americana para o
Progresso da Ciência), bem como aos biólogos de todo o mundo. Já não
creio que um único biólogo possa permanecer isento de envolvimento na
questão da guerra nuclear. Não importa qual a especialidade ou quais os
cursos ministrados, o envolvimento se impõe, pois tanto a especialidade
como os cursos relacionam-se inevitavelmente a algum aspecto das
consequências biológicas de uma guerra nuclear. Nas suas aulas e nos
seus escritos, os biólogos têm de manifestar-se. O que ficamos sabendo
sobre o inverno nuclear precisa ser divulgado, e a preocupação expressa
nesta Conferência tem de ser transmitida ao mundo inteiro. Só pelo
esclarecimento poderemos impedir o "escurecimento" nuclear. A questão
não é de confronto político, mas de sobrevivência biológica. O inimigo
não é a União Soviética, nem os Estados Unidos, mas as próprias armas
nucleares.
A CONEXÃO MOSCOU
UM DIÁLOGO ENTRE CIENTISTAS AMERICANOS E
SOVIÉTICOS

DR. THOMAS F. MALONE (presidente): A Conferência sobre o


Mundo após a Guerra Nuclear é uma iniciativa científica que visa reunir
conclusões existentes e novas sobre os efeitos atmosféricos e climáticos
globais à longo prazo de uma guerra nuclear e suas consequências para
a vida. Os organizadores da Conferência evitaram rigorosamente extrair
quaisquer implicações políticas das suas conclusões. Nosso objetivo é
esclarecer questões e não advogar tal ou qual ponto de vista. Todos os
participantes deste programa entendem e concordam que a Conferência
não é um fórum para discutir linhas de ação ou temas de política. Um
compromisso semelhante está subentendido nesta troca de pareceres
entre Cientistas reunidos em Washington e em Moscou.
Comigo na tribuna estão o Dr. Carl Sagan, astrônomo e cientista
espacial da Universidade Cornell; o Dr. Paul Ehrlich, ilustre biólogo da
Universidade Stanford; e o Dr. Walter Orr Roberts, meu velho amigo,
astrônomo, meteorologista e ex-presidente da Associação Americana
para o Progresso da Ciência.
Essa comunhão de preocupações entre cientistas e entre a
comunidade científica e o público é mais um passo num processo que
começou há mais de um ano em Roma, quando os líderes científicos do
mundo fizeram em uníssono esta declaração: “A partir de 1945 a
natureza da guerra mudou tão profundamente que o futuro da espécie
humana, de gerações ainda por nascer, está em risco". O debate das
questões científicas relevantes terá prosseguimento brevemente em
Estocolmo, sob os auspícios do Conselho Internacional de Uniões
Científicas.
Agora tenho o prazer de apresentar um velho amigo, o
acadêmico Yevgeniy Velikhov, vice-presidente da Academia de Ciências
da URSS.
VELIKHOV (em Moscou): Está aqui comigo hoje o Dr. Yuri Israel,
membro correspondente da Academia de Ciências da URSS e diretor do
Comitê de Hidrometeorologia e Controle do Ambiente. Quero apresentar
também o acadêmico Alexander Bayev, especialista em biologia e
genética molecular e secretário do Departamento de Fisiologia
Bioquímica, Biofísica e Química da Academia de Ciências da URSS; e
Nikolai Bochkov, acadêmico da Academia Médica de Ciências e diretor do
Instituto de Genética da Academia de Ciências da URSS. Agora
gostaríamos de ouvir o Dr. Carl Sagan, do outro lado do Atlântico.

SAGAN: Fui incumbido de recapitular as conclusões físicas e


climáticas do estudo apresentado no início desta Conferência, estudo
esse realizado juntamente com meus colegas Drs. Turco, Toon,
Ackerman e Pollack, e conhecido como TT APS, iniciais dos autores. Nós
investigamos uma série de consequências de diversos cenários de guerra
nuclear.
Por exemplo, analisamos o perfil atmosférico da estratosfera e da
troposfera (ver Fig. 1A, p. 43). O material injetado na estratosfera por
uma explosão nuclear precipita muito lentamente; o injetado na
troposfera precipita mais rapidamente. Assim, explosões de armas
nucleares de alta potência transportam poeira na bola de fogo
ascendente e no penacho da nuvem em cogumelo e elevam-na à
estratosfera, donde ela precipita lentamente, ao passo que armas
nucleares de baixa potência introduzem poeira na troposfera, donde ela
precipita com relativa rapidez. Se uma guerra nuclear resulta na queima
de cidades e florestas, partículas finas partículas de fumaça, fuliginosas,
muito escuras - entram na baixa atmosfera. Essa combinação de poeira
levantada por explosões nucleares de alta potência e fuligem de cidades
e florestas incendiadas por detonações aéreas de qualquer potência
produz, segundo os nossos cálculos, um manto de material em
suspensão que escurece e esfria acentuadamente a Terra. A estrutura do
que era anteriormente a troposfera seria profundamente alterada.
Entre os cenários que estudamos há o caso de referência de uma
guerra de 5.000 megatons, em que a temperatura no interior dos
continentes cai abruptamente em poucas semanas a algumas dezenas
de graus abaixo do ponto de congelamento da água, e leva meses para
retornar às condições ambientais (ver Quadro 1, p. 49).
Outro cenário considerado foi um ataque só de contraforça de 3.000
megatons, em que não há queima de cidades. É um ataque bastante
modesto no contexto das doutrinas estratégicas modernas. Nesse
cenário a temperatura baixa uns 7 ou 8 graus e leva cerca de um ano
para voltar ao normal.
Uma queda de 7 a 8 graus na temperatura global já é suficiente
para destruir a produção de trigo e milho dos Estados Unidos, Canadá e
União Soviética, e por si só representaria urna agressão extremamente
desastrosa ao meio do planeta. Também estudamos alguns casos bem
piores. Talvez o fato mais interessante a surgir foi que um ataque de 100
megatons, em que armas de centenas de quilotons sejam detonadas
sobre áreas metropolitanas, pode produzir fumaça suficiente para
provocar sérias catástrofes climáticas com a duração de muitos meses.
Além do escurecimento e da queda de temperatura, uma guerra
nuclear teria outras consequências. Haveria gases tóxicos produzidos nos
incêndios de cidades. Haveria a radioatividade, que em grandes áreas do
Hemisfério Norte atingiria níveis perigosos para o homem - 100 rads ou
mais. E quando a fumaça e a poeira se dissipassem, haveria o fluxo de
radiações ultravioleta da faixa UV-B aumentado de duas a quatro vezes,
dependendo do total de energia liberada.
Tendo em mente as indicações recentes de que também o
Hemisfério Sul seria gravemente afetado, concluímos que após uma
guerra nuclear, ainda que em escala relativamente reduzida, haveria um
conjunto de agressões simultâneas de magnitude sem precedentes.
contra a biosfera (ver Quadro 2, pp. 55-56).
O limiar para produção dos efeitos climáticos situa-se de modo
muito aproximado em torno de mil armas nucleares detonadas,
dependendo principalmente da estratégia de seleção de objetivos.
Sabemos que os arsenais estratégicos somados dos Estados Unidos e
União Soviética superam de muito - cerca de 17 vezes - esse limiar.
Sabemos agora que desde o começo dos anos 50 os dirigentes das duas
nações têm tomado decisões sobre os negócios mundiais na ignorância
das consequências climáticas possivelmente funestas do emprego de
armas nucleares. E agora percebemos pela primeira vez que as
consequências de uma guerra nuclear poderiam ser absolutamente
arrasadoras para países muito afastados do conflito. Note-se, finalmente,
que essas conclusões são apoiadas por uma ampla série de estudos,
tanto nos Estados Unidos como na União Soviética.
Agora passo a palavra ao Dr. Paul Ehrlich, ilustre professor de
Biologia da Universidade Stanford.

EHRLICH: É meu desagradável dever informar-lhes algo que


imagino não constituirá surpresa para os meus colegas da União
Soviética, a saber, que um grupo muito grande de proeminentes biólogos
nos Estados Unidos, inteirado dos cenários que o Dr. Sagan acaba de
descrever, chegou a urna conclusão unânime sobre as consequências
para os sistemas biológicos. Tal unanimidade é rara em nossa ciência
aqui, e estou certo de que na dos senhores também.
Estamos falando do que acontece após uma guerra nuclear, depois
que as bombas explodiram e causaram talvez um bilhão de mortes
imediatas. O que acontece é que os sobreviventes - os sobreviventes
humanos, assim como as plantas e os outros animais do planeta - são
submetidos simultaneamente a uma série de agressões sem
precedentes.
A temperatura cai algumas dezenas de graus, descendo abaixo do
ponto de congelamento, mesmo no verão; se a guerra ocorrer no
inverno, as baixas temperaturas prolongam-se pela primavera. Ao
mesmo tempo, a luz solar é bloqueada, de modo que a fotossíntese é
reduzida ou eliminada. Os níveis de radiação alcançam valores
suficientes para matar coníferas em grandes extensões, que podem
chegar a 2% da área continental do Hemisfério Norte.
Depois uma névoa tóxica - uma camada venenosa de poluição do ar
- espalha-se por todo o Hemisfério Norte. Quando os efeitos atmosféricos
começam a dissipar-se, quando avança o processo de remoção da
fuligem, a Terra é inundada por um fluxo de luz ultravioleta, de UV-B.
Assim, a base da produtividade do planeta, pelo menos no
Hemisfério Norte, terá sido acometida por uma série de agressões, cada
uma delas extraordinariamente deletéria.
É evidente para todos nós, por exemplo, que a produtividade
agrícola após uma guerra nuclear em grande escala se anularia no
Hemisfério Norte por I um ano pelo menos, e provavelmente por muito
mais tempo. Além disso, grande parte das disponibilidades existentes de
alimentos seria destruída. E em muitas áreas seria difícil obter água
porque as massas de água doce do interior dos continentes estariam
congeladas a uma profundidade de talvez 1 a 2 metros.
Em geral, é de prever um colapso dos sistemas de sustentação de
vida, pelo menos nas zonas temperadas do Hemisfério Norte, levando a
uma situação em que a sobrevivência da civilização nessas zonas seria
extremamente difícil ou impossível.
Há menos certeza quanto à propagação dos efeitos ao Hemisfério
Sul. É praticamente certo que a nuvem de fumaça e fuligem penetraria as
grandes áreas tropicais do Hemisfério Norte, o que em si já seria muito
grave, visto que essas áreas constituem o maior reservatório de
diversidade orgânica deste planeta. Plantas, outros animais e micro-
organismos são uma biblioteca genética inestimável da qual nós já
retiramos a própria base da nossa civilização, e essa biblioteca seria
ameaçada ou em grande parte destruída se os efeitos se estendessem
para o sul.
E se os efeitos se disseminassem generalizadamente no Hemisfério
Sul, nossa conclusão é que por certo alguns grupos humanos
sobreviveriam - talvez em áreas costeiras ou ilhas -, mas enfrentariam
uma situação ecológica e social absolutamente insólita e extremamente
maligna. Ao que nos parece, não se pode excluir a possibilidade de que a
espécie humana, após um tal evento, venha a declinar aos poucos e
finalmente extinguir-se.
Achamos que as conclusões biológicas são óbvias e perfeitamente
sólidas para toda a gama de cenários, desde um ataque de 100
megatons a cidades até um conflito de 10.000 megatons, com ataques
de contraforça e contravalor.
Impressionou-nos muito uma das conclusões óbvias: teoricamente é
possível à União Soviética ou aos Estados Unidos lançar um primeiro
ataque de 3.000 megatons contra os silos do outro país e destruí-los,
sem - em teoria, pelo menos - lesar um 11nico fio de cabelo de qualquer
cidadão do país atacado, não receber fogo de resposta e, em o fazendo,
destruir ambas as nações pela destruição da sua produtividade agrícola,
resultante do escurecimento e baixa de temperatura. Não é preciso
lembrar-lhes que o bastião alimentar do mundo é a produção de grãos do
Hemisfério Norte, principalmente nas planícies centrais dos Estados
Unidos e do Canadá, e que a sua anulação, num só ano que fosse, seria
para a humanidade um desastre nunca visto.
Basicamente, é fácil para um biólogo concluir dos resultados
expostos pelos físicos e climatologistas que uma guerra nuclear oferece
quase certamente perigos bem maiores que os já catastróficos efeitos
instantâneos e mortes imediatas.

ISRAEL: O uso intensivo dos recursos naturais e o desenvolvimento


industrial acelerado em muitos países nas circunstâncias de uma
crescente corrida armamentista já vem criando uma série de problemas
ecológicos globais. É evidente que no caso de uma guerra nuclear a
biosfera será comprometida em proporções multiplicadas, e que isso
trará consequências catastróficas para a humanidade e para a biosfera
como um todo. Hoje as consequências de uma possível guerra nuclear
estão sendo discutidas em todas as partes do mundo. Na avaliação dos
resultados, admite-se que a energia total liberada poderia alcançar de
6.000 a 15.000 megatons.
Em meu pronunciamento eu gostaria de abordar sucintamente
as consequências geofísicas e geológicas de vários fatores de exposição.
Primeiro, uma grande quantidade de produtos radioativos seria
descarregada na atmosfera. Esses produtos radioativos causarão danos
por radiação nos sistemas ecológicos, alterações nas propriedades
elétricas da atmosfera e alterações na ionosfera. E isso acarretará efeitos
biológicos diversos.
O segundo fator é a poluição da atmosfera por uma enorme
quantidade de partículas de aerossol produzidas por explosões nucleares
de alta potência, ou pelo desprendimento maciço de fuligem e poeira dos
incêndios ateados pelas explosões. As partículas em suspensão
modificarão as propriedades da atmosfera e dificultarão a entrada dos
raios solares, através da atmosfera. Desse modo os sistemas ecológicos
serão neutralizados, e ha. verá perturbações meteorológicas e
climatológicas.
Terceiro, os produtos gasosos dos incêndios - metano, ozônio
troposférico e outros - também poluirão a atmosfera. Essa poluição
influirá nas propriedades de absorção da atmosfera e por conseguinte no
clima. Haverá formação de óxidos na bola de fogo das explosões, o que
destruirá uma parte substancial da camada de ozônio. O resultado será
um aumento de radiação ultravioleta que trará efeitos biológicos
indesejáveis e mudanças climáticas.
Para prever um dos maiores efeitos da produção de aerossóis, é
importante estimar a quantidade de partículas que permanecerá na
atmosfera por tempo prolongado. Os aerossóis troposféricos são de
curta duração até duas semanas, aproximadamente -, portanto é
necessário calcular que fração de aerossóis de alta dispersão alcançará a
estratosfera. Pela nossa estimativa, essa fração será da ordem de 1%.
Esse valor é comparável ao dos aerossóis de alta dispersão que entram
na estratosfera por ocasião de erupções vulcânicas de grande
intensidade.
Não há dúvida de que os aerossóis troposféricos levarão a uma
queda de temperatura superficial durante as primeiras semanas após as
detonações. E isso terá consequências catastróficas para os
ecossistemas e para a produção das plantações.
Efeitos ainda piores poderiam advir, ao nosso ver, de uma possível
elevação subsequente de temperatura atmosférica após a precipitação,
causada pela absorção de radiação de ondas longas. Esta resultará da
presença na atmosfera de admistões gasosas, como ozônio troposférico,
etano, metano e outras. A duplicação de CO2 elevará a temperatura em
3 ou 4 graus centígrados. A duplicação de ozônio na troposfera causará
um aumento de temperatura de quase um grau centígrado. Atualmente,
a concentração de ozônio na troposfera é de cerca de três partes por
bilhão, e durante uma guerra nuclear essa concentração aumentará de
três a quatro vezes. Haverá um aumento grande de metano, e a
concentração de etano será 30 ou 40 vezes maior. Só o aumento de
concentração dessas admistões gasosas resultará num aumento de
temperatura de três ou quatro graus centígrados. Haverá um efeito de
estufa, que pode levar a sérias alterações climáticas a longo prazo e ao
colapso das atividades agrícolas da sociedade humana.
Os efeitos da introdução dessas admistões gasosas na atmosfera
também se farão sentir no Hemisfério Sul. Haverá de imediato uma
queda de temperatura, e subsequentemente um aumento gradual, com
consequências ecológicas a longo prazo. No estágio inicial, com
temperaturas baixas, haverá destruição de vegetação. Depois a
temperatura subirá e haverá alterações climáticas duradouras, que
destruirão a possibilidade de renovação de recursos biológicos.
Eu gostaria de lembrar mais uma vez que as propriedades elétricas
da atmosfera serão consideravelmente alteradas, principalmente na
primeira fase após as explosões, devido à radioatividade. A concentração
de produtos radioativos de um nanocurie por metro cúbico modificará a
condutividade atmosférica em cerca de 10%, e isso levará a sérias
alterações. Como já foi dito, haverá danos ecológicos porque a turbidez
da atmosfera interromperá a luz solar. E haverá destruição da camada
estratosférica de ozônio.
Sabe-se que num conflito nuclear de 10.000 megatons haverá a
produção de 10 elevado a 32 moléculas de óxidos de nitrogênio por
megaton. Dependendo da altura alcançada pela nuvem na explosão,
haveria uma destruição estável de cerca de 7% do ozônio por meses ou
anos depois da explosão. Uma única explosão nuclear produz destruição
na camada de ozônio, a qual em seguida se reconstitui em alguns dias.
Havendo muitas explosões não haverá difusão e o ozônio não se
reconstitui; a mudança na concentração de ozônio fica estável. Com
exposição em altitudes de 25 a 30 mil metros, cerca de 60% do ozônio
são destruídos. Deve ser lembrado que esse efeito se propagaria em
pouco tempo ao Hemisfério Sul, mesmo que as explosões se limitassem
ao Hemisfério Norte.
De tudo que foi dito, deve ter ficado claro que explosões nucleares,
principalmente em grande escala, levarão não apenas a consequências
muito destrutivas localmente, mas também a destruição e a alterações
em escala global. Levarão a mudanças irreversíveis do clima e à
destruição da camada de ozônio, e comprometerão os ecos sistemas da
Terra. Além do mais, os efeitos serão sinérgicos. Os efeitos ecológicos
poderão levar ulteriormente a um número maior de mortos e vítimas que
os efeitos diretos e imediatos, e isto tanto se aplica aos que forem
diretamente envolvidos numa guerra nuclear como aos que forem
envolvidos indiretamente, e mesmo numa guerra dita limitada. Isto
sublinha o fato de que numa guerra nuclear não pode haver vitoriosos
nem vencidos. Em última análise, todos os lados sofrem fatalmente. O
Dr. Sagan já falou sobre isso. Portanto, a questão que estamos
levantando é a da própria existência da vida na Terra.

BAYEV: A opinião de biólogos e médicos especialistas sobre a


guerra nuclear é perfeitamente definida: a guerra nuclear é imoral e
inaceitável, tendo em vista os enormes prejuízos que infligiria à espécie
humana. É inaceitável porque põe em dúvida a própria possibilidade de
sobrevivência da humanidade e a própria continuação da vida da Terra
nas formas que conhecemos.
Eu gostaria de dizer alguma coisa sobre a morte de pessoas, a
perda de vidas humanas. No caso de uma guerra nuclear, a avaliação
quantitativa dos nossos cientistas coincide com a dos nossos colegas
americanos. As perdas imediatas entre a população resultantes de um
ataque nuclear podem ser calculadas com bastante exatidão, porque
temos a triste experiência de Hiroshima e Nagasaki e os testes nucleares
até hoje realizados. Temos assim cálculos teóricos que nos fornecem os
números e a possibilidade de estimar que cerca de um quarto da
população na região do ataque nuclear perecerá.
Quanto aos indivíduos queimados, feridos ou expostos à radiação,
seus destinos serão obviamente trágicos. A maioria não sobreviverá,
simplesmente porque não receberá socorro médico; não haverá meios de
proporcionar conforto, nem suprimento normal de alimentos e água e
haverá exposição continuada a fatores altamente hostis, como radiação e
as perturbações meteorológicas que se seguirão. Essas condições
resultarão na morte de outro quarto da população; portanto, perto da
metade das pessoas expostas a um ataque nuclear perecerá quase
imediatamente.
Quanto aos que sobreviverem a esses primeiros efeitos, por tudo
que ouvimos dos nossos colegas americanos, e por tudo que sabemos,
sua vida subsequente será difícil e problemática, e provavelmente a
maioria dos remanescentes não terá como sobreviver. Haverá fome;
haverá transformações meteorológicas; haverá rupturas em toda a
estrutura social. Obviamente, isso só poderá levar a consequências
desastrosas. Nossa previsão é pois que, na melhor das hipóteses, as
populações de áreas submetidas a um ataque nuclear só sobreviverão
como pequenas ilhas de humanidade num ambiente hostil e despojado de
vida.
Deve-se frisar que todas essas modificações terão efeitos
sinérgicos; haverá exposição simultânea a muitos fatores adversos e
nocivos.
BOCHKOV: Quando falamos das consequências ecológicas e
biológicas de uma guerra nuclear, é claro que temos em mente a
humanidade. Portanto, ao pensarmos nas possibilidades da sobrevivência
humana após uma catástrofe nuclear, não devemos recuar ante a
conclusão de que as condições reinantes não permitiriam a sobrevivência
do homem como espécie. Devemos partir da suposição de que o ser
humano adaptou-se ao seu meio no correr de um longo processo
evolutivo e pagou o preço da seleção natural. Só nos últimos milhares de
anos ele adaptou o meio às suas necessidades e criou, por assim dizer,
um meio artificial para proporcionar-lhe alimento, abrigo e outras
necessidades. Sem este, o homem moderno não pode sobreviver. Em
comparação com as dramáticas transformações do ambiente tecnológico,
a natureza biológica não mudou no passado recente. Nas declarações do
Dr. Ehrlich e do acadêmico Bayev, foram-nos apontadas as muitas
limitações que se oporiam à sobrevivência do homem depois de uma
catástrofe nuclear. Como também temos de considerar o futuro mais
distante, cabe observar que a maior parte dos efeitos de uma guerra
nuclear será de ordem genética. Se ilhas de humanidade ou como disse
o Dr. Ehrlich, grupos de pessoas em alguma parte do oceano -
sobrevivessem, o que iriam defrontar em termos de consequências
genéticas? Se a população declinar drasticamente, surge a questão do
número crítico de indivíduos necessário para assegurar a multiplicação.
Por um lado, haverá um número mínimo de seres humanos; por outro,
em razão desse pequeno número, haverá isolamento, Inevitavelmente
haverá cruzamento consanguíneo, e com isso mutações letais se
manifestarão devido à exposição fetal e neonatal à radiação e à
precipitação. Novas mutações hão de surgir, genes e cromossomos
serão danificados por obra da radiação, e com isso haverá um ônus
genético a mais a suportar. Haverá deformidades naturais e mortes ao
nascer, de tal modo que o ônus das afecções hereditárias será apenas
parte de uma grande sobrecarga. Certamente isso conduzirá à
eliminação da humanidade, porque o homem não será capaz de
reproduzir-se como espécie.
Eu gostaria de frisar que, em termos de reprodução humana, os
efeitos sinérgicos desempenharão um papel particularmente deletério,
porque o cruzamento consanguíneo, as mutações resultantes e as
condições de vida extremamente difíceis não serão de molde a favorecer
a sobrevivência do homem.
Na sequência de uma guerra nuclear, o futuro da humanidade deve
evidentemente ser visto na perspectiva de um mundo em que os
ecossistemas e os recursos ecológicos terão sido alterados ou
destruídos. Assim, as condições biológicas e sociológicas não seriam de
molde a permitir ao homem manter-se como espécie.
MALONE: Agradeço aos nossos colegas de Moscou. Um dos
cientistas soviéticos que está hoje em Washington conosco é o Dr. Nikita
Moiseev, membro correspondente da Academia de Ciências da URSS e
diretor-adjunto do Centro de Computação da Academia. Eu pediria ao Dr.
Moiseev que informasse alguns dos resultados relevantes obtidos no
estudo de computador da Academia Soviética - resultados que
acreditamos confirmarão as conclusões fornecidas pelos nossos modelos
meteorológicos.

MOISEEV: Em primeiro lugar quero agradecer aos nossos colegas


americanos por esta oportunidade de participar desta magnífica
Conferência aqui em Washington. Nós partilhamos as preocupações dos
nossos colegas americanos, e achamos que o estudo das consequências
possíveis de um conflito nuclear é um dos principais objetos de interesse
para os cientistas de todo o mundo.
Também nós em nosso país estamos realizando várias pesquisas e
estudos nessa área. No Centro de Computação da Academia de
Ciências, que eu represento, estamos realizando estudos em três áreas
principais.
Primeiro, estamos estudando as possíveis consequências de uma
guerra nuclear para o clima. Segundo, estamos estudando processos
biológicos e alterações na produtividade da biota. Depois há um terceiro
ponto e um terceiro problema. De modo geral, somos otimistas e
esperamos que um dia a humanidade mostrará suficiente sensatez para
abandonar de uma vez por todas qualquer ideia de empregar armas
nucleares. Mas se isso acontecer, novos problemas e dúvidas irão surgir:
como irá a humanidade utilizar o seu novo poderio e despender a sua
nova riqueza? Se formos otimistas, devemos aplicar o nosso esforço em
refletir também neste problema.
Eu disse que esta Conferência é magnífica e falei sinceramente. Ela
é magnífica não apenas pelas questões que levantou, mas também pelas
oportunidades técnicas que nos proporcionou. Aqui em Washington eu
vejo na tela dois dos meus colegas de Moscou que participaram
diretamente em alguns dos cálculos de diferentes efeitos climáticos
levados a efeito no Centro de Computação da Academia de Ciências da
URSS: Drs. Georgi Stenchikov e Valeri Parkhomenko. Nossos estudos
indicam que uma catástrofe nuclear global acarretará uma forte redução
da temperatura média da Terra. Só depois de uns cinco ou seis meses
haverá modulação da temperatura em base global. No entanto
localmente as mudanças de temperatura serão muito mais pronunciadas.
Ainda 240 dias (oito meses) após a guerra nuclear, a temperatura
permanecerá em muitas regiões muito abaixo da temperatura anterior à
guerra. Os senhores podem imaginar as consequências ecológicas de tal
situação.
Também estudamos a perturbação da circulação atmosférica que
resultaria de um conflito nuclear global. Verificamos que o caráter da
circulação se modificaria por completo. Em vez da circulação clássica,
restaria uma única célula, e toda a poluição - todas as impurezas da
atmosfera do norte - se deslocaria em direção ao Hemisfério Sul. Vê-se
claramente que não haveria nenhum lugar da Terra que não sofresse as
consequências de um conflito nuclear global.

MALONE: Aos nossos colegas de Moscou quero dizer o quanto as


nossas deliberações foram enriquecidas pelas contribuições dos Drs.
Moiseev, Golitsyn e Aleksandrov. Também apreciamos esta oportunidade
de trocar opiniões através da nova tecnologia de satélites.
O Professor Moiseev colocou um ponto interessante ao mencionar
a dramática alteração do que os meteorologistas chamam de circulação
geral. Alguns de nós pensam ver fortes indicações de que haveria trocas
inter-hemisféricas consideráveis. Esse tema recebeu uma boa dose de
atenção nesta Conferência. Talvez um dos mais destacados
meteorologistas do mundo, o Dr. Israel, queira comentar os pareceres
que ele e seus colegas possam ter sobre a propagação dos efeitos
cataclísmicos do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul. Suas ideias
seriam bem-vindas, mesmo que conjeturais, pois é claro que ainda há um
grande trabalho de análise a ser completado.
ISRAEL: De fato, ocorreriam mudanças de temperatura depois de
um conflito nuclear, compreendendo tanto a queda de temperatura logo
após as explosões como, mais tarde, um possível aquecimento devido ao
efeito de estufa. Sem dúvida isso afetaria a circulação da atmosfera. Mas
eu concordo com o Dr. Malone em que são necessários estudos
complementares e cálculos adicionais.
Quanto à troca de massas de ar, e portanto também de poluentes e
admistões gasosas, entre os Hemisférios Norte e Sul, estudos de
radioatividade residual em experiências nucleares mostraram que essa
troca entre os dois hemisférios realmente ocorre. Ocorre num período de
meses e às vezes até de anos, mas ocorre, e eu estou completamente
convencido de que, após uma catástrofe, as alterações verificadas no
Hemisfério Norte certamente transferir-se-iam ao Hemisfério Sul.

DR. KIRILL KONDRATYEV (membro correspondente da Academia


de Ciências da URSS e ex-reitor da Universidade de Leningrado): Eu
gostaria de juntar algumas observações às interessantes conclusões dos
estudos sobre os efeitos retardados de explosões nucleares sobre o
clima. Elas dizem respeito à análise de observações da luz solar. Medindo
a radiação solar por meio de balões em altitudes de até 30 mil metros e
em seguida analisando os dados, nós verificamos que um dos fatores
importantes no enfraquecimento da radiação solar era o NO2, formado
na atmosfera após explosões nucleares de grande potência nos testes
realizados em 1962 e 1963. Ficou demonstrado que o NO2 contribuía em
grau considerável para impedir a penetração da radiação solar até o nível
do solo. Procuramos estimar o esfriamento produzido pelos testes de
1962-63 e verificamos que a contribuição do NO2 pode ter sido
responsável por meio grau de esfriamento. Depois utilizamos o cenário
publicado pela Ambio em 1982 e extrapolamos para ver o que
aconteceria no caso de uma guerra nuclear. Os resultados mostraram um
esfriamento global de 9,5 graus centígrados, o que, naturalmente, é em
si mesmo significativo. Mas ainda mais significativo a meu ver é o fato de
que o NO2 é um gás, e nós estamos falando da estratosfera, portanto
esse é um fenômeno a longo prazo, muito mais longo que partículas de
smog ou poluição na troposfera. A transferência desse efeito ao
Hemisfério Sul é muito grave, e pode significar que as consequências
retardadas serão tão nocivas para o Hemisfério Sul quanto para o
Hemisfério Norte. Nós percebemos esse efeito do NO2 observando a
radiação solar em 1963, e também o percebemos muito claramente em
1964 e 65. E isso foi em circunstâncias de circulação normal da
atmosfera. No entanto nossos colegas mostraram que se houver
circulação transequatorial, o efeito será ainda mais sensível.

MALONE: Evidentemente nós inauguramos uma era em que é


possível exprimir através de métodos de análise científica a impressão
intuitiva que muitos de nós vínhamos tendo há vários anos. Agora temos
a oportunidade de trocar pontos de vista sobre os modos de prosseguir
nos caminhos abertos por esta Conferência e através desta Conexão
Moscou. Espero que agora possamos ter alguns debates.

EHRLICH: Eu pediria ao Dr. Kondratyev que esclarecesse um


biólogo sobre um ponto de física. Pelo que entendi, o senhor disse que o
efeito do NO2 na camada de ozônio criaria um esfriamento superficial de
8 a 9 graus centígrados?
KONDRATYEV: Não, não foi disso que eu falei; eu me referi ao fato
de que o NO2 tem uma raia de absorção muito intensa em
aproximadamente meio micro, de modo que o NO2 atmosférico absorve
radiação solar muito intensamente na banda de absorção do NO2 . É
exatamente onde está o máximo no espectro da radiação solar. Portanto,
isso nada tem a ver com o ozônio. É um aspecto diferente da ação do
óxido de nitrogênio na atmosfera.

SAGAN: Talvez eu possa levantar uma questão de ordem geral.


Antes, permitam-me dizer que é muito gratificante ver que pesquisas
mais ou menos independentes nos Estados Unidos e na União Soviética
chegaram a conclusões tão semelhantes sobre um assunto tão grave
como as consequências retardadas de uma guerra nuclear. Existe nesses
estudos uma série de incertezas: nos cenários escolhidos, na questão da
quantidade de fuligem introduzida na atmosfera pelos incêndios e da
quantidade de poeira produzida por explosões de grande potência no
solo, nas questões da aglomeração de partículas na atmosfera e do
tempo que elas levarão para precipitar, questões de circulação
atmosférica e questões das doses de radiação, instantânea e a médio e
longo prazos. Em parte elas dependem de critérios de cálculo, e em parte
dos dados introduzidos. Dependem, por exemplo, dos dados relativos à
distribuição de dimensões das partículas resultantes de incêndios ou da
explosão de armas nucleares, e do coeficiente de absorção e índice de
refração dessas partículas. Nossos colegas soviéticos acham possível
fornecer-nos dados sobre a função de distribuição de dimensões de
detritos, obtidos nos testes soviéticos de armas nucleares antes do
Tratado limitado de Proibição de Testes de 1963, e informações sobre
dimensões e coeficientes de absorção de partículas produzidas em
grandes incêndios na União Soviética? E mais, estariam dispostos a
eventualmente transmitir-nos uma gama de cenários de guerra nuclear
que consideram prováveis?

ISRAEL: Acho que o nosso diálogo e o debate dessas


importantíssimas questões devem ter prosseguimento, provavelmente
por ocasião de encontros de cientistas em conferências. De minha parte,
tenho muitas perguntas a fazer a colegas americanos com respeito aos
dados iniciais empregados na construção dos seus modelos. Em
particular, tenho perguntas relativas à distribuição de partículas por
dimensões, e a quantidades e dimensões de partículas de aerossol
injetadas na atmosfera. Por exemplo, posso dizer que em nossos
cálculos da quantidade de partículas de aerossol de alta dispersão nós
calculamos em cerca de 1% ou pouco menos a proporção de partículas
de menos de um micro. Esse número, provavelmente próximo do que o
senhor, Dr. Sagan, citou no seu trabalho - creio que o senhor adotou
0,5% de aerossóis de alta dispersividade (pequenas dimensões) - é
inferior a 1%. Esses são aspectos estritamente científicos, e certamente
o senhor desejará discuti-los no futuro com maior detalhe.
Também concordo com o Dr. Sagan em que um aspecto muito
interessante deste nosso encontro é o fato de que os cálculos feitos, de
forma basicamente independente, levaram-nos a conclusões muito
semelhantes com respeito às linhas gerais das consequências
ecológicas, geofísicas e biológicas de uma guerra nuclear.

ACADÊMICO ROALD SAGDEYEV (diretor do Instituto de Estudos


Cósmicos da Academia de Ciências da URSS): Eu gostaria de dizer que
a elaboração de cenários da evolução da biosfera e da atmosfera após
uma guerra nuclear, que se vem fazendo nos últimos 20 anos, deu-nos
finalmente um modelo muito sério, cujos resultados foram relatados por
dois grupos independentes, o representado pelo Dr. Sagan e o formado
pelos nossos cientistas. A seriedade que vemos nesses modelos hoje
atesta o fato de que nós aprendemos a aplicar o enfoque planetário - um
enfoque interdisciplinar - no desenvolvimento dos modelos. Acho que
devemos concordar em manter estreita cooperação no desenvolvimento
adicional desses modelos. Talvez os dados que nós obtivemos em testes
nucleares nos últimos 10 anos, por exemplo sobre a dispersão e
composição de aerossóis, possam ser utilizados nesses estudos. Agora
temos a tecnologia espacial à nossa disposição. Temos também alguns
fenômenos naturais que, embora ocorram em pequena escala, podem
ser úteis para modelar as consequências de uma guerra nuclear. Temos
observações não só de atividade vulcânica, que ejeta partículas de
aerossol, como também de erupções solares que provocam modificações
na estratosfera - por exemplo, a formação de óxidos nitrosos. Acredito
que se fizermos disso uma atividade conjunta e empregarmos novos
métodos planetários, especialmente usando a tecnologia espacial, será
muito proveitoso.

MALONE: Haverá oportunidade no futuro para intercâmbio de


dados e desenvolvimento conjunto de cenários, para os quais muitos
países podem contribuir, como ponto de partida no estudo das
consequências de uma guerra nuclear. Eu aguardo com grande interesse
um encontro com o acadêmico Scriabin, primeiro-secretário científico da
Academia da URSS, e com o Professor Velikhov no fim deste mês,
quando cientistas de muitos países se reunirão em Estocolmo para tratar
justamente das questões que foram aqui levantadas com respeito à
permuta de dados.

SAGAN: Foi um grande prazer para mim ouvir as observações


do acadêmico Roald Sagdeyev. O acadêmico Sagdeyev é diretor do
Instituto de Pesquisas Cósmicas da Academia de Ciências da URSS, e
responsável pelo programa soviético de exploração não-tripulada.
Parece-me um fato extremamente interessante que um campo
aparentemente tão distanciado das nefastas questões de vida e morte
suscitadas pela guerra nuclear tenha desempenhado um papel tão
importante na iniciativa destes estudos.
Tanto o nosso trabalho, que começou pelo estudo da tempestade
de poeira de 1971 em Marte, observada pela Mariner 9, como alguns dos
trabalhos aqui mencionados pelo Dr. Golitsyn, foram estimulados por
explorações planetárias não-tripuladas. Se é que existem dúvidas quanto
ao valor prático da exploração planetária, penso que este trabalho basta
para dissipá-las.

EHRLICH: Desejo agradecer ao acadêmico Bochkov por abordar a


questão genética, que nós não enfatizamos, em parte pelo fato de os
efeitos biológicos imediatos e à curto prazo (um período de meses ou
anos) serem tão esmagadores, pelo menos para os sobreviventes do
Hemisfério Norte, no que se refere aos riscos enormemente aumentados
de câncer e de anomalias genéticas em gerações futuras.
Mas parece-me que ele tocou num ponto que também nós
consideramos importantíssimo. A saber: os sobreviventes dispersos
poderão sofrer sérios efeitos do cruzamento consanguíneo e incidência
acrescida de câncer. Outro fator importante podem ser os efeitos das
alterações genéticas . nos sistemas ecológicos. Não é claro para nós a
que condições eles retornarão após uma guerra nuclear. As populações
que os compõem terão sido submetidas a toda espécie de novas
pressões seletivas, de modo que os pequenos grupos de sobreviventes
humanos irão se deparar com um meio totalmente novo, com o qual
talvez não tenham os recursos culturais para avir-se. Eles não serão
como as antigas civilizações de caçadores e colhedores, que conheciam
intimamente o meio em que viviam e eram capazes de extrair o seu
sustento à nível de subsistência com grande facilidade. Os sobreviventes
serão em sua maioria indivíduos afeitos a uma existência "civilizada", que
tentarão subsistir num ecossistema radicalmente transformado. Isso
deverá tornar os seus problemas extremamente difíceis, tanto econômica
como psicologicamente.

BOCHKOV: Eu gostaria de complementar o que disse o Dr. Ehrlich.


Esperar uma renovação da humanidade para uma nova espiral de
evolução seria. ingênuo, porque o homem entrará nessa nova era com as
mesmas qualidades biológicas que tinha antes, mas haverá deficiências.
As pessoas do pós-guerra nuclear terão deficiências somáticas e
psíquicas, e o meio a que terão de adaptar-se será muito mais hostil que
em qualquer tempo precedente.

ACADÊMICO GEORGIY SCRYABIN (primeiro-secretário científico


da Academia de Ciências da URSS): Meu velho amigo Professor Malone
disse que voltaremos a ver-nos. Mas eu gostaria de dizer uma coisa hoje.
Meu sentimento em relação a esta Conferência é um tanto ambivalente.
Por um lado, há um sentimento de grande preocupação em face da
possível tragédia que nos ameaça, que paira sobre todos nós - sobre
crianças, mulheres, velhos, e todos os seres vivos da Terra. É uma
tragédia potencial terrível, que não pode deixar de incomodar e
desassossegar qualquer ser humano normal.
Por outro lado, há nesta Conferência um grande motivo de
satisfação: é o fato de que os grandes cientistas neste momento reunidos
- nossos colegas americanos e cientistas russos - chegaram a um
consenso. Estão unidos em sua opinião de que não deve haver uma
guerra nuclear, de que esta representaria desastre e morte para a
humanidade. Eu pessoalmente sinto-me satisfeito e confortado com isso
porque, hoje em dia, a autoridade dos cientistas é grande, e todos nós
devemos procurar fazer valer nossa influência no sentido de pôr fim à
corrida armamentista e para que jamais venha a ocorrer uma guerra
nuclear.

VELIKHOV: Talvez algum dos nossos colegas americanos queira


acrescentar alguma coisa.

EHRLICH: Que mais podemos dizer senão que todos nós aqui
partilhamos esse desejo ardentemente? Esperamos que os povos do
mundo e os dirigentes do mundo prestem atenção ao fato de que o
confronto Leste-Oeste ameaça não só a União Soviética, os Estados
Unidos e seus aliados diretos, como ameaça todos os seres humanos do
planeta, pelo menos com grandes sofrimentos e provavelmente, para a
grande maioria, com a morte.
Acho que esta deve ser a base de considerações para os chefes
políticos do mundo.
MALONE: Eu tenho a impressão de que esta Conferência e esta
troca de ideias poderão vir a ser vistas em anos futuros - justificadamente
- como a virada decisiva nos rumos da humanidade.
Lembra-me o incidente de 1954, quando as cinzas da explosão
experimental de uma bomba de hidrogênio caíram no Dragão Feliz - um
barco pesqueiro japonês. Criou-se em todo o mundo uma onda de grave
preocupação porque os testes nucleares estavam pondo em risco a
atmosfera, que é propriedade comum de todos os povos do mundo.
Pouco depois adotaram-se medidas políticas no sentido de estabelecer
um controle mais rigoroso sobre a realização de testes.
Espero portanto que esta Conferência, que teve por finalidade o
esclarecimento dessas questões e um intercâmbio cordial entre colegas,
elevará o nível de conscientização dos faze dores de política e marcará a
mudança de rumos que todos com tanto empenho esperamos.

DR. ALEXANDER KUZIN (membro correspondente da Academia de


Ciências da URSS): Como radiobiólogo, eu gostaria de chamar a atenção
dos senhores para outro problema. Se uma catástrofe nuclear vier a
acontecer, naturalmente haverá uma séria precipitação global de
radionuclídeos e uma elevação do nível de radiação residual. Como
radiobiólogo, eu sei como varia entre espécies diferentes a sensibilidade
à radiação. O homem é uma das espécies mais sensíveis. A maior
exposição à radiação provocará muitas mudanças; o sistema imunológico
do homem será destruído. Ao mesmo tempo, micro-organismos
patogênicos que nós classificamos geralmente como pestes são muito
resistentes a essa espécie de radioatividade. Com isso haverá um novo
desequilíbrio ecológico, que contribuirá para a exterminação da pequena
população humana que haja sobrevivido às consequências imediatas de
uma catástrofe nuclear.
É assim responsabilidade direta dos cientistas da União Soviética e
dos Estados Unidos levar ao conhecimento de todos, os grandes perigos
que seriam desencadeados por qualquer espécie de conflito nuclear, de
modo a prevenir a própria possibilidade de uma guerra nuclear, cujo
desfecho não apenas seria certamente o fim da civilização, senão que
ameaçaria a vida como tal neste planeta que amamos.
EHRLICH: Há mais um ponto. Se os efeitos se propagarem ao
Hemisfério Sul e nós nos reduzirmos a pequenos grupos, e Caso alguns
desses pequenos grupos consigam, a longo prazo, sobreviver a todos os
efeitos de que aqui falamos, inclusive os apontados pelo Dr. Kuzin,
devemo-nos lembrar - e devemos alertar os nossos governantes - de que
uma vez perdida a civilização tecnológica, é altamente improvável que
jamais venhamos a recuperá-la.
Quando a humanidade se tornou civilizada e enveredou pelo
caminho da industrialização, havia grande quantidade de minérios ricos à
flor da terra, e para furar um poço de petróleo bastava enfiar uma vara
no chão. Hoje temos de fundir minérios de baixíssimo teor metálico, e
perfurar milhares de metros para extrair petróleo. Se as consequências
de uma guerra nuclear se prolongarem por um tempo tal que a tecnologia
se perca, e os estoques de ferro e de outros recursos importantes sejam
destruídos pela corrosão e dispersados, é altamente improvável que um
grupo de caçadores-colhedores ou lavradores de subsistência possa
jamais refazer o 'caminho que 'leva à civilização tecnológica.

VELIKHOV: Parece-me haver um consenso de que a Conferência é


um passo importantíssimo; talvez ela dê de fato um novo impulso no
sentido do desarmamento nuclear. Ela forneceu conclusões científicas,
dados e informações a todos nós. Atualmente, todos deveriam ser
capazes de tirar conclusões práticas dessas informações.
Quanto a mim, penso que uma das conclusões importantes da
nossa Conferência é que mesmo o emprego de uma pequena parte dos
arsenais nucleares teria resultados catastróficos, não apenas pela morte
imediata de multidões de inocentes como pelas drásticas transformações
que causariam no meio e no clima, que poderiam trazer consequências
infinitamente negativas. Falando em geral, mesmo hoje a humanidade
existe num siso tema ecológico muito instável, de modo que qualquer
desvio porá em risco a continuação dessa existência.
Portanto, todas as colocações políticas que falam de guerras locais
ou ditas "limitadas", de guerras "controladas", de reação flexível ou
de guerra prolongada, são conceitos que, à luz do que agora sabemos,
carecem de base totalmente. Todas elas trazem consigo os resultados
horríveis e catastróficos que acabamos de ver.
Entendemos que nenhum armamento militar ou psicológico - e há
muitos - pode refutar esses resultados. A meu ver, a única conclusão
possível é que os nossos artefatos nucleares não podem ser usados
como armas de guerra ou como instrumentos de guerra; nem como
instrumentos de política. São instrumentos de suicídio.
Eu diria que as análises aqui apresentadas não se basearam no pior
caso possível, pois não levaram em conta alguns fatores possivelmente
envolvidos num conflito nuclear. Por exemplo, nós não consideramos os
imensos depósitos de resíduos tóxicos e não calculamos o impacto
resultante no caso de eles serem atingidos. Não consideramos os efeitos
de serem atingidas usinas nucleares. Certamente isso viria agravar os
resultados, principalmente à longo prazo. Conclui-se assim que a própria
superioridade nuclear é uma ilusão, tendo em vista a enorme quantidade
de armas nucleares que já acumulamos. Sabemos agora que as armas
nucleares não são músculos do Estado moderno. São, sim, uma
excrescência cancerosa que ameaça a própria vida do planeta. Assim
como o doente de câncer não tem chance de viver uma vida longa e feliz,
também a humanidade não tem chance de continuar coexistindo com a
bomba para sempre. Ou nós destruímos o câncer, ou o câncer nos
destruirá.
Essa é uma decisão fundamental, e todas as decisões provisórias
só podem ser provisórias. A meu ver, essa é a principal conclusão desta
Conferência, e a mais fundamental.

ROBERTS: Para mim é uma grande honra participar deste evento.


Partilho com Tom Malone a impressão de que este debate com nossos
colegas da União Soviética pode marcar uma mudança de rumo nos
nossos modos de pensar e de agir com relação à guerra nuclear. Foi um
diálogo muito produtivo, acadêmico Velikhov, e eu lhe agradeço e aos
seus colegas por se juntarem a nós.
Durante a nossa Conferência sobre o Mundo após a Guerra
Nuclear, o Dr. Ehrlich fez um comentário muito interessante para o grupo
aqui de Washington, a saber, que o que vier a acontecer como
consequência de uma guerra nuclear pode incluir alguns perigos e
possibilidades não previstos. Ouvi com grande interesse a exposição do
Dr. Israel sobre a possibilidade de ocorrer um aquecimento subsequente
ao esfriamento. Parece-me que poderia ser mais um efeito imprevisto. E,
considerando a perspectiva de uma guerra nuclear, lembramos as
palavras do Dr. Sagan:
"O que mais teremos deixado de levar em conta?”
Mas mesmo deixando de levar em conta algumas outras
consequências, é claro para mim que temos diante de nós evidências
bastantes para demonstrar o imperativo que é para a humanidade evitar
a guerra nuclear. E eu sinto que o debate aberto e franco que tivemos
aqui em Washington, na Conferência sobre o Mundo após a Guerra
Nuclear, e neste importante diálogo com nossos colegas soviéticos foi
extremamente útil e gratificante.
Todos nós temos consciência de que muitas questões científicas
ainda não foram completamente resolvidas. É minha esperança sincera
que possamos pensar juntos e combinar nossos esforços para esclarecer
algumas dessas questões, reduzir as incertezas e assegurar que o que
possamos ter esquecido não é tão importante, na perspectiva das coisas
que sabemos. Entretanto, já sabemos o suficiente para nos darmos conta
de que é imperioso, em nome de toda a humanidade, acelerar a busca
da segurança do mundo no domínio da política, assim como no domínio
da ciência.
Como cidadãos de nossas nações, e como residentes desta frágil
espaçonave que é a Terra, devemos conceber e pôr em prática novas
políticas que garantam um futuro estável para o planeta e para todos os
seus habitantes. Agradecemos aos nossos colegas soviéticos a sua
participação neste debate de hoje.

MALONE: Muito obrigado. Com essas palavras prudentes,


declaramos encerrada esta Conexão Moscou. Eu me despeço com um
pensamento. Nosso desafio é o da razão. Duzentos anos atrás, Emanuel
Kant disse que a razão humana tende a centrar-se em três perguntas: "O
que posso saber?" (ou o que me é possível conhecer), "O que devo
fazer?" (ou quais são os imperativos morais) e, finalmente, "O que posso
esperar?" Nesta troca de ideias, eu vejo uma base de esperança.
Levemos conosco esses pensamentos, principalmente o de que
esta troca de ideias proporciona uma base de esperança.
CONCLUSÃO
WALTER ORR ROBERTS

William D. Ruckelshaus, diretor da Agência de Defesa Ambiental


dos Estados Unidos, em recente artigo na revista Science, disse que o
debate de questões ambientais é frequentemente dominado por um clima
de medo. Ele recomenda aos cientistas que façam maiores esforços no
sentido de explicar ao público de modo simples e fundamentado as
conclusões subjacentes das pesquisas, incluindo a exposição das
incertezas das noções fundamentais, e portanto dos riscos estimados.
Entre as opções com que a humanidade se defronta, nenhuma ilustra
melhor essa recomendação que as consequências biológicas de uma
guerra nuclear em escala mundial. Nenhum prejuízo ambienta! para a
vida do planeta representa uma ameaça potencial maior, principalmente
quando combinada à consideração da destruição e da perda de vidas
diretamente decorrentes de uma guerra nuclear.
Em seu artigo, Ruckelshaus cita estas palavras de Thomas
Jefferson: "Se julgamos [o povo] insuficientemente esclarecido para
exercitar o seu controle com discrição razoável, o remédio não é
arrebatá-lo dele, mas informar a sua discrição.”
Esse propósito norteou magnificamente a Conferência sobre o
Mun . do após a Guerra Nuclear. Nosso objetivo foi informar os povos do
mundo, na convicção de que o esclarecimento levará ao exercício de
uma discrição universal razoável. Nós nos propusemos ater-nos
estritamente a questões científicas, explicar algumas descobertas novas,
não previstas, de alta relevância para a higiene do planeta, e reexaminar,
na perspectiva de trabalhos mais recentes, algumas das pesquisas
precedentes sobre o assunto. Basicamente estamos de acordo no que
diz respeito aos temas físicos e biológicos tratados na Conferência.
Provavelmente há menos unanimidade quanto a como lidar com as
questões políticas levantadas por essas verificações científicas. Estou
certo de que muitos de nós divergem quando se trata de optar entre as
alternativas sociais, econômicas, políticas e mesmo éticas que nos
defrontam como membros que somos de nações-Estados e da
comunidade universal dos povos. Por isso evitamos propositalmente o
debate de questões e opções de ordem política nesta Conferência. É
claro que as questões políticas são de suma importância, e devem ser
profundamente meditadas, extensamente discutidas e finalmente
aplicadas à ação. E o que é mais, há urgência em mudar para um novo
terreno na área da política.
Thomas W. Wilson, Jr. enfatizou recentemente a prioridade dessas
questões políticas numa excelente análise intitulada "Conceitos
Modificados de Segurança Nacional", da qual citarei uma breve
passagem:

Finalmente esse tema [segurança nacional] corre solto no domínio


público - mais ou menos fora dos limites estritos do isolamento
burocrático, do sigilo oficial e da complexidade esotérica dos cálculos
estratégicos... ainda estamos nos estágios preliminares de um reexame
cabal das nossas crenças, teorias, tradições, doutrinas e ideias feitas em
que se baseiam a política e a estratégia no campo da segurança das
nações e dos povos. e provável que este venha a revelar-se um processo
doloroso, demorado e turbulento - às vezes, talvez, raiando pelo trauma -
pois o que está em jogo é muito grande, e os temas muito emocionais...
No mundo real de hoje os interesses nacionais dos diferentes
Estados convergem na necessidade de suster e defender os sistemas
vivos do planeta Terra - e isso nos inclui. O que vale dizer que o único
modo de salvar a nossa própria pele a tornar a Terra segura. E assim a
segurança do mundo é uma política para pragmáticos - e também para
poetas. Oferece uma estratégia talhada para santos e também para
soldados.

É importante, na medida do possível, que esse "processo doloroso,


demorado e turbulento" de debate nasça de um terreno comum de
compreensão dos conhecimentos físicos e biológicos subjacentes. Foi o
que o Comitê de Orientação desta Conferência definiu como nosso
objetivo, e eu louvo os participantes e o auditório por sua adesão a essas
normas básicas.
O cenário principal de referência de guerra nuclear envolve um
intercâmbio de 5.000 megatons, que projeta uma porção considerável da
poeira e da fuligem produzidas por incêndios de cidades e florestas na
alta troposfera (parte superior da baixa atmosfera) e na baixa
estratosfera (parte inferior da alta atmosfera), acima do nível normal das
nuvens. Essa tonelagem é bem menos da metade dos arsenais somados
dos Estados Unidos e URSS. É também aproximadamente a escala de
conflito nuclear analisada no relatório publicado em junho de 1982 pela
revista Ambio, da Real Academia Sueca de Ciências, e em vários outros
estudos preliminares.
Conflitos nucleares mais limitados parecem produzir da mesma
forma grandes perturbações ambientais e grandes danos biológicos, além
e acima dos causados pelas explosões e pela radiação. Parece que as
perturbações ambientais não guardam muita proporção com a escala da
guerra, desde que a tonelagem seja suficiente para provocar grandes
incêndios. Estudaram-se modelos com tonelagens de apenas 100
megatons, e mesmo nestes demonstrou-se a probabilidade de efeitos
adversos importantes no caso de ataques a concentrações urbanas.
Muitos dos efeitos descritos no cenário de 5.000 megatons fizeram-se
presentes em conflitos bem menores.
Com o cenário de 5.000 megatons para definir as condições iniciais,
pelo menos três grupos analisaram modelos meteorológicos globais na
tentativa de estimar as consequências do ponto de vista da meteorologia
e climatologia. Esses modelos matemáticos alcançaram um tal nível de
sofisticação que a maioria dos cientistas dedicados ao problema inclina-
se a acreditar que eles simulam de forma realista as características
gerais do mundo real da meteorologia quando as hipóteses básicas são
bem compreendidas. As últimas conclusões são bastante alarmantes. As
enormes tempestades ígneas produzidas numa guerra nuclear
desempenham um papel considerável nos danos ambientais, em função
do smog e da fuligem transportados às camadas altas da atmosfera.
Essas nuvens de partículas alteram dramaticamente o equilíbrio da
radiação na atmosfera. Podem não apenas produzir "trevas ao meio-dia"
como primeiro sugerido por Crutzen e Birks em 1982, mas também
modificar radicalmente os padrões globais dos ventos, das chuvas e das
neves.
O cenário utilizado representa uma guerra em grande escala no
Hemisfério Norte (mas não numa escala implausível, em termos dos
arsenais mundiais de armas nucleares). Em consequência de uma guerra
como essa, como os senhores ouviram, é quase certo que a quantidade
média de luz solar a atingir a superfície da Terra no Hemisfério Norte será
drasticamente reduzida, talvez a uma diminuta percentagem dos níveis
diurnos normais. Nesse cenário, as tempestades cairão bruscamente nos
primeiros dias seguintes à guerra. O tempo de recuperação para a
radiação solar, temperatura, chuvas e ventos será de alguns meses a
alguns anos.
O principal estudo físico apresentado nesta Conferência por Carl
Sagan baseia-se no modelo construído por Turco, Toon, Ackerman,
Pollack e Sagan - designado como modelo TTAPS. Na primavera
passada um grupo de físicos debateu e criticou uma primeira minuta do
relatório TTAPS. O principal estudo biológico foi apresentado por Paul
Ehrlich, e também se baseia num amplo consenso de um grande grupo
de eminentes biólogos que se reuniram na primavera passada, logo após
o seminário dos físicos.
O modelo TTAPS nos diz que se a guerra ocorrer no verão do
Hemisfério Norte, as temperaturas cairão muito abaixo do ponto de
congelamento em extensas áreas de cultura de latitudes médias como os
cinturões de trigo e milho da América do Norte, principal fonte mundial de
exportação de grãos. Segundo o modelo, um conflito nuclear limitado de
apenas 100 megatons que envolvesse centros urbanos poderia produzir,
mesmo no verão, temperaturas continentais abaixo do ponto de
congelamento durante vários meses.
A energia solar necessária à fotossíntese de matéria vegetal será
radicalmente reduzida - a maior parte das plantas cultivadas
simplesmente não produz na sombra, mesmo que haja calor suficiente.
Ao que parece, a fumaça responsável pelo escurecimento pode ser
rapidamente transportada para o outro lado do equador. Assim, os efeitos
meteorológicos e os efeitos sobre a vida vegetal produzidos pela guerra
nuclear podem propagar-se globalmente em tempo relativamente curto.
Mesmo em áreas tropicais, como a bacia amazônica, segundo
modelos paralelos e suplementares trabalhados por Schneider, Covey e
Thompson do NCAR, que usaram o mesmo cenário, é provável a
ocorrência de temperaturas glaciais já nos primeiros dias após a guerra.
Suas conclusões, como as do TTAPS, indicam frio extremo em regiões
agrícolas de latitudes médias mesmo após uma guerra de verão. No seu
modelo, o rápido esfriamento dos dias imediatamente seguintes à guerra
é sucedido em tempo relativamente curto por urna recuperação da
temperatura nas vizinhanças das costas ocidentais produzida pelo efeito
moderador dos oceanos, termicamente estáveis, na medida em que
ventos fortes transportarão o calor dos oceanos a grandes distâncias
terra à dentro. Mas danos sérios já terão sido causados às lavouras e a
outras fontes de alimentos.
É provável que grande parte da produção de alimentos agrícolas e
silvestres no Hemisfério Norte seja quase anulada no período de um ano,
e também nos trópicos e no Hemisfério Sul a produção de alimentos
pode ser consideravelmente reduzida. Mesmo com reservas normais de
alimentos, é possível que um terço da população do mundo venha a
morrer de doenças ligadas à desnutrição, somando-se ao terço que pode
morrer pelos efeitos diretos das explosões e da radiação local
instantânea numa guerra nuclear mundial em grande escala. Novas
calamidades serão provocadas pela escuridão e pelo frio intenso. Perdas
adicionais resultarão da falta de água potável e outros serviços em
virtude do congelamento, estrago ou poluição de sistemas naturais de
suprimento e falta de apoio infraestrutural humano. Mesmo as
populações de países em desenvolvimento situados em zonas tropicais
distantes dos cenários da guerra enfrentarão terríveis problemas de
alimentação. A região africana do Sael, que já sofre grave escassez de
alimentos e depende em alto grau da importação de produtos agrícolas,
não escapará aos efeitos adversos de uma conflagração remota.
Além do mais, com toda a probabilidade as bolas de fogo da guerra
nuclear gerarão óxidos de nitrogênio (NOx) em quantidade suficiente para
reduzir a camada de ozônio e com isso aumentar várias vezes a radiação
solar ultravioleta durante vários anos, impedindo a recuperação de
plantas e animais por um longo período. Até o plâncton marinho pode ser
afetado, e por consequência os alimentos tirados do mar. Pode haver
grande incidência de cegueira em homens e animais em razão de
cataratas e lesões da córnea induzidas pela radiação ultravioleta. Outro
perigo é a redução das defesas imunológicas do homem e de outros
mamíferos, e consequente alastramento de doenças. A multiplicação de
insetos e outras pragas adaptadas de forma oportunista às novas
condições ambientais é uma possibilidade definida.
Ehrlich explicou que "todos os sistemas humanos estão contidos em
ecossistemas e dependem totalmente deles para a produção agrícola e
para uma série de outros 'serviços públicos' gratuitos. Esses serviços
incluem a regulação dos climas e manutenção da composição gasosa da
atmosfera; suprimento de água doce; remoção de resíduos; reciclagem
de elementos nutrientes (inclusive os indispensáveis à agricultura e à
silvicultura); geração e preservação de solos; controle da imensa maioria
das pragas potenciais das lavouras e vetores de enfermidades humanas;
suprimento de alimentos do mar; e manutenção de uma vasta 'biblioteca'
genética da qual a humanidade já tirou a própria base da civilização -
inclusive todas as plantas cultivadas e animais de criação". E fez notar
que uma guerra nuclear truncaria esses serviços gratuitos prestados pela
natureza numa ocasião em que as pessoas mais precisariam deles.
Em todos os modelos meteorológicos e climáticos existem
incertezas. O modelo TTAPS, o do NCAR e o apresentado pelos nossos
colegas da URSS diferem em alguns detalhes - como se viu nos debates
do painel. Por exemplo, o modelo soviético mostrou que depois do
esfriamento brusco as temperaturas poderão subir acima do "normal"
anterior. Mas todos eles mostram o esfriamento imediato e desastroso.
Além disso, as consequências biológicas não somente guardam
dependência dos modelos físicos, que têm suas limitações, como têm
igualmente suas incertezas próprias. Mas as conclusões gerais são
sólidas mesmo em face dessas diferenças e incertezas, e quando menos
dão o que pensar. Se é que ainda precisamos de outros incentivos para
prevenir um holocausto nuclear além dos que encontramos nas
consequências diretas da guerra, eles nos dão dados em abundância.
Esta Conferência não tratou das medidas políticas necessárias ao
controle do confronto nuclear global. Mas forneceu evidências de que as
ameaças à sobrevivência dos sistemas biológicos são maiores do que
anteriormente se supunha, e que realmente podem pôr em risco tudo
quanto conquistamos em milênios de civilização.
Como disse Carl Sagan, "é possível que a população do Homo
sapiens se reduza a níveis pré-históricos ou a menos ainda, e a própria
extinção da espécie humana não pode ser excluída". Paul Ehrlich disse
mais ou menos a mesma coisa em palavras um pouco diferentes.
Donald Kennedy abriu a nossa Conferência com uma exposição
brilhante. Nela, ele observou que há grandes incertezas no que foi
apresentado, mas também que "estas descobertas são parte de um
processo ordenado na evolução do pensamento científico, através do
qual pouco a pouco viemos deslocando o foco de nossas atenções dos
efeitos mais imediatos e mais óbvios para os mais complexos e
duráveis". Disse a seguir que esses novos efeitos são ainda mais sérios,
posto que muito mais difíceis de estimar com precisão. E disse mais, que
"... a incerteza deveria ser uma advertência temática para os
planejadores políticos. O que as nossas projeções mais ponderadas
mostram é que um choque nuclear em grande escala haverá de produzir,
entre os seus muitos efeitos plausíveis, as maiores convulsões biológicas
e físicas deste planeta nos últimos 65 milhões de anos - um período mais
de 30 mil vezes maior que o tempo decorrido do nascimento de Cristo, e
mais de 100 vezes o tempo de existência até aqui da nossa espécie". "É
preciso que a avaliação dos riscos prováveis", disse ele, "se constitua
numa base de considerações para todos aqueles que de têm a
responsabilidade pelas decisões de segurança nacional, aqui e em outras
partes." Esperamos que as nossas apresentações venham contribuir
definitivamente para o objetivo da exortação de Thomas Jefferson no
sentido de informar a discrição do povo, para que ele possa exercitar tal
discrição de modo esclarecido e razoável.
As questões científicas, é óbvio, ainda não foram plenamente
resolvidas. Eu tenho a satisfação de saber que organismos internacionais
como o SCOPE, Comitê Científico para Problemas do Ambiente, entre
outros, têm planos para dar continuidade seriamente ao estudo desses
pontos. A parte científica do processo deve prosseguir, para que as
incertezas se reduzam. Mas nós já sabemos o suficiente com respeito
aos riscos para compreender que é imperioso, em nome da humanidade,
acelerar a busca da segurança do mundo no campo da política. Como
cidadãos de nossos Estados nacionais, e como residentes da
"espaçonave Terra", devemos de fato conceber e praticar políticas que
assegurem um futuro estável ao planeta, aos seus pragmáticos, poetas,
santos, soldados e enfim, a todos os seres vivos sencientes.
APÊNDICE

O INVERNO NUCLEAR:
CONSEQUÊNCIAS GLOBAIS DE EXPLOSÕES
MÚLTIPLAS NUCLEARES

Tem-se manifestado Uma preocupação com respeito às


consequências a curto e a longo prazos da poeira, fumaça, radioatividade
e gases tóxicos que seriam produzidos numa guerra nuclear. A
descoberta de que nuvens densas de partículas de solo podem ter
desempenhado um papel importante em extinções em massa ocorridas
na Terra no passado incentivou a reconsideração dos efeitos de uma
guerra nuclear. Também, recentemente, Crutzen e Birks sugeriram que
grandes incêndios ateados por explosões nucleares poderiam gerar
quantidades de fumaça fuliginosa que atenuariam a luz solar e
perturbariam o clima. Essas circunstâncias levaram-nos a calcular,
utilizando novos dados e modelos aperfeiçoados, os possíveis efeitos
ambientais globais de nuvens de poeira e fumaça (daqui por diante
designadas poeira nuclear e fumaça nuclear) geradas numa guerra
nuclear. Provavelmente a maior parte da população do mundo
sobreviveria ao conflito nuclear inicial e herdaria o meio de pós-guerra.
Dessa forma, os efeitos retardados e globais de uma guerra nuclear
poderiam vir a revelar-se não menos importantes que as consequências
imediatas da guerra.
Para estudar esses fenômenos, nós utilizamos uma série de
modelos físicos: um modelo de cenário de guerra nuclear, um modelo de
microfísica de partículas e um modelo de radiação-convecção. O modelo
de cenário de guerra nuclear especifica a poeira, a fumaça e a
radioatividade em função da altitude, e as injeções de NOx para cada
explosão num conflito nuclear (supondo a potência, número e tipo das
detonações, inclusive altura de explosão, local geográfico e fração de
energia de fissão liberada). O modelo-fonte de fixação de parâmetros é
explicado adiante e numa memória mais detalhada. O modelo físico
unidimensional prediz a evolução no tempo das nuvens de poeira e
fumaça, que por hipótese se dispersariam rápida e uniformemente. O
modelo unidimensional de radiação-convecção (1-D RCM) aplica as
distribuições calculadas de dimensões de partículas de poeira e fumaça,
as constantes óticas e a teoria de Mie para calcular propriedades óticas
nas faixas visível e infravermelha, fluxos de luz e temperaturas do ar em
função do tempo e da altura. Como as temperaturas do ar calculadas são
sensíveis às capacidades térmicas superficiais, elaboram-se simulações
distintas para meios terrestres e oceânicos, para definir possíveis
contrastes de temperatura. As técnicas empregadas nos cálculos do
nosso 1-D RCM estão bem documentadas.
Os modelos por nós empregados, embora podendo fornecer
estimativas aproximadas dos efeitos médios de nuvens de poeira e
fumaça disseminadas em grandes extensões, não permitem prever com
precisão efeitos locais ou a curto prazo. A aplicabilidade dos nossos
resultados depende da velocidade e da extensão da dispersão das
nuvens de explosões e dos penachos produzidos por incêndios. Logo
após um conflito nuclear de grandes dimensões, milhares de nuvens
isoladas de poeira e fumaça distribuir-se-iam em toda a faixa de latitudes
médias setentrionais e em altitudes de até 30.000 metros. Difusão
horizontal turbulenta, arrastamento vertical pelo vento e emissão
continuada de fumaça poderiam espalhar as nuvens de detritos nucleares
pela zona inteira, tendendo a preencher os claros entre as nuvens em
uma a duas semanas. As simulações desse período inicial de dispersão
das nuvens com base em valores espaciais médios devem ser vistas com
cautela; os efeitos seriam menores em certos locais e maiores em
outros, e variariam com o tempo em qualquer local determinado.
Os presentes resultados também não refletem a forte conjugação
entre os movimentos atmosféricos em todas as escalas de extensão e as
taxas modificadas de aquecimento e esfriamento atmosféricos por
radiação solar e infravermelha computadas com o 1-D RCM. É quase
certo que os padrões de circulação global se alterariam em resposta às
grandes perturbações das forças agentes aqui calculadas. O 1-D RCM,
embora só possa predizer condições correspondentes a valores
horizontais, diurnos e sazonais médios, é capaz de estimar as respostas
climáticas de primeira ordem da atmosfera, que constituem o objeto
deste estudo.

Cenários

Um balanço dos arsenais nucleares do mundo mostra que as armas


primárias estratégicas e de teatro representam 12.000 megatons (MT) de
potência transportados por 17.000 ogivas. Em potência explosiva esses
arsenais equivalem aproximadamente a um milhão de bombas de
Hiroshima. Embora o número total de ogivas de alta potência esteja
diminuindo com o tempo, cerca de 7.000 MT ainda correspondem a
ogivas de mais de 1 MT. Existem também 30.000 ogivas táticas e
munições de baixa potência, que não são consideradas nesta análise. Os
cenários de emprego possível de armas nucleares são complexos e
discutíveis. Historicamente, os estudos dos efeitos à longo prazo de uma
guerra nuclear têm-se concentrado num conflito em grande escala, na
faixa de 5.000 a 10.000 MT. Esses conflitos são possíveis, tendo em vista
os arsenais atuais e a natureza imprevisível de uma guerra,
particularmente de uma guerra nuclear, em que poderia ocorrer uma
escalada maciça do conflito.
O Quadro 1 mostra um sumário dos cenários adotados neste
estudo. Nosso cenário de referência supõe um conflito de 5.000 MT. Os
demais casos cobrem uma gama de potência total de 100 a 25.000 MT.
Muitas instalações industriais e militares de alta prioridade localizam-se
nas vizinhanças ou dentro de zonas urbanas. Em vista disso, a fração da
potência total atribuída a objetivos urbanos ou industriais (15-30%) é
modesta. Tendo em vista a grande potência das ogivas estratégicas (em
geral mais de 100 quilotons [KT]), ataques "cirúrgicos" contra objetivos
isolados são difíceis; por exemplo, uma explosão aérea de 100 KT pode
arrasar e queimar uma área de 50 km2, e uma explosão aérea de 1 MT,
uma área 5 vezes maior, o que implica estragos colaterais extensos em
quaisquer ataques de "contravalor", e em muitos dos de "contraforça".
As propriedades da poeira e da fumaça nucleares são fatores
críticos para a presente análise. A fixação dos parâmetros básicos é
mostrada nos Quadros 2 e 3, respectivamente; detalhes podem ser
encontrados na Ref. 15. Para cada cenário de detonações, as
quantidades fundamentais que têm de ser conhecidas para efeito de
previsões óticas e climáticas são as injeções atmosféricas totais de
poeira fina (raio menor ou igual a 10 u) e fuligem.
Explosões nucleares no solo ou próximas do solo podem gerar
partículas finas por vários mecanismos: (i) ejeção e desagregação de
partículas de solo, (ii) vaporização e renucleação de terra e rocha, e (iii)
assopramento e arrastamento vertical de poeira e fumaça da superfície.
Análises de dados de testes nucleares indicam que aproximadamente 1 x
10 elevado a 5 a 6 x 10 elevado a 5 toneladas de poeira por megaton de
potência explosiva são contidas nas nuvens estabilizadas de detonações
superficiais em terra.
Além disso, a análise de dimensões de amostras de poeira
recolhidas em nuvens nucleares indica uma fração submicrométrica
substancial. Detonações nucleares na superfície podem ser muito mais
eficientes em gerar poeira fina do que erupções vulcânicas, que foram
impropriamente utilizadas no passado para estimar os impactos de uma
guerra nuclear.

A intensa luz emitida pela bola de fogo nuclear é suficiente para


iniciar a combustão de matérias inflamáveis numa extensa área. As
explosões sobre Hiroshima e Nagasaki atearam incêndios de grandes
proporções. Em ambas as cidades, a região pesadamente destruída pelo
sopro foi também consumida pelo fogo. Avaliações feitas nestes últimos
20 anos sugerem fortemente que ocorreriam incêndios extensos na maior
parte dos casos de detonações sobre florestas e cidades. O Hemisfério
Norte tem 4 x 10 elevado a 7 km2 de áreas florestais, que contêm
matérias combustíveis na proporção média de 2,2 g/cm2. As zonas
urbanas e suburbanas do mundo cobrem uma área de 1,5 x 10 elevado a
6 km2. Os centros de cidades, que ocupam entre 5 e 10% da área
urbana total, contêm entre 10 e 40 g/cm2 de matérias combustíveis,
enquanto as áreas residenciais contêm entre 1 e 5 g/cm2.
A emissão de fumaça de incêndios florestais e de incêndios urbanos
de grandes proporções situa-se provavelmente na faixa de 2 a 8% em
massa do combustível queimado. A fração fuliginosa, de alto coeficiente
de absorção (principalmente carbono grafítico) pode chegar a 50% da
emissão em peso. Em incêndios florestais, e provavelmente em incêndios
urbanos, mais de 90% da massa de fumaça são constituídos de
partículas de menos de 1u de raio. Nos cálculos relativos à faixa de luz
visível, atribuiu-se à parte imaginária do índice de refração da fumaça o
valor 0,3 elevado a 50.

Simulações

De modo geral, as previsões de modelo aqui referidas representam


efeitos médios no Hemisfério Norte (HN). As explosões nucleares e
incêndios iniciais seriam na maior parte circunscritos às latitudes
setentrionais médias (30º a 60ºN). Assim sendo, a opacidade média
prevista por efeito da poeira e fumaça poderia ser duas a três vezes
maior nas latitudes médias, e menores em outras partes. As
profundidades óticas médias hemisféricas nos comprimentos de onda
visíveis para as nuvens mistas de poeira e fumaça nucleares
correspondentes aos cenários do Quadro 1 são mostradas na Figura 1. A
profundidade ótica vertical é um diagnóstico útil das propriedades da
nuvem nuclear, e pode ser utilizada de modo aproximado para calcular os
níveis de luminosidade e temperatura atmosféricas para os diversos
cenários.
No cenário de referência (Caso 1, 5.000 MT), a profundidade ótica
inicial no HN é 4, sendo 1 devido à poeira estratosférica 3 à fumaça
troposférica. Depois de um mês a profundidade ótica ainda é 2. Ao fim de
dois a três meses, a poeira domina os efeitos óticos, pois a maior parte
da fuligem é arrastada ou lavada pela chuva. No caso de referência,
cerca de 240.000 km2 de áreas urbanas são parcialmente queimados
(50%) por 1.000 MT de explosões (apenas 20% da energia total
liberada). Isso corresponde aproximadamente a 1/6 da área continental
urbanizada do mundo, a 1/4 da área desenvolvida do HN e à metade da
área dos centros urbanos de mais de 100.000 habitantes dos países da
OTAN e do Pacto de Varsóvia. A quantidade média de matérias
combustíveis consumidas na área incendiada é1,9 g/cm2. Incêndios
florestais ateados pelos restantes 4.000 MT de energia queimam outros
500.000 km2 de árvores, campos e pastos, consumindo dessa forma 0,5
g/cm2 de matérias combustíveis
Figura 1: Profundidades óticas verticais (dispersão mais absorção,
médias hemisféricas) de nuvens de poeira e fumaça nucleares no
comprimento de onda de 550 nm, em função do tempo. Profundidades
óticas menor ou igual a 0,1 são desprezíveis, 1 são significativas, e maior
que 2 implicam a possibilidade de consequências de vulto. Em
profundidades óticas maior ou igual a 1 a transmissão da luz solar torna-
se altamente não-linear. São mostrados resultados para vários casos do
Quadro 1. Profundidades óticas calculadas para a nuvem da erupção do
El Chichón em expansão são mostradas para efeito comparativo.

A emissão total de fumaça no caso de referência é de 225 milhões


de toneladas (desprendidas no correr de vários dias). Em comparação, a
emissão global anual de fumaça hoje é estimada em 200 milhões de
toneladas, mas o grau de perturbação da atmosfera por ela produzido é
provavelmente menos de 1% do da fumaça nuclear.
As simulações de profundidade ótica para os Casos 1, 2, 9 e 10 na
Figura 1 mostram que uma gama de energia liberada entre 3.000 e
10.000 MT poderia produzir efeitos semelhantes. Mesmo os Casos 11, 12
e 13, ainda que menos severos em seu impacto absoluto, produzem
profundidades óticas comparáveis ou superiores às de uma grande
erupção vulcânica. É interessante notar que erupções como a do
Tambora em 1815 podem ter causado perturbações climáticas
significativas, mesmo com uma redução média de temperatura superficial
inferior a 1ºK.

Figura 2: Variações da temperatura superficial (médias


hemisféricas) após um conflito nuclear. São mostrados resultados para
vários casos do Quadro 1. (Note-se que, diferentemente da Fig. 1, a
escala de tempo é linear.) Em geral, as temperaturas aplicam-se ao
interior das massas continentais. Somente nos Casos 4 e 11 são
desprezados os efeitos dos incêndios.

O Caso 14 representa um ataque de 100 MT a cidades, com 1.000


ogivas de 10 KT. No ataque, 25.000 km2 de áreas urbanas construídas
são incendiados (essa área corresponderia aproximadamente a 100
grandes cidades). A emissão de fumaça é calculada com parâmetros de
incêndios diferentes dos do caso de referência. A carga média de
matérias combustíveis em áreas urbanas centrais é de 20 g/cm2 (contra
10 g/cm2 no Caso 1) e o fator médio de emissão de fumaça é 0,026 g de
fumaça por grama de material queimado (contra o valor moderado de
0,011 g/g adotado para incêndios em centros de cidades no caso de
referência). Cerca de 130 milhões de toneladas de fumaça urbana são
injetadas na troposfera em cada caso (no Caso 14 nenhuma fumaça
alcança a estratosfera). No caso de referência, só cerca de 10% da
fumaça urbana se originam de incêndios em áreas urbanas centrais
(Quadro 3).
O limiar de injeção de fumaça para perturbações óticas importantes
em escala hemisférica parece situar-se em 1 x 10 elevado a 8 toneladas.
Com base no Caso 14, pode-se esperar o desprendimento de 1 x 10
elevado a 6 toneladas de fumaça de cada uma das 100 grandes cidades
incendiadas, consumindo 4 x 10 elevado a 7 toneladas de matérias
combustíveis por cidade. Esses incêndios podem ser ateados por 100 MT
de explosões nucleares. Inesperadamente, menos de 1% dos arsenais
estratégicos existentes, se empregado contra cidades, poderia produzir
distúrbios óticos (e climáticos) muito maiores que os anteriormente
associados a um conflito nuclear maciço de 10.000 MT2.
A Figura 2 mostra a perturbação da temperatura superficial em
áreas continentais do HN calculada a partir das profundidades óticas de
poeira e fumaça para diversos cenários. O mais Impressionante são as
temperaturas extremamente baixas que ocorrem em três a quatro
semanas após um conflito em grande escala. No caso de referência de
5.000 MT, prediz-se uma temperatura mínima em áreas continentais de
250ºK (-23°C) ao fim de três semanas. Temperaturas abaixo de 0ºC
persistem por

Figura 3: Perturbações das temperaturas troposféricas e


estratosféricas no Hemisfério Norte (em graus Kelvin; 1ºK = 1°C) após o
conflito nuclear de referência (Caso 1). A área hachurada indica
esfriamento. Também são dadas. as pressões ambientes em milibars.
vários meses. Entre os casos mostrados, as menores quedas de
temperatura em terra são de 5º a 10ºC (Casos 4, 11 e 12), suficientes
para transformar o verão em inverno. Assim, são de esperar
consequências climáticas severas em todos esses casos. O cenário de
100 MT de explosões aéreas sobre cidades (Caso 14) produz um
intervalo de dois meses de temperaturas abaixo de 0ºC em terra, com
um mínimo também aqui, próximo de 250ºK. O restabelecimento da
temperatura neste caso é acelerado pela absorção da luz solar em
nuvens de fuligem remanescentes oticamente tênues (ver abaixo).
Cenários comparáveis com e sem emissão de fumaça (p. ex., Casos 10
e 11) mostram que as camadas troposféricas de fuligem causam um
esfriamento superficial abrupto de curta duração, ao passo que a poeira
fina estratosférica é responsável por esfriamento prolongado, durando
um ano ou mais. (Do ponto de vista do clima, um esfriamento superficial
de apenas 1ºC já é significativo.) Em todos os casos, a poeira nuclear
age no sentido de esfriar a superfície da Terra; a fuligem também tende a
esfriar a superfície, salvo quando a nuvem de fuligem é oticamente tênue
e localizada próximo à superfície (um caso pouco importante, pois com
isso não se obtêm mais que pequenos aquecimentos transitórios de
menos de 20K).
As variações preditas de temperatura do ar sobre os oceanos
ligadas às alterações do transporte atmosférico de radiação são sempre
pequenas (esfriamento inferior a 3ºK) por causa do grande conteúdo de
calor e rápida mistura das águas superficiais. No entanto, variações nos
padrões de circulação atmosférica zonal (ver abaixo) podem alterar de
modo considerável as correntes e vagas marinhas, como ocorreu há
pouco tempo em menor escala no leste do Pacífico (El Niño). O
reservatório oceânico de calor também moderaria os declínios preditos
de temperatura continental, principalmente em regiões costeiras. Esse
efeito é difícil de estimar em vista da probabilidade de distúrbios da
circulação atmosférica. Os declínios efetivos de temperatura no interior
dos continentes poderiam ser uns 30% menores que os aqui preditos, e
ao longo dos litorais uns 70% menores. No caso de referência, portanto,
as temperaturas continentais podem cair a 260ºK antes de voltar aos
níveis ambientes.
As variações preditas no perfil vertical de temperaturas para o
cenário de referência são Ilustradas em função do tempo na Figura 3. As
características dominantes da perturbação de temperatura são um
grande aquecimento (até 80ºK) da baixa estratosfera e alta troposfera, e
um grande esfriamento (até 400K) da superfície e baixa troposfera. O
aquecimento é causado pela absorção da radiação solar na parte
superior das nuvens de pó e fumaça; persiste por um período longo em
razão da residência prolongada das partículas na alta atmosfera, da sua
baixa emissividade de infravermelho e das temperaturas inicialmente
baixas nas grandes altitudes. O esfriamento superficial é o resultado da
atenuação do fluxo solar incidente pelas nuvens de aerossol (ver Figura
4) durante o primeiro mês da simulação. O efeito de estufa deixa de
ocorrer em nossos cálculos porque a energia solar é depositada acima da
altura em que a energia de infravermelho é irradiada para o espaço.
A Figura 4 mostra os declínios de insolação para vários cenários de
guerra. O caso de referência indica fluxos solares médios hemisféricos no
solo Inferiores a 10% dos valores normais durante várias semanas (não
considerando descontinuidades nas nuvens de pó e fumaça). Além de
causar as quedas de temperatura acima mencionadas, a insolação
atenuada pode afetar o ritmo de crescimento das plantas e o vigor das
cadeias alimentares marinhas, litorâneas e terrestres. No caso "severo"
de 10.000 MT, os níveis médios de luz ficam abaixo do mínimo requerido
para a fotossíntese por cerca de 40 dias em grande parte do Hemisfério
Norte. Em vários outros casos a insolação pode cair durante mais de dois
meses abaixo do ponto de compensação em que a fotossíntese é apenas
suficiente para manter o metabolismo vegetal. Dada a probabilidade de
as nuvens nucleares se manterem descontínuas nas primeiras uma ou
duas semanas após o conflito, a passagem da luz solar por claros nas
nuvens pode permitir a atividade de crescimento das plantas acima do
nível predito para condições médias das nuvens; no entanto, é provável
que em pouco tempo os claros se fechem.
Figura 4: Fluxos de energia solar ao nível do solo no Hemisfério
Norte após uma guerra nuclear. São mostrados resultados para vários
casos do Quadro 1. (Note-se que a escala de tempo é linear). Os valores
são médios para o ciclo diurno e para o hemisfério. Nos Casos 4 e 16
desprezam-se os incêndios. Indicam-se também o nível de fluxo
aproximado para o qual a fotossíntese deixa de acompanhar o ritmo
respiratório da planta (ponto de compensação) e aquele em que a
fotossíntese cessa. Esses limites variam para espécies diferentes.
Figura 5: Profundidades óticas verticais (absorção mais dispersão
em 550 nm) de nuvens nucleares em função do tempo, numa análise de
sensibilidade. As profundidades óticas são valores médios para o
Hemisfério Norte. Todos os casos mostrados correspondem a variações
de parâmetros do modelo em referência (Caso 1) e consideram a poeira
aplicável a cada qual: Caso 3, não há tempestades ígneas; Caso 4, não
há incêndios; Caso 22, tempo de lavagem pelas chuvas reduzidos de um
fator 3; Caso 25, fumaça inicialmente confinada aos primeiros 3.000 m da
atmosfera; Caso 26, fumaça inicialmente distribuída entre 13.000 e
19.000 m em todo o globo; e Caso 27, parte imaginária do índice de
refração da fumaça reduzida de 0,3 para 0,1. Para efeito de comparação,
no Caso 4, só se considera a poeira do modelo de referência (não se
consideram os incêndios).

Testes de Sensibilidade

Um grande número de testes de sensibilidade foi efetuado como


parte deste estudo. Os resultados são resumidos a seguir. Variações
razoáveis nos parâmetros da poeira nuclear no cenário de referência
produzem profundidades óticas médias hemisféricas iniciais de poeira
que variam aproximadamente de 0,2 a 3,0. Assim, a poeira nuclear por si
só poderia produzir um impacto climático importante. No caso de
referência, a opacidade da poeira é muito maior que a opacidade total de
aerossol associada às erupções do El Chichón e do Agung; mesmo
quando se atribuem aos parâmetros de poeira os seus valores menos
adversos dentro da faixa plausível, os efeitos são comparáveis aos de
uma grande explosão vulcânica.
A Figura 5 compara profundidades óticas de nuvens nucleares para
algumas variações dos parâmetros de fumaça do modelo de referência
(com a poeira incluída). No caso de referência, admite-se que
tempestades ígneas injetem somente uma pequena fração (5%) da
emissão total de fumaça na estratosfera. Assim, os Casos 1 e 3 (sem
tempestades ígneas) são muito semelhantes. Numa digressão extrema,
toda a fumaça nuclear é injetada na estratosfera e rapidamente difundida
a toda a volta da Terra (Caso 26); profundidades óticas elevadas podem
persistir por um ano (Fig. 5). Também se obtém um prolongamento dos
efeitos óticos no Caso 22, em que o tempo de eliminação troposférica
das partículas de fumaça aumenta de 10 a 30 dias próximo do solo. Em
contraste, quando a fumaça nuclear se mantém inicialmente próximo do
solo e se supõem processos dinâmicos e hidrológicos de remoção
inalterados, a eliminação da fumaça ocorre muito mais depressa (Caso
25). Mas, mesmo neste caso, parte da fumaça ainda se difunde para a
alta troposfera e ali permanece durante vários meses.
Num grupo de cálculos ópticos, fez-se variar o índice de refração
imaginário da fumaça entre 0,3 e 0,01. As profundidades ópticas
calculadas para índices entre 0,1 e 0,3 praticamente não mostram
diferenças (Casos 1 e 27 na Fig. 5). Com um índice de 0,05, a
profundidade ótica de absorção se reduz em apenas 50%, e com 0,01
em 85%. Por outro lado, a opacidade total (absorção mais dispersão)
aumenta em 5%. Esses resultados mostram que a absorção de luz e o
aquecimento nas nuvens de fumaça nuclear permanecem elevados até
que a fração de carbono grafítico da fumaça caia abaixo de uns poucos
pontos percentuais.
Um dos testes de sensibilidade (Caso 29, não figurado) considera
os efeitos óticos no Hemisfério Sul (HS) da poeira e fuligem
transportadas da estratosfera do HN. Nesse cálculo, a fumaça do Caso
13 (300 MT, HS) se soma à metade da poeira e fumaça estratosféricas
do caso de referência (com dispersão global rápida na estratosfera). A
profundidade ótica inicia! é 1 no HS, caindo para 0,3 em três meses. As
temperaturas médias preditas nas superfícies continentais do HS caem
8ºK em algumas semanas e permanecem pelo menos 4ºK abaixo do
normal por quase oito meses. No entanto, a influência sazonal deve ser
levada em conta. Por exemplo, as piores consequências para o HN
resultariam de um conflito de primavera ou de verão, quando as
plantações são vulneráveis e o perigo de fogo é maior. O HS, que estaria
então no outono ou no inverno, seria nesse caso menos sensível ao
escurecimento e esfriamento. Não obstante, as implicações deste cenário
para as regiões tropicais de ambos os hemisférios parecem sérias e
merecedoras de uma análise suplementar. Fatores sazonais também
podem modular a resposta atmosférica às perturbações pela fumaça e
poeira, e devem ser consideradas.

Figura 6: Profundidades óticas verticais (absorção mais dispersão


em 550 nm) em função do tempo para casos ampliados de energia
explosiva ou produção de poeira e fumaça nucleares. As condições são
detalhadas noutro lugar. As quantidades de energia explosiva liberada
são as mesmas dos casos nominais de igual total constantes do Quadro
1 (os Casos 16 e 18 também estão relacionados). Os casos “severos”
consideram geralmente um aumento de seis vezes na injeção de poeira
fina e de duas vezes na emissão de fumaça. Nos casos 15, 17 e 18, a
fumaça é responsável pela maior parte da opacidade durante os
primeiros um, dois meses. Nos casos 17 e 18, a poeira contribui com a
principal parcela para os efeitos óticos depois de um, dois meses. No
Caso 16 desprezam-se os incêndios e toda a opacidade é produzida pela
poeira de explosões na superfície.

Alguns testes de sensibilidade para casos mais severos foram


levados a efeito com liberações de energia variando de 1.000 a 10.000
MT e valores mais adversos, mas não implausíveis, atribuídos aos
parâmetros de poeira e fumaça. Os efeitos preditos são
consideravelmente piores (ver abaixo). As menores probabilidades
desses casos mais severos devem ser pesadas contra os desfechos
catastróficos que eles pressupõem. Seria política prudente medir a
importância desses cenários em termos do produto das suas
probabilidades pelos custos dos efeitos respectivos. Infelizmente, não
temos meios de quantificar com precisão as probabilidades aplicáveis. No
entanto, pela sua própria natureza, os casos mais severos devem ser os
mais importantes a considerar com vistas ao emprego de armas
nucleares.
Com essas reservas, apresentamos na Figura 6 as profundidades
óticas para alguns dos casos mais severos. Opacidades elevadas podem
persistir por um ano, e temperaturas superficiais continentais podem cair
a 230-240ºK, ou seja, cerca de 50ºK abaixo do normal. Combinados a
baixos níveis de luz (Fig. 4), esses cenários severos levantam a
possibilidade de consequências ecológicas catastróficas e generalizadas.
Dois testes de sensibilidade foram efetuados para determinar
aproximadamente as propriedades óticas da aglomeração de aerossol
nas nuvens em início de expansão. (As simulações já levam em conta a
coagulação contínua das partículas nas nuvens dispersas.) Admitiu-se
uma dispersão muito lenta nas nuvens iniciais estabilizadas de poeira e
fumaça, levando cerca de oito meses para cobrir o HN. A coagulação de
partículas reduziu a opacidade média ao fim de três meses em cerca de
40%. Quando a eficiência adesiva das partículas em colisão também foi
maximizada, a opacidade média ao fim de três meses reduziu-se em
75%. Na situação mais provável, porem, a aglomeração e coagulação
imediata reduziria as profundidades óticas médias hemisféricas das
nuvens em 20 a 50%.

Outros Efeitos

Foram considerados também, com menos detalhe, os efeitos à


longo prazo da precipitação radioativa, do NOx gerado pelas bolas de
fogo, e dos gases tóxicos e pirogênicos. A física da precipitação
radioativa é bem conhecida. Nossos cálculos referem-se principalmente à
acumulação externa na escala intermediária de tempo da precipitação
devida ao arrastamento e deposição seca da poeira nuclear dispersa.
Para estimar níveis possíveis de exposição, adotamos uma fração de
energia de fissão de 0,5 para todas as armas. Quanto à exposição
apenas à emissão gama da poeira radioativa, que no cenário de
referência (5.000 MT) começa a precipitar depois de dois dias, a dose
total média hemisférica acumulada por humanos em alguns meses seria
de 20 rads, supondo-se ausência de abrigo e de remoção da poeira por
agentes meteorológicos. Durante esse tempo a precipitação ficaria
restrita principalmente às latitudes médias do HN; ali, portanto, a dose
poderia ser 2 a 3 vezes maior. Considerando a ingestão de
radionuclídeos biologicamente ativos e exposição ocasional a precipitação
localizada, a dose crônica total média nas latitudes médias de radiação
ionizante no caso de referência seria mais de 50 rads de radiação gama
externa no corpo inteiro, somados a mais de 50 rads em órgãos internos
específicos, provenientes de emissores internos de radiações beta e
gama. No caso de 10.000 MT, com as mesmas suposições, as doses
médias seriam multiplicadas por dois. Estas doses são mais ou menos
uma ordem de grandeza maiores que as das estimativas precedentes,
que desprezaram o arrastamento e precipitação na escala intermediária
de tempo de resíduos nucleares troposféricos produzidos por detonações
de baixa potência (menos de 1 MT).
O problema do NOx produzido nas bolas de fogo das explosões de
alta potência, e da resultante redução do ozônio atmosférico, foi tratado
em vários estudos. No nosso caso de referência, encontrou-se para o
empobrecimento médio hemisférico de ozônio um valor máximo de 30%.
Este seria bem menor se as potências das ogivas individuais fossem
todas reduzidas a menos de 1 MT. Considerando a relação entre o
acréscimo da radiação UV-B e o decréscimo de ozônio, são previstas
doses de UV-B aproximadamente iguais ao dobro do normal no primeiro
ano após o conflito no caso de referência (depois de dissipadas a poeira
e a fuligem). Efeitos maiores de UV-B resultariam de ataques com ogivas
de maior potência (ou artefatos multidetonantes).
Os incêndios nucleares gerariam uma grande variedade de gases
tóxicos (piratoxinas), inclusive CO e HCN. Segundo Crutzen e Birks, uma
densa capa de poluição atmosférica, incluindo concentrações
aumentadas de ozônio, poderia recobrir o HN durante vários meses.
Preocupam-nos também as dioxinas e os furanos, compostos
extremamente tóxicos e persistentes que são liberados na combustão de
substâncias orgânicas sintéticas de largo emprego. Num conflito nuclear
poderiam ser geradas centenas de toneladas de dioxinas e furanos. As
consequências ecológicas à longo prazo dessas pirotoxinas nucleares
merecem estudos mais aprofundados.

Perturbações Meteorológicas

Variações horizontais da absorção de luz solar na atmosfera e na


superfície são as forças impulsoras básicas da circulação atmosférica.
Em vários dos casos considerados neste estudo são indicadas
modificações de vulto nessas forças. Por exemplo, desigualdades de
temperatura superiores a 10ºK entre áreas continentais do HN e os
oceanos contíguos podem induzir uma forte circulação do tipo monção,
análoga em certos aspectos ao padrão de inverno nas vizinhanças do
subcontinente Indiano. Do mesmo modo, o contraste de temperaturas
entre regiões atmosféricas carregadas de resíduos e regiões adjacentes
ainda não ocupadas pela fumaça e poeira deve produzir novas
modalidades de circulação.
Assim, pois, as nuvens de poeira e fumaça nucleares poderão
ocasionar perturbações climáticas de monta e efeitos correspondentes,
através de mecanismos variados: reflexão de radiação solar para o
espaço e absorção de luz solar na alta atmosfera, resultando em
esfriamento superficial generalizado; modificação dos padrões de
absorção da luz solar e aquecimento que promovem a circulação
atmosférica em pequena escala e em grande escala; introdução de maior
quantidade de vapor de água e de núcleos de condensação de nuvens,
que afetam a formação de nuvens e o regime de chuvas; e alteração do
albedo superficial por incêndios e fuligem. Esses efeitos conjugam-se
intimamente para determinar a resposta atmosférica geral a uma guerra
nuclear. Por ora não é possível prever em detalhe as alterações nos
campos combinados da circulação atmosférica e da radiação, e no
comportamento do tempo e dos microclimas, que resultariam das
injeções maciças de poeira e de fumaça aqui analisadas. Portanto, a
especulação tem de limitar-se a considerações muito gerais.
A evaporação dos oceanos é uma fonte contínua de umidade para
a camada marinha limítrofe. Uma camada densa semipermanente de
bruma ou nevoeiro poderia recobrir grandes porções de água. As
consequências para a precipitação pluviométrica marinha não são claras,
principalmente se os ventos dominantes normais forem grandemente
alterados pelo agente solar perturbado. Algumas regiões
continentais poderiam sofrer nevadas contínuas durante vários meses.
As chuvas podem promover a remoção da fuligem, se bem que o
processo possa não ser muito eficiente no caso de nuvens nucleares. É
provável que, em média, as taxas de precipitação pluviométrica fossem
em geral menores que na atmosfera ambiente: a principal fonte restante
de energia para a formação de tempestades é o calor latente da
evaporação oceânica, e a atmosfera superior fica mais quente que a
inferior, o que elimina a convecção e a formação de chuvas.
Apesar da possibilidade de grandes nevadas, não é provável que
uma guerra nuclear desencadeasse uma glaciação. O período de
esfriamento (menos de um ano) provavelmente é curto demais para
vencer a considerável inércia do sistema climático da Terra. O
reservatório de calor que são os oceanos haveria de forçar o clima no
sentido dos padrões contemporâneos nos anos seguintes à guerra. Do
ponto de vista climatológico, a introdução de CO2 pelos incêndios
nucleares não é expressiva.

Transporte Inter-Hemisférico

Em estudos anteriores foi admitido que um transporte inter-


hemisférico significativo de detritos nucleares e radioatividade
demandaria um ano ou mais. Isto com base em observações de
transporte em condições ambientes, inclusive a dispersão de nuvens de
detritos produzidas por testes nucleares atmosféricos isolados. No
entanto, nuvens densas de poeira e fumaça produzidas por milhares de
explosões quase simultâneas seriam de molde a provocar distúrbios
dinâmicos intensos em seguida a uma guerra nuclear. Pode-se
estabelecer uma analogia aproximada com a evolução das tempestades
de poeira de escala global em Marte. A baixa atmosfera marciana
assemelha-se em densidade à estratosfera da Terra, e o período de
rotação é quase igual ao da Terra (embora a insolação seja apenas
metade da terrestre). As tempestades de poeira que se formam em um
dos hemisférios de Marte não raro se intensificam e se propagam
rapidamente ao planeta inteiro, cruzando o equador num tempo médio de
10 dias. Aparentemente, a explicação está no aquecimento da poeira
levantada, que passa a suplantar outras fontes de calor e a determinar a
circulação. Haberle e outros empregaram um modelo bidimensional para
simular a evolução das tempestades de poeira em Marte e concluíram
que a poeira em baixas latitudes, no núcleo da circulação de Hadley, é o
fator mais Importante de modificação dos ventos. Num conflito nuclear, a
maior parte da poeira e fumaça seria injetada em latitudes médias.
Entretanto, Haberle e outros não conseguiram encaixar em seus cálculos
as ondas de escala planetária. Perturbações da amplitude de ondas
planetárias podem influir consideravelmente no transporte de detritos
nucleares entre médias e baixas latitudes.
Efeitos atmosféricos de vulto poderiam produzir-se no HS (i) pela
injeção de poeira e fumaça resultante de explosões em objetivos do HS,
(ii) pelo transporte de detritos do HN através do equador meteoro lógico
por ventos do tipo monção 4, e (iii) por transporte inter-hemisférico na
alta troposfera e na estratosfera, promovido pelo aquecimento solar das
nuvens de poeira e fumaça nucleares. Observações fotométricas da
nuvem produzida pela erupção do vulcão El Chichón (origem 14ºN) pelo
satélite Solar Mesosphere Explorer mostraram que 10 a 20% do aerossol
estratosférico foram transportados para o HS após 7 semanas.

Discussão e Conclusões

Os estudos aqui esboçados sugerem efeitos climáticos sérios à


longo prazo como consequência de um conflito nuclear de 5.000 MT.
Apesar das incertezas no que se refere às quantidades e propriedades
da poeira e da fumaça produzidas por explosões nucleares, e das
limitações dos modelos usados para análise, podem tirar-se em primeira
aproximação as seguintes conclusões:

(1) Em desacordo com a maior parte dos estudos anteriores (p. ex.,
Ref. 2), nós concluímos que uma guerra nuclear global produziria um
grande impacto sobre o clima - manifestado em escurecimento
considerável da superfície durante muitas semanas, temperaturas
continentais glaciais persistindo por até vários meses, grandes
perturbações nos padrões de circulação global e alterações dramáticas
de condições meteorológicas locais e regimes de chuvas - um rigoroso
"inverno nuclear" em qualquer estação. Transporte inter-hemisférico
acelerado de detritos nucleares na estratos fera também poderia ocorrer,
embora se façam necessários estudos de modelo para quantificar esse
efeito. Com a rápida mistura inter-hemisférica, o HS poderia sofrer
grandes injeções de detritos nucleares pouco tempo depois de um
conflito no HN. Antes, supunha-se que os efeitos no HS seriam de pouca
monta. Embora se preveja que os distúrbios climáticos durem mais de
um ano, parece improvável que fosse deflagrada uma transformação
climática de vulto à longo prazo, como uma glaciação.

(2) Efeitos climáticos relativamente grandes poderiam resultar


mesmo de um conflito nuclear relativamente pequeno (100 a 1.000 MT)
se os ataques se concentrassem em áreas urbanas, pois 100 MT já são
suficientes para arrasar e incendiar algumas centenas de grandes
centros urbanos do mundo. Um limiar tão baixo de energia para emissões
maciças de fumaça, embora dependendo do cenário, implica que mesmo
conflitos nucleares limitados podem deflagrar consequências graves.
Tanto menos provável é que a liberação de 5.000 a 10.000 MT tivesse
apenas efeitos leves.

(3) Prevê-se que o impacto climático da fumaça negra de incêndios


nucleares ateados por explosões aéreas será mais importante que o da
poeira levantada por detonações na superfície (quando os dois efeitos
ocorrerem). A fumaça absorve eficientemente a luz solar, ao passo que a
poeira de solo é geralmente não-absorvente. As partículas de fumaça
são extremamente pequenas (tipicamente raio inferior a 1 u), o que
prolonga o seu tempo de residência atmosférica. Há também uma alta
probabilidade de que explosões nucleares sobre cidades, florestas e
campos ateariam incêndios de grande extensão, mesmo em ataques
limitados a silos de mísseis e outros alvos militares estratégicos.

(4) A fumaça de incêndios urbanos pode ser mais importante que a


de incêndios florestais colaterais por duas razões pelo menos: (i) num
conflito em grande escala, é provável que cidades contendo grandes
depósitos de matérias combustíveis sejam diretamente atacadas; e (ii)
tempestades ígneas intensas poderiam bombear fumaça para a
estratosfera, onde o tempo de residência é de um ano ou mais.

(5) A poeira nuclear também pode contribuir para o impacto


climático de um conflito nuclear. O efeito climático da poeira é muito
sensível à maneira de condução da guerra; é de esperar um efeito menor
se forem empregadas armas de menor potência e se houver
predominância de detonações aéreas sobre detonações no solo. A
ocorrência de detonações múltiplas poderia agravar os efeitos climáticos
da poeira nuclear, mas não há dados suficientes para avaliar esta
questão.

(6) A exposição à precipitação radioativa pode ser mais intensa e


generalizada do que o predito por modelos empíricos de exposição que
desprezam a precipitação intermediária, a qual pode estender-se por dias
e semanas, tanto mais se grandes quantidades de detritos de fissão
fossem bruscamente liberadas na troposfera por explosões de potência
abaixo de 1 MT. Num conflito de 5.000 MT, podem verificar-se em
latitudes médias do HN doses médias de raios gama (exposição corporal)
de até 50 rads; doses maiores podem ocorrer nos penachos de
precipitação que partindo dos objetivos se estenderiam centenas de
quilômetros na direção do vento. Essa estimativa deixa de levar em conta
uma dose provavelmente não insignificante de radiação interna devida a
radionuclídeos biologicamente ativos.

(7) Sinergismos entre efeitos à longo prazo de uma guerra nuclear -


como baixos níveis de luz, temperaturas glaciais, exposição à
precipitação radioativa intermediária, alto grau de poluição pirogênica do
ar e fluxo acrescido de UV-B -, agravados pela supressão de socorros
médicos, suprimento de alimentos e serviços civis, poderiam aumentar
em muito o número de baixas e afetar seriamente o ecossistema global.
Uma avaliação das possíveis consequências biológicas à longo prazo dos
efeitos de uma guerra nuclear quantificadas neste estudo foi feita por
Ehrlich e outros.

Nossas estimativas dos impactos físicos e químicos de uma guerra


nuclear são necessariamente imprecisas porque nós utilizamos modelos
unidimensionais, porque os dados básicos são incompletos e porque o
problema não é passível de investigação experimental. Também não nos
é possível prever a natureza exata das alterações da dinâmica
atmosférica e da meteorologia apontadas pelos nossos cenários de
guerra nuclear, nem o efeito de tais alterações na manutenção ou
dispersão das nuvens iniciais de poeira e fumaça. Não obstante, sendo
tão grande a magnitude dos efeitos de primeira ordem, e tão sérias as
implicações, esperamos que as questões científicas aqui levantadas
sejam enérgica e criticamente examinadas.

CONSEQUÊNCIAS BIOLÓGICAS À LONGO PRAZO DE


UMA GUERRA NUCLEAR
Estudos recentes de uma guerra nuclear em grande escala
(liberação de 5.000 a 10.000 MT) estimaram que haveria 750 milhões de
mortes imediatas somente por ação das explosões; um total de 1,1 bilhão
de mortes provocadas pelos efeitos combinados de explosões, fogo e
radiação e aproximadamente outro tanto de feridos necessitando
cuidados médicos. Assim, as baixas imediatas de uma guerra nuclear
poderiam representar de 30 a 50% da população do mundo. A grande
maioria das baixas ocorreria no Hemisfério Norte, principalmente nos
Estados Unidos, URSS, Europa e Japão. Esses números enormes têm
sido tipicamente citados para definir em toda a sua magnitude o potencial
catastrófico de uma guerra dessa espécie. No entanto elementos novos
aqui apresentados sugerem que os efeitos biológicos à mais longo prazo
resultantes de alterações climáticas podem ser pelo menos tão graves
quanto os imediatos. Nossa preocupação neste artigo é com os dois ou
três bilhões de pessoas não imediatamente mortas, inclusive as de
países situados a grandes distâncias do conflito nuclear.
Consideram-se principalmente os resultados de uma guerra nuclear
em que poeira e fumaça são injetadas na atmosfera em quantidade
bastante para interceptar a maior parte da radiação solar incidente,
possibilidade esta inicialmente sugerida por Ehrlich e outros, e
inicialmente quantificada e divulgada por Crutzen e Birks. Numa ampla
gama de cenários de conflito nuclear, com liberação de energia variando
de 100 a 10.000 MT, sabemos agora que a luz solar poderia ser
absorvida e dispersada em grau suficiente para provocar escuridão e frio
em áreas extensas, (esses trabalhos são coletivamente designados
TTAPS). Em todos os casos as computações indicam consequências
biológicas de extrema gravidade. Todos os cenários estão perfeitamente
enquadrados nas possibilidades atuais, e do ponto de vista estratégico
não parecem improváveis. Além disso, é possível que a probabilidade de
uma guerra nuclear com altíssima liberação de energia tenha sido de
modo geral subestimada. Examinam-se também as consequências da
propagação de efeitos atmosféricos ao Hemisfério Sul.
Consideramos como caso de referência o Caso 17 dos cenários
estudados no TTAPS. É o caso de um conflito de 10.000 MT em que aos
parâmetros que definem as propriedades dos aerossóis de poeira e
fuligem são atribuídos valores adversos mas não implausíveis, e em que
30% da fuligem são carreados por tempestades ígneas a altitudes
estratosféricas. As perturbações ambientais resultantes, com as
respectivas margens de incerteza, estão relacionadas para os
Hemisférios Norte e Sul no Quadro 1, A e B.
Tomando valores médios para o Hemisfério Norte,
independentemente da estação do ano, os fluxos calculados de luz visível
reduzir-se-iam a aproximadamente 1% do normal, e as temperaturas
superficiais no interior dos continentes poderiam cair a aproximadamente
-40°C. Seria necessário no mínimo um ano para que a luz e a
temperatura retornassem às condições normais. Em zonas de objetivos,
de início a escuridão poderia ser total, mesmo ao meio-dia. Uma porção
estimada de 30% das áreas continentais de latitudes médias do
Hemisfério Norte receberia uma dose de radioatividade superior a 500 R
imediatamente após as explosões. Essa dose, produzida por emissores
gama externos da precipitação radioativa, igualaria ou excederia a dose
aguda média letal (LD50) para adultos sadios. Nos dias e semanas
seguintes, a precipitação contribuiria uma dose externa adicional superior
a 100 R em 50% das latitudes médias norte. Doses internas contribuiriam
outros 100 R ou mais concentrados em sistemas orgânicos específicos
como a tiroide, os ossos, o trato gastrointestinal e o leite das lactantes.
Após o assentamento da poeira e da fumaça, o fluxo superficial de
radiação solar ultravioleta (UV-B, 320 a 290 nm) seria aumentado várias
vezes durante alguns anos em virtude do empobrecimento da ozonosfera
por ação do NOx gerado pelas bolas de fogo. Os efeitos no Hemisfério
Sul envolveriam níveis mínimos de luz inferiores a 10% do normal,
temperaturas mínimas continentais na superfície inferiores a -18ºC e
aumentos de UV-B de dezenas de pontos percentuais durante anos. Os
impactos potenciais das alterações climáticas induzidas por uma guerra
nuclear são sumariados no Quadro 2.
Evidentemente são possíveis guerras termonucleares menos
adversas para o meio, mas efeitos climáticos semelhantes aos aqui
delineados poderiam resultar de conflitos muito mais limitados, de não
mais de algumas centenas de megatons, no caso de ataques a cidades.
Mesmo que não houvesse efeitos climáticos globais, as consequências
regionais de uma guerra nuclear poderiam ser sérias (Quadro 3).
Achamos, no entanto, que os detentores do poder de decisão devem ser
plenamente informados das consequências potenciais dos cenários mais
prováveis de desencadear efeitos prolongados. Por isso, concentramo-
nos; neste artigo, no caso "severo" de 10.000 MT, em vez de no caso de
referência de 5.000 MT do TTAPS. De qualquer modo, por causa dos
sinergismos, as consequências de qualquer dado cenário de guerra
nuclear podem ser mais graves que as que abaixo se descrevem. Nosso
conhecimento do funcionamento detalhado dos ecossistemas globais é
ainda muito incompleto para podermos avaliar todas as interações, e por
conseguinte os efeitos cumulativos, dos muitos fatores adversos a que as
populações humanas e os ecossistemas seriam submetidos. Cada
sinergismo não avaliado é provavelmente um fator negativo multiplicador.

Temperatura

O impacto de temperaturas dramaticamente reduzidas sobre as


plantas dependeria da época do ano em que elas ocorressem, da sua
duração e dos limites de tolerância de cada espécie vegetal.
Particularmente importante é a queda brusca de temperatura. O trigo de
inverno, por exemplo, pode suportar temperaturas de até -15º a -20ºC
quando pré-condicionado a baixas temperaturas (como ocorre
naturalmente nos meses de outono e de inverno), mas uma temperatura
de -5ºC pode matar as mesmas plantas se expostas durante o
crescimento ativo de verão. Até plantas de regiões alpinas, como por
exemplo o Pinus cembra, que toleram temperaturas de até -50ºC no meio
do inverno, podem ser mortas por temperaturas de -5ºC a -10ºC
ocorridas no verão. Os cálculos do TTAPS indicam que as temperaturas
cairiam em tempo curto aos seus níveis mínimos (Quadro 1); nessas
circunstâncias é improvável que plantas normalmente resistentes ao frio
pudessem "endurecer" (desenvolver tolerância ao congelamento) antes
de alcançadas temperaturas letais. Outros traumas infligidos às plantas
pela radiação, por poluentes do ar e por baixos níveis de iluminação
imediatamente após a guerra multiplicariam os danos provocados pelo
esfriamento. Além disso, plantas doentes ou danificadas têm reduzidas a
sua capacidade de suportar condições de frio extremo.
Mesmo temperaturas bem acima do ponto de congelamento podem
ser danosas para certas plantas. Por exemplo, a exposição do arroz ou
do sorgo a uma temperatura de apenas 13ºC na época crítica pode inibir
a formação de grãos porque o pólen produzido é estéril. O milho (Zea
mays) e a soja (Glycine max), duas culturas importantes na América do
Norte, são muito sensíveis a temperaturas de menos de 10ºC.
Se bem que uma guerra nuclear no outono ou no inverno teria
provavelmente efeitos menores sobre as plantas do que na primavera ou
no verão, a vegetação tropical é vulnerável às baixas temperaturas em
todas as épocas do ano. As únicas regiões em que as plantas terrestres
poderiam escapar à devastação pelo frio extremo seriam aquelas
situadas junto às costas e em ilhas, onde as temperaturas seriam
moderadas pela inércia térmica dos mares. Contudo, essas áreas
experimentariam condições meteorológicas excepcionalmente violentas
devido ao forte gradiente lateral de temperatura entre os oceanos e o
interior dos continentes.

Luz Visível

A ruptura da fotossíntese pela atenuação da luz solar incidente teria


consequências que se propagariam em cascata ao longo das cadeias
alimentares, muitas das quais incluem o homem como consumidor. A
produtividade primária se reduziria mais ou menos na proporção do grau
de atenuação da luz, mesmo na hipótese pouco realista de que a
vegetação não fosse afetada de outros modos.
Vários estudos têm examinado os efeitos do escurecimento sobre o
ritmo da fotossíntese, o crescimento das plantas e o rendimento das
safras. Embora folhas individuais possam ser saturadas por níveis de luz
abaixo da metade da luz solar normal, plantas inteiras, que têm várias
camadas de folhas orientadas em diferentes ângulos em relação ao sol e
sombreando parcialmente umas as outras, geralmente não são
saturadas. Assim, uma redução de luz de apenas 10%, ainda que não
reduzisse a fotossíntese numa folha inteiramente exposta, poderia
reduzi-la no conjunto da planta devido à presença de folhas não
saturadas no folhame. Aliás, visto que as plantas também respiram, é
provável que na maioria dos casos todo crescimento seria interrompido
se o nível de luz caísse uns 5% abaixo dos níveis ambientes normais do
habitat (ponto de compensação). Nos níveis previstos para os primeiros
meses seguintes a um conflito nuclear de vulto, as plantas seriam
seriamente afetadas e muitas morreriam pela redução substancial de sua
produtividade causada unicamente pela redução de luz.
Radiação ionizante

A exposição à radiação ionizante num conflito nuclear seria o


resultado direto do fluxo de nêutrons e raios gama da bola de fogo, dos
detritos radioativos depositados na direção do vento. e da parte dos
detritos que seria transportada pelo ar e circularia globalmente.
O grau de dano dos organismos dependeria do tempo e intensidade
da exposição, sendo os efeitos tanto mais graves quanto maiores o
tempo e a exposição total. A exposição letal média para o homem é
geralmente calculada em 350 a 500 R recebidos no corpo inteiro em
menos de 48 horas. Para a maior parte dos outros mamíferos e para
algumas plantas a exposição letal média é inferior a 1.000 R. Se o tempo
de exposição diminui, a dose letal média aumenta.
A área submetida à radiação intensa produzida pela bola de fogo
também seria diretamente afetada pelo sopro e pelo calor. O raio dentro
do qual a pressão do sopro ultrapassa cinco libras por polegada quadrada
é definida como a zona letal de sopro, e a área em que o fluxo térmico
ultrapassa 10 cal/cm2, como a zona letal de calor. O raio dentro do qual
se calcula que a radiação ionizante da bola de fogo seria letal para o
homem é menor que os raios de letalidade definidos pela pressão ou pelo
calor. Não se deu aqui atenção especial adicional aos efeitos da radiação
ionizante produzida pelas bolas de fogo.
Uma estimativa, baseada no cenário da revista Ambio e parecida
com o caso de referência do TTAPS, envolve a liberação de 5.742 MT e
cerca de 11.600 detonações, sem superposição de campos de
precipitação; sugere que cerca de 5 x 10 elevado a 6 km2 seriam
expostos a 1.000 R ou mais em áreas situadas na direção do vento.
Cerca de 85% dessa exposição total seriam recebidos em 48 horas. Essa
exposição é letal para todas as pessoas expostas, e pode causar a morte
de espécies vegetais sensíveis como a maioria das coníferas - árvores
que formam florestas extensas na maior parte das zonas mais frias do
Hemisfério Norte. Se reatores, depósitos de rejeitos radioativos e usinas
de reprocessamento de combustível nuclear fossem atingidos num
ataque, a área afetada e os níveis de radiação ionizante poderiam ser
ainda maiores.
Na hipótese de que mais ou menos a metade da área afetada por
radiação de precipitação na faixa de 1.000 a 10.000 R fosse coberta de
florestas, seriam aproximadamente 2,5 x 10 elevado a 6 km2 dentro dos
quais ocorreria extensa mortalidade de árvores e muitas outras plantas.
Com isso criar-se-ia a possibilidade de incêndios de grandes proporções.
A maior parte das coníferas morreria numa área equivalente a cerca de
2,5% de toda a superfície terrestre do Hemisfério Norte.
A possibilidade de até 30% da área continental de latitudes médias
ser exposta a 500 R ou mais de radiação gama acentua a escala e a
gravidade do perigo (Quadro 1A). Uma exposição total de 500 R, embora
tivesse pouco efeito sobre a maior parte das populações vegetais,
provocaria mortalidade generalizada entre todos os mamíferos, seres
humanos inclusive. Os sobreviventes expostos ficariam doentes por
semanas, e mais propensos ao câncer pelo resto de suas vidas. O total
de pessoas afetadas excederia um bilhão.

Radiação UV-B

Nas semanas seguintes ao conflito, a poeira e fuligem troposféricas


e estratosféricas absorveriam o fluxo de UV-B que sem isso seria
transmitido pela ozonosfera parcialmente destruída. Mas quando, alguns
meses passados, a poeira e a fuligem se dissipassem, os efeitos da
rarefação de O3 far-se-iam sentir na superfície. No Hemisfério Norte, o
fluxo de UV-B aumentaria aproximadamente duas vezes no caso de
referência do TTAPS e quatro vezes no da guerra de 10.000 MT
considerado no Quadro 1A. Tal como acontece no caso de uma
ozonosfera inalterada, a dose de UV-B seria bem maior nas latitudes
equatoriais do que nas temperadas.
Mesmo empobrecimentos bem menores de O3 são considerados
perigosos para os ecossistemas e para o homem. Se a banda inteira de
UV-B aumentasse em cerca de 50%, a quantidade de UV-B no extremo
de energia mais alta da banda, em torno de 295 nm, aumentaria umas 50
vezes. Essa região tem importância biológica especial devido à fone
absorção de energia nesses comprimentos de onda pelos
ácidos nucleicos, pelos aminoácidos aromáticos e pela ligação peptídica.
Em grandes doses, a UV-B é muito destrutiva para as folhas,
enfraquecendo as plantas e reduzindo a sua produtividade. Sabe-se que
a produtividade do plâncton marinho próximo à superfície é
consideravelmente deprimida por níveis ambientes atuais de UV-B;
aumentos mesmo pequenos poderiam ter "consequências profundas"
para a estrutura das cadeias alimentares marinhas.
Em pelo menos quatro outros modos, níveis acrescidos de UV-B
são sabidamente prejudiciais aos sistemas biológicos: (i) sabe-se que os
sistemas imunológicos do Homo sapiens e de outros mamíferos são
suprimidos mesmo por doses relativamente baixas de UV-B18.
Particularmente em condições de radiação ionizante aumentada e outras
sobrecargas fisiológicas, essa supressão dos sistemas
imunológicos conduz a um aumento de incidência de doenças. (ii) Folhas
que atingem a maturidade sob baixas intensidades de luz são duas ou
três vezes mais sensíveis à UV-B do que as que se desenvolvem sob
iluminação intensa. (iii) A sensibilidade das bactérias à UV-B é aumentada
por temperaturas baixas, que suprimem o processo normal de
reconstituição do ADN, processo esse que depende da luz visível. (IV)
Exposição prolongada a doses excessivas de UV-B pode induzir danos da
córnea e cataratas, produzindo cegueira no homem e em mamíferos
terrestres. Assim, os efeitos do aumento de UV-B podem estar entre as
mais sérias consequências antes não previstas de uma guerra nuclear.

Efeitos Atmosféricos

Numa guerra nuclear, grandes quantidades de poluentes do ar,


entre eles Co, O3, NOx, cianetos, cloretos de vinil, dioxinas e furanos,
seriam liberadas junto à superfície. Haveria smog e chuvas ácidas em
extensas áreas depois do conflito. Talvez essas toxinas não tivessem
efeitos imediatos significativos sobre uma vegetação já devastada;
entretanto, dependendo da sua persistência, poderiam certamente obstar
a sua recuperação. Por outro lado, o seu transporte pelos ventos para
ecossistemas mais distantes, de início não afetados, poderia ser um
importante efeito adicional. Incêndios em grande escala conjugados a
uma interrupção da absorção do CO2 fotossintético produziriam um
aumento a curto prazo da concentração atmosférica de CO2. A
quantidade atual de CO2 na atmosfera equivale à que é consumida por
vários anos de fotossíntese e recebe a influência estabilizadora das
reservas de carbono inorgânico dos oceanos. Dessa forma, se o clima
global e a produtividade fotossintética dos ecossistemas se
restabelecessem em níveis próximos do normal no curso de alguns anos,
é improvável que viesse a ocorrer uma alteração de longo prazo na
composição da atmosfera. Contudo, não é fora dos domínios do possível
que um evento abrangendo os dois hemisférios, com os consequentes
danos aos organismos fotossintéticos, causasse um brusco aumento de
concentração de CO2 e assim alterações climáticas duráveis. Para efeito
de comparação. o tempo de reciclagem de O2 através da biosfera é de
aproximadamente 2.000 anos.

Sistemas Agrícolas

As reservas de alimentos básicos nos centros de população


humana são pequenas, e a maior parte da carne e dos produtos frescos
é suprida diretamente pelas fazendas. Somente grãos de cereais são
armazenados em quantidades expressivas, mas os locais de
armazenagem situam-se com frequência em pontos distantes dos
centros urbanos. Em seguida a uma guerra na primavera ou no princípio
do verão, as safras do ano seriam quase certamente perdidas. Numa
guerra de outono ou de inverno os grãos teriam sido colhidos, mas como
o clima permaneceria extremamente frio por muitos meses, a época
seguinte de plantio seria também desfavorável ao crescimento das
plantas.
Em suma, após uma guerra nuclear as fontes potenciais disponíveis
de alimentos no Hemisfério Norte seriam destruídas ou contaminadas, ou
estariam em locais inacessíveis, ou logo se esgotariam. Nos países
diretamente envolvidos na guerra haveria escassez de alimentos em
muito pouco tempo. Outrossim, países que hoje precisam de grandes
importações, ainda que não atingidos por explosões nucleares, sofreriam
uma pronta interrupção de abastecimento, o que os obrigaria a contar
unicamente com seus ecossistemas agrícolas e naturais locais. Este
seria um seríssimo problema para muitas nações menos desenvolvidas,
principalmente nas regiões tropicais.
Em sua maior parte, as principais culturas são anuais, e dependem
em alto grau de subsídios energéticos e nutritivos fornecidos por
sociedades humanas. Além disso, a fração da sua produção utilizável
para consumo humano requer a fixação de um excesso de energia acima
das necessidades respiratórias das plantas, o que exige insolação
abundante e minimização de agressões ambientais por pragas,
insuficiência de água, partículas em suspensão no ar, poluição, etc.
Depois de uma guerra nuclear, proporcionar tais condições seria
muitíssimo difícil, se não impossível, na maior parte da Terra ou
possivelmente em toda ela. Portanto, para todos os efeitos práticos, a
agricultura tal como a conhecemos deixaria de existir.

Como na maior parte das culturas norte-americanas, europeias e


soviéticas as sementes são colhidas e armazenadas não em fazendas
individuais mas predominantemente em áreas-objetivos ou em seus
arredores, os estoques de sementes para anos subsequentes seriam
quase com certeza seriamente desfalcados, e é provável que a
variabilidade genética dessas culturas, já limitada, fosse drasticamente
reduzida. Além do mais, as áreas potenciais de cultura experimentariam
modificações climáticas locais, altos níveis de contaminação radioativa e
solos empobrecidos ou erodidos. A recuperação da produção agrícola
teria de ocorrer na ausência de subsídios maciços de energia
(especialmente sob a forma de combustível de trator e de fertilizantes)
aos quais a agricultura das nações desenvolvidas veio a adaptar-se.
Exceto ao longo das costas, os regimes continentais de chuvas
reduzir-se-iam substancialmente durante algum tempo após um conflito
nuclear. Mesmo hoje, a precipitação pluviométrica é o principal fator
condicionante da produção agrícola em muitas áreas, e a irrigação, com
seus requisitos de energia e de sistemas de suporte humano para
bombeamento de água do solo, não seria exequível depois de uma
guerra. Ademais, nos meses seguintes à guerra a maior parte da água
disponível estaria congelada, e o restabelecimento das temperaturas em
seus níveis normais seria lento.

Ecossistemas Terrestres Temperados

Na medida em que decaísse a agricultura organizada, os 2 ou 3


bilhões de sobreviventes aos efeitos imediatos da guerra seriam
obrigados a voltar-se para os ecossistemas naturais. E justamente
quando estes seriam solicitados a prover sustento a uma população
humana muito acima da sua capacidade de carga, o funcionamento deles
próprios seria entravado seriamente pelos efeitos da guerra nuclear.
A ação sobre os ecossistemas de baixas temperaturas, fogo,
radiação, tempestades e outras agressões físicas (muitas delas
ocorrendo simultaneamente) resultaria em sua maior suscetibilidade a
surtos de pragas e doenças, provavelmente prolongados. A produtividade
primária reduzir-se-ia dramaticamente nos baixos níveis de luz reinantes;
e, por causa da UV-B, do smog, dos insetos, da radiação e de outros
fatores adversos, é improvável que voltasse em pouco tempo aos níveis
normais, mesmo depois de restabelecidos os valores de luz e
temperatura. Ao mesmo tempo em que teriam o seu suprimento de
alimentos vegetais seriamente limitado, quase todos, se não todos, os
vertebrados não imediatamente mortos pelas explosões e pela radiação
ionizante ou morreriam congelados, ou enfrentariam um mundo de
escuridão em que sucumbiriam de fome ou de sede, já que as águas
superficiais estariam congeladas e portanto inaproveitáveis. Muitos dos
sobreviventes estariam isolados, e em muitos casos doentes, resultando
na extinção ligeiramente retardada de muitas outras espécies.
A par de alimento e abrigo, os ecossistemas naturais suprem a
civilização de uma série de serviços essenciais. Entre estes, a regulação
da composição atmosférica, a moderação do clima e das intempéries, a
regulação do ciclo hidrológico, a geração e preservação de solos, a
degradação de resíduos e a reciclagem de substâncias nutrientes. Do
ponto de vista humano, entre os papéis mais importantes dos
ecossistemas estão a sua função direta no fornecimento de alimento e a
manutenção de um vasto acervo de espécies do qual o Homo sapiens
retirou as bases da civilização. A perda acelerada desses recursos
genéticos pela extinção seria uma das consequências potenciais mais
sérias de uma guerra nuclear.
Incêndios florestais seriam um efeito importante nos ecossistemas
temperados do norte, sua escala e distribuição dependendo de fatores
como o cenário de guerra e a estação do ano. Outra incerteza
ponderável é a extensão das tempestades ígneas, que poderiam aquecer
as camadas profundas do solo em grau suficiente para lesar ou destruir
bancos de sementes, principalmente em tipos de vegetação não
adaptados a queimas periódicas. Detonações aéreas múltiplas em áreas
sazonalmente secas como a Califórnia no fim do verão ou princípio do
outono poderiam calcinar grande parte das áreas de mata e de campo do
Estado, ocasionando inundações e erosões catastróficas na estação
chuvosa subsequente. Aluvionamento, escoamentos tóxicos e chuvas
radioativas poderiam matar grande parte da fauna de águas doces e
costeiras, e níveis concentrados de radioatividade em populações de
mariscos sobreviventes poderiam tornar perigoso o seu consumo por
períodos prolongados.
Outras consequências importantes de uma guerra nuclear para
ecossistemas terrestres compreendem (i) desintoxicação mais lenta do ar
e da água, como resultado secundário dos danos em plantas que são
hoje importantes eliminadores metabólicos de toxinas; (ii) evaporação-
transpiração reduzida nas plantas, contribuindo para uma taxa menor de
entrada de água na atmosfera, principalmente em regiões continentais, e
portanto para um ciclo hidrológico mais lento; e (iii) alterações
consideráveis da superfície do solo, resultando em erosão acelerada e,
provavelmente, grandes tempestades de areia.
A recuperação da vegetação poderia assemelhar-se
superficialmente à que se segue a incêndios locais. No entanto, os efeitos
da radiação, do smog, da erosão, da poeira e das chuvas tóxicas
sobrepor-se-iam aos do frio e da escuridão, prolongando e modificando a
sucessão do pós-guerra de modos que retardariam a restauração das
funções ecossistêmicas. É provável que as alterações de ecossistemas
fossem em sua maior parte, passageiras. Certas alterações estruturais e
funcionais, porém, poderiam ser mais duradouras, e possivelmente
irreversíveis, na medida em que os ecossistemas sofressem mudanças
qualitativas para estados alternativos estáveis. As perdas de solos por
erosão seriam sérias em áreas de ocorrência de incêndios extensos,
morte das plantas e condições climáticas extremas. Tudo dependeria em
grande parte das características de ventos e chuvas que se
desenvolvessem durante o primeiro ano após a guerra. A diversidade de
muitas comunidades naturais seria quase com certeza substancialmente
reduzida, e numerosas espécies de plantas, de animais e de micro-
organismos se extinguiriam.

Ecossistemas Terrestres Tropicais

O grau em que as regiões tropicais seriam submetidas a condições


dos gêneros acima descritos dependeria de fatores como a seleção de
objetivos, prevalência de tempestades ígneas, ruptura da distinção entre
troposfera e estratosfera e taxa de mistura inter-hemisférica em função
da altitude. A propagação de nuvens densas de poeira e fuligem e de
temperaturas glaciais às regiões tropicais do norte é altamente provável,
e ao Hemisfério Sul pelo menos possível, portanto é propositado
examinar as consequências prováveis dessa propagação (Quadro 1B).
Por exemplo, as sementes das árvores de matas tropicais tendem a
ter vida bem mais curta que as das zonas temperadas. Se a escuridão ou
as baixas temperaturas, ou ambas, atingissem os trópicos em grande
escala, as florestas tropicais poderiam desaparecer em grande parte. E
isto redundaria na extinção da maioria das espécies vegetais, animais e
microbianas da Terra, com consequências prolongadas da maior
importância para a adaptabilidade das populações humanas.
Se a escuridão se estendesse aos trópicos, vastas áreas de
vegetação tropical, que se consideram muito próximas do ponto de
compensação, entrariam em definhamento. Além disso, muitas plantas
de climas tropicais e subtropicais não possuem mecanismos de
dormência que lhes permitam suportar estações frias, mesmo em
temperaturas bem acima do ponto de congelamento. Ainda que a
escuridão e o frio se limitassem principalmente às regiões temperadas,
ondas de ar frio e fuligem poderiam induzir quedas bruscas de
temperatura em grandes extensões da faixa tropical. Isso corresponderia
a uma intensificação do fenômeno conhecido como "friagem", termo
empregado para descrever os efeitos de frentes frias, originadas na
América do Sul temperada, que penetram na Bacia Amazônica
equatorial, onde produzem a morte de grandes quantidades de aves e
peixes. Pelos indícios existentes dos efeitos de esfriamento no plistoceno
e suas consequências, pode-se prever que áreas continentais de baixas
latitudes seriam seriamente afetadas por baixas temperaturas do ar e
redução de chuvas.
A dependência de populações tropicais em relação a alimentos e
fertilizantes importados teria consequências graves, mesmo que os
trópicos não fossem diretamente afetados pela guerra. Grandes números
de pessoas seriam forçadas a abandonar as cidades e a tentar cultivar as
áreas remanescentes de floresta, acelerando a sua destruição e
consequente velocidade de extinção. Tais atividades também
aumentariam grandemente a quantidade de fuligem na atmosfera pela
prática improvisada de derrubada e queima em grande escala. Não
importa qual a exata distribuição dos efeitos imediatos da guerra, ao cabo
todos os habitantes da Terra seriam profundamente afetados.

Ecossistemas Aquáticos

De modo geral, os organismos aquáticos são protegidos contra


oscilações extremas de temperatura do ar pela inércia térmica da água.
Não obstante, muitos sistemas de água doce congelariam a
profundidades consideráveis ou totalmente em virtude das alterações
climáticas causadas por uma guerra nuclear. O efeito da escuridão
prolongada em organismos marinhos já foi estimado. Produtores
primários na base da cadeia alimentar marinha são particularmente
sensíveis a níveis baixos de luz demorados; níveis tróficos superiores
sofrem com retardo efeitos propagados de menor intensidade. Além
disso, a produtividade do plâncton marinho próximo à superfície é
consideravelmente deprimida pelos níveis atuais de UV-B; mesmo
pequenos aumentos de UV-B podem ter consequências profundas para a
estrutura das cadeias alimentares marinhas. Muitos imaginam que as
margens Oceânicas seriam uma fonte importante de sustento para os
sobreviventes de uma guerra nuclear; no entanto, os efeitos combinados
da escuridão, da UV-B, das tempestades litorâneas, da destruição de
navios na guerra e da concentração de radionuclídeos em sistemas
marinhos de águas rasas lançam fortes dúvidas sobre essa possibilidade.

Conclusões

Os prognósticos de mudanças climáticas são bastante sólidos, e


indicam que, qualitativamente, de uma guerra limitada de 500 MT ou
menos em que se atacassem cidades decorreriam os mesmos tipos de
agressões que de uma guerra em grande escala de 10.000 MT. Em
essência, todos os serviços de suporte dos ecossistemas seriam
seriamente comprometidos (Quadros 2 e 3). Acentue-se que os
sobreviventes, ao menos no Hemisfério Norte, enfrentariam frio extremo,
escassez de água; falta de alimentos e de combustíveis, fortes cargas de
radiação e poluentes, doenças e enormes tensões psíquicas - tudo isso
em penumbra ou em completa escuridão.
Existe a possibilidade de que o escurecimento e as baixas
temperaturas se propagassem ao planeta inteiro. Se isso acontecesse,
poderia resultar um processo acentuado de extinção, que deixaria uma
Terra grandemente transformada e biologicamente empobrecida. Poder-
se-ia esperar a extinção da maior parte das espécies vegetais e animais
tropicais, da maior parte dos vertebrados terrestres das regiões
temperadas do norte, de um grande número de plantas, de muitos
organismos de água doce e de alguns marinhos.
Parece, entretanto, improvável que mesmo nessas circunstâncias o
Homo sapiens fosse de pronto levado à extinção. Quanto à possibilidade
de alguns indivíduos persistirem muito tempo em face de comunidades
biológicas grandemente alteradas, de climas modificados, de sistemas
agrícolas, sociais e econômicos desfeitos, de tensões psíquicas
inusitadas e de todo um séquito de outras dificuldades, é uma questão
em aberto. É evidente que os efeitos de uma guerra termonuclear em
grande escala sobre os ecossistemas seriam por si sós suficientes para
destruir a civilização presente, pelo menos no Hemisfério Norte. Somada
às baixas diretas, em número superior a um bilhão, a combinação dos
efeitos intermediários e a longo prazo de uma guerra nuclear sugere que
ao fim de algum tempo poderiam não restar sobreviventes no Hemisfério
Norte. Além do mais, o cenário aqui descrito não é em absoluto o pior
que se possa imaginar, tendo em vista os arsenais mundiais existentes e
os previstos para um futuro próximo. Qualquer conflito nuclear em grande
escala entre as superpotências seria de molde a produzir modificações
ambientais globais suficientes para causar a extinção de uma fração
considerável das espécies animais e vegetais da Terra. Nesse caso, a
possibilidade da extinção do Homo sapiens não pode ser excluída.

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