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Competência e

atividade de trabalho
Série Ciência, Tecnologia e Sociedade
Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico
Ludwik Fleck
O Golem – O que você deveria saber sobre ciência (2a edição)
Harry Collins e Trevor Pinch
O Golem à Solta – O que você deveria saber sobre tecnologia
Harry Collins e Trevor Pinch
Doutor Golem – Como pensar a medicina
Harry Collins e Trevor Pinch
Mudando a Ordem – Replicação e indução na prática científica
Harry Collins
Repensando a Expertise
Harry Collins e Rob Evans
A Forma das Ações – O que os humanos e as máquinas podem fazer
Harry Collins e Martin Kusch
Especialistas Artificiais – Conhecimento social e máquinas inteligentes
Harry Collins
A Internet – Uma crítica filosófica à educação a distância e ao mundo virtual (2a edição)
Hubert L. Dreyfus
Expertise Intuitiva – Para além do pensamento analítico
Hubert L. Dreyfus e Stuart E. Dreyfus
Ciência, verdade e sociedade – Contribuições para um diálogo entre a sociologia e a filosofia da ciência
Michelangelo Giotto Santoro Trigueiro
Série Trabalho e Sociedade
Trabalho e o Poder de Agir
Yves Clot
Engenheiros no Cotidiano – Etnografia da atividade de projeto e de inovação
Dominique Vinck (org.)
O Curso da Ação Método elementar – Ensaio de Antropologia enativa e concepção ergonômica
Jacques Theureau
Análises do Trabalho
Leda Leal Ferreira
Trabalho e Ergologia - Diálogos sobre a atividade humana.
Yves Schwartz & Louis Durrive
Ergologia, Trabalho, Desenvolvimentos
Yves Schwartz & Louis Durrive
Série Confiabilidade Humana
O Acidente e a Organização
Michel Llory e René Montmayeul
Série Conhecimento e Experiência do Trabalho
Competência e atividade de trabalho
Louis Durrive
Série
Conhecimento e Experiência do Trabalho

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Universidade Estadual de Campinas Maastricht University
Profa. Maíra Baumgarten Prof. Yves Schwartz
Universidade Federal do Rio Grande Université de Provence
LOUIS DURRIVE

Competência e
atividade de trabalho
1ª Edição

Belo Horizonte
2021
© 2021 Fabrefactum Editora Ltda. Todos os direitos da tradução e desta edição reservados à Fabrefactum
Editora. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização,
por escrito, da Fabrefactum Editora Ltda.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2021 Carlos Drummond de Andrade
da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério Francês da Europa e das Relações
Exteriores.

Obra publicada com apoio financeiro do CNPq.

Originalmente publicado na França sob o título “Compétence et activité de travail “Copyright ©


L’Harmattan, 2016 www.harmattan.fr

Durrive, Louis
Competência e atividade de trabalho [livro
eletrônico] / Louis Durrive. -- 1. ed. -- Belo
Horizonte, MG : Fabrefactum Editora, 2021.
PDF

ISBN 978-85-63299-24-6

1. Ciências sociais 2. Competência 3. Educação


profissional 4. Gerenciamento 5. Trabalho -
Administração I. Título.

21-86177 CDD-370.11

Índices para catálogo sistemático:


1. Competência : Educação : Finalidades e objetivos
370.11
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Tradução
Marlene Machado Zica Vianna
Com colaboração de:
Admardo B. Gomes Júnior
Deise de Souza Dias Revisão Técnica
Ênio Rodrigues da Silva Admardo B. Gomes Júnior
Estela Aparecida Oliveira Vieira Daisy Cunha
Jurandir Soares da Silva Revisão Geral Fabrefactum Editora Ltda.
Lecy Rodrigues Moreira Marlene Machado Zica Vianna Rua Miranda Ribeiro,165
Luciana Gelape dos Santos Apoio de Produção Belo Horizonte – Minas Gerais
Mônica de Fátima Bianco Vera Margarete Maia Pereira Pessoa CEP 30380-660 – Brasil
Rosimare Alves Petitjean Capa, Projeto Gráfico e Editoração http://www.fabrefactum.com.br
Sirley Araújo Dias Burnier Branding & Marketing E-mail: gerencia@fabrefactum.com.br
Sumário

INTRODUÇÃO.........................................................................................17

PARTE 1: PROBLEMATIZAR A COMPETÊNCIA..........................................25


1. A questão da relação entre os saberes e a ação...............................................25
2. O uso do termo competência entre os organizadores.......................................28
2.1. Sob o ângulo do indivíduo............................................................................28
2.2. Sob o ângulo do coletivo..................................................................................31
3. O uso do termo competência pela chefia..........................................................36
3.1. Uma posição “entre dois”...................................................................................36
3.2. Um exemplo no meio industrial................................................................37
4. O uso do termo de competência entre os avaliadores..................................40
4.1. A competência sob o prisma da coleta de provas.........................................40
4.2. A competência sob o prisma da coleta de argumentos.................................43
5. O uso do termo competência entre os formadores: agir com um ponto de
__vista responsável..............................................................................................45
6. O uso do termo competência entre os recrutadores: uma bricolagem neces-
sária............................................................................................. 51

PARTE 2: ELABORAR O CONCEITO DE COMPETÊNCIA ...................57


1. Organizar ..........................................................................................................59
1.1. O resultado virtual do projeto comanda a ação planejando um programa
__ (Aristóteles).....................................................................................................59
1.2. Se a atividade é uma interação com a situação real, a divisão do trabalho
deve se tornar uma cooperação (Dewey)............................................................63
1.3. As normas de um grupo social fixam, antecipadamente, as modalidades de ação
individual e coletiva (Lévi-Strauss e Bourdieu)...........................................68
1.4. As normas antecedentes representam apenas uma primeira antecipação, que
será sempre ela mesma antecipada pelo esforço de viver (a perspectiva
ergológica).......................................................................................75
2.Chefiar............................................................................................................83
2.1. Realizar a ação é aplicar, passo a passo, as etapas do projeto (Aristóteles) ...........83
2.2. Adaptar constantemente nossas hipóteses e nossos hábitos segundo as
respostas que nos reenvia o meio ambiente: isso é pensar (Dewey) ...............86
2.3. Não se segue a norma como uma regra de gramática, mas como a regra de um
jogo:o senso prático adapta a norma a uma estratégia (Bourdieu)..................90
2.4. Os modelos da aplicação e da interiorização são não apenas impossíveis em ra-
zão da variabilidade mas, de início, invivíveis (a perspectiva ergológica)...........93
3. Avaliar............................................................................................................99
3.1. É a conformidade da operação em relação à sua função que faz a excelência
(Aristóteles).......................................................................................................99
3.2 É a eficácia com a qual o ato desabrocha no meio que faz sua autovalidação
(Dewey)....................................................................................................102
3.3. É a graça com a qual se encontra espontaneamente a norma que beneficia a
legitimidade ideológica (Bourdieu)..........................................................105
3.4. É a reinserção da tarefa no serviço coletivamente realizado que lhe dá seu sen-
tido e determina sua qualidade (a perspectiva ergológica) ..................................109
4. Formar...........................................................................................................117
4.1. Cultivar as disposições adquiridas e os hábitos é atualizar as capacidades
(Aristóteles) ........................................................................................................117
4.2. É o crescimento do ator em sua interação com o meio que forma todo seu
devir (Dewey) ...................................................................................................121
4.3. É a prática do jogo (aculturação) que nos faz incorporar, interiorizar as regras
___(Bourdieu)......................................................................................................124
4.4. É somente a constituição do ponto de vista sobre as normas que pode tornar a
experiência formadora: é preciso se apropriar delas (a perspectiva ergológica)..128
5. Recrutar, mobilizar..........................................................................................135
5.1. A motivação é a antecipação do benefício recebido pelo resultado visado
(Aristóteles).........................................................................................................135
5.2. A motivação é o investimento no ato em que se tenta se realizar, desenvolver
sua existência (Dewey)................................................................................138
5.3. A motivação é illusio, quer dizer identificação ilusória em relação aos interesses
da norma no seu campo de poder (Bordieu).......................................................141
5.4. Preferir uma norma é compreender sua importância como valor: seu sentido
aparece uma vez recontextualizado no serviço (perspectiva ergológica).......144
Conclusão.........................................................................................................149

PARTE 3: MODELIZAR O AGIR EM COMPETÊNCIA...........................153


1. Os ensinamentos do uso atual da palavra competência..................................153
2. Avanços e limites do discurso gerencial atual: o caso de Guy Le Boterf............161
2.1. O ponto de vista do autor...................................................................................161
2.2. O ponto de vista crítico sobre o saber agir.............................................................163
2.3. O ponto de vista crítico sobre o saber combinar...............................................166
2.4. O ponto de vista crítico sobre o saber interagir e a reflexividade............................169
2.5 Conclusão sobre a obra de G. Le Boterf......................................................171
3. O estado de nossa pesquisa: gerar modelos para desenvolver e avaliar as
competências que respondam equitativamente à dupla exigência de objetividade
e de diálogo..........................................................................................................174
3.1. Dar visibilidade à aderência, a fim de melhor falar da competência com os
Dispositivos Dinâmicos a Três polos..............................................................174
3.2 Compreender a situação através da dupla impossível/invivível, a fim de melhor
julgar a competência...................................................................................180
3.3 Os dois eixos de nossa pesquisa atual: partir das situações e aproximá-las em
uma dinâmica a três polos...........................................................................186
4. A função “organizar”.....................................................................................191
4.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “organizar”...............191
4.2. Ilustração a partir de um breve exemplo...........................................................196
5. A função “chefiar”...........................................................................................197
5.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “chefiar”.................197
5.2. Ilustrações a partir de um breve exemplo.....................................................201
6. A função “avaliar”...........................................................................................204
6.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “avaliar”.............204
6.2 . Ilustração a partir de um breve exemplo.......................................................209
7. A função “formar”...........................................................................................210
7.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “formar”....................210
7.2. Ilustração a partir de um breve exemplo...........................................................215
8. A função “recrutar”.........................................................................................217
8.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “recrutar”..........217
8.2. Ilustração a partir de um breve exemplo...........................................................222
Conclusão...........................................................................................................223

CONCLUSÃO GERAL.....................................................................................227

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................229

LINHA EDITORIAL......................................................................................235
Apresentação da edição brasileira 13
xiii

Apresentação da
edição brasileira
Daisy Moreira Cunha
Admardo B. Gomes Júnior

Este livro interessa a pesquisadores, formadores, trabalhadores e gestores em geral,


sobretudo àqueles que buscam pensar e transformar o trabalho do ponto de vista
da atividade humana. Eis uma contribuição única e densa sobre a compreensão
do conceito de competência visando a uma utilização mais relevante e legítima.
Louis Durrive examina a noção de competência nos discursos e práticas da gestão
e da formação profissional desvelando o uso inflacionário e a banalidade de seu
conteúdo conceitual. Mas, longe de apenas criticar o emprego do conceito em
suas acepções correntes, o autor nos conduz às origens dessas concepções que
associam ação e saber, identificando, em suas bases conceituais, três matrizes que
as diferenciam – Aristóteles, Dewey e Bourdieu –, localizando seus avanços e
limites. Todo esse percurso sobre as bases lógicas do conceito nos permitirá, ao
final, propor, com as ferramentas e modelos elaborados a partir de seu conheci-
mento da Abordagem Ergológica do Trabalho, uma noção de competência que
pensa a ação e o saber com base na relação entre norma e o ponto de vista da
atividade sobre a norma.

Trata-se de uma obra que contribui com vários campos disciplinares que estudam
o trabalho, tais como a Administração, a Engenharia de Produção, a Educação
e Formação Profissional, a Economia, a Psicologia e a Sociologia do Trabalho
e, em especial, com o campo dos Recursos Humanos, ou melhor, com aqueles
que preferem uma Gestão com Pessoas. Isso porque o autor, durante todo o li-
vro, discute as bases das funções que compõem esse campo: organizar, chefiar,
avaliar, formar, recrutar e mobilizar pessoas. Durrive faz esse debate trazendo os
14
xiv Competência e atividade de trabalho

dilemas do trabalhar, seja na relação com outrem (colegas de setor e/ou gestores
de outros níveis hierárquicos, usuários de serviços e/ou clientes comerciais), seja
na relação com as disposições tecnológicas e sóciotécnicas em espaços laborais.
Nessas relações de trabalho, estão sempre em questão infindáveis procedimentos
que requisitam competências diversas. Em Competência e Atividade de Trabalho, o
autor nos apresenta importantes e sólidas reflexões sobre elementos do quotidiano
da gestão do trabalho humano, as quais, efetivamente, conseguem incluir o ponto
de vista daquele que trabalha.

Na tradução da presente obra, contamos com as contribuições de vários pesqui-


sadores com conhecimentos em ergologia, gestão, formação humana e trabalho
que possibilitaram, de forma coletiva e bastante generosa, que a obra ganhasse
uma versão em português. Gostaríamos de agradecer nominalmente e ressaltar a
contribuição deixada: Luciana Gelape dos Santos pelos tópicos 3 e 4 da Parte 1;
Sirley Araújo Dias pelos tópicos 5 e 6 da Parte 1; Estela Aparecida Oliveira Vieira
pelo tópico 1 da Parte 2; Jurandir Soares da Silva pelo tópico 3 da Parte 2; Mônica
de Fátima Bianco pelo tópico 5 da Parte 2; Deise de Souza Dias pela conclusão da
Parte 2; Lecy Rodrigues Moreira pelo tópico 2 da Parte 3; Rosimare Alves Petitjean
pelos tópicos 4 e 5 da Parte 3 e Ênio Rodrigues da Silva pelo tópico 8 da Parte 3 e
a Conclusão Geral. Todos os outros 9 tópicos foram traduzidos por Admardo B.
Gomes Júnior, que também se encarregou de uma primeira revisão técnica. Essa
versão preliminar foi inteiramente reescrita por Marlene Machado Zica Vianna que,
além da revisão final do texto em língua portuguesa, uniformizou as traduções feitas
pelos diversos colaboradores. A revisão técnica final foi feita por Daisy Cunha.

Agradecemos também à Embaixada da França no Brasil pelo financiamento de


parte dos custos de edição.

E finalmente ao autor, Louis Durrive e à Editora, L’Harmantan, por terem cedido


os direitos da obra para esta versão digital gratuita.

Aos leitores desejamos um bom proveito!


Apresentação da edição brasileira 15
xv

“Toda atividade de trabalho é sempre, em


qualquer grau, de uma parte, descritível como
sequência de um protocolo experimental e, de
outra parte, experiência ou encontro”

(Yves Schwartz)
16 Competência e atividade de trabalho
Introdução 17

Introdução

Examinando os discursos e as práticas da administração e da formação profis-


sional hoje, não se pode deixar de se surpreender pela distância entre, de uma
parte, o uso inflacionista da noção de competência e, de outra parte, pela grande
banalidade do conteúdo conceitual dado atualmente a essa “lógica competência”
supostamente revolucionária.

A presente obra – que se apoia no texto de uma Tese de Habilitação para Dirigir
Pesquisas1, defendida em 2013, pretendia ser uma contribuição para a compre-
ensão do conceito de competência, determinando as condições de um uso mais
pertinente do ponto de vista teórico e mais legítimo do ponto de vista prático. De
fato, pensamos que, sob a condição de compreender a sua riqueza desconhecida,
esse conceito pode se constituir em uma verdadeira oportunidade de mudar nossa
forma de ver, pensar e gerir as situações de trabalho e de aprendizagem.

Definir a competência não é evidente. Como ponto de partida, vamos dizer que a
competência é entendida como uma hipótese: uma hipótese sobre a maneira pela
qual alguém enfrentará um problema (no sentido de uma questão a ser resolvida),
numa dada situação. Ora, os profissionais da prática que utilizam os diferentes

1 Cf. A tese Habilitação para Dirigir Pesquisas (Habilitation à Diriger des Recherches - HDR)
confere um diploma de reconhecimento de competência científica aos professores pesquisadores
franceses que os habilita a dirigir pesquisas e orientar teses.
18 Competência e atividade de trabalho

modelos da competência expressam uma insatisfação constante: de um lado, a


competência é desumanizada, desencarnada, relegada ao anonimato das listas;
mas, de outro lado, essa competência é frequentemente associada a um apelo à
mobilização, à iniciativa, à inovação – o que leva a uma injunção de engajamento
pessoal. Essa insatisfação revela, acreditamos, um mal-entendido do julgamento
de competência como hipótese, o que conduz a se fechar numa falsa oposição
entre duas exigências que devem coexistir no agir profissional: a exigência da
objetivação, que é a condição da organização, e a exigência da interpretação por
alguém singular, que é a condição da realização da obra.

A hipótese aqui em questão se coloca na intersecção de duas expectativas simé-


tricas. Do lado de quem solicita um serviço, a hipótese de competência visa res-
ponder a uma necessidade de confiança: o que eu tenho o direito de esperar dessa
pessoa, em que eu posso contar com ela? Do lado daquele que presta um serviço,
a hipótese de competência responde a uma necessidade de reconhecimento: o que
atesta o valor próprio do meu trabalho, de maneira a me garantir as contrapartidas?
No entanto, ainda fica por esclarecer que tipo de hipótese releva a competência.

O julgamento de competência consiste em supor – tendo em vista a experiência,


quer dizer considerando a avaliação de uma pessoa num dado momento – uma
certa continuidade (mais ou menos unívoca) com suas futuras reações. Ao mes-
mo tempo, isso leva a supor uma razão para essa correlação – essa razão sendo a
operação que permite à pessoa bem gerir essa situação. O conceito de competência
é utilizado exatamente para designar essa operação, porque é ela que nos importa
encontrar no futuro.

Vê-se que não se trata de um método de verificação experimental. Trata-se, por-


tanto, de uma inferência: uma operação ambígua e, no entanto, indispensável,
visando estabelecer uma correlação entre dois casos (uma situação constatada e
uma situação futura) e enunciar uma interpretação quanto à razão dessa correlação.
Ora, ali onde o método científico se apoia na construção de um modelo fictício
(teórico), submetido a protocolo experimental, de modo a estreitar, sempre mais
Introdução 19

perto, uma razão objetiva dessa correlação estabelecida – um tal raciocínio rigoroso
é inconcebível no tratamento da competência. De novo, é importante esclarecer
a operação cognitiva sobre a qual repousam os julgamentos de competência que
utilizamos no quotidiano, pois isso deve permitir compreender melhor os riscos
e as potencialidades dessa noção.

Se a natureza da competência é aquela de uma hipótese (inferência), assumi-la


consiste em interrogar a fonte e as condições de sua legitimidade: a partir de
que é julgada a competência? Em relação a que legitimidade repousam nossos
usos desse conceito? Acabamos de dizer que uma razão estritamente lógica não
é possível, pois que o desafio da competência não é da ordem de um método
hipotético-dedutivo. Da mesma forma, o critério pragmático é um impasse: se a
verdade de uma competência se confundia com sua eficácia, iríamos falar sim-
plesmente de performance.

Infere-se, então, que a única modalidade de julgamento de competência é uma


avaliação que passa pelo debate (debate de interpretação) e se esforça por chegar
a um consenso – com base em fatos objetivos, mas que são eles mesmos, sempre
em parte, reconstruídos pelas interpretações. A competência aparece, então, como
o objeto de um debate necessário (em que os referenciais têm um papel de pedra de
toque) se se quiser escapar da dupla armadilha do arbitrário e do julgamento redutor.

O eixo problemático em torno do qual vai girar nosso estudo será, pois o seguinte:
redinamizando os dispositivos, a conceitualidade e os modelos atualmente em uso
para conceber e gerir as competências, como a integração, no âmago mesmo do
conceito de competência de um debate entre os pontos de vista (próprios a todas
as pessoas em atividade numa situação de trabalho) seria permitido mostrar não
só o motor explicativo e performativo, como também os limites e as condições
sob as quais eles poderiam ser aperfeiçoados no seu sentido próprio.

Dito de outra forma: como as práticas e os discursos atualmente dominantes em


torno da noção de competência veem sua eficácia e sua pertinência fortemente
20 Competência e atividade de trabalho

limitadas por um viés que tende à unilateralidade de sua abordagem das situações
de trabalho? E, sobretudo, em que a especificidade do conceito de competência
– notadamente no que diz respeito àquele da qualificação que ele visa substituir
aos poucos – iria tender justamente ao que se define, em primeiro lugar, como um
consenso emergente do debate de pontos de vista para fazer que se reencontrem
as exigências de confiança e do reconhecimento?

O fio condutor que vai guiar nossa reflexão para responder a essa problemática
toma, como ponto de partida, o conceito ergonômico de distância entre o trabalho
prescrito e o trabalho real. Seguindo Yves Schwartz, acreditamos que é preciso
insistir sobre o caráter fundamentalmente paradoxal dessa distância. Com efeito,
na dinâmica da atividade, o prescrito (ou seja, o quadro normativo preexistente à
situação) só obtém sua efetividade da atividade humana que o utiliza – aplicando-o
a si mesmo – o que corresponde à incontornável “personalização da tarefa” na etapa
de realização. Mas, ao mesmo tempo, não haveria aí nenhuma atividade efetiva
sem o plano de normas antecedentes, que a guia e suporta (até estandardizá-la, para
organizar a cooperação em grande escala) – o que corresponde à indispensável
“anonimização da tarefa” quando da sua planificação.

Esse paradoxo da atividade nos parece decisivo para repensar a competência. De


fato, a dificuldade da substancialização da competência (sua redução às listas de
um referencial) é ultrapassada quando se olha a atividade do trabalho como um
vaivém entre “a norma antecedente” (anônima) e a “renormalização”, ou seja, a
maneira própria a cada um de assumir essa norma num momento da vida. Para
desenrolar esse fio condutor e desenvolver todas as potencialidades inscritas no
paradoxo da atividade, vamos voltar constantemente, no decorrer deste trabalho,
a esse vaivém entre norma antecedente e renormalização.

Sobre esse ponto, uma precisão terminológica se impõe logo de saída. Trabalho
prescrito e trabalho real não são simplesmente objetos distintos, fatos separados
– um discursivo (o prescrito) e outro empírico (o real). Trabalho prescrito e tra-
balho real engajam também maneiras de analisar o trabalho, as quais são muito
Introdução 21

diferentes: para “ver” o trabalho prescrito, é preciso tomar distância no que diz
respeito aos detalhes anedóticos do concreto, é preciso focalizar sua atenção sobre
as regularidades, ajustar as lentes da abstração. Pelo contrário, para reconhecer
o trabalho real, é preciso “ir vê-lo” (de acordo com as palavras do ergonomista
Jacques Duraffourg), quer dizer que é preciso – tanto quanto possível – se apro-
ximar da situação tal como é gerada aqui e agora e por uma pessoa específica.
Analisando o trabalho dos outros ou mesmo o seu próprio, não se percebe a
“atividade” (o esforço da interação que retrabalha o prescrito no real) senão ao
preço de um ir e vir constante entre esses dois ângulos de análise de uma mesma
realidade: tal situação de trabalho. Para insistir a respeito de cada um desses dois
possíveis pontos de vista sobre a atividade, o filósofo Yves Schwartz propõe
batizá-los respectivamente a “aderência” e a “desaderência”, um binômio que
esse autor define de acordo com as palavras que se seguem.

A aderência é o desafio de viver o mais perto das reais restrições, a fim de tentar
utilizá-las como oportunidades:

Não há nenhuma vida humana que não seja como que chamada a viver, de uma
parte, no que nomeamos ‘a aderência’: seja a mobilização de nossas energias,
incorporadas não só às nossas faculdades mentais, como também aos nossos
equipamentos biológicos, para detectar o que se torna ponto de resistência e
ponto de apoio no presente do meio onde se vive (2009a: 16).

A desaderência é

a capacidade de inventar um modo de se mover – pelo pensamento humano – que


seja à distância, desconectada, mais ou menos profundamente, da situação ime-
diata, de suas solicitações, de suas urgências. Isso vai permitir – a longo prazo
– produzir, de início, a linguagem articulada, mas, na continuação, o conceito
até seu polo extremo, o conceito científico. (...) O fato de pensar à distância,
portanto, de categorizar, é, de uma certa maneira, uma invenção da norma (...).
No entanto, categorizar, antecipadamente, os elementos do mundo é, também,
‘qualificá-los’ (...). Subsume-se um caso sob um conceito – ver a qualificação como
ato jurídico – mas não se pode, ao mesmo tempo, criar uma relação qualitativa,
polarizada, em valor, com o que se visa (2009b: 62).
22 Competência e atividade de trabalho

Esta obra vai apresentar, em três tempos, nossa pesquisa metodológica:

Uma primeira parte será uma coletânea dos usos do termo “competência” nas
situações de comunicação profissional em que ele opera – em que ele quer dizer
alguma coisa. Realizada a partir de trabalhos universitários em contextos de
formação contínua, essa coletânea classifica todos os casos em famílias de usos,
correspondendo às diferentes funções do manager: organizar, chefiar2, formar,
avaliar, recrutar. Confirmadas com os casos típicos discutidos na literatura geren-
cial, essas situações de uso revelam, nos autores relacionados, representações, a
cada vez, diferentes da competência.

Uma segunda parte vai consistir em reconstruir a lógica das concepções da ação
e do saber, associadas a cada um desses conceitos operatórios da competência.
A ideia é reencontrar e compreender a coerência de conjunto que permite aos
diferentes atores verem a competência de tal ou tal maneira. Reconhecemos três
lógicas com – a cada vez – sua força e seus limites: (a) considerar que a compe-
tência é um “saber aplicar bem” as etapas do projeto comum; (b) conceber, tendo
em vista as circunstâncias que não cessam de mudar, a competência, sobretudo
como um “saber improvisar no trabalho”, ser mais reativo que proativo; enfim
(c), em face dessas duas visões demasiadamente unilaterais, alguns opõem um
caminho mediano: a competência significa, então, adaptar o prescrito para se
propor regras. Três concepções que subentendem para nós os discursos sobre a
competência. Ilustrando-as, a cada vez, com um autor representativo (Aristóte-
les, Dewey, Bourdieu), queremos realçar sua grande coerência interna, antes de
confrontá-las cada uma com (d), o conceito de atividade tal como o desenvolve
a abordagem ergológica a partir de uma perspectiva antropológica. O objetivo é
aqui mostrar que a competência aparece de maneira particularmente clara (em cada
um dos usos), quando os conceitos de ação e saber utilizados levam em conta, ao
mesmo tempo, a norma e o ponto de vista sobre a norma.

2 N.T. Optamos pela palavra chefiar para traduzir encadrer.


Introdução 23

Enfim, a terceira parte vai consistir em sintetizar as ferramentas e os modelos


elaborados no quadro da nossa própria prática (inserção profissional), porque eles
visam evidenciar o ponto de vista do ator a respeito de uma regra que ele tenta seguir.

A ideia aqui é mostrar que é possível elaborar dispositivos para que a competência
seja estudada e gerida considerando, ao mesmo tempo, a norma e o ponto de vista
sobre a norma. Em relação a cada uso, nós apresentamos, alternadamente, uma
ferramenta saída de nossa prática ou o modelo teórico em que ele se assenta. Nós
recontextualizamos cada uma dessas “modelizações” nos projetos em que eles
foram elaborados. Esta síntese tem por objetivo balizar um programa de uma
pesquisa futura, interdisciplinar, visando aprofundar essa investigação sobre as
condições de atualização concreta da competência de uma pessoa em situação.
24 Competência e atividade de trabalho
Parte 1: Problematizar a competência 25

Parte 1:
Problematizar a competência

No mundo do trabalho, o uso da palavra competência não é exatamente o mesmo


segundo o papel que ele tem em “gestão de recursos humanos” (GRH): organizar
o trabalho, chefiar, avaliar, formar ou ainda recrutar. Começaremos nossa investi-
gação buscando o que revelam esses usos, ou seja, tentando encontrar o conceito
operatório da competência, o qual estrutura, ao mesmo tempo, o discurso e as
maneiras de se apropriar dele.

No entanto, antes de considerar, alternadamente, as cinco funções que acabamos


de identificar, gostaríamos de nos colocar uma pergunta fundamental: de onde vem
a necessidade de falar de competência hoje nas empresas? Trata-se de um desafio
comum a todos os protagonistas das situações de trabalho: o de compreender a
ligação entre o que se sabe e o que se faz.

1. A questão da relação entre os saberes e a ação

O que subjaz à questão da competência no trabalho é a relação entre os saberes e


a ação. A preocupação é crucial para as organizações que buscam produzir: elas
devem tirar o melhor partido do saber que elas geram. Na organização taylo-
rista, saber é inteiramente antecipação: os dirigentes detêm o seu monopólio,
considerando que o operário é um cérebro vazio, guiado, inevitavelmente, por
26 Competência e atividade de trabalho

sua hierarquia. De modo mais geral, uma organização formal define, como ação,
as operações repetitivas e rotineiras, que correspondem ao saber considerado
estritamente necessário e suficiente. Ora, alcançam-se rapidamente as fronteiras
de tal representação do trabalho: a cada vez que se fixam a priori as fronteiras
entre os atores da produção, arrisca-se a confinar, em seus limites, os saberes
especializados, em lugar de encorajar as interações no momento das diferentes
arbitragens em produção.

A aceleração das mudanças, no curso das três últimas décadas, tem levado a re-
pensar essa relação entre os saberes e a ação coletiva: evolução das tecnologias;
evolução dos consumidores; evolução da duração de vida dos produtos, etc. Os
saberes produzidos pela empresa são não somente aqueles extraídos do trabalho
pensado antecipadamente, mas também aqueles ligados à percepção das mudanças
e à identificação das respostas mais bem-adaptadas. Gradualmente, o problema
de tirar partido dos saberes, graças a uma divisão dos domínios e aos níveis de
decisão, desloca-se em direção a uma perspectiva mais global, aquela da estratégia
da empresa face à complexidade e à instabilidade do mercado. Mais que nunca,
é preciso poder contar com as interações entre os protagonistas das situações de
trabalho a fim de efetuar as boas arbitragens no momento adequado. Cada indivíduo
é não somente uma fonte de saberes de experiência, mas, além disso, ele vai gerar
novos saberes, graças às relações que estabelece com seus pares.

Contudo, a coletivização dos saberes encontra ela também, muito rapidamente,


seus limites. Pretende-se realmente promover os saberes da experiência e igual-
mente as perspectivas únicas sobre a realidade, contanto que eles não interfiram
no processo de decisão. A gestão dos recursos humanos – ao menos na nossa cul-
tura francesa – prefere concentrar o compartilhamento dos saberes em uma área
predeterminada. Vamos citar o exemplo dos círculos de qualidade, em voga no
último século, na indústria: concebidos para partilhar os saberes e melhorar assim
os processos de uma maneira contínua, eles se confrontaram com a dificuldade do
diálogo entre níveis hierárquicos e com a cooperação problemática dos saberes
entre categorias profissionais heterogêneas.
Parte 1: Problematizar a competência 27

Acabamos de evocar as profundas mudanças sociais das últimas décadas: mundia-


lização, automação, emergência das tecnologias da comunicação e da informação.
Essas transformações obrigam nossas representações de trabalho e da organiza-
ção a evoluir, mesmo que muito gradualmente. A análise de um distanciamento
“trabalho prescrito, trabalho real”, que pôde ter sido acolhida friamente pelos
responsáveis de empresa no período taylorista de meados do século XX, é, a partir
do momento atual, comumente aceita. Essa defasagem é mesmo, na maioria das
vezes, reivindicada pelos dirigentes. As novas expectativas dos clientes, a imposi-
ção de se adaptar, constantemente, às novas situações do mercado fazem com que
os organizadores declarem, de bom grado, que eles não estão mais em condições
de prever tudo e que parte da antecipação recai, daqui em diante, sobre seus co-
laboradores. Ser organizado não é mais, necessariamente, ter tudo antecipado. É,
igualmente, ter reunido os meios de arrostar os acontecimentos em situação real.
Esses acontecimentos são o constrangimento a que temos de nos submeter todos
os dias: uma pane, uma falha, um defeito de qualidade, uma modificação forçada
na programação. São, também, os constrangimentos que são provocados, quando
se toma uma série de decisões durante as etapas da produção do bem ou do serviço.
Note-se que, admitindo-se um distanciamento prescrito/real, reconhecemos nos
assalariados, simultaneamente, uma capacidade de reflexão, porque contamos
com eles para gerir esse distanciamento.

Os operadores trabalham, ou seja, são solidários com os objetivos fixados co-


letivamente, com os resultados esperados e com os meios a mobilizar. Eles se
chocam com os obstáculos e, apesar de tudo, acabam por elucidar os problemas
e atingir o objetivo – em níveis diversos. Observando de perto, as ocasiões de
reconsiderar e de aprender no trabalho se apresentam, então, em profusão. Os
saberes da experiência são, em princípio, reconhecidos e bem-vindos – e, no
entanto, seu encontro com os saberes da organização, aqueles que estruturam as
situações de trabalho, toma, na maioria das vezes, a forma de um encontro infe-
liz. Tudo acontece como se, numa espécie de persistência da visão taylorista da
organização, os saberes da experiência continuassem a ser percebidos como uma
28 Competência e atividade de trabalho

fonte de incerteza e uma ameaça de desfuncionamento. A culpa disso estaria na


comunicação, nas mensagens que não circulam corretamente entre os atores da
organização: de acordo com o domínio de intervenção e também em função do
nível hierárquico. Para se colocar a salvo das tensões e dos interesses divergentes,
espera-se que esses saberes da prática correspondam aos “fatos”. No entanto, os
fatos sozinhos não dizem nada: uma pane tem a importância que se lhe quer dar.
O mundo objetivo é interpretado, de fato, num mundo social.

Dizer que o acontecimento é importante tem este significado: é preciso que os


participantes da situação, onde se dá o acontecimento e, além deles, a sociedade,
deem um valor discriminante ao acontecimento que vai permitir identificá-lo
como ‘fazendo acontecimento’. Sem essa condição, a pesquisa não terá início.
Não se vai interessar pelo acontecimento (Zarifian, 1995: 27-28).

Sem dúvida, a questão de uma melhor manifestação sobre o trabalho real e a ativi-
dade se apresenta como uma questão social, que ultrapassa em muito os aspectos
de comunicação tal como a linguagem comum. Há muito tempo se fala da “crise
de prescrição”: outrora, um feedback se instalava, de modo relativamente fácil,
entre operadores e os prescritores, permitindo a esses últimos atualizar seu conhe-
cimento da prática. Hoje, torna-se cada vez mais difícil para os gestores ter esse
conhecimento profundo das realidades do trabalho, o qual lhes permitiria ajustar
as normas estruturantes da situação de atividade. Aí está, talvez, uma espécie de
círculo vicioso: os prescritores, estando de preferência na defensiva, têm tendência
a acolher, com distanciamento, os saberes da experiência, desencorajando, por fim,
o setor operacional (operadores e gestores locais) de desempenhar o papel de me-
diadores entre sua atividade de trabalho e o prescrito que a torna possível – e essa
retenção faz aumentar, um pouco mais, a relativa defasagem dos organizadores.

2. O uso do termo competência entre os organizadores

2.1. Sob o ângulo do indivíduo

O organizador, que é o responsável pela continuidade da atividade de uma empresa,


busca implementar seus grandes eixos estratégicos encontrando uma relação estável
Parte 1: Problematizar a competência 29

entre saberes e ações e desenvolvendo, sobre essa base, uma estrutura eficaz. Em
primeiro lugar, diferenciar, para, em seguida, reunir: ou seja, fazer a diferença entre
os funcionários, para alcançar as boas combinações coletivas. O organizador deve,
pois, nomear a relação entre saber e ação de acordo com a capacidade de cada
indivíduo, para compor, a partir disso, as equipes que vão gerar novos saberes. A
qualidade do trabalho vai se apoiar nas identidades profissionais fortes, produzidas
por sólidos sistemas de interação, de comunicação e de ajustamentos recíprocos.

Em consequência, o organizador dirigente é um gestor de “competências” num


sentido bem particular do termo. Cada competência designa para ele, de maneira ine-
vitavelmente um pouco abstrata e global, um colaborador, um potencial participante
no serviço que a empresa projeta realizar. O conjunto das competências disponíveis
assim diferenciadas é adaptado pela reunião não mais de conteúdos de empregos
(como nas qualificações), mas de situações profissionais típicas – pelo menos, se
demonstramos uma vontade de entrar em uma abordagem de competências. Essas
situações são, em princípio, escolhidas como as mais representativas no que diz
respeito à realidade do trabalho efetuado pelos trabalhadores em questão, para,
em seguida, serem analisadas e sintetizadas em um referencial de competências.

No entanto, passando da qualificação à competência, o organizador vê a questão


da relação estável entre saber e ação se complicar. Com as qualificações, a rela-
ção entre o que uma pessoa sabe e o que ela faz não só é nomeada, mas também
normatizada: são designadas situações de empregos comuns a grupos de pessoas,
facilitando sua classificação, sua hierarquização e a composição de um organo-
grama. Ora, a competência não permite isso: não existem escalas susceptíveis de
medir as competências, nem a hierarquia de valores da competência.

Com o declínio do trabalho prescrito estandardizado, a organização reconhece


não mais dispor, a priori, do repertório preciso de saberes úteis e faz apelo aos
saberes da prática. E, efetivamente, a pessoa competente vai implementar saberes
que vão sempre um pouco além do que é requerido nas grades estabelecidas an-
30 Competência e atividade de trabalho

tecipadamente. Introduz-se, nesse momento, a noção de responsabilidade, aquela


do operador ao qual se confia a gestão de uma situação profissional.

Certamente, com a competência, o organizador dispõe de uma nova ferramenta de


governança, o que lhe dá uma ideia mais clara dos saberes efetivamente usados
no trabalho. No entanto, nessa aproximação do saber e da ação, deve-se necessa-
riamente integrar a tomada de iniciativa e de responsabilidade. O problema não é
mais, como na concepção taylorista, verificar o respeito das operações prescritas
e a velocidade de sua realização, mas assegurar que a ação realmente engajada se
mantenha dentro do enquadramento acordado, em conformidade com os objetivos
da direção. Isso supõe um novo dispositivo de controle exercido pelos dirigentes,
no contexto de uma relação salarial. Um controle não disciplinar, que assegure
ao assalariado uma liberdade de movimento e de arbitragem nas situações que
ele encontra e lhe permite, em retorno, se reapropriar de suas próprias ações –
sem que, todavia, ele não “tensione o elástico que o liga à hierarquia”, precisa
Philippe Zarifian (2006:11).

Uma vez que é considerado como estratégico, o saber da experiência não pode ser
totalmente comandado, teleguiado. Há, certamente um limite, é a entrevista para
prestar contas dos resultados. Porém, uma tal pressão artificial é pouco compatível
com o engajamento de compartilhar um saber de experiência. A confusão arrisca-
-se, então, rapidamente a se instalar entre a avaliação da performance e avaliação
da competência. E diríamos que uma armadilha se fecha. Escolhendo, no início,
um critério de cooperação altamente personalizado, aquele da competência em
lugar da qualificação, liberam-se espaços de autonomia. Mas, se essa escolha é
feita em razão do valor dos controles acrescentados e de um retorno ao output,
então estamos em contradição com o desejo de nos apoiarmos mais em saberes
da experiência relacionada com a ação situada, ou seja, de mobilizar ainda mais
a competência para assumir a situação de trabalho...

Vê-se que, para a organização, não é fácil fazer uso do termo competência. Julgar
a relação entre os saberes e as ações é, de alguma forma, responder a uma dupla
Parte 1: Problematizar a competência 31

questão. Do lado do assalariado: essa relação vai responder ao que se espera de


mim? E, nesse caso, quais serão as minhas margens de autonomia, de iniciativa?
Qual será o reconhecimento dessa relação? Do lado do organizador: essa relação vai
responder ao que eu espero da pessoa? E, nesse caso, até que ponto posso confiar
nela, até que nível de responsabilidade chegar à composição de uma equipe? O
resultado é uma inferência do particular para o geral: ser julgado capaz de... Ora,
no caso da qualificação, esse julgamento parece mais evidente porque ele é exterior
em relação à ligação saberes/ações, operada com base em referências negociadas.
Ao contrário, com a competência, esse julgamento parece mais questionável
porque interior, inscrito no processo que junta o saber à ação. Entre qualificação
e competência, o organizador teria de escolher entre desconforto (dispor de uma
grade que tende a incomodar na sua distribuição de papéis) e insegurança (privar-
-se de uma proteção na relação salarial para melhor se aproximar do trabalho
real)? Certo é que o uso ampliado do termo competência introduz uma mudança
na relação entre o indivíduo e a organização. “Com a qualificação, é o fato de ser
qualificado que vale como ser reconhecido; para a competência, é o fato de ser
reconhecido que causa a competência” (Lichtenberger, 1999: 84).

2.2. Sob o ângulo do coletivo

No deslocamento da qualificação à competência, a outra preocupação obsessiva-


para o organizador – depois da gestão das margens individuais – é a cooperação
no trabalho.

As situações de trabalho que se representavam estáveis e reprodutíveis permi-


tiam ao organizador instalar estruturas seguras com equipes de trabalho com
contornos bem-definidos. Uma tal concepção de organograma é descontruída
pelos coletivos moventes, que – frente à evidência de sua atividade, do trabalho
real – não se deixam encerrar numa modelização inicial. As entidades coletivas
de geometria variável sempre existiram nas empresas (Schwartz, 2000a), mas
elas se tornam visíveis onde eram, sobretudo, discretas. Em função da natureza
dos problemas encontrados, os coletivos se recompõem rapidamente e procuram
32 Competência e atividade de trabalho

ser reativos, para responderem, em conjunto, ao imediatismo, à variabilidade


das situações encontradas.

O risco para o organizador que faz uso do termo competência é confirmar a


tendência de perceber o trabalho como uma iniciativa sem raiz coletiva, sem
vinculação a uma equipe: reafirmar a ideia de que a competência estaria atrelada
a uma qualidade individual transportável quase por toda parte, a um saber rela-
cional, comunicacional. Ao mesmo tempo, poderíamos dizer, o organizador que
se baseia na competência e descreve suas expectativas, apenas esclarece sobre o
que os ergonomistas já haviam revelado no período taylorista: as colaborações
mais ou menos clandestinas para fazer face ao acontecimento no trabalho. São
essas relações nascidas da necessidade que teciam as comunidades de interes-
ses, portanto, os coletivos solidários e susceptíveis de favorecer as identidades
profissionais e sociais. A diferença é, todavia, importante: quando a abordagem
competência coloca, em palavras, essas relações profissionais e as integra às suas
próprias características, ela as modeliza, ela as congela de alguma forma – até
fazer delas um novo prescrito.

O uso do termo competência vai ao encontro das precauções outrora tomadas, na


época das únicas qualificações, que consistiam em manter, a uma boa distância,
de um lado, a maneira de nomear o que se tinha como uma força de trabalho e,
do outro lado, a personalidade que deveria ocupar o cargo. Interditava-se, então,
qualquer suposição sobre o que poderia explicar a qualidade do gesto que tornava
alguém mais apto que o outro para executar uma função; recusava-se toda hipótese
sobre a natureza ou a origem dessa “competência”, que se definia, então, como
uma qualidade inata, ou mesmo como fruto de uma experiência ou de uma dada
formação. Com o agente anônimo sendo completamente apartado da realidade do
trabalho, era suficiente a diferenciação somente pela qualificação. E é, na ação
real, em situação de trabalho, que esse agente construía, com os outros, uma outra
diferença, uma verdadeira identidade.
Parte 1: Problematizar a competência 33

Via-se bem, na relação saberes e ação, por que razão os organizadores do trabalho
têm de se debater com a suspeita de favorecer o papel do indivíduo – enquanto as
atividades profissionais têm objetivamente um caráter coletivo e interdependente.
Renuncia-se a representar a ação no trabalho como uma simples aplicação de sa-
beres, o que significa que nós nos aproximamos da mobilização efetiva dos saberes
na ação. Por consequência, introduz-se inevitavelmente um elemento perturbador,
o poder de agir. O indivíduo que age é convocado à responsabilidade, ele deve
assumir a realidade encontrada no trabalho. Ele aceita, mais ou menos, essa con-
vocação para agir, em função do grau de iniciativa que, em parte, lhe é concedido
e que, de outra parte, ele certamente quer aceitar. Um novo tipo de relação entre
o indivíduo e o coletivo resulta, inevitavelmente, do uso do termo competência.

Recordemos que, desde as primeiras introduções da abordagem competência nos


anos 90, Yves Lichtenberger colocava esta questão central: “em quais condições
os homens aceitam cooperar entre si?” (1990:23).

Parece-nos que, do ponto de vista do organizador, isso é um pouco como a qua-


dratura do círculo. A competência é um vocábulo prático para se aproximar da
prática, no momento em que é preciso contar com uma reatividade máxima das
equipes. Simultaneamente, esse vocábulo se mistura às situações de trabalho,
obrigando a considerar que o saber e a ação não estabelecem uma relação neutra,
mas que eles se referem a uma atividade com configurações de acontecimentos,
obrigações a escolher em função ou à custa dos outros. Ou seja, ao aproximar
saber e ação, revelam-se as margens de responsabilidade e iniciativa, um poder
de agir tomado como um debate sempre renovado na situação.

A situação: é isso que traz dificuldade do ponto de vista da organização. Até que
ponto a situação pode ser a pedra de toque que distingue os protagonistas do
trabalho? A situação nos aparece como um intermediário entre a classificação e
a performance. Do lado da classificação, o raciocínio sobre a diferenciação se
baseia sobre no sistema das qualificações. Do lado da performance, quando ela é
o único critério, a diferença se faz de acordo com os “talentos” (Pigeyre, 2011).
34 Competência e atividade de trabalho

A situação é, desse ponto de vista, a referência para a competência, obrigando a


atualizar os saberes. Para se distinguir um do outro, cada um é, assim, posto à prova
no aqui e agora. Mas, para caracterizar isso que é realizado, como considerar o
ator que se revela no ato sem se fechar na singularidade de suas escolhas? Como
dar conta tanto do individual quanto do coletivo, sem lesar nem um nem o outro?

A competência, em relação à qualificação, é um deslocamento de saberes em dire-


ção à ação. Fazendo isso, penetra-se na atividade em lugar de ficar só no limiar. O
que se descobre então, no menor dos atos de trabalho, é toda a realidade humana:
no lado individual e no lado coletivo.

O organizador deseja refinar a sua percepção das forças em presença, mas isso
não se deve fazer nem em prejuízo do indivíduo, nem em detrimento do coletivo.
Ora, já vimos isso, falar da competência já é transbordar, colocar-se para além da
única designação dos saberes úteis à ação. Inevitavelmente, toca-se nas relações
humanas. O ato no que diz respeito ao saber nos humanos não é comparável a
uma operação correspondente a um programa de informática, por exemplo. Agir
forma uma unidade com os saberes e os valores – e os valores conduzem, nos seus
sulcos, à questão dos outros, das preferências e das prioridades. Essa unidade do
agir humano incomoda, de maneira inevitável, o raciocínio de um organizador
que, caso contrário, iria adorar se aproximar das realidades do trabalho. O gesto
técnico, que se queria neutro a fim de melhor indexá-lo, é intimamente investido
por uma personalidade. O operador, que gostaríamos de observar à parte para
refletir sobre seu percurso, está estreitamente misturado ao trabalho dos outros...

O gestor de recursos humanos está bem consciente dessas dificuldades relativas


às competências e aos riscos da perda de dinamismo, de motivação, em caso
de falta de habilidade em relação à pessoa ou no tocante ao coletivo. É por
isso, parece-nos, que a introdução massiva do uso deste termo individualizante
que é “a competência” chamou, paradoxalmente, muitas vezes, a atenção dos
organizadores sobre os coletivos. Longe de serem aglomerações eventualmen-
te ameaçadoras, como foram percebidas nas fábricas do passado, os coletivos
Parte 1: Problematizar a competência 35

são construções pacientes, frágeis e preciosas – tipos de emergências a que as


empresas devem boa parte de seu sucesso.

O que nós retemos de nossa análise do uso que os organizadores do trabalho podem
fazer da palavra competência é, primeiramente, isto: eles aprenderam a pensar as
competências de uns em relação aos outros. Aproximando o binômio “saberes –
ações” requerido pela competência, apreendemos melhor, sem dúvida, a medida
das interdependências que uma visão por demais racionalista do trabalho poderia
mascarar na época taylorista.

Mas do que escolhido, o vocabulário da competência foi incontestavelmente


imposto aos organizadores, sendo trazido pela onda de mudanças ambientais que
interessavam às empresas, sobretudo no curso das três últimas décadas. O termo
pôde seduzir, porque deu novo acesso às realidades do trabalho. Mas ele tem tam-
bém constrangido: não nos aproximamos da atividade real sem correr riscos. Em
um estudo relativamente recente, Ewan Oiry (2005) fez um balanço comparado
dos usos de dois conceitos: a qualificação e a competência desde os anos sessenta.
Disso ele ressalta que o modelo da competência foi severamente criticado: em pri-
meiro lugar, por sua ambiguidade, porque uma competência não pode, ao mesmo
tempo, ser contextualizada e retirada de seu contexto organizacional e, também,
por seu unilateralismo, dado que ele parece se desobrigar de todo diálogo social,
ao contrário da qualificação; de certa maneira por sua abordagem conciliadora e
compreensiva por assim dizer, por seu irenismo1, porque fingiu acreditar que uma
competência pudesse ser avaliada sem debate ou controvérsia. O autor desse estudo
seguiu os vários ajustes desse modelo de competência e, a partir disso, concluiu,
comparando-o às evoluções paralelas do modelo de qualificação, visto que as
últimas versões desses dois conceitos são finalmente muito próximas. As duas
características da competência que mais significativamente evoluíram são: de uma
parte, considerar que a competência é o atributo do indivíduo (agora nos contenta-

1NT: Ecumenismo.
36 Competência e atividade de trabalho

mos em dizer que o foco é colocado sobre o sujeito); de outra parte, pretender que
a competência responderia a critérios objetivos não negociáveis, porque fundados
cientificamente (admite-se, agora, que eles podem ser objeto de uma negociação).

Parece-nos, efetivamente, que o uso do termo competência pelo organizador do traba-


lho se aproxima da qualificação como uma “irmã gêmea” (Oiry). Trata-se, provavel-
mente, de um compromisso inevitável, esperando que conceito seja mais aprofundado:
nós estamos ainda, de acordo com o nosso ponto de vista, no meio do caminho.

3. O uso do termo competência pela chefia

3.1. Uma posição “entre dois”

Dependendo do tamanho da empresa, duas funções de administração podem ser


confundidas ou, ao contrário, estar bem separadas: a do dirigente que organiza e a do
chefe que implementa. Em nossa pesquisa a respeito do uso da palavra competência,
parecia-nos importante fazer uma diferenciação. Não teríamos a mesma precaução
com a qualificação, porque o conceito operatório não está necessariamente nuan-
çado de uma função à outra. Em compensação, dado que a competência aproxima
o saber da ação, nós nos damos conta da posição específica do chefe de setor, pois
ele fica mais perto das realidades do trabalho, na “aderência” – enquanto, por seu
lado, o organizador se posiciona necessariamente em “desaderência”.

Todas as grandes estruturas de produção de bens ou serviços, nos setores público


e privado, recorrem a um intermediário entre, de um lado, o nível hierárquico
dos responsáveis encarregados em definir a estratégia assim como as grandes
linhas de organização e, por outro lado, o nível dos operacionais no sentido
estrito, aqueles que são diretamente confrontados na prática, no contacto com
o usuário ou o cliente.

O chefe de linha é, muitas vezes, fragilizado na percepção de sua própria identidade


profissional. Sua prática não abarca realmente um ofício, sendo a sua função per-
meável a diferentes categorias profissionais. O grupo ao qual ele pertence não pode
Parte 1: Problematizar a competência 37

ficar do lado dos dirigentes, pois ele está claramente em posição de subordinação,
mas ele também não pode estar do lado das pessoas do chão de fábrica. Mesmo
que a relação disciplinar não seja mais do tipo taylorista, ele precisa manter uma
distância mínima para preservar a sua autoridade. Aliás, considera-se, muitas vezes,
que ele possui responsabilidades operacionais tendo um desempenho funcional pelo
estatuto. A partir do papel que lhe é prescrito (Bellini e Labit, 2005: 227), o gerente
vai tentar – ele mesmo – construir um papel para si mesmo ao lado de sua equipe,
evitando, se for possível, dois obstáculos: o do amigo e o do “pequeno chefe”.

A diretoria usa o chefe de setor como uma correia de transmissão, ao passo que
as equipes lhe pedem que ele seja o porta-voz delas. Como está na escuta das
diferentes preocupações, estratégicas para uns e operacionais para outros, ele
assume uma função de regulação, até mesmo de agente da paz social. A posição
entre os dois grupos é, sem dúvida, um freio para o desenvolvimento de um
profissionalismo e de uma verdadeira autoridade no âmbito da missão confiada a
essa categoria de trabalhadores.

O que se espera de um chefe de setor é acompanhar, ajudar e encorajar cada


pessoa da sua unidade, construindo uma equipe: formar um grupo que seja, ao
mesmo tempo, coerente e unido, integrado, mas não unificado, de maneira a não
impedir cada um de realizar sua tarefa com a sua própria personalidade. Admi-
nistrar uma equipe não é pilotá-la do alto, mas é, de preferência, compartilhar
a sua luta com o real. A chefia de proximidade é, sem dúvida, muito mais uma
arte do que uma técnica.

3.2. Um exemplo no meio industrial

Em uma empresa metalúrgica, os chefes de setor ficam ressentidos quando a di-


retoria de recursos humanos não os consulta antes de decidir sobre a progressão
dos colaboradores. Por seu lado, a DRH critica as chefias por tratarem muito
superficialmente as ferramentas de gestão das competências (relatório das en-
trevistas anuais, identificação das necessidades de formação). Considerados por
38 Competência e atividade de trabalho

muito tempo como especialistas técnicos, podendo substituir, aliás, a qualquer


momento um operador no seu posto de trabalho, os chefes de setor entenderam
que o que se esperava deles, de agora em diante, era assumir o papel de coach
das equipes: explicar o que se esperava deles, formalizar as tarefas, valorizar os
resultados. Em resumo, demonstrar que vale a pena engajar-se no trabalho, apesar
das dificuldades do quotidiano.

O chefe de setor reivindica o seu conhecimento da prática. Ele sempre aprecia o


trabalho de cada colaborador: “vendo como ele trabalha você sabe se ele enten-
deu o seu trabalho ou não”, explica um chefe que enfatiza a necessidade de os
operadores serem reconhecidos. “Não é desenhando organogramas num quadro
que se administra esse reconhecimento. Como o chefe [hierárquico] pode julgar a
competência de um trabalhador, sem consultar o seu chefe de setor?” (Kauffmann,
2012: 70). Isso pode parecer paradoxal: de um lado, os chefes acham que eles são
capazes de “saber o que as pessoas fazem, qual é a pessoa na melhor posição para
fazer esse trabalho” (ibid: 65); mas, por outro lado, esses mesmos chefes atrasam
as agendas de manutenção anual, negligenciam, visivelmente, os documentos
ligados a isso, notadamente a respeito da questão das formações recomendadas.

Na realidade, para o chefe cuja missão, apesar de tudo, é alcançar o resultado


esperado, a competência significa algo bem preciso.

Constantemente, os efetivos flutuam nas empresas e desorganizam as equipes.


Para alcançar os objetivos de performance, os chefes de linha têm que antecipar
as necessidades em competência da sua equipe. Muitas vezes, através da poliva-
lência ou de contratos temporários, pois as diretorias limitam os recrutamentos
por motivo de rentabilidade. O chefe deve estar na escuta das evoluções estra-
tégicas da sua hierarquia e adaptar as necessidades de competência em caso
de mudanças impactando sua equipe. Ele deve ser reativo e fazer propostas. O
chefe de setor deve poder identificar os potenciais da sua equipe. (ibid.: 31).

E, entretanto, o chefe de setor se sente despojado ao analisar a competência de


maneira formal. É bem provável que esse seja o verdadeiro motivo de sua aparente
negligência no que se refere às entrevistas anuais. No fundo, como lhe revelava um
Parte 1: Problematizar a competência 39

tutor em outro contexto, “se fala muito pouco de competências no meio do trabalho”
(Gasser-Franco, 2012: 68). Para a chefia, a competência se vive muito mais do que
se diz. Disso devemos concluir, como Guy Le Boterf, que “a competência requerida
é a que está presente nos referenciais de competências. A competência real é aquela
construída por cada pessoa” (Le Boterf, 2002)? Parece-nos, ao contrário, que preci-
samos evitar a armadilha de tal dicotomia: competência teórica, competência real. É
evidente que o chefe de setor percebe algo diferente daquilo que o chefe hierárquico
percebe, mas esse “algo diferente” não significa que aí existam dois fenômenos a
levar em conta separadamente. Isso seria transformar a competência especificamente
em uma coisa, uma substância que iríamos poder apreender como tal – quer se tenha
tomado ou não a precaução de associá-la ao contexto. Na realidade, os chefes hie-
rárquicos e de setor consideram um só e mesmo fenômeno: a pessoa em atividade.
A única diferença está na abordagem: em desaderência para uns, em aderência para
os outros. Como ele apreende seu julgamento de competência no peso da situação
real, multidimensional, com inúmeras pressões e porque, na sua maioria, ele não
as escolheu no seu projeto de ação, o chefe de setor não vai compartimentar o seu
raciocínio. Se ele tiver que achar um substituto na esmaltaria para a caldeiraria, ele
sabe que os operadores altamente especializados correm o risco de viver isso como
degradante, mesmo se não se trata senão de uma ajuda. Ele vai tomar a questão
da competência como uma única realidade a fim de convencer o profissional: ele
não vai analisar separadamente os aspectos técnicos e psicológicos ou ligados à
personalidade. Ele vai, também, considerar o momento e mobilizar, na sua retórica,
tanto os valores quanto os argumentos lógicos.

Em uma avaliação, a competência designa o referente a respeito de um referido


que é a atividade, um “uso de si”. A competência pertence, assim, ao registro do
discurso sobre uma realidade, não se trata da realidade de um fato indiscutível.
Os chefes de setor têm um discurso sobre a competência de seus colaboradores
que não cruza com o dos chefes hierárquicos, não porque eles falariam uns e
outros de duas formas de competência distintas, mas porque eles têm pontos de
vista diferentes a respeito do fenômeno das ações julgadas positivas por alguém.
40 Competência e atividade de trabalho

Dizendo que o chefe de setor está colocado na fronteira entre o trabalho


prescrito e o real (Létondal, 1997: 18), indica-se, efetivamente, o ponto
de vista que ele pode ter a respeito da competência, fortemente matizada
de pragmatismo. Contrariamente ao uso que é possível ter disso um orga-
nizador, que assimila, com facilidade, a competência e a qualificação (cf
supra: duas “irmãs gêmeas”), um chefe vai usar o termo competência para
falar do que funciona, dos desafios vencidos por um ou outro, em função
do que ele já sabe sobre ele. O chefe faz uso da competência na sua prática,
para avançar, de maneira concreta e no presente, no trabalho de equipe,
mas não com a preocupação do gestor estratégico ou ainda do avaliador.

4. O uso do termo competência entre os avaliadores

4.1. A competência sob o prisma da coleta de provas

Avaliar é um exercício difícil, particularmente em empresa: nisso, o uso feito do


termo competência pelos avaliadores pode ser muito instrutivo. De fato, a com-
petência não é um objeto intelectual fácil, pois ela se entende no cruzamento do
objetivo e do subjetivo. A tarefa que eu estou fazendo, hic et nunc e com mais
ou menos sucesso, é a “minha” tarefa. Sou eu mesmo: não é uma tarefa neutra
realizada por alguém que saberia ser eu – aliás, “julgado competente”. Por outro
lado, é complicado porque essa tarefa não é “senão” eu! Em outras palavras, eu
não poderia ser reduzido ao que essa tarefa fala sobre mim, nem, aliás, todas as
outras que eu pude realizar no passado ou que eu poderia garantir no futuro. Não
existe loja virtual a meu respeito com competências “manifestas” e outras na
espera, porque “possuídas” por mim. Uma tal visão das coisas procede de uma
má apreensão da dialética entre o ato e o ator: um faz o outro – e reciprocamen-
te. Os que têm a tentação de considerar, por exemplo, um teste como uma prova
incontestável de uma competência, quer dizer a atestação de uma relação objetiva
entre saber e ação, esses confundem o ato e o ator. Ao contrário, os que imaginam
que um trabalho repetitivo não requer nenhuma competência, como se o meu agir
estivesse então reduzido a uma mecânica, esses fazem uma separação abusiva do
Parte 1: Problematizar a competência 41

ato e do ator: segundo eles, o ato repetitivo seria realizado como uma operação
neutra, claro que na minha presença, mas sem um “eu” investido…

Levando em conta o que se acaba de dizer, será que a avaliação das competên-
cias é possível? De qualquer maneira, ela se impõe. Nós precisamos saber o que
sabemos coletivamente e individualmente, quando se trata de passar à ação, de
realizar um projeto. A exigência de avaliar a competência é inteiramente legítima.

Então, avaliar sim, mas o que avaliar? Descrevem-se ações profissionais em longas
listas de itens. O frenesi do corte tomou conta de muitos avaliadores, e isso não é
surpreendente. Querendo aproximar o saber e a ação, vamos abordar necessaria-
mente “a atividade”, que é um operador sintético. Essa atividade é transgressiva
em relação às nossas categorias intelectuais, ela perturba, simultaneamente, o
dualismo e o solipsismo ambientes. O dualismo considera, separadamente, o
homem por um lado e o mundo externo do outro. O solipsismo isola o sujeito
individual de seus semelhantes como se ele fosse sozinho uma realidade em si.
No entanto, ao analisar o agir em competência, temos que constatar duas coisas.
Em primeiro lugar, no momento de passar à ação, o protagonista não supera tudo;
ele não domina o mundo pelo fato de ser um pensante racional, mas, ao contrário,
ele luta com múltiplas exigências das quais muitas não foram levadas em conta no
seu projeto. Em segundo lugar, esse mesmo protagonista nunca age sozinho. Ele
reage tanto quanto age: as interações em situação reconfiguram, incessantemente,
o seu esquema inicial de intervenção. Em consequência, o ato planejado, logica-
mente pensado, segundo uma intenção, é inevitavelmente transformado pelo real,
pois o agir é um tecido de escolhas a fazer continuamente. É claro que isso não
impede a modelização e, depois, a realização de um projeto, mas proíbe imaginar
correspondências não equívocas entre o ato formulado hipoteticamente, indexado
de maneira anônima numa grade de avaliação, de um lado, e, por outro lado, o
ato tal como verificado na realidade, às vezes tornado temporal e personalizado.

Já foi dito, os avaliadores tendem em detalhar, cada vez mais, a realidade do tra-
balho, afrontando, com certa ousadia, a inextricável complexidade da atividade
42 Competência e atividade de trabalho

humana. Eles elaboram a hipótese de que, com a força da precisão conceitual, terão
delimitado os contornos de uma parte da experiência da vida concreta do avaliado
na empresa nesse caso. Por exemplo, para relatar o fenômeno de um agir em que
é difícil distinguir a si mesmo do outro, vamos forjar a expressão “competência
coletiva”. É muito significativo o uso de uma representação da competência que
fica, no fundo, ainda desencarnada, um tipo de fenômeno que pode caracterizar
um grupo, além das personalidades que o compõem. Não se trata para nós de
questionar a realidade das emergências coletivas, as sinergias entre atores, mas
de ver que exatamente o termo “competência” pode facilmente ser transportado a
uma escala que não é mais individual, ao passo que, na origem, busca-se identificar
as arbitragens de alguém, de uma personalidade que é o autor de um ato julgado
exitoso. A discordância é, aliás, acentuada por outros motivos ainda:

A gestão pelas competências deve, assim, fundar-se sobre ferramentas de reco-


nhecimento relativamente precisas e estáveis para ser eficaz e parecer justa. Ora,
as competências coletivas, pela sua natureza, são dificilmente compreendidas:
existe então, potencialmente, uma contradição de natureza entre, de uma parte,
uma abordagem necessariamente precisa, formalizada e, por outra parte, compe-
tências coletivas traduzindo, sobretudo, um equilíbrio mais ou menos estável de
comportamentos e de competências interindividuais (Cavestro et al., 2007: 22).

A expressão “competência coletiva” mostra um desvio do avaliador para conseguir


dizer algo da competência que seja, ao mesmo tempo, isolável e que assuma a
permeabilidade da atividade humana entre si e os outros. Acontece o mesmo com
as competências sociais ou ainda comportamentais. Deslizamos, assim, da com-
petência às competências, a passagem do singular ao plural sendo ela, também,
reveladora do conceito operatório para os avaliadores. O que deveria ser um meio
de distinguir os protagonistas do trabalho entre eles – mais sutilmente do que não
o pode fazer a qualificação e respeitando a identidade daquele que age – torna-se
um catálogo de características heteróclitas. Mas, segundo os avaliadores, isso
corresponde ao desejo dos avaliados, que preferem as fórmulas de competências
muito precisas, como se não existisse meio termo entre as categorias universais
da qualificação e a tentativa de categorizar o agir singular. Os assalariados vão
Parte 1: Problematizar a competência 43

considerar justas as competências definidas de maneira precisa, pois uma com-


petência geral demais tornaria o seu reconhecimento mais delicado, demasiado
aberto à arbitrariedade da chefia. Essa exigência de justiça como condição para
aderir à abordagem de avaliação da competência nos faz pensar que é justamente
o dualismo – “sujeito agente de um lado, objeto-mundo do outro” que incomoda
os seres de atividade que se tenta avaliar. Cada um sente que ele terá que defender
a sua causa, explicar em quais dificuldades ele teve de se debater ao realizar a
tarefa em questão, antes de aceitar que se marque, com uma cruz, em seu nome,
um dos quadrados da grade de avaliação.

4.2. A competência sob o prisma da coleta de argumentos

Desde o fim dos anos 90, parece-nos, são reconhecidas duas correntes na avalia-
ção das competências na empresa. A primeira, da qual se falava anteriormente,
apresenta uma abordagem mais positivista. Trata-se de reconhecer as provas do
que o trabalhador consegue fazer: de um lado, dentro de um dado contexto, o
que testemunha o seu desempenho; de outro lado, e independentemente desse
contexto, o que fornece indícios da sua empregabilidade. Há uma segunda
corrente que é orientada pela preocupação da interpretação. Os fatos existem,
mas, certamente, eles não falam deles mesmos. É ainda mais justificável lembrar
isso quando se pensa na competência, a qual sempre supõe o olhar do outro.
No ambiente de trabalho, por exemplo, no momento de se pronunciar sobre a
competência de um trabalhador, será privilegiada a conformidade (as regras
da arte, mais ou menos respeitadas) ou, sobretudo, a utilidade (a qualidade e a
eficiência do serviço feito, mesmo tomando algumas liberdades em relação às
maneiras canônicas do fazer na profissão)? O debate sempre volta à tona: ele
nunca vai ser resolvido, pois ele é consubstancial ao trabalho como atividade, em
tensão entre uma forma de desaderência (o prescrito, a profissão) e uma forma
de aderência (as urgências da hora, as realidades do momento).

Assim, o discurso sobre a avaliação da competência está evoluindo: não é a mo-


bilização dos saberes que está em primeiro lugar, mas a apreciação da situação.
44 Competência e atividade de trabalho

É visto como competente aquele que problematiza corretamente a configuração


dos acontecimentos num momento dado. A questão do recurso torna-se, necessa-
riamente, secundária em relação à fase da avaliação de uma situação.

Trabalhando, cada um está diante da obrigação de escolher. Agir é julgar – e,


também, expor-se ao julgamento dos outros. Julgar o que é adequado a ser feito
não é somente combinar saberes num momento dado, é também e, sobretudo,
pesá-los em valor, entrar num debate sem fim entre o que vale para si e o que vale
para o outro. É por isso que, quando a avaliação está aberta para a argumentação,
não se detendo pois nas únicas provas do ato exitoso, ela possibilita ao avaliado
expressar certa satisfação ao constatar a singularidade da sua contribuição e de
experimentar o sentimento de uma nova dignidade: “não ser mais uma simples
máquina de execução, mas ser reconhecido como participante do desempenho
da empresa como indivíduo tendo um nome, uma personalidade e maneiras de
fazer que lhe sejam próprias” (Lichtenberger, 1999: 80).

Um nome, um rosto, “debates de normas”, um julgamento próprio: no oposto


do anonimato de uma qualificação, a competência é um discurso sobre a pessoa
vista em ação, no sentido de ela associar saberes e valores nas suas escolhas em
situação. Percebe-se nitidamente o paradoxo da avaliação da competência no
meio profissional: como relatar, com uma relativa objetividade, o que é a tal ponto
personalizado? Há de se achar um equilíbrio entre a prova objetiva e o argumento
subjetivo para pronunciar um julgamento pertinente e aceitável do ponto de vista
deontológico. Trata-se de um equilíbrio entre duas práticas exageradas do julga-
mento de competência: uma que prova sem argumento; outra que argumenta sem
provas. Nós já apresentamos a primeira como um tipo de uso cego do referencial. A
segunda consiste em negligenciar os fatos que testemunham uma competência para
remeter-se à notoriedade: “Nas organizações descentralizadas, os avaliadores,
incomodados com os sistemas de avaliação, podem procurar usar a reputação na
intenção de avaliar implicitamente seus colaboradores” (Plouchard, 2013: 32).
Parte 1: Problematizar a competência 45

Para administrar o paradoxo da competência – pronunciar um julgamento de ordem


geral sobre um fenômeno altamente específico – , os avaliadores vão, a nosso ver,
adotar o raciocínio seguinte. Em primeiro lugar, a competência não se confunde
com o desempenho, mas ela não está dissociada dele: a competência representa o
caminho para alcançá-lo. No entanto, esse caminho, esse processo que se chama
competência, é uma forma de inteligência da situação encontrada: ela passa pela
tomada de iniciativa (engajamento de si) e de responsabilidade (engajamento em
relação aos outros). Então, para expor, da melhor maneira, um agir em competência
é necessário associar a avaliação do desempenho a uma argumentação relativa à
produção desse desempenho. “Uma pessoa só poderá realmente ser reconhecida
como “competente” se ela demonstrar capacidade não só de realizar uma ação,
mas também de entender por que e como ela faz para agir” (Le Boterf; 2002a).

Os avaliadores finalmente se atêm em um tipo de combinação para identificar


a competência: uma realização convincente, adequada a uma explicação lógica
das arbitragens, quer dizer, de uma abordagem reflexiva. Nós pensamos que essa
maneira de fazer revela uma representação da competência ainda muito racional:
uma construção lógica, uma combinação que pode se modificar dependendo das
situações, o que explicaria que ela pode ser negociável. É, assim, uma percepção
fortemente em desaderência, ou seja, ao abrigo das arbitragens concretas, reais,
aqui e agora. Afirmamos isso porque, na situação em aderência, não existe arbi-
tragem puramente lógica, no sentido de um agenciamento neutro de diferentes
opções. Há, necessariamente, uma dominante axiológica no ato: eu estou agindo
em um ou tal sentido não somente em nome de uma racionalidade lógica, mas
também segundo algumas preferências ou rejeições. É o que chamamos no sentido
forte: o ponto de vista, aquele da pessoa engajada na ação.

5. O uso do termo competência entre os formadores: agir


com um ponto de vista responsável

Em simetria com a posição do gestor em relação à organizador, o formador parece


estar mais em aderência, isto é, mais próximo das arbitragens situadas e datadas,
46 Competência e atividade de trabalho

ao passo que o avaliador estaria mais numa postura de desaderência na medida


em que ele tenta distanciar-se do aqui e agora para ser mais pertinente. A partir
disso, o uso que o formador vai fazer do termo competência será nitidamente
diferente daquele do avaliador.

Em primeiro lugar, é necessário precisar em que condições nós fazemos uso da


palavra formador. Se a palavra é imposta quando se faz referência aos adultos
em aprendizagem, é porque existe uma diferença nítida em relação ao docente.
Trata-se de reforçar a relação entre o saber e a ação, em outras palavras, de se
apoiar sobre o caráter operacional do saber, sobre a sua implementação em si-
tuação na vida concreta. É certo que os seres de atividade que somos estamos
necessariamente posicionados, de modo simultâneo, em aderência e desaderência.
Esse posicionamento está num reequilíbrio permanente, pois isso é próprio da
atividade humana, que é intelectual e vital ao mesmo tempo. Entretanto, a vida
profissional causa desproporções entre aderência e desaderência, favorecendo
uma mais do que a outra segundo os papéis e funções de cada um. O exemplo-
-tipo é a diferença entre o prático e o pesquisador. Contrariamente às dicotomias
injustificadas, como “manual/intelectual”, fazemos referência aqui a um relato
de si ao mundo e aos outros – e não a uma escandalosa divisão da pessoa huma-
na. No caso em foco, diferenciamos aqui o formador do docente na base dessa
relação com o mundo, para o primeiro mais sensivelmente em aderência e para
o segundo em desaderência.

Quando se pensa na parceria escola-empresa, subentende-se que o saber distri-


buído por uma entidade servirá para a outra na ação transformadora. A separação
é franca entre os dois lugares: de um lado, a escola, onde se adquirem recursos,
por definição transversais porque propostos justamente em desaderência, fora de
todo contexto profissional definido; de um outro lado, a empresa que “favorece
a transformação dos recursos adquiridos na escola em competências profissio-
nais. Dito de outra maneira, ela “ancora”, na ação, os saberes, habilidades ou
atitudes” (Medef, 1998: t.5, 11).
Parte 1: Problematizar a competência 47

Essa divisão um pouco categórica questiona, há muito tempo, o mundo profis-


sional que pensa na alternância. O que significa a ida e vinda entre a escola e a
empresa? Essa alternância seria, no fundo, “uma articulação teoria/prática, quer
dizer uma articulação pensamento/ação?” (ib:12). Se entendemos a competência
como “uma inteligência operativa do saber” (idem), é indefensável sustentar uma
divisão absurda dos papéis entre aqueles que pensariam e aqueles que agiriam.
Em compensação, distinguir segundo o grau de proximidade com as arbitragens
em aderência é absolutamente pertinente. Os atores do mundo da escola estão
principalmente numa posição de desaderência sem, contudo, serem privados de
todo o contato com as realidades concretas da vida profissional. As instituições de
ensino técnico têm oportunidade de colocar os seus alunos em situação de fazer
algo nas oficinas, aproximando assim o saber e a ação. Dito de outro modo, elas
possibilitam aos alunos obter uma competência no mundo real a transformar.
Inversamente, os atores do mundo da empresa estão principalmente em posição
de aderência sem, entretanto, serem privados de um acesso à conceitualização e à
modelização. O tutor é, assim, uma figura da transação educativa no ambiente de
trabalho. Mas é bem o conjunto dos atos no trabalho que devem ser entendidos em
tensão entre aderência e desaderência. A atividade cognitiva de quem está agindo
nunca se interrompe, mas pode adotar regimes diferentes em “circuito curto” ou
em “circuito longo” para retomar a diferenciação de Gérard Malglaive (1998).

Se ficarmos com a ideia de que, para o ser humano, nenhum ambiente está livre
da tensão entre aderência e desaderência, percebe-se que os contornos da função
de formador permanecem como objeto de um debate. Pois podemos querer apro-
ximar o saber e a ação, mas quando vamos dizer que tratamos com um docente
ou um formador? A diferenciação entre a aprendizagem e a competência é posta
nas entrelinhas de uma maneira implícita:

“Para transformar-se em competência, a aprendizagem in vitro deve poder


ser posta à prova do real, na situação de trabalho. Ora, sabe-se hoje que, em
múltiplos domínios (línguas, administração, pedagogia, por exemplo), saberes
ditos “adquiridos” em sala não poderão jamais ser explorados in vivo por falta
de pertinência, de realismo ou de oportunidades favoráveis” (Carré; 2005 : 93).
48 Competência e atividade de trabalho

Com a ajuda do binômio aderência-desaderência, parece-nos possível esclarecer


esse ponto. O modelo escolar é principalmente aquele de uma desaderência, pois
a transmissão acontece ao abrigo de certo número de contingências da vida con-
creta. O docente é o mediador no domínio progressivo de uma maneira de pensar
ou de fazer, com certa desaderência: de fato, os constrangimentos existem, mas
eles são selecionados em função do projeto de aprendizagem. O tempo, a varia-
ção dos efetivos, as interações, a hierarquização das tarefas, a disponibilidade de
materiais, tudo isso é objeto de uma antecipação no âmbito de uma oficina escolar.
O formador, por seu lado, age em função da vida real, o que significa dizer aqui:
em conformidade com certo número de constrangimentos, muitos dos quais não
foram pensados antecipadamente. Ele também é um mediador das maneiras de
aí se colocar, mas numa relação com o mundo que remete mais à aderência. Ele
aconselha o aprendiz em seus debates com as contradições da situação profissional
real: foi previsto, em dado momento, realizar tal etapa da iniciação profissional,
mas é preciso escolher, na verdade, o que é prioritário na ação coletiva para não
perder o controle, para manter o domínio sobre que está acontecendo; ou realmente
pretendeu-se antecipar um retorno de experiências entre o tutor e o seu aprendiz.
Ora, esse esquema é questionado à última hora porque uma equipe pede ajuda e é a
cooperação que se impõe; esses são os imperativos da produção que têm prioridade.

Não afirmamos que o formador tenha que, obrigatoriamente, estar em contato


direto com as realidades profissionais: isso seria confundi-lo sistematicamente
com o trabalhador-tutor da empresa. Efetivamente, um formador está, muitas
vezes, fora da prática, mas sua preocupação é exatamente a da prática; ele está
preparando alguém para administrar uma situação concreta, multidimensional,
cujos contornos não são jamais inteiramente delimitados. Para diferenciar o do-
cente – compreendido aí o técnico – do formador, parece-nos pertinente formular
a pergunta assim: trata-se de formar somente para uma “tarefa” ou também para
“escolhas”? É óbvio que as duas são imprescindíveis, mas, num caso, estamos em
desaderência relativa, e, no outro, não. Dominar uma tarefa é uma aprendizagem;
realizar a mesma tarefa em situação de trabalho é uma competência, porque será
Parte 1: Problematizar a competência 49

necessário fazer escolhas incessantes. Não se aplica uma tarefa, no sentido estrito,
quando não estamos no trabalho real: as possibilidades são avaliadas localmente
e tenta-se realizar a tarefa da melhor maneira possível.

A passagem de uma situação inteiramente dedicada à aprendizagem a uma situ-


ação comum de trabalho é significativamente marcada pelo posicionamento de
outrem. Com efeito, numa oficina para iniciação técnica, o docente é o mediador
de uma realidade sobre a qual ele tem uma influência relativamente importante.
Visto do lado do aluno, tem-se uma situação de atividade, pois existe um confron-
to com a tarefa (o cognitivo) e uma negociação com o mediador (o relacional)
que vão juntos solicitar um esforço ao interessado (o conativo). Entretanto, num
centro de capacitação profissional em alternância, o formador é o mediador de
uma realidade muito complexa, a do trabalho, sobre a qual ele não tem senão
uma influência parcial. Visto pelo lado do aprendiz, o aspecto do confronto à
resistência do mundo real e o aspecto de negociação com os outros obrigam o
interessado a se mobilizar em várias frentes ao mesmo tempo. No triângulo das
causalidades recíprocas, do tipo “saber-agir, querer-agir, poder-agir”, percebe-se
que a situação é bem diferente ao se fazer referência às realidades do trabalho,
não somente às realidades de um exercício controlado em um nicho dentro de
uma oficina. O docente tem que contar, claro, com o engajamento, o projeto
de ação de seu aluno, mas o formador deve se apoiar ainda mais fortemente no
projeto profissional do aprendiz (no sentido forte: sua razão de estar lá) pelo
fato de confrontá-lo no trabalho como problema. Em outras palavras, o docente
fixa toda a atenção do seu interlocutor sobre a única tarefa, seguindo as regras
da arte; o formador – esse – convida seu aprendiz a se concentrar primeiro no
serviço a prestar e anuncia depois esse serviço em tarefas cuja realização será
mais ou menos orientada, modelizada, em função das prioridades do momento. O
primeiro verifica somente a conformidade; o segundo avalia, ao mesmo tempo, a
conformidade e a utilidade do que o iniciante faz (os dois objetivos estando, por
vezes, em coabitação difícil no trabalho real).
50 Competência e atividade de trabalho

O formador leva em conta a ação situada e datada: entretanto, isso não quer di-
zer que ele fique preso ao aspecto específico das situações encontradas. Ele vai
fazer tudo ao contrário para evitar que a pessoa capacitada não se feche no caso
singular que ela examina.

“Reafirmar a dimensão situada das competências não vem negar o que há de


genérico nas situações. Toda situação comporta um certo número de traços
genéricos que a assimilam a outras situações da mesma classe, permitindo o
reconhecimento da classe de situação e, assim, a orientação e a organização
da ação na situação” (Mayer et al, 2010: 34).

Se o trabalho puder tornar-se formador, quer dizer ser propício ao desenvolvimento


da competência, é justamente porque a situação é parcialmente transferível: ela
sempre encontra do geral e específico, os níveis de desaderência (a maneira de
se organizar, os gestos profissionais, os saberes associados, os valores do ofício,
etc.) com uma forma de aderência (a configuração dos acontecimentos, o peso
dos constrangimentos, a condição física, a pressão sobre as arbitragens). Tornar-
-se competente é agir com responsabilidade no sentido de que, após uma fase
necessária de imitação, assumem-se suas escolhas profissionais, suas soluções
inéditas: desenvolve-se um ponto de vista cada vez mais forte e reconhecido em
relação às situações encontradas. Dito de outra maneira, vai se chegar a administrar
uma “família de situações” graças a um sólido debate de normas que resulta em
renormalizações julgadas eficientes pelos outros.

O uso que o formador vai fazer do termo competência será fortemente impregnado
dessa preocupação de apreender globalmente uma situação e de encorajar a cons-
tituição de um ponto de vista a fim de transferir o que foi aprendido, sobretudo
de não ser somente “adaptado” à especificidade dessa situação. É por isso que a
dimensão axiológica da competência está muito presente no seu discurso. É muito
diferente do avaliador que adota uma abordagem analítica e tem mais dificuldade
em adotar o ponto de vista pessoal, reconduzindo-o, às vezes, à maneira que é
própria a cada um de raciocinar logicamente em situação. Ora, o ponto de vista
Parte 1: Problematizar a competência 51

remete, mais amplamente, à competência como inteligência global da situação,


tomada de responsabilidade e transferência em situações em parte inéditas.

6. O uso do termo competência entre os recrutadores: uma


bricolagem necessária

A função de recrutador, tal como a entendemos, corresponde àquela que dota uma
organização com competências necessárias, atraindo candidatos para selecioná-los.
Mesmo existindo, cada vez mais, uma problemática no recrutamento interno nas
empresas, com uma pressão crescente sobre a mobilidade dos trabalhadores em
termos de cargo, não vamos considerar esse aspecto da administração em nosso
estudo. O recrutador é aqui aquele que vai integrar progressivamente uma pessoa
externa num coletivo de trabalho. O recrutador não ocupa necessariamente sempre
um lugar na empresa: hoje, essa função é muitas vezes assegurada por uma rede
de participantes, os “operadores de instalação”, privados ou públicos.

Nas diferentes funções GRH2 que consideramos, todas têm algo de imediatamen-
te híbrido entre a aderência e a desaderência (nunca estamos inteiramente num
registro ou noutro), no entanto, com uma dominante evidente a cada vez. Para o
recrutador, entretanto, parece-nos mais difícil dizer o que é preponderante, pois
ele está dividido entre os dois registros. É justamente essa ambiguidade do “fora-
-dentro” que passa pela função de recrutamento, a nosso ver. O organizador e o
avaliador têm como missão desvincular-se do hic et nunc, dizer algo de pertinente
a respeito da competência disponível, para oportunizar um raciocínio ulterior a
respeito dos trabalhadores. O gestor e o formador são eles também representantes
sem rodeios: eles devem orientar os seus interlocutores no cerne de uma situação
multidimensional, incentivá-los a se engajarem com um ponto de vista forte que
chamamos competência. O recrutador, por sua vez, está no limiar, se considerarmos
que o cerne da competência é a própria situação de trabalho. Sobre sua face externa,
a sua missão consiste em adequar o que se deve fazer tecnicamente no emprego
ao perfil daquele que saberá fazê-lo: a aproximação pode, então, ser pensada de

2 NT
52 Competência e atividade de trabalho

maneira lógica. Entretanto, do lado interno, a tarefa do recrutador remete muito


mais à arte do que à técnica. Ele precisa identificar “o potencial” do candidato,
o que esse manifesta sem manifestá-lo claramente ­– e que, entretanto, interessa
muitíssimo ao empregador, o qual se prepara mais do que nunca para o inesperado.

Essa ambiguidade entre análise e pressentimento pode ser achada num manual
recente de administração. O autor recomenda que se exijam duas variáveis dos
pretendentes a um cargo:

“os candidatos serão selecionados pela sua eficiência comparada para ocupar
o cargo aberto ao recrutamento. No entanto, o recrutador não poderá limitar seu
julgamento nessa única dimensão do trabalho. Trabalhar não é, verdadeiramente,
somente produzir bens e serviços, é também transformar seu capital humano,
adquirir novas competências, modificar suas características (…). De uma maneira
mais geral, o recrutador deverá levar em conta a sua capacidade de adaptação
às mudanças ou ao seu potencial de evolução” (Stankiewicz, 2007: 221-222).

Os comentários na linha desse aconselhamento insistem sobre a falta de correlação


entre as duas variáveis. Pode-se, certamente, estar em posição de ocupar, com
eficácia, um cargo de poder e não ser conveniente por uma falta de potencial de
evolução, que colocaria a organização em dificuldade na medida em que a expec-
tativa de vida e do emprego, aberto ao recrutamento, é julgada curta.

Dado que o mercado de trabalho vem se tornando cada vez menos estável, o
recrutador não para de manobrar com estes dois imperativos: achar a resposta
para o problema criado pelo cargo vago agora e pensar, ao mesmo tempo, no seu
eventual desaparecimento; achar, então, uma solução, um recurso para resolver
problemas ainda não formulados. É por isso que, se o organizador é mais sensível
ao interesse da qualificação para as operações de classificação, a ponto de pegar
a competência como a sua “irmã gêmea” (cf supra), o recrutador, por sua vez,
está longe de confundir os dois termos. A qualificação lhe é preciosa para que ele
identifique, de maneira relativamente objetiva, as grandes características do cargo
a ser preenchido, mas ela é impotente em dar conta dos conteúdos do trabalho além
do que se faz o objeto do contrato entre o trabalhador e o empregador. Contudo, a
Parte 1: Problematizar a competência 53

competência, muito mais abarcadora do que a qualificação, vai ser muito útil para
o recrutador na sua estratégia de resposta ao excesso de exigências, que pesam
sobre ele quando da aproximação da oferta e da procura: achar um candidato não
somente que sabe fazer, mas também que poderia fazer.

O recrutador será necessariamente levado a bricolar o seu próprio uso do termo


competência, porque ele está diante de um paradoxo que Yves Lichtenberger
resume muito bem: “De uma certa maneira, a competência somente pode ser
apreciada a posteriori enquanto a qualificação se aprecia a priori” (1999: 77).
Assim, falar das competências necessárias para um cargo é relativamente des-
confortável. Qualificar um cargo não apresenta problemas: isso quer dizer traçar
uma fronteira precisa entre o que é necessário para ocupar o cargo e o que não
é, a fim de estabelecer os termos de um contrato. Entretanto, as competências
“requeridas” são mais difíceis em conceber na medida em que pode haver aí
um mal-entendido. De fato, as competências não antecedem a ação como suas
condições de possibilidade: pelo contrário, a ação sendo realizada, as competên-
cias se tornam uma maneira de se falar dessa ação graças a uma tabela, a uma
referência, a um conjunto de coordenadas para descrever e formalizar a ação a
posteriori. As competências “requeridas” no momento da contratação fazem, pois,
referência à gestão responsável por uma situação por alguém bem-identificado,
ou seja, à sua experiência de trabalho: ele será julgado na base desses critérios.
O mal-entendido é transformar essa maneira de falar a priori em um atributo
descontextualizado, que se torna um dos critérios com os quais se poderá jus-
tificar um recrutamento. O segundo motivo que torna desconfortável falar de
“competências requeridas” mais que de qualificação, é o caráter impreciso e
dificilmente objetivável dessas competências. Fala-se em exigências mais técnicas
ou mais pessoais para o cargo a preencher? Trata-se de disposições, de aptidões
(senso prático, confiança em si…), de traços de personalidade (negociador, au-
toritário…), de qualidades morais (perseverança, honestidade, sentido do esfor-
ço…), de gostos e interesses (imaginativo, animador…) ou de comportamentos
específicos (iniciativa, reatividade, adaptabilidade…)? Podemos ver muito bem
54 Competência e atividade de trabalho

como se traduz a instabilidade característica da posição do recrutador: ele não


está realmente no registro da aderência, e nem exatamente no registro da desa-
derência. Ele está em tensão máxima entre o fato e a interpretação: com ele, vai
se falar do serviço (do futuro assalariado) como de uma realidade – ao passo que
ela não é ainda senão uma projeção, ou melhor, uma hipótese sobre o futuro de
uma situação. Todo recrutamento tem algo de uma aposta. É verdade que uma
competência é sempre da ordem da interpretação e se baseia sobre a inferência
e a extrapolação. Mas, no recrutamento, é difícil apoiar-se em fatos para melhor
controlar suas próprias conclusões. É por isso que muitos recrutamentos são
fechados numa base factual extremamente reduzida: a competência da qual se
fala, então, é, na realidade, uma reputação que tentamos verificar, por exemplo,
quando dos “controles de referência”.

A existência mesma da função de recrutador é eloquente: se precisamos de uma


intermediação na adequação entre a oferta de trabalho e a oferta de emprego, é
certamente porque não seria razoável remeter-se somente aos critérios objetivos
dos quais uma máquina poderia se ocupar. Um acoplamento realizado totalmen-
te pelo computador não tem muito futuro. Precisamos de toda força e fineza da
interpretação do recrutador para conseguir, partindo de dados fatalmente equí-
vocos, uma contratação. Essa poderá, aliás, dar certo porque o recrutador soube
movimentar as linhas: o encontro entre dois oferecedores de trabalho e emprego
terá sido possível graças a algumas concessões recíprocas.

De maneira geral, o uso da competência pelo recrutador é cada vez mais dirigido
ao único “ator” ao passo que as pessoas se distanciam da realidade do ato técnico
em si. As duas temáticas próprias ao recrutamento testemunham neste sentido: a
transmissibilidade e a empregabilidade. Trata-se de satisfazer uma dupla exigência:
o que foi adquirido em situação deve permitir passar de um emprego a outro,
como recursos para fazer face a situações no futuro. E a própria pessoa tem que se
manter sempre em condição de procurar outro emprego que não o seu: de alguma
maneira, viver desligada do contexto de trabalho no qual ela está evoluindo.
Parte 1: Problematizar a competência 55

O que é sistematicamente encoberto nesse uso da competência é a questão do


posicionamento em valor da pessoa que trabalha. Imagina-se um ator indiferente
a seu ambiente, sem raízes e disponível, pronto para replantar sem problema o
que ele adquiriu num meio favorável, mediante um “mecanismo mental” lógico
– neutro então. Na realidade, o modelo do trabalhador – ser racional, que faz bom
uso dos saber-fazer em contextos sempre diferentes – não resiste à análise dos
processos de integração em coletivos de trabalho:

“É necessário evocar, mais uma vez, a questão da integração. Com efeito, através
da ideia da transmissibilidade/transversalidade, está um tipo de relação com a
organização que integra imediatamente uma parte de mobilidade, de não de-
terminado, de evolutividade, de desconhecido. Quando a organização contrata
uma pessoa, ela contrata mais do que um conjunto de saber-fazer. Ela tem o
direito de esperar mais do que está escrito no currículo. Ela tem também o dever
de possibilitar o desenvolvimento das competências. Há, então, um reforço da
implicação do indivíduo. Mas, por outro lado, o reconhecimento dessas compe-
tências cria uma distância importante entre o indivíduo e a organização: afinal
de contas, a mobilidade pode também existir fora da empresa. Supõe-se que o
indivíduo não está desprovido pois que ele pode transferir suas competências.
Estamos longe do esquema do trabalhador vitalício que se torna incompetente
fora da sua empresa. Cria-se uma relação ambígua: supõe-se que o indivíduo
faça mais que o previsto, supõe-se que a empresa possa administrar esse “mais”,
mas, ao mesmo tempo, uma distância maior se instaura diante da organização
da qual se tem a possibilidade de sair.” (Bellier, 2004: 91-92).

No fundo, podemos nos perguntar se as práticas de recrutamento, que fazem um


grande uso da competência, não são paradoxalmente obrigadas a considerar, mais
do que nunca, as situações de trabalho, as mesmas que dão sentido à competência.
Em outros termos, parece que, no momento do recrutamento, são os coletivos
de trabalho que estão no interior do debate na medida em que o importante é o
serviço a ser realizado em conjunto, mais ainda do que o domínio (eventualmente
brilhante) das tarefas pelo candidato ao emprego.
56 Competência e atividade de trabalho

Cinco usos da competência

Organizar Chefiar Avaliar Formar Recrutar


Mudança Deslocamento A função do Uma avaliação Uma impor- A adequação
induzida pela do sistema de encarregado menos baseada tância menor do candidato
chegada da qualificação em torna-se menos no controle e da relação de ao emprego
competência direção à ges- técnica e mais mais centrada ensino e mais não é mais
tão de recursos gerencial nas maneiras atenção à trans- suficiente, é
humanos pela de fazer ferência necessário
competência recrutar um
potencial de
evolução

Aderência Mais em Mais em ade- Mais em Mais em ade- Entre desa-


Desaderência desaderência rência (ação/ desaderência rência (ação/ derência e
(saber/ação) saber) (saber/ação) saber) aderência
(saber/ação)

Como a A competên- A competência A competên- A competência A compe-


competência cia é a “irmã é “uma iniciati- cia: são atos é um ponto tência é a
é entendida gêmea” da va controlada” exitosos e de vista forte personaliza-
qualificação argumentados sobre a sua ção de uma
própria ação candidatura

Percepção da A situação é A situação A situação é As situações A situação


situação abstrata presente é mais tida à distância = sempre no significa:
intensa plural coletivo
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 57

Parte 2:
Elaborar o conceito
de competência

A tipologia do capítulo precedente sugeriu que a competência dizia respeito, funda-


mentalmente, à dupla relação possível entre ação e conhecimento: ser competente
significaria, com efeito, de um lado, mobilizar os saberes pertinentes para realizar
a ação pretendida de maneira otimizada; e, por outro lado, produzir saberes da
experiência tanto por ocasião das falhas quanto dos êxitos de nossas ações.

Por mais esclarecedora que seja, esta hipótese de pesquisa é ainda demasiado
formal. Se se quiser construir um verdadeiro conceito de competência, utilizável
e útil tanto para prática como para a modelização, não se pode evitar a abertura
das “caixas pretas” (no sentido teórico) que essa formulação contém em quiasmo:
“mobilizar os saberes em ação”, “produzir, na ação, saberes”. Quatro questões
inevitáveis são supostamente resolvidas em tal definição da competência:

• quais operações estão sendo submetidas aos conhecimentos objetivos para torná-los
operacionais, quando nós os mobilizamos em uma situação?

• como se consegue agir de maneira esclarecida (guiada pelos procedimentos e infor-


mada pelos modelos) sem que nossa ação seja reduzida a uma aplicação mecânica
de comandos (uma espécie de modelagem)?

• em que minha confrontação (no ato) com a resistência do real é construtiva, forma-
dora até mesmo esclarecedora?
58 Competência e atividade de trabalho

• O que dá à minha experiência (minha vivência do ato), o alcance e a pertinência de


um saber sobre a realidade?

Seria, evidentemente, despropositado pretender responder categoricamente a essas


questões – isso estaria, de qualquer forma, fora de nossas competências, uma vez
que seria da alçada da disciplina filosófica. Nosso objetivo de conceptualização
é formular hipóteses fortes quanto ao conteúdo do conceito de competência; mas
seria igualmente ridículo entregar essas hipóteses à inspiração. Esta segunda parte
do nosso trabalho vai consistir, então, em construir, progressivamente, a coerência
teórica de nossas hipóteses, fazendo uma análise conceitual: em quais concepções
da ação e do saber se fundamentam as pesquisas e os debates (atuais e menos
recentes) a propósito da competência?

Essa questão de análise pode parecer abstrata. No entanto, jamais será por elas
mesmas que serão estudadas as diferentes concepções em debate. O que nos in-
teressa é, a cada vez, o desafio do debate – esse termo desafio sendo tomado em
duplo sentido: de uma parte, qual é o ensinamento específico a ser aproveitado de
um debate geral sobre as relações entre saberes e ação quanto ao desafio colocado
pela competência? De outra parte, qual é o pomo da discórdia que opõe as partes
em debate e que, portanto, cada um tenta apontar (para dizer com suas palavras)
nessas relações entre a ação e o saber?

Ao invés de apresentar tal e qual nossa tipologia de três concepções que encontra-
mos nos debates atuais sobre a competência – concepções da ação, em primeiro
lugar, acompanhadas, em seguida, pela concepção do saber da experiência que,
a cada vez, elas implicam – parece-nos mais interessante colocar em cena seu
debate. E é, realmente, a leitura de dois artigos – “The influence of Darwinism on
philosophy” (Dewey, 1977: 3-14) e “De la règle aux stratégies” (Bourdieu, 1987:
75-93) – que nos permitiu organizar facilmente esses debates. Seguiremos, ao
mesmo tempo, a ordem cronológica (o fio da história) e uma ordem argumentativa,
colocando em evidência o que trouxe cada etapa para a constituição do conceito
de competência. A essa tipologia de três conceitos, nós adicionamos, aos poucos,
o quadro teórico no qual avançamos nossas próprias hipóteses:
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 59

• a ação como projeto: Aristóteles descobre a força prática da racionalidade.

• o ato como aventura: o pragmatismo de Dewey descobre a resistência do real – ao


mesmo tempo obstáculo e suporte – com o qual estamos, então, interagindo.

• a ação como prática de um agente: o estruturalismo particular de Bourdieu descobre


o papel estruturante da norma.

• a atividade como encadeamento de debates de normas: a abordagem ergológica (por


meio da qual Yves Schwartz estende a teoria canguilhemiana das normas) descobre
que é, na verdade, a relação com a norma – ou seja o ponto de vista do ator sobre
ela – que é constitutivo da norma.

Essas quatro grandes etapas entre os debates da relação entre saber e ação parecem,
com efeito, estabelecer gradualmente os fundamentos dos conceitos de competên-
cia atualmente em discussão no campo das ciências da educação. É, então, para
situar suas respectivas contribuições, umas em relação às outras, que nós vamos
passá-las pelo crivo da tipologia anteriormente estabelecida. Essa apresentação nos
permitirá expor, a cada vez, a solidariedade teórica de nossas hipóteses no contexto
das discussões de onde elas derivam o seu sentido. E o movimento geral que vai
se desenhar da sequência repetida dessas quatro etapas deverá, finalmente, nos
permitir sugerir uma visão um pouco mais unificada do conceito de competência,
a partir de seus cinco usos precedentemente repertoriados.

1. Organizar

1.1. O resultado virtual do projeto comanda a ação planejando um


programa (Aristóteles)

O esquema clássico da ação – que nós herdamos de fato de Aristóteles, mesmo


que hoje ele tenha passado ao senso comum – considera que, entre dois processos
reais, como a queda de uma pedra e o fato de alguém andar, há, seguramente,
pontos físicos comuns, mas que uma diferença fundamental (Charles 1984: 55-57)
permite distingui-los claramente: somente a ação humana persegue um objetivo
definido por um projeto antes que o processo se inicie. De uma maneira geral,
60 Competência e atividade de trabalho

este é, portanto, o objetivo final que faz de uma ação o que ela é – um processo
voluntário, intencional. Aristóteles modeliza, assim, o caráter voluntário da ação:
o ator começa por se representar um estado ideal (desejável) e, então, vai deduzir
as condições de sua realização, levantando toda a cadeia de causas e efeitos até
sua situação presente. O objetivo é, então, o resultado virtual, e os meios são as
condições a preencher para que o resultado virtual se concretize em resultado
efetivamente real. Conseguir deduzir corretamente quais são as condições de
possibilidade de um estado ideal requer certa competência, Aristóteles, com efeito,
considera que um tal raciocínio (que é inteiramente a priori) não é dado a todos.
De fato, ele supõe poder predizer a maneira como as causas e os efeitos vão se
relacionar na situação futura. Para fazer tal previsão, é preciso conhecer, de maneira
abstrata, como os efeitos de um determinado tipo dependem universalmente das
causas do tipo correspondente. Ora, Aristóteles considera que tal conhecimento
é científico, e ele vai opor esse conhecimento, muito nitidamente, ao saber da
experiência daquele que (agindo) observa bem as regularidades gerais, mas que
permanece incapaz de identificar sua causa.

Essa diferença entre o científico e o homem de experiência é, em Aristóteles, o


princípio fundamental da divisão social do trabalho. Para ver a que ponto esse
princípio continua atual na nossa concepção corrente da organização, é preciso
compreender que é a divisão social do trabalho, repartindo as tarefas entre produtor
e utilizador, que justifica, aos olhos de Aristóteles, a hierarquia entre o tomador
de decisões e o executante.

Porque as pessoas experientes sabem o fato, mas ignoram-lhe o porquê, ao passo


que os outros adquirem o conhecimento do porquê, isso é, da causa. Por essa
razão, também, nós julgamos que aqueles que governam têm, em cada domínio,
mais valor por saber mais que aqueles que executam e que são mais sábios
porque sabem as causas do que eles produzem. Quanto aos executantes, eles
produzem como certos seres inanimados também produzem, sem saber o que
eles produzem, da mesma forma que o fogo queima. Então, os seres inanimados
produzem cada um desses efeitos uma certa natureza, enquanto os executantes
o fazem por hábito (Aristóteles, 2008: 73).
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 61

Na verdade, é porque o objetivo dita, a priori, unilateralmente e completamente,


os meios que – para retomar um célebre exemplo de Aristóteles – o fabricante
de selas aprende com o cavaleiro por que ele executa as operações técnicas que
ele tomou o hábito de executar. Ora, ao usar esse exemplo, o autor afirma que o
próprio cavaleiro recebe do estrategista as razões pelas quais ele conduz seu cavalo
segundo tal ou tal hábito, que seu treinamento militar lhe incutiu (Aristóteles, 1997:
33). Claro, tal articulação unilateral da divisão do trabalho nos choca: mas ela não
é compreendida verdadeiramente senão na condição de ver que, para Aristóteles,
essa é a consequência direta da divisão do trabalho. Para atingir o objetivo comum
(aqui: fazer diplomacia ganhando a guerra), cada um deve cuidar de sua tarefa.
Ora, essas tarefas estão encaixadas umas dentro das outras, assim como os meios
estão ajustados ao processo que leva à realização do objetivo.

Do ponto de vista da organização, se a ação coletiva é considerada apenas no plano


do sucesso, a competência de cada um é reduzida à eficácia de sua participação no
projeto. Ora, em tal perspectiva, essa participação é ela mesma reduzida ao melhor
desempenho da função atribuída ao cargo pelo plano de ação. Essa tendência da organi-
zação à hiperespecialização obedece, ela também, ao princípio da otimização racional
dos meios. Então, ela reenvia ainda ao esquema de ação herdado de Aristóteles. Com
efeito, se se retoma o exemplo da hierarquia “diplomata, cavaleiro, seleiro”, vemos
pela obra a célebre distinção aristotélica entre poïesis (ação produtiva) e práxis (ação
liberal). Na verdade, Aristóteles separava, claramente, os atos livres que ocupam o dia
dos cidadãos – atenienses, maiores do sexo masculino – e os atos servis ocupando o dia
dos não cidadãos: mulheres, estrangeiros, escravos. No pensamento e na linguagem da
Atenas do século V a.C., não havia nenhum conceito de ação reagrupando todas essas
atividades, simplesmente porque era impensável de se ver aí o menor ponto comum.
No entanto, práxis e poïesis eram perfeitamente coordenadas: em primeiro lugar,
porque – trivialmente – a segunda era a condição de possibilidade material da outra;
em seguida, porque, basicamente, a primeira foi a razão de ser da segunda. De fato,
Aristóteles considera que os homens se distinguem dos animais, porque eles partici-
pam da política (eles debatem na Ágora): o que é próprio do homem, o que constitui
62 Competência e atividade de trabalho

a humanidade é, então, participar da vida pública. Mas essa atividade é, literalmente,


um fim em si mesma para Aristóteles: é uma atividade autotélica, que não precisa se
justificar por qualquer utilidade, uma vez que é a excelência humana no trabalho. No
nosso exemplo, a diplomacia era uma tal práxis. Ora, não só toda intendência, mas
também toda a implementação da práxis (fazer a guerra, por exemplo) são ações que
– segundo Aristóteles – não têm, nelas mesmas, nenhum interesse: elas são necessárias
somente como meios. Seu significado se esgota completamente em sua utilidade. No
nosso exemplo, a cavalaria, e ainda mais a selaria, eram tais poïesis. Ora, mais uma
vez a divisão social do trabalho (aqui, a subordinação completa do executante ao
tomador de decisão) é explicada e justificada pela repartição de papéis: o seleiro não
tem nada a conhecer a não ser a lista de operações a executar para produzir uma sela, o
cavaleiro não tem nada a conhecer a não ser a lista das formações na qual se organiza
no campo de batalha. E o diplomata tem que prestar contas apenas a ele mesmo, uma
vez que é ele quem decide qual é a finalidade de sua ação ao estabelecer o seu projeto.
As finalidades de todas as poïesis são ditadas pela dedução dos meios em função do
objetivo, quando se estabelece o programa (antes da ação). Cada participante tem,
então, suas ordens e não tem mais nada a conhecer: Aristóteles afirma explicitamente
que o artesão nem sequer sabe a razão pela qual ele faz o que faz. E quando, na última
frase da passagem citada, Aristóteles compara o executante a um simples objeto, ele
é naturalmente impulsionado pela lógica da sua concepção: se é o projeto que faz a
diferença entre a queda de uma pedra e a ação humana – e se somente a práxis fixa seu
fim autotélico em um projeto – então, inevitavelmente, as ações da poïesis têm algo
de mecânico, pois elas visam a um fim natural (a satisfação das necessidades), lá onde
os atos livres da vida política (práxis), que têm por finalidade cultivar a excelência
humana (virtude cidadã), são nobres.

Aristóteles é, claro, um homem de seu tempo, e, portanto, não se pode decente-


mente censurá-lo por se lançar na justificativa da escravidão. Mas a lógica inter-
na de seu raciocínio permanece interessante para nós, porque mostra bem esse
enquadramento dos meios no projeto:
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 63

Os instrumentos são inanimados ou animados: por exemplo, para o piloto o


leme é um instrumento inanimado, mas para o timoneiro é um instrumento
animado – porque o executante, nas diferentes profissões, se enquadra na ca-
tegoria do instrumento. Da mesma forma como um bem que foi adquirido é um
instrumento para viver (...), o escravo é uma propriedade animada adquirida e
todo executante é um instrumento anterior aos instrumentos que ele manipula
(Aristóteles, 1993: 96).

Nossa concepção explícita da organização não é, obviamente, tão brutal quanto


a hierarquização unilateral de Aristóteles. Mas o paralelo que ele estabelece aqui
entre o instrumento (o utensílio é um meio para nossa ação) e “todo executante”
(então, aqui, não apenas o escravo) ilustra bem a continuidade teórica entre um
projeto concebido como realização de um programa e a divisão social do trabalho.
Um não vai sem o outro, porque o primeiro é, em última análise, a justificativa
pragmática da segunda. Então, se, em nossa modernidade, ainda permanecemos
na mesma concepção da ação (qualquer ação não seria senão a realização lógica
de um projeto – um projeto articulando os meios visando a um fim), as possibili-
dades alternativas na organização do trabalho (sua divisão social) serão, por isso,
limitadas. Uma indicação, então, para o desenvolvimento do debate que estamos
tentando estabelecer aqui, será movimentar o próprio esquema “fim/meio”. Isto
é o que tentará fazer o pragmatismo de Dewey.

1.2. Se a atividade é uma interação com a situação real, a divisão do


trabalho deve se tornar uma cooperação (Dewey)

Todo mundo, hoje em dia, concordará em dizer que a competência, do ponto de


vista da organização, não é o que Aristóteles supunha: a simples eficácia a pre-
encher a função esperada. E, entretanto, se é comum tomar partido contra essa
redução, liberar-se de seus pressupostos está longe de ser fácil. Porque da mesma
maneira que não se conseguiu conceituar a ação para além da mera realização de
um projeto, não se pode realmente dizer que saímos da lógica do projeto-programa
que motivou e justificou (no plano teórico) uma tal redução da competência. A
crítica e a alternativa que Dewey propôs consideram, de alguma forma, o mal pela
64 Competência e atividade de trabalho

raiz. No artigo mencionado na introdução, o autor identifica o ponto de oposição


fundamental – entre o esquema clássico da ação e a concepção pragmática do
ato – em duas definições opostas da noção de “forma” guiando a ação. A ideia
aristotélica é, por conseguinte, que a ação é a realização de um projeto. O resul-
tado virtual visado como objetivo é aí essa forma ideal, que vai tudo ditar e tudo
causar. De fato, segundo Aristóteles, é dela (de suas características técnicas) que
o ator vai deduzir os meios. É a partir dela (da sua perfeição ideal) que ele vai
desencadear o desejo, que vai causar os seus esforços, diríamos sua motivação.
É ela, enfim, sua definição (ou seja, para Aristóteles sua essência intrínseca, que
é, ao mesmo tempo, sua função natural e seu funcionamento ideal), que vai
servir de ponto de comparação, quando, uma vez a ação concluída, vai se tratar
de avaliar a qualidade do resultado. Dewey enfatiza que, a cada vez, nesses três
planos, a forma (resultado virtual) preexiste à ação, que ela determina de parte
a parte. O psiquiatra Gérard Mendel (que aproximamos de Dewey) expressa a
mesma análise nos seguintes termos:

“Em Aristóteles, de fato, o ato tem vocação natural para a perfeição que é aquela
do pensamento abstrato. O ato normal retorna à norma do ato, que é aquela da
manifestação do ser, a atualização de uma potência, ou, em termos aristotélicos,
a passagem da potência ao ato” (Mendel, 1998: 30).

O interesse do artigo de Dewey é identificar a origem desse princípio da teoria


aristotélica da ação. Se a forma do ato precede o ato, é, pela mesma razão, que, de
acordo com Aristóteles, a forma específica (própria da espécie) “girafa” precede
o nascimento da girafa individual. Aristóteles pensa que as espécies vivas são
eternas, porque ele postula que a sua forma (aspecto) é, na matéria, a instancia-
ção de uma forma (essência) natural. Aí reside, de acordo com Dewey, a origem
da nossa teoria da ação como projeto. Ora, de maneira interessante, a alternativa
desenvolvida pelo autor vai jogar o jogo e seguir a mesma abordagem que a de
Aristóteles. Darwin – escreve Dewey – mostrou que as diferentes espécies não
são formas eternas, mas apenas um estado provisório na evolução contínua da
vida. Melhor: as espécies que vemos hoje são bem distintas, porque sua forma
resulta de sua aventura para existir – ela não a precede! Essa forma própria a cada
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 65

grupo de indivíduos se constrói, de fato, por confrontação com as oportunidades


e os perigos de seu meio. A conclusão do artigo é forte: assim como na biologia a
modernidade consistiu em abandonar o preconceito aristotélico das formas pre-
existentes, do mesmo modo, em qualquer outro lugar, não serão pensadas e não
serão organizadas, de maneira realmente moderna, as atividades sociais – e, em
primeiro lugar – as atividades de trabalho – senão na condição de romper com
a impressão de que a ação é a realização do programa (da forma) precedendo a
implementação concreta.

Na visão pragmática, portanto, o ato é, fundamentalmente, uma interação com


o ambiente real no qual está imerso o ator. A planificação aparece tal como uma
visão do espírito, porque ela raciocina no abstrato. Ela constrói uma sucessão de
etapas, independentemente da sua ancoragem na situação concreta. E se, para
evitar o fracasso completo, a organização tenta aproximar um pouco o plano do
contexto local, ela vai projetar predições sobre a conjuntura e raciocinar a partir
daí. Mas, como mostra o exemplo de previsões meteorológicas, a sensibilidade às
condições iniciais faz com que, desde que o sistema seja um pouco complexo, sua
evolução transforme, em reviravoltas imprevisíveis, a menor variação, insensível
no início: é o que comumente se chama de efeito-borboleta. Em suma, para Dewey
a organização deve, portanto, ser governada pela interação aqui e agora – e não
o inverso! A concepção clássica que subordina os meios ao fim deve ser, então,
profundamente revista:

Para uma pessoa que constrói uma casa, o fim em vista (end in view) é um obje-
tivo distante e final que seria enfim alcançado após um número suficientemente
importante de movimentos impostos ter sido cumprido corretamente. O fim em
vista é um plano que é operatório de maneira contemporânea na seleção e dis-
posição dos materiais. Esses últimos – tijolos, pedra, madeira e argamassa – são
meios, na medida em que o fim à vista se incorpora a eles, dando-lhes forma.Eles
são, literalmente, o fim em sua forma atual de realização. O fim em vista está
presente em cada etapa do processo; ele está presente enquanto significação do
material utilizado e dos atos desempenhados; sem a sua presença formadora,
esses últimos não são, de modo algum, meios. Eles são simplesmente condições
causais extrínsecas (Dewey, 1984: 281- 282, traduzido em Renault, 2012: 131).
66 Competência e atividade de trabalho

A ideia de Dewey é, então, que estamos constantemente em interação infracons-


ciente com o meio ambiente (porque a nossa vida biológica é uma tal atividade)
e que nós não intelectualizamos reflexivamente a articulação entre fins e meios
senão a partir do momento em que encontramos um obstáculo e buscamos uma
solução não imediata para resolvê-lo.

Por conseguinte, essa reestruturação técnica do trabalho chama, segundo Dewey,


uma reestruturação de sua divisão social (e, portanto, da organização propriamente
dita: a articulação dos fins e meios permitindo a coordenação das atividades). Dewey
considera que o modelo de subordinação deve dar lugar a um modelo da cooperação:

Claro, a sociedade não consiste senão nas relações que entretêm os indivíduos,
sob qualquer forma que seja. E todas as relações são interações, não moldes
fixos. (...) A organização, como não importa em qual ser vivo, é o consenso de
cooperação de inúmeras células, cada uma vivendo de suas trocas com as outras
(Dewey, 1984: 82 -83; traduzido pelo autor1).

A metáfora organicista, empregada aqui por Dewey, nos incomoda – porque, como
lembra Canguilhem (Canguilhem, 2002: 101-122), ela é, por vezes, suspeita pelos
usos dos quais tem feito historicamente o objeto, e falsa pelo amálgama que ela
opera entre norma vital e norma social. Mas, em geral, sabe-se que esse modelo
de organização cooperativa permanece em estado de princípio maior na obra de
Dewey. Enquanto ele o defende em um plano ético e político,

[...] frequentemente se esquece de que a vida econômica e industrial (que é, por


ela mesma, ética) deve contribuir para a realização da personalidade, graças à
formação de uma unidade maior e mais completa entre os homens: ora, quando
afirmamos que a democracia deve se tornar industrial, não queremos dizer outra
coisa (Dewey, 1969: 237; traduzido pelo autor2).

1 N.T. Texto original: Society is of course but the relations of individuals to one another in this
form and that. And all relations are interactions, not fixed molds. (...); organization, as in any living
organism, is the cooperative consensus of multitudes of cells, each living in exchange with others.

2 N. T. Texto original: That the economic and industrial life is in itself ethical, that it is to be
made contributory to the realization of personality through the formation of a higher and more
complete unity among men, this is what we do not recognize; but such is the meaning of the
statement that democracy must become industrial.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 67

Esse modelo nunca é detalhado nas suas modalidades concretas de aplicação. Ora,
isso corresponde precisamente à dificuldade e ao limite da revolução copernicana
que Dewey propõe. Ao jogar assim a tática contra a estratégia – para retomar a
famosa distinção de Clausewitz (Clausewitz, 2000: 102) –, Dewey nos parece
muito radical, a ponto de, finalmente, cair de um excesso para outro.

Na verdade, lá onde o sonho do todo estratégico, incorporado pela organização,


levava inevitavelmente a negar ao operador toda iniciativa e toda latitude tática, o
voto piedoso de Dewey (certamente louvável, porque fundamentalmente demo-
crata) de uma organização sempre in medias res faz perder qualquer clarividência
estratégica em empresas de médio e grande porte. Mas, em ambos os casos, os
obstáculos simétricos nos parecem estar relacionados à negligência de uma forma
de saber. Aristóteles reconhecia apenas o saber científico (isto é, abstrato, teórico),
se bem que o operador não dispusesse, segundo ele, de nenhuma lucidez tática:
por isso, ele era levado a se aplicar servilmente e cegamente. Mas a recusa dos
dualismos impulsiona Dewey a defender um continuísmo epistemológico que nos
parece excessivo. Na sua perspectiva (por vezes qualificada de experimentalismo),
sendo todo saber proveniente de uma confrontação com a situação em que nossas
hipóteses são testadas, o saber teórico não tem, por consequência, de acordo com
ele, nenhuma pertinência específica. Ora, como os organogramas – e outras mode-
lizações pelas quais se organiza a priori a coordenação dos coletivos – relevam da
mesma abordagem de abstração preditiva das ciências (quando eles não se inspiram
nelas diretamente), Dewey lhes recusa toda a legitimidade de guiar as interações
concretas. Aristóteles e Dewey, na verdade, compartilham o mesmo pressuposto
apesar de suas diferenças. Na ausência em dispor do conceito de norma, ambos
os autores imaginam a ação como o face a face do ator com a realidade nua. Um
e outro raciocinam a partir do modelo da transformação do meio natural: eles não
irão procurar seus exemplos na complexidade das situações profissionais – e isso
explica suas deficiências quando se trata de entrar nos detalhes do conteúdo do
conceito de competência. A sequência da reflexão (sempre no nível organizacional)
vai, portanto, passar pela assunção da responsabilidade do conceito de norma social.
68 Competência e atividade de trabalho

1.3. As normas de um grupo social fixam, antecipadamente, as moda-


lidades de ação individual e coletiva (Lévi-Strauss e Bourdieu)

O grande mérito do conceito de norma parece-nos ser o de desmistificar a famosa


forma guiando a ação, que foi precisamente o nervo do debate entre aristotelismo
e pragmatismo. Na verdade, esse fio condutor que orienta e essas expectativas que
constrangem a ação não são nem uma essência a priori, nem uma bricolagem per-
formativa a posteriori. Essas são, sobretudo, as facetas de uma regra social, mais
ou menos conscientemente formulada, que funcionaria como uma tela sobre a qual
tecer a ação particular. Considerar, assim, “a forma” constitutiva da ação permite,
então, ultrapassar as falsas alternativas da organização, entre ser proativo e ser rea-
tivo, aplicar ou improvisar, etc. No entanto, tal conceito suscita dificuldades de uti-
lização e interpretação. Acreditamos que essas dificuldades surgem inicialmente do
fato de que o conceito de norma não é um conceito de natureza, mas sim de função.
Na verdade, não importa qual tipo de realidade pode ser uma norma: um artefato,
um hábito, uma expressão, um desenho, uma ideia, uma ordem, etc – desde que
funcione como tal. Isto é, fazer a regra para o ator. Mas essa primeira dificuldade,
na verdade, se abre imediatamente para uma segunda. Uma vez que a norma não
é natural, mas uma função, nunca é evidente saber se o fenômeno, aquele que se
tem em face, é ou não uma norma. Pois não é necessariamente norma tudo o que se
pretende como tal. Tudo dependerá, de fato, do comportamento dos atores em face
dessa pretendida norma. Impossível, de fato, dizer que o semáforo “é” uma norma
para um ciclista que iria atravessar um cruzamento sem levar em consideração os
sinais de trânsito. O indivíduo pode muito bem perceber a presença do semáforo,
mas esse será a seus olhos um fato sem significado normativo: o imperativo virá
para ele sob outra forma de constrangimento, tal como o medo da polícia. Essa
dificuldade real do conceito de norma (ao mesmo tempo em que ela é sua origi-
nalidade e sua potência teórica) vai nos levar a distinguir, em seguida, “o fato da
norma” que cada um pode objetivamente atestar (por exemplo, a linha contínua,
traçada no solo), e o fato de uma suposta norma de “fazer norma” efetivamente
para a pessoa – o que significa ter uma influência sobre sua conduta. Esse segundo
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 69

aspecto é, em parte, objetivamente descritível: podemos registrar o comportamento


da pessoa. Mas isso será sempre somente em parte, pois, se quisermos levantar
uma hipótese a respeito de sua conduta (à sua deliberação, a seus motivos, etc.),
é preciso arriscar uma interpretação desse comportamento. E, como qualquer
interpretação, esta aqui é submetida a debate, já não é mais, falando exatamente,
objetiva. Mas a questão de saber se uma norma “faz norma” ou não para a pessoa
(E como? Em que medida? Sob qual forma? Segundo quais compromissos?) é,
portanto, submetida ao debate interpretativo. Não é que seria impossível sabê-lo,
mas isso quer dizer que não podemos fazer economia do testemunho da pessoa,
então, da confrontação de seu ponto de vista com o do observador.

No entanto, os primeiros teóricos da norma social não se embaraçaram declarada-


mente com tais precauções metodológicas. É, entretanto, do seu conceito de norma
que se deve partir, uma vez que ele permite construir progressivamente o conceito
de atividade como um encadeamento de debates de normas, o qual nós desejamos
alcançar (porque esse constitui a ferramenta metodológica fundamental que to-
mamos emprestado de Yves Schwartz). Parece-nos que, até Bourdieu, o conceito
de norma foi usado – na modelização das ações – segundo um modelo que girou,
mais ou menos explicitamente, em torno da metáfora industrial, de onde o termo
se originou. Lembremos que, se os dicionários etimológicos (Rey, 2005: 1002-
1003) atestam ocorrências medievais dos derivados de “norma” (aplicar à norma
um assunto significando regrá-la no século XI e “verbo normal” – significando
regular, que não constitui uma exceção no século XV), eles indicam com precisão,
imediatamente, que esse campo lexical permanece raro até o século XIX, quando,
no início do século, ele designa a instituição que dá as regras (escola normal de
professores), depois tudo que está na média e, progressivamente, o que não é
patológico (um sentido atestado em 1833, em Balzac, por exemplo). O termo
parece se popularizar desde então (a expressão “estar na norma” é atestada desde
1864, o adjetivo “normativo” – no sentido de: que dá as regras – desde 1868).
Canguilhem observa, também (Canguilhem, 2005: 175), que o léxico da norma
passa, no curso do século XIX, a usos correntes através da utilização que fazem as
70 Competência e atividade de trabalho

duas instituições, a escolar e a sanitária. Finalmente, os sentidos técnico e teórico


parecem surgir posteriormente. As primeiras ocorrências do termo normalização
(no sentido de regulação pelos padrões, como praticado pela Associação Francesa
de Normatização – AFNOR, uma organização criada em 1926), remontariam a
1873, e é, no final do século, que Durkheim populariza o conceito de norma so-
cial. Enfim, a emergência do modo de pensar politicamente correto explica, sem
dúvida, o surgimento, nos anos de 1960, do termo normativismo, na acepção da
atitude que consiste em comparar sistematicamente o dado a um dever-ser. De
qualquer forma, entre o domínio da produção e o da administração, o conceito de
norma é usado inicialmente para a prática da estandardização – e a importação
do termo nas ciências humanas não nos parece independente da transferência de
um modelo de utilização desse conceito.

Assim, dada a moda que despertou o estruturalismo nas ciências humanas, é


inegável que o conceito de norma sobre o qual repousa a análise estrutural fez
progredir a modelização da ação em relação ao nosso primeiro debate. Como
Lévi-Strauss usa esse conceito?

A vida social de macacos não é adequada para a formulação de qualquer norma.


(...) Não só o comportamento do mesmo sujeito não é constante, como nenhuma
regularidade pode ser deduzida do comportamento coletivo. (...) Essa ausência
de regra parece fornecer o critério mais confiável que permite distinguir um
processo natural de um processo cultural. Nada é mais sugestivo a esse respeito
que a oposição entre a atitude da criança (mesmo muito jovem) para quem todos
os problemas são regulados por distinções nítidas – mais nítidas e mais impe-
rativas, por vezes, que no adulto – e as relações entre os membros de um grupo
símio – inteiramente abandonados ao acaso e ao encontro, onde o comportamento
de um sujeito não ensina nada sobre o do seu congênere, no qual a conduta do
mesmo indivíduo hoje não garante em nada seu comportamento no dia seguinte
(...) (Lévi-Strauss, 2002: 7-9).

As muitas regras interditando ou condenando não somente certos tipos de ar-


ticulações, e a proibição do incesto, que as resume todas, tornam-se claras a
partir do momento em que se coloca a necessidade que a sociedade seja. Mas
a sociedade teria podido não ser. (...) As regras de parentesco e casamento não
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 71

se tornaram necessárias em virtude do estado da sociedade: elas são o próprio


estado da sociedade – remanejando as relações biológicas e os sentimentos na-
turais, impondo a eles tomar posição em estruturas que os implicam ao mesmo
tempo que a outros, e obrigando-os a superar suas primeiras características
(Ib., 561-562).

Em retrospectiva, vemos que Aristóteles e Dewey podem ter, talvez, subestimado


este aspecto essencial: todo homem é sempre aculturado, qualquer ação pressu-
põe então, como uma condição de sua possibilidade, a totalidade das normas da
cultura em que ela ocorre. Dewey tem razão, o ato é uma confrontação com o
real, e ele viu que esse encontro com o real é feito apenas através da mediação
de normas culturais, as regras instituídas pelos outros. Mas, para melhor insistir
sobre a iniciativa, sobre a dimensão de confrontação individual com o real no ato,
parece-nos que ele não considerou a regra apenas como segunda, tanto cronologi-
camente quanto em importância. Ora, o que Lévi-Strauss vai nos permitir pensar
é a primeira característica da norma – sua antecedência, disse Yves Schwartz.
O desafio é compreender como podemos demonstrar, efetivamente, a iniciativa
agindo em um mundo de normas, sem, entretanto, ter de assumir essa iniciativa
já presente no início, já dada de imediato como um fato.

Mas procedamos por etapas. A realidade em que atuamos é inteiramente norma-


lizada e normativa, ela é sempre já constituída pelas normas. Ora, em que esse
complemento do conceito de ação, de repente, torna essa modelável pelas ciências
humanas? Lévi-Strauss mostra claramente: é que – longe de serem escolhidas
pelo ator – as regras sociais que guiam sua ação são ditadas pelo funcionamento
de seu grupo social. Então, o que vale para as regras de parentesco vale para os
modos à mesa ou os usos corretos da linguagem. Na perspectiva estruturalista,
todas as nossas ações são a implementação inconsciente de uma função anexa na
economia de um sistema.

Um modelo qualquer pode ser consciente ou inconsciente, essa condição não


muda sua natureza. É possível somente dizer que uma estrutura superficialmente
enterrada no inconsciente torna mais provável a existência de um modelo que
72 Competência e atividade de trabalho

a mascara, como uma tela, para a consciência coletiva. Com efeito, os modelos
conscientes – comumente chamados “normas” – estão entre os mais pobres, em
razão de sua função, que é de perpetuar as crenças e costumes, ao invés de expor
suas causas (Lévi-Strauss, 2009: 335).

Então, lendo literalmente Lévi-Strauss, a ação individual ou coletiva é objetiva-


mente compreensível na medida em que a ela se relacionam as regras conscien-
tes, segundo as quais se tem a impressão de que ela é levada (regras ilusórias,
portanto, chamadas aqui: normas) à verdadeira regularidade que a dirige e dela
necessita: a participação anedótica e indireta deste ato no sistema autorregulador
do funcionamento do grupo social.

A aplicação à organização e à divisão do trabalho de tal esquema geral de pen-


samento é fácil. Entretanto, ela é pertinente? A crítica que lhe dirige Bourdieu (no
artigo mencionado na introdução) é esclarecedora sobre esse ponto:

Quando comecei o meu trabalho, como etnólogo, eu queria reagir contra o que
eu chamei de juridismo, quer dizer, contra a tendência dos etnólogos de descre-
ver o mundo social no idioma da regra, e a agir como se tivéssemos percebido
as práticas sociais, logo que se enunciou a regra explícita segundo a qual elas
são supostamente produzidas. Fiquei muito feliz de encontrar, um dia, um texto
de Weber, que dizia algo como: “Os agentes sociais obedecem à regra quando
o interesse em obedecer a ela supera o interesse em desobedecer a ela”. Essa
boa e sã fórmula materialista é interessante porque lembra que a regra não é
automaticamente eficaz por si só e que ela obriga perguntar em quais condições
uma regra pode agir (Bourdieu, 1987: 76).

O autor censura o conceito lévi-straussiano pelo fato de a norma ser mística: ele
parece retornar a uma concepção aristotélica da forma presidindo a ação, lá onde
Bourdieu representaria aqui uma concepção deweyana dessa mesma forma. Mas
nós não vamos retornar, entretanto, ao primeiro debate, porque Bourdieu acrescenta:

[...] Porque a estratégia é para ele sinônimo de escolha – escolha consciente e


individual, guiada pelo cálculo racional ou por motivações éticas e afetivas – e
que se opõe a constrangimentos e à norma coletiva, Lévi-Strauss não pôde senão
rejeitar, fora da ciência, um projeto teórico que, na verdade, visa reintroduzir
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 73

o agente socializado (e não o sujeito) e as estratégias, mais ou menos, “auto-


máticas” do senso prático (e não os projetos ou cálculos de uma consciência).
(...) A noção de estratégia é o instrumento de uma ruptura com o ponto de vista
objetivista e com a ação sem agente que o estruturalismo supõe (recorrendo,
por exemplo, à noção do inconsciente). Mas pode-se recusar ver na estratégia
o produto de um programa inconsciente, mas sem fazer disso o produto de um
cálculo consciente e racional. Ela é o produto do senso prático como sentido
do jogo, de um jogo social particular, historicamente definido, que é adquirido
desde a infância, participando das atividades sociais (Ib., 78-79).

Então, quando Bourdieu define seu trabalho (no início desse artigo) como um es-
truturalismo construtivista, ele coloca, imediatamente, a continuidade e a ruptura
a respeito da questão da forma na ação. Ele é estruturalista na medida em que
considera que um ato socializado (isto é, toda ação) é a implementação mais ou
menos automática das normas. Mas ele é construtivista na medida em que considera
que essas formas (ou normas) não são nem herdadas de um grande sistema, nem
aplicadas mecanicamente como que por sonâmbulos. Então, seu construtivismo
modaliza e precisa sua concepção estruturalista da ação sobre dois aspectos: sobre
a origem e a modalidade de intervenção das normas. Ora, esses dois aspectos são
decisivos quanto à organização.

Para repensar a origem das normas na ação, Bourdieu forja o conceito de práti-
cas. As práticas são as maneiras de se comportar aceitáveis ou exigidas em um
determinado meio social. A gênese dessas normas já não é mais uma implicação
de acordo com um movimento de cima para baixo – top-down – (como em Lévi-
-Strauss), mas uma diferenciação, de acordo com um movimento de baixo para
cima – bottom-up. Essas são as microrrelações de poder próprias a um campo ou
subcampo que vão ditar localmente as previsões condicionando a aceitabilidade
dos comportamentos. Agir é, então, sempre inscrever suas práticas nas práticas
de um determinado meio (aquele em que sempre se evoluiu, aquele de onde se
vem ou aquele onde se quer entrar enunciando essa ação). E, precisamente o que
Bourdieu chama, nesse extrato, o senso prático, é a espontaneidade com a qual
uma pessoa adapta as normas de sua ação às normas do meio. Então, o que faz a
74 Competência e atividade de trabalho

diferença entre Lévi-Strauss e Bourdieu – do ponto de vista da organização, do


estabelecimento das normas de ação individual e coletiva – é, portanto, que, para
o segundo, a lógica que governa as ações dos membros de um grupo social resulta
das relações de poder (dentro do grupo e entre os grupos), lá onde o holismo do
antropólogo vê apenas um sistema total.

Ora, essa redefinição não existe sem alterar a concepção das modalidades de inter-
venção de normas na ação. Com efeito, se a emergência de normas, que governa
as práticas, vem das relações de força nas quais elas estão investidas, é que os
agentes sociais não seguem maquinalmente a norma (nesse ponto Lévi-Strauss
está errado), mas eles a seguem porque eles veem aí o seu interesse em fazê-lo.
Bourdieu forja, assim, o conceito de “estratégias” para insistir sobre o fato de que
uma norma não faz norma senão a partir do momento em que o agente percebe
como o respeito a ela lhe dará uma vantagem nas relações de poderes constitutivos
de seu campo. Mas Bourdieu precisa imediatamente que as estratégias são sempre
mais ou menos automáticas. Em seu espírito, as normas formam como que uma
panóplia de reflexos, entre os quais o hábito nos faz desenvolver o que melhor
se adapta à situação. Essa metáfora parece justa para mostrar o limite do modelo
de Bourdieu. Certamente esse modelo consegue esquematizar a maneira como
as normas precedem a ação, tendo sido desenvolvidas nas ações. Nesse sentido,
Bourdieu opera uma autossuperação do impasse em que se opõem as deficiên-
cias de Aristóteles e Dewey. Mas a redução metodológica que o sociólogo opera
para estabelecer seu modelo – pensar a norma sem normatividade (no sentido da
recepção e não somente da imposição) – encontra rapidamente seu limite teórico.
O que ele chama de “ação” não é mais verdadeiramente uma ação.

Ora, o conceito de competência é multidimensional: ele integra não só todas as


facetas da atividade, profissionais e específicas, como também extraprofissionais e
subjetivas. De fato, pode-se raciocinar, em certo momento, a respeito da competên-
cia em termos de bons reflexos. Mas, dando a si mesmo essa facilidade, impede-se
de ir mais longe, quando a modelização e a organização vão pedir uma análise
mais refinada. Porque, então, não será suficiente detalhar mais os reflexos: há uma
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 75

escala de microanálise, em que o modelo deve ser completamente readaptado.


Caso contrário, ele propicia violência em relação ao que se passa concretamente
nesse nível. Contudo, uma vez que os julgamentos de competência – inclusive
na organização – estão lidando sempre com indivíduos nos coletivos, o uso desse
conceito se faz, inicialmente, se não sempre, nessa escala do micro.

1.4. As normas antecedentes representam apenas uma primeira ante-


cipação, que será sempre ela mesma antecipada pelo esforço de viver
(a perspectiva ergológica)

Em resumo, o que dizer de três perspectivas em debate sobre a competência na


organização que acabamos de percorrer? As duas primeiras pecam pela sua uni-
lateralidade respectiva: uma raciocina exclusivamente no a priori e no universal
(abordagem top-down da organização), a outra responde raciocinando exclusi-
vamente no a posteriori e no singular (abordagem bottom-up da organização).
O interesse do conceito de norma, tal como Bourdieu a reinterpretou contra
Lévi-Strauss, é estabelecer uma ida e volta entre os dois movimentos top-down e
bottom-up, entre os dois momentos a priori e a posteriori. A norma é essa forma
guiando a ação, que, ao mesmo tempo, a precede e é o seu produto. Do ponto
de vista organizacional, o avanço é decisivo em relação ao falso dilema entre as
hierarquias encaixadas de Aristóteles e o espontaneísmo autárquico de Dewey:
as formas rígidas da divisão do trabalho são herdadas da sedimentação do pas-
sado – elas emergem, portanto, das práticas enquanto as condiciona. No entanto,
superando o que parecia ser um impasse, Bourdieu transpôs o conceito de Lévi-
-Strauss de norma (macroscópica) ao plano microscópico. Na verdade, ele postulou
que os comportamentos descritos no nível estatístico refletiam fielmente o que se
passava no nível individual. Ora, está aí todo o problema: tal atalho explicativo
impede de ver a competência no trabalho, então isso limita consideravelmente
a sua modelização. Assim, a ultrapassagem dessa terceira perspectiva deve ser
renegociada para permitir uma descrição mais fiel, posteriormente uma modeli-
zação mais segura da atividade concreta de trabalho. E essa renegociação passa
por uma reinterpretação do conceito de norma guiando a ação.
76 Competência e atividade de trabalho

A partir de sua tese de medicina (1943), consagrada à definição da norma vital,


Canguilhem propôs elementos de generalização a fim de contribuir para a construção
do conceito de norma social (Canguilhem, 2005: 175-191). Ora, as características
essenciais, que o autor põe, assim, em evidência, se opõem à visão estruturalista,
então contemporânea. Acima de tudo, a explicitação e o desenvolvimento que Yves
Schwartz deu a isso tornam esse novo conceito de norma muito mais eficaz na mo-
delização da competência. A perspectiva de Canguilhem permite compreender em
que consiste a normatividade que faz da norma uma norma. Nós vamos apresentá-la
aqui nos três pontos de oposição em relação à sua definição estruturalista:

– inicialmente, Canguilhem insiste sobre o fato de que uma norma é sempre polê-
mica. “O conceito de normal é ele mesmo normativo” (Canguilhem, 2005: 178).
De sua parte, o estruturalismo faz um uso descritivo desse conceito, reduzindo “o
que faz norma” ao simples fato da norma, postulando que uma norma é um fato
tornado lei. Canguilhem explica que uma norma só “faz norma” na medida em
que ela retifica e corrige. É porque um comportamento é julgado insatisfatório em
função de certos valores que se decreta uma norma: a infração precede a norma
(idem, 176), se bem que uma norma se define como uma exigência que se impõe
a uma existência – existência que, então, precede a norma.

– no entanto, Canguilhem, assim como Lévi-Strauss, reconhece que todo homem


sempre já é aculturado. Nós nunca vamos nos confrontar com a realidade nua na
nossa atividade de vida. A realidade é atravessada por normas sociais que não só
antecedem nossa interação, mas também a tornam possível. A prova pela negativa
é, seguramente, o caso das crianças selvagens que, não tendo sido aculturadas
desde o nascimento, desenvolveram apenas uma interação rudimentar com o
mundo e os outros. Ora, aqui não se constitui absurdo dizer que, de uma parte, a
existência precede a norma e que, de outra parte, a norma precede a existência. Na
verdade, ao contrário dos estruturalistas, Canguilhem se recusa a escolher uma das
duas proposições desse dilema aparente. E pelo seguinte motivo: Lévi-Strauss e
Bourdieu negligenciaram o fato de que uma norma quer endireitar, retificar e que,
por essa razão, ela está constantemente em contradição com o que precede; ora,
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 77

o que precede é a atividade insatisfatória – dizemos –, mas essa atividade não é


espontânea (no sentido de que ela não vai obedecer a nenhuma regra). Na realidade,
ela mesma já segue uma norma. O que os estruturalistas, portanto, negligencia-
ram é o fato de que as normas estão constantemente em conflito, em contradição
entre elas. Para o ator (a pessoa, no centro da atividade julgada insatisfatória),
um tal contradição das normas é literalmente vivenciada como uma situação de
injunção paradoxal, de duplo constrangimento na acepção do Bateson (1956:
253). Se, então, tal situação é patogênica (os psiquiatras de Palo Alto mostraram
isso claramente), resulta que apenas injunções paradoxais são o lote diário de
uma atividade socializada, ou seja, de toda ação. O conceito de norma é normati-
vo, porque ele impõe tomar partido por uma norma com a exclusão de outras e,
portanto, de se engajar aceitando um risco. Bem, não é somente qualquer norma
que vamos reter finalmente em nossa ação, mas essa escolha vem acompanhada
ainda de riscos pesados, uma vez que isso pode resultar tanto no círculo vicioso
da alienação (podendo ir até a esquizofrenia, de acordo com Bateson) quanto no
círculo virtuoso da competência. Conseguir, entre todas essas contradições, “fazer
norma” de forma autônoma é, então, um desafio: “Todo homem quer ser sujeito
de suas normas” (Canguilhem, 1947: 135).

Os estruturalistas negam totalmente que uma norma seja relacionada a um valor.


No entanto, este é o caso (e Dewey efetivamente nos ensina), porque, pela norma
social, entre atingir a plenitude na competência ou enredar-se em uma alienação, há
toda diferença que separa, pela norma vital, a saúde e a doença. E aqui, como em
Dewey, a fonte de valores é a atividade: essa procura ganhar em iniciativa sobre
os duplos constrangimentos. É, pois, uma existência que tenta florescer em um
ambiente normalizado, porque é sempre social.

– finalmente, a contribuição mais decisiva de Canguilhem ao conceito de norma é,


na realidade, a condição dos dois pontos precedentes. Toda a obra desse filósofo da
vida consistiu em defender uma ideia que parecia estranha: a biologia (explicação
objetiva do funcionamento e comportamento do vivente) só será completamente
pertinente por muito tempo, se ela encontrar, nesses modelos, um meio de integrar
78 Competência e atividade de trabalho

a experiência que tem o organismo “daquilo que faz para viver”. É fundamental:
tomar em consideração a ação do ponto de vista do organismo – e a fortiori do
ser humano – é a única maneira de ver se e como a norma “faz norma”. “Nós
sustentamos que a vida de um vivente (ainda que de uma ameba) reconhece as
categorias de saúde e doença apenas sob o plano da experiência” (Canguilhem,
2005: 131). Em outras palavras, para determinar se um estado é patológico ou
não, é preciso, uma vez ou outra, interrogar inevitavelmente o ponto de vista do
paciente. Generalizada à norma social, essa conclusão significa que isso nunca
ocorre automaticamente, mas sempre sendo reinterpretada e reinvestida numa
situação (por um ponto de vista, no sentido axiológico) em que uma norma “faz
norma”. Esse ponto de vista não é necessariamente consciente, uma vez que é,
primeiramente, o ponto de vista do corpo. É, por exemplo, o corpo tal como ele
se expressa nas alterações posturais, constantes e, no entanto, totalmente incons-
cientes – aquelas pelas quais administramos a fadiga muscular sem o saber. Para
insistir sobre o fato de que o ponto de vista constitui nossa normatividade excede
a opinião que se pode exprimir em um testemunho consciente, Yves Schwartz
propõe o conceito de corpo-si (Schwartz, 2011: 148-177), em que o fisiológico
e o psíquico participam ativamente de nossa tentativa de nos apropriarmos das
normas antecedentes, a fim de existirmos no meio social.

Parece-nos que é sobre a base desse novo conceito de norma que se pode vanta-
josamente renegociar o ir além do do debate entre top-down e bottom-up, sobre a
competência na organização. Aqui, nós nos apoiamos no conceito de dupla ante-
cipação (Schwartz 2004: 261-294), que clarifica e prolonga essas três proposições
canguilhemianas. Antes de mais nada, isso nos leva a contestar a maneira como
Bourdieu negociou o ir e vir entre a priori e a posteriori.

De um lado, de fato, o organizador racionaliza a ação coletiva, definindo as moda-


lidades concretas e constrangedoras do projeto. Ao estabelecer esse plano de ação,
o organizador produz normas que serão antecedentes em relação à atividade aqui
e agora de cada membro da equipe. Em certo sentido, essa antecedência da norma
lhe confere um estatuto assaz próximo da forma prevista por Aristóteles. O fato
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 79

de ser antecedente significa que a regra que precede minha ação, a fim de limitá-
-la e guiá-la, foi concebida de maneira anônima, ou seja, abstraída de qualquer
consideração das particularidades das pessoas ou situações. Para designar essa
antecedência, ou essa abstração que permite a generalização, Yves Schwartz fala
de raciocínios em desaderência (Schwartz, 2009: 15- 28) em relação às situações
de implementação concreta. O que Dewey não observou, quando imaginava que
a tática podia inventar a sua própria estratégia, é que todo poder estratégico chega
às normas guiando a ação dessa postura em desaderência das normas antecedentes.
Essa é, certamente, a condição dessa racionalidade exponencial que dá às empresas
coletivas um domínio sempre maior de constrangimentos reais – que nos fazem,
parafraseando Descartes, mestres e possuidores da natureza.

Mas, por outro lado, o organizador, que, dessa maneira, planeja, está igualmente
sujeito a normas antecedentes. É em função de constrangimentos, tão diversos
e moventes como a legislação, os cadernos de encargos, o organograma, etc.
que ele deverá elaborar as grandes linhas de um projeto. Ora, o organizador não
aplica mecanicamente essas normas antecedentes. A sua ação não é o produto das
normas, como um movimento (em física clássica) é resultante da composição de
forças mecânicas que se opõem. Colocado em injunções paradoxais, ele tenta
separá-las mediante a imposição de uma linha de ação (uma norma), que funciona
como um compromisso entre as exigências que lhe pareceram prioritárias. Então,
paradoxalmente, é o duplo constrangimento que revela o ponto de vista. Para
não ficar preso como um robô (que funcionaria aqui como o asno de Buridan), a
pessoa se arrisca em interpretar a hierarquia das prioridades. E essa hierarqui-
zação não pode ser neutra, como se a ordem das prioridades pudesse ser pensada
à parte da situação, em função de um resultado previsto ou, bem , segundo um
algoritmo de decisão. A questão de saber – aqui e agora, em razão das urgências
e oportunidades sempre em parte imprevisíveis – qual norma deverá precisar a
outra retificando-a, depende da avaliação da situação presente. Se ela tiver que
ser fixada com antecedência (em desaderência), uma tal ordem de prioridade
não poderia incluir nenhuma nuança e especialmente nenhuma das exceções que
80 Competência e atividade de trabalho

compõem o quotidiano do trabalho. Na realidade, essa hierarquização deverá


ser assumida por uma pessoa, em aderência, ou seja, no calor da ação. Assim, o
próprio organizador, em seu trabalho, passa inevitavelmente pela expressão de
seu ponto de vista: porque é aí que a norma antecedente “faz norma” para ele.
Ora, não há razão para que o que vale para o organizador não valha para aqueles
dos quais ele tem a tarefa de organizar o trabalho. Essa responsabilidade pessoal
da norma (caracterizada por ser antecedente e anônima) se encontra, na verdade,
em todos os postos e níveis hierárquicos na divisão do trabalho.

Essa maneira de ver o ir e vir top down, bottom up, é muito nova; ela não
retoma aquela de Bourdieu. Os conceitos de aderência e desaderência mos-
tram isso bem. Porque a norma segundo Bourdieu é apenas um feixe de
variantes, garantindo uma adaptação ideal no caso do cenário encontrado.
Bourdieu também estipula, para enfatizar que não é realmente necessário
expressar seu ponto de vista sobre a norma assim definida, que sua utilização
diferencial visando adaptá-la (a estratégia do sentido prático) é sempre mais
ou menos automática. Bourdieu não diz apenas “inconsciente”: é automá-
tico, porque a operação é passiva. Longe de apelar por um ponto de vista,
este reflexo condicionado produziu o que Bourdieu chama de ponto de vista:

O espaço social me engloba como um ponto. Mas esse ponto é um ponto de


vista, o princípio de uma perspectiva tomada a partir de um ponto situado no
espaço social, a partir de uma perspectiva definida em sua forma e seu conteúdo
pela posição objetiva da qual é tomada. O espaço social é a primeira e última
realidade, porque ele ainda comanda as representações que os agentes sociais
podem ter dela (Bourdieu 1994: 28).

Essa telescopagem entre o “social instituído” e o “social incorporado” permite a


Bourdieu reduzir o que acontece no nível micro (o indivíduo) a um modelo redu-
zido do que acontece no nível macro (o ambiente social). Ora, com os conceitos
de aderência e desaderência, Yves Schwartz prolonga, ao contrário, o conceito
canguilhemiano de ponto de vista, no sentido que já recordamos: tanto a desade-
rência pode alcançar a objetividade científica (ausência de ponto de vista), como
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 81

a aderência é sempre uma interpretação da situação, que é feita no centro mesmo


dessa situação. O ponto de vista em aderência é, então, a necessidade (para um
organismo, e a fortiori para o homem no trabalho) de se tornar o centro de gra-
vidade de seu meio, isto é, o pivô em relação ao qual as normas antecedentes são
renegociadas na urgência da ação.

Bourdieu concluía que a organização era a sedimentação de práticas passadas,


“o morto apodera-se do vivo” (Bourdieu, 1980: 3). Mas, novamente, isso não é
senão uma visão unidimensional das coisas. Certamente, as normas antecedentes se
tornam constrangimentos, elas se acumulam como fatos. Mas elas também fazem
normas, ou seja, são renegociadas como interpretações. Enquanto Bourdieu deixa
fora de foco a maneira como a difração das regras pode fazer evoluir as regras do
jogo, Yves Schwartz (2000: 32-68) propõe o modelo da dupla antecipação para
dar conta desse ir e vir entre aderência e desaderência, na constituição e evolução
progressivas da organização.

As normas antecedentes formam uma primeira antecipação, quer dizer, que os


raciocínios in abstrato (da ciência e gestão) vão definir uma planificação, que
sempre vai valer como pedra de toque – como uma referência para guiar a ação e
como critério para decidir as diferenças – mas que não é aplicável tal e qual. Para se
tornar efetiva, essa antecipação em desaderência deve, de fato, ser substituída por
uma segunda antecipação, que releva da aderência, uma vez que ela tem lugar aqui
e agora, através do ponto de vista de uma pessoa sobre a situação. Essa mediação
(interpretação, hierarquização, modalização, retrabalho) pode ser qualificada de
antecipação porque ela consiste, para a pessoa, em mobilizar todos esses saberes
pertinentes sobre a situação, a fim de ganhar a iniciativa sobre a norma.

Para poder tornar-se ou permanecer o centro de sua própria interatividade com


o meio, a pessoa tenta intervir, a tempo, nas modalidades (as condições de apli-
cação) da norma, de modo que ela não seja apenas um constrangimento. Essa
segunda antecipação corresponde fundamentalmente ao esforço da pessoa para
um viver saudável:
82 Competência e atividade de trabalho

O meio não pode impor qualquer movimento a um organismo, se esse organismo


se propõe inicialmente ao meio segundo certas orientações próprias. Uma reação
forçada é uma reação patológica. (...) As reações dos trabalhadores na extensão
progressiva da racionalização taylorista – revelando a resistência do trabalhador
às “medidas que lhes são impostas do exterior” – devem, então, ser compreen-
didas tanto como reações de defesa biológica e como reações de defesa social
e, em ambos os casos, como reações de saúde (Canguilhem, 1947: 128- 129).

Na interação da pessoa com o seu meio, opera-se, então, um debate entre as nor-
mas antecedentes do ambiente e as normas próprias das pessoas (seus equilíbrios,
físicos e mentais). É por isso que a contribuição específica de Yves Schwartz aos
conceitos de ação como norma é modelizar a atividade como um encadeamento
de debates de normas (Schwartz 2004: 265).

O movimento de ir e vir top down, bottom up, constitutivo da organização, parece-


-nos melhor elaborado pelo modelo da dupla antecipação, porque ele mostra o
papel crucial desempenhado pela competência em tal processo. Na verdade, não
se compreende bem, em Bourdieu, o que a diversificação das normas teria a
ensinar à organização, uma vez que, por definição, essa só se interessa no geral,
e – tal como consideradas por Bourdieu – as estratégias individuais são apenas
particularizações. Em vez disso, a segunda antecipação modifica concretamente
as condições e o detalhe do conteúdo das normas antecedentes. A ascensão dessas
inovações através da via hierárquica participa no calibrar as normas antecedentes.
Os saberes da aderência têm, de fato, algo a ensinar aos modelos em desaderên-
cia – algo que seja específico para os primeiros e interessante para os segundos
(Schwartz, 2009: 15-28). O modelo da dupla antecipação, portanto, oferece muitos
meios de realizar um verdadeiro movimento de ir e vir e também de mostrar o
papel efetuado pela competência desde a etapa de organização.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 83

2. Chefiar

2.1. Realizar a ação é aplicar, passo a passo, as etapas do projeto (Aristóteles)

No esquema clássico da ação (como realização de um projeto), toda a atenção


tem como objeto a etapa de planificação, porque se considera que toda a varia-
bilidade que oferece uma situação pode ser capturada nas diferentes opções de
uma árvore lógica – uma árvore dos possíveis. Se esse é o caso, seria possível
compreender por que o esforço é exclusivamente dedicado a essa preparação da
ação. Ter previsto, assim, uma resposta adaptada a cada cenário possível tornaria
logicamente impossível que tudo não se passe segundo o plano – tendo esse con-
seguido prever tudo. Ora, certamente, a experiência não para de demonstrar que
tal não é o caso. É impossível prever tudo porque uma situação de vida concreta
é extremamente movente e multidimensional. Planejar se torna certamente útil
e eficaz, já que se reduz a variabilidade da situação concreta a um número finito
de parâmetros significativos, depois estabelecemos a lista de valores possíveis
que podem tomar cada uma dessas variáveis. Fazendo isso, estabelecemos uma
combinatória que não teria desagradado a Lévi-Strauss. Mas essa etapa propria-
mente estratégica só seria suficiente no caso, concretamente impossível, de uma
previsão exaustiva. Na realidade, a segunda etapa, aquela da readaptação tática,
é indispensável e irredutível.

Ora, o problema é que, passando assim do sonho estratégico – àquele de tudo


prever – ao planejamento razoavelmente aproximativo, conservou-se, de forma
idêntica, a ideia que temos da segunda etapa, a etapa tática. Persiste-se, de fato,
em considerá-la como uma aplicação, uma implementação ao pé da letra. Veja-
mos, de fato, como Aristóteles, na sequência de sua concepção da organização,
considera a etapa da realização. Vamos retirar daí as consequências quanto à visão
de enquadramento que isso supõe.

Eis como Aristóteles relata a implementação proximal de um plano de ação:


84 Competência e atividade de trabalho

“Assim, quando se pensa que todo homem deve andar e que é você mesmo um
homem, você anda incontinente; quando, ao contrário, se considera que as cir-
cunstâncias exigem que nenhum homem ande, e que é você mesmo um homem,
a consequência imediata é que ficamos paralisados: e, nos dois casos, o homem
age, a menos que alguma coisa o impeça ou o constranja. ‘É preciso que eu
faça qualquer coisa que seja boa para mim; ora, uma casa é algo bom’; e ime-
diatamente faz-se uma casa. “Eu preciso de me cobrir; ora, um casaco serve
para cobrir; eu preciso de um casaco; é preciso, então, fazer um casaco’. E a
conclusão, ‘é preciso fazer um casaco’ é uma ação. Age-se a partir de um prin-
cípio. Se estabelecermos que haverá um casaco, é necessário que tal proposição
seja admitida; se ela é admitida do mesmo modo outra; e, ao fazê-lo, agimos
imediatamente. Portanto, é evidente que a ação representa a conclusão. Quanto
às proposições que preparam a ação, elas são de duas ordens, aquela do bem e
aquela do possível. Mas (...) o raciocínio não se detém necessariamente sobre a
segunda proposição, que é evidente, ele a deixa de lado. Por exemplo, se pensa-
mos que a marcha é um bem para o homem, não nos detemos na proposição de
que você mesmo é um homem. E é por isso que todas as ações que fazemos sem
raciocinar nós as fazemos rapidamente. Na verdade, quando se age para atingir
o fim que propõe a sensação, a imaginação ou a razão, fazemos imediatamente
o que queremos. No questionamento ou na reflexão, substitui-se o ato do desejo.
“Eu tenho que beber”, diz o apetite; “Aqui está uma bebida”, diz a sensação: e
bebemos imediatamente. “(Aristóteles, 2002: 60- 61).

Essas formulações podem fazer sorrir, e é interessante interpretar o porquê. Na


verdade, Aristóteles mostra aqui a sua teoria do silogismo prático. Em grego,
syllogismos quer dizer raciocínio, mas Aristóteles se apropriou desse termo
para lhe dar o sentido preciso de raciocínio dedutivo, retirando da associação de
uma proposição maior (universal, tipo: todos os homens são mortais) e de uma
proposição menor (particular, no caso: ora os gregos são homens), uma conclu-
são – no caso em foco: portanto, os gregos são mortais. Ora, vê-se, foi em um
estudo epistemológico que Aristóteles desenvolveu sua teoria do silogismo. Mas,
quando ele, a partir disso, trata de pensar a ação, é esse o modelo que ele projeta
(e mesmo o que ele abandona) para compreender como se passa a deliberação,
buscando meios para um fim decidido antecipadamente. É nisso que insiste tanto
o autor, é o imediatismo com o qual a ação resulta da deliberação. Aristóteles
chega mesmo a identificar a ação e a conclusão. Enquanto, em um silogismo
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 85

teórico, o raciocínio resulta em uma proposição científica, no silogismo prático o


raciocínio (sempre também mental, discursivo, representacional) resulta em um
movimento do corpo – em uma estrita solução de continuidade.

Mas, uma destacado o lado artificial de uma tal modelização, não se reconhece
nossa própria concepção de implementação, da realização de uma ação? De fato,
o que nos diz Aristóteles aqui? Simplesmente que, para agir em uma situação, nós
reunimos dois elementos: um tipo e um caso. O tipo é a regra de ação em geral,
e o caso é a situação particular que se apresenta aqui e agora. Ora, não somente
essa concepção é exatamente aquela que governa nossa concepção usual da re-
lação entre a formação teórica e a prática (os modelos universais aprendidos na
escola devem ser recusados pelo aluno, num certo número de casos particulares,
de maneira a que ele identifique – corretamente – os casos sob os tipos e aplique
corretamente os tipos aos casos); mas, sobretudo, o conceito aristotélico de com-
petência é explicitamente definido como a justa relação entre o tipo e o caso.

A definição aristotélica da prudência (phronésis) é, de fato, literalmente uma defini-


ção da competência: fora essa antiga forma da competência era reservada à praxis,
aos atos não profissionais. Nas ações políticas, diplomáticas e morais, a prudência
aristotélica é uma certa habilidade adquirida pela experiência, própria àquele
que – tendo já as premissas maiores (os princípios morais e políticos) – identifica
claramente as situações particulares que encontra (os casos que ele vai classificar
de acordo com os tipos previstos nos princípios). Aristóteles toma o exemplo do
médico que, para ele, pratica uma atividade liberal, sendo do domínio da práxis:
segundo ele, sua incompetência é essencialmente um erro de categorização – de
diagnóstico, nesse caso. O médico sabe, em geral, como tratar uma determinada
doença, mas ele subsume o caso clínico que ele encontra (um paciente específico)
sob a categoria má. É, portanto, a formulação da proposição (“eis uma bebida”),
ou seja, a articulação dos meios justos que comete uma falta, na incompetência.
É esse mesmo modelo que Aristóteles usa para analisar a intemperança moral (a
“fraqueza da vontade”) daquele que, uma vez tentado em uma situação real, não
respeita mais os princípios aos quais, no entanto, ele adere.
86 Competência e atividade de trabalho

A definição aristotélica da competência, para realizar a ação ela mesma, é, portanto,


complementar à sua definição da competência na organização. Já que a segunda
consiste para o operador em realizar sua função de maneira ótima, a primeira vai
consistir literalmente, para o produtor, em bem aplicar, em meio aos tipos forneci-
dos pelo utilizador, aquele que vai corresponder à situação encontrada. Da mesma
forma, como no plano da organização, nenhum saber pertinente ou original é
reconhecido ao executante. É o que explica por que a competência não se beneficia
de qualquer transversalidade. A competência (assim entendida), sendo o simples
hábito de categorizar os casos sob os tipos, é, por definição, hiperespecializada.
Por fim, a falta de saber próprio explica a ausência de iniciativa. O enquadramento
de uma tal competência seria, sem dúvida alguma, na perspectiva de Aristóteles,
o simples controle da conformidade do resultado.

Da mesma forma, portanto, era necessário, para superar a concepção antiga da


organização, libertar-se da estrita subordinação dos meios aos fins, tal como im-
plicada no esquema clássico da ação. É, doravante, do modelo da aplicação que
é preciso nos desfazermos, para pensar o conteúdo positivo da competência no
plano da chefia.

2.2. Adaptar constantemente nossas hipóteses e nossos hábitos de acordo


com as respostas que nos reenvia o meio ambiente: isso é pensar (Dewey)

O erro de Aristóteles (e do senso comum que ainda herdamos frequentemente dele)


era ceder ao sonho do todo estratégico, a ponto de esquecer que a implementação
concreta do objetivo o mais próximo pode já requerer uma inventividade, em
razão da resistência que nos opõe o real. Por esse motivo, a resposta de Dewey
consiste, em primeiro lugar, em pôr, em plena evidência, tudo o que se passa
entre o ator e seu meio, no aqui e agora de sua interação. Ora, se essa aventura
não é guiada por um protocolo, definitivamente fixado antes do começo da ação,
é que a interação encontra, nela mesma, uma forma de autonomia. Efetivamente,
segundo Dewey, porque nossas ações têm uma certa eficácia (caso contrário não
estaríamos vivos), apesar dos problemas postos pela resistência do real, é que não
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 87

agimos maquinalmente, por simples tentativas. Encontramos soluções para superar


constantemente os problemas. E nós só as encontramos porque nós as procuramos.
Sob o nome de enquête (Dewey, 2006:83), o pensador pragmático considera, de
fato, nossa interação com o meio ambiente como uma fonte de informações e
de métodos, tanto mais pertinentes que são postos constantemente à prova pela
prática. Essa perspectiva não se contenta em supervalorizar a tática. Ela tende a
concluir que a tática vai elaborar sempre sua própria estratégia.

Assim, o aporte de Dewey quanto à definição das competências, no plano da


chefia, é decisivo. Como anteriormente, ele faz esforço de mergulhar na raiz do
esquema clássico da ação, para verdadeiramente devolvê-lo.

“A experiência implica uma relação da ação ou do ensaio com uma consequência que
é sustentada. Separar a fase ativa do agir e a fase passiva do submeter-se destrói a
significação real de uma experiência. Pensar é criar, de uma maneira precisa e deli-
berada, as relações entre o que é feito e suas consequências. (...) A incitação a pensar
reside no desejo de determinar a significação de um ato realizado ou a realizar: preve-
mos, então, suas consequências. Isso implica que a situação existente é – seja de fato,
seja para nós – incompleta, portanto, indeterminada. A projeção das consequências
significa uma solução proposta, uma solução de ensaio. Para perfazer essa hipótese,
é preciso examinar, com cuidado, as condições existentes e desenvolver as implicações
da hipótese – operação que chamamos “raciocínio”. A solução sugerida (a “ideia” ou
“teoria”) deve, então, ser posta à prova na prática” (Dewey, 1983:186).”

Essa passagem mostra bem o antidualismo do autor. Ela é dirigida contra uma
concepção de tipo aristotélico em que somente o utilizador (o cavaleiro, por
exemplo) viveria uma experiência (estando sozinho na posição de receptor das
respostas do meio ambiente) e deveria, consequentemente, informar o artesão (o
seleiro, neste exemplo) das finalidades que ele deduziu a partir dessas respostas.
A mesma dificuldade nos parece se aplicar na utilização que Clausewitz faz da
distinção que ele propôs entre tática e estratégia. Em seu discurso, tudo mostra
que ele só concebe o papel do tático como aquele que nivela as circunstâncias,
para que a situação pareça o mais possível aquela prevista pelo planejamento
(Clausewitz, 2000:187-190). Na sua perspectiva, o tático não deve – e nem pode
– tomar a iniciativa, mas cabe ao estrategista, sim, ajustar o planejamento, se for
88 Competência e atividade de trabalho

o caso, às informações que a ele retornam do campo de batalha. Encontramos,


assim, a mesma unilateralidade que na divisão do trabalho aristotélica, com a
diferença de que com Clausewitz o tático, estando na prática, tem informações a
levantar – mesmo se não lhe reconhecem os meios de interpretá-las.

Aqui, ao contrário, a força do raciocínio de Dewey vem, sem dúvida, de sua recusa
em separar a pertinência teórica – mesmo a mais intelectual – da eficácia prática.
Nessa ótica, certamente, a competência aparece como uma certa performatividade
de nossas referências (nossas representações, nossos hábitos). Já que a prática é,
fundamentalmente, uma interação com o real, é, em seu próprio devir, que ela
encontra os critérios para guiá-la. O feedback que nos reenvia o meio ambiente
nos informa, a todo instante, se nossa interação com ele está em uma espiral
ascendente ou mesmo descendente, em um círculo virtuoso, ou, ao contrário,
vicioso. A ideia pragmática é, certamente, a de que uma representação mental
não tem realidade senão quando ela induz mudanças no real. Ora, a utilização
que Dewey faz dessa ideia lhe permite pensar a estruturação dinâmica da ação.
Tanto a determinação de nossos fins quanto a articulação dos meios para atingi-los
são operações cognitivas que se desenvolvem na interação com o meio ambiente
real. Nossos projetos emergem, portanto, de nossa atividade espontânea que, aliás,
é, na origem, uma atividade vital, orgânica: essa é, assim, anterior em relação a
esses projetos que acreditávamos primeiros, porque eles lhe dão uma orientação.

A tese, bem conhecida, segundo a qual são os insucessos dessa atividade espon-
tânea que provocam a reflexão (a análise intelectual), permite a Dewey marcar a
diferença entre uma atividade que se contenta em tatear ao acaso (ensaio e erro) e
uma atividade que – ainda que ela permaneça sempre uma experimentação – faz
o esforço não somente de religar a ação e a reação, mas ainda de antecipar essa
resposta por uma hipótese sobre a natureza de sua relação. Sem dúvida, isso é,
para Dewey, o agir em competência.

O limite de seu raciocínio, para nós, tem empenho em que – sem mais precisão
sobre a relação que se instala entre nossa interação e as regras sociais que a
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 89

precedem e a enquadram – ele dá impressão de que cada ator deve reinventar o


prescrito. Certamente, Dewey pensa, de modo constante, em nossas ações em sua
continuidade histórica. Não partimos, portanto, jamais do zero, perseguimos, a
cada vez, a atividade que vivemos desde sempre. Mas o que não vemos bem é a
maneira como nossa ação se inscreve em uma herança estável e mesmo universal;
como cada ator a modifica adaptando-a às necessidades da situação – e, sobre-
tudo, como as modificações que ele aí aporta podem constantemente enriquecer
as normas e os saberes comuns. Dewey tem, a nosso ver, total razão em definir o
pensamento como essa dimensão cognitiva em atividade em toda confrontação
construtiva com o real. Mas o que nos parece faltar é uma descrição da maneira
como esse pensamento se universaliza, como ele se torna um saber sobre a re-
alidade, como ela se torna uma experiência transmissível – por exemplo, sob a
forma de um saber-fazer. Lá, onde Aristóteles concebia os tipos fixos e reduzia
os casos a instanciações dessas essências eternas, Dewey, a nossos olhos, peca
pelo excesso inverso. Os tipos nos parecem ser mais do que o resultado de um
processo de abstração, partindo do leque dos casos.

Considerar, portanto, que a tática vai elaborar sempre sua própria estratégia, dito
de outra forma, em nosso vocabulário, que os raciocínios em aderência podem
dispensar qualquer raciocínio em desaderência, tanto no plano teórico, quanto no
plano organizacional: é aí que o autor nos parece operar um resumo explicativo.
As normas antecedentes são indispensáveis para reconfigurar tanto a ação coletiva
quanto a ação individual. Sobretudo, é preciso insistir em relação ao fato de que
a iniciativa e a engenhosidade têm necessidade desses esboços normativos, para
poder reinterpretá-los e antecipá-los novamente. Falar, como o faz Dewey, de uma
emergência da estratégia, a partir de uma pura tática, parece-nos tão ilusório quanto
o sonho do todo estratégico. Mas, principalmente, isso parece limitar, de forma
drástica, os avanços da reflexão sobre a competência. Nesse sentido, é preciso
ultrapassar isso que um tal espontaneísmo tem de simplificador. É precisamente
a isso que visam não somente as ambições científicas de Bourdieu, como também
as de Lévi-Strauss ao utilizarem o conceito de norma.
90 Competência e atividade de trabalho

2.3. Não se segue a norma como uma regra de gramática, mas como a re-
gra do jogo: o senso prático adapta a norma a uma estratégia (Bourdieu)

Vimos o princípio da crítica e da superação de Lévi-Strauss, apresentado por


Bourdieu a propósito da organização. A ilusão do estruturalismo ortodoxo (em
oposição ao estruturalismo construtivista, ao qual se refere Bourdieu) é, com
efeito, acreditar que o modelo sistemático que o científico inscreve sobre o papel é
realmente operante, no inconsciente social do grupo que ele estuda. Ora, a redefi-
nição do conceito de norma que essa crítica implica, coloca, em primeiro plano, o
momento da implementação da norma, ou seja, para nós aquele do enquadramento.

A metáfora das regras do jogo do social, proposta por Bourdieu, parece-nos


dever ser compreendida em oposição ao modelo linguístico que Lévi-Strauss
mantém do estruturalismo. Lévi-Strauss falava, com efeito, da regra no sentido
de uma regra de gramática – que a linguística estrutural ama imaginar inflexí-
vel, sistemática. De sua parte, Bourdieu substitui esse modelo por aquele da
regra do jogo. Ele utiliza, sem dúvida, o aspecto lúdico para lembrar que, para
funcionar como norma, uma regra deve ser reconhecida como legítima e, para
isso, reconhecida como contingente. Mas o que significa concretamente esse
duplo reconhecimento? O que são a legitimidade e a contingência das normas
segundo Bourdieu? É precisamente sobre esse ponto que vamos nos opor à sua
perspectiva – um ponto que diz respeito, portanto, diretamente à competência,
considerada sob o plano do enquadramento.

Fazendo manifestamente alusão a Lévi-Strauss, Bourdieu escreve: “Lá onde


se viu uma álgebra, eu veria, sobretudo, uma dança ou uma ginástica.”
(Bourdieu, 1987:90). Essa segunda metáfora é interessante porque ela põe
em relevo aquilo que se trata de pensar na competência. Na ação individual
ou coletiva, Lévi-Strauss vê uma combinatória – ou seja, um algoritmo em
que a variabilidade na entrada (input) é predeterminada, como um conjunto de
valores possíveis. Essa canalização da variabilidade explica a variabilida- de
limitada obtida na saída (output). Bourdieu qualifica, sem dúvida, esse modelo
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 91

lévi-straussiano de álgebra para sublinhar o que se supõe ser de natureza


lógica, o processo em atividade na determinação das ações. Ora, dança e
ginástica são atividades que se caracterizam por dois traços completamente
opostos à lógica da combinatória: o tempo (a cronologia) e a variação (no
sentido da variação sobre um tema). Os conceitos de práticas e de estratégias
reinterpretam fundamentalmente o conceito de norma porque eles implicam
que uma norma não pode existir se ela permanece somente apriorística. Para
existir como norma – como prática, como estratégia – essa forma apriorística
deve ser investida em uma situação aqui e agora.

Em que isso esclarece para nós a questão do enquadramento e, mais geralmente,


a implementação das normas? Vamos tomar um exemplo de Bourdieu quando
ele faz referência aos ritos, os quais pertencem às regras sociais guiando forte-
mente a ação coletiva. Temos tendência em crer que, nos ritos (por oposição aos
outros atos da vida social, troca comercial, por exemplo), a regra é seguida por
ela mesma. Na realidade, toda ação, tendo lugar na sociedade, é précondicionada
por normas (relações de forças interiorizadas), mas nenhuma é o puro e o simples
desenvolvimento – sem contexto e desinteressado – de um programa. Aqui Bour-
dieu mostra que o simples fato de diferenciar, mesmo que pouco, a realização de
um ato esperado, pode mudar completamente a sua significação.

“Mesmo quando o desenvolvimento da ação é fortemente ritualizado (como


na dialética da ofensa e da vingança), há ainda lugar para as estratégias, que
consistem em jogar com o tempo – ou melhor, com o tempo da ação, arrastando
a vingança e perpetuando assim a ameaça.” (Bourdieu, 1972:224).

Ora, isso quer dizer ao menos duas coisas quanto à implementação, para nós,
portanto, da questão do enquadramento. Primeiramente, por mais normatizado
que seja, um ato pode ser concluído de várias maneiras diferentes, e todas essas
maneiras vão dar tantos atos quanto forem as significações performativas diferen-
tes. Em seguida, por mais normatizado que seja, o ato tem lugar numa situação
singular, ainda que é, nesse contexto, e em relação a ele, que a norma terá sua
efetividade e seu sentido. Por mais que eu não tenha escolhido as regras da gra-
92 Competência e atividade de trabalho

mática e que o meu discurso deva se apoiar nessas regras para esperar produzir
um sentido compreensível para os outros, isso não reduz a minha tomada da fala
numa recitação. Assim, por exemplo: respeitar, não respeitar, ou mesmo respeitar
demais (hipercorreção) uma regra de gramática, constituem não somente três atos
diferentes, mas é impossível evocar esses atos sem precisar o contexto onde eles
realizam a norma. Ora, o mesmo ato será inteiramente diferente de acordo com o
lugar onde acontece em tal ou qual quadro, de tal ou qual meio.

Voltemos à substituição de metáforas. A realização do prescrito e seu enquadra-


mento são pensados, de um lado, como álgebra; de outro, como uma ginástica
ou uma dança. Dança e ginástica são exemplos típicos de atividades nas quais
a pessoa segue um plano de ação, (tal coreografia, tal sequência de exercícios),
mas que perderiam totalmente todo o interesse e toda a razão de ser se seguir um
plano de ação quisesse dizer: aplicar mecanicamente um programa. O que torna
viva a prática da dança ou da ginástica é a interpretação, aquela interpretação
dos passos e das figuras. Aqui, a palavra interpretação não deve enganar. Não se
trata do sentido o mais corrente, cognitivo e axiológico do termo. Tomamos aqui
essa palavra exclusivamente no sentido em que o chefe da orquestra interpreta a
partitura, a partir da qual o ator interpreta seu papel. A interpretação, nessa acepção,
é a transformação de uma ação descrita (como em uma partitura, em um script)
em uma ação real. Ora, sabemos: se essa transformação fosse uma pura e simples
aplicação, ninguém iria ao teatro, nem ao concerto. Se esse não é o caso, é bom
que aconteça algo inédito na efetuação, aqui e agora, da ação descrita. E o que
acontece é – parece – tão significativo que não é raro assistir a várias interpretações
diferentes de uma mesma obra, a fim de apreciá-las e compará-las. Certamente,
nesse sentido, a diferença entre as interpretações é diretamente ligada à signifi-
cação que cada um lhe emprestou – o que nos faz alternar a acepção cognitiva e
axiológica do termo. Mas esse segundo aspecto deverá ser estudado em seguida.
No momento, constatamos que, de acordo com Bourdieu, uma norma só é uma
norma se ela é interpretada no primeiro sentido, ou seja, efetuada no aqui e agora.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 93

Primeira característica da norma, portanto, em uma perspectiva bourdieusiana: ela


só existe na medida em que é “jogada”, interpretada no tempo (a duração concreta
da situação). Mas a segunda característica ainda mais decisiva: ao existir assim,
a norma não permanece intacta, ela é, a cada vez, difratada e adaptada. Difrata-
da porque há, sempre, várias maneiras de seguir uma regra. Adaptada porque,
entre as múltiplas maneiras possíveis de fazer, todas não se equivalem, em vista
da situação presente. Entre esse (mais ou menos) grande número de opções, a
escolha será feita em função das características do contexto particular. É mesmo
por causa dessa existência em tema e variações que a norma é, fundamental-
mente, uma prática e uma estratégia. O enquadramento (e isso que ele enquadra,
a saber, a implementação do prescrito) nos confirma, aliás retrospectivamente,
que a organização é o resultado de implementações com as obrigações herdadas
do passado, de onde emergem, portanto, os temas que darão lugar às variações.

É bem exatamente esse conceito de norma que mobiliza Guy Le Boterf no definir
a competência como uma “disposição a agir em uma família de situações” (Le
Boterf, 2002:21). Na verdade, mesmo se, por um outro ponto de vista, esse autor
qualificasse essa disposição como uma “combinatória de recursos”, é o conceito
de estratégia de Bourdieu que ele tem em mente. Efetivamente, não somente ele
segue a metáfora do chefe de orquestra (Le Boterf, 2009:75), mas, de maneira
geral, ele considera que a competência (na execução de tarefas e no enquadramento
dessas) consiste na adaptação ótima das maneiras de agir às particularidades da
situação. Não indo mais longe, acreditamos, é deter-se no meio do caminho na
definição do conceito de competência. Veremos por quê.

2.4. Os modelos da aplicação e da interiorização são não apenas im-


possíveis em razão da variabilidade, mas, de início, invivíveis (a pers-
pectiva ergológica).

Até certo ponto, o modelo de Bourdieu de uma norma, como prática estratégica,
quer dizer como tema e variação, permite ultrapassar uma redução da implemen-
tação competente em aplicação em conformidade com a norma. Mas, até certo
94 Competência e atividade de trabalho

ponto apenas, porque ele considera o ato competente unicamente como a escolha
ótima em uma árvore de possíveis: a gama de reflexos sociais à disposição do
agente, quer dizer para os quais ele desenvolveu uma disposição.

É esse uso, parece-nos, que é retomado quando pensamos a competência em termos


de habitus. O habitus permanece fundamentalmente um hábito certamente – mais
estrutural que empírico, no sentido em que Lévi-Strauss dizia: “O princípio fun-
damental é que a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica,
mas aos modelos construídos conforme essa realidade empírica” (2009:331). Ora,
lá onde Bourdieu cultiva uma ambiguidade, é sobre o papel da matriz diferencial
geradora de comportamentos inéditos que ele pretende fazer jogar o seu conceito
de norma como prática estratégica. Bourdieu – como G. Le Boterf na sequên-
cia – segue a metáfora musical do “tema e variação” para dizer que um pequeno
número de normas pode ser diversificado pelo agente, de maneira a produzir a
infinidade dos comportamentos possíveis e esperados nessas condições. Aqui
parece-nos haver uma profunda ambiguidade. Por mais esquemático que seja,
o raciocínio de Lévi-Strauss parece-nos mais sólido: o autor tenta regularmente
relativizar a extensão da diversidade cultural, mostrando-nos, justamente, que a
aparência da variedade infinita vem do fato de que não vemos o tema. Pois para
o antropólogo, na medida em que a diversidade cultural é o produto de uma com-
binação de elementos de acordo comum algoritmo fixo, o número de soluções é
necessariamente limitado. Ora, Bourdieu (e G. Le Boterf em seguida) reutiliza
explicitamente o modelo da combinatória de elementos – “Quando um funcioná-
rio age com competência ... ele deve construir uma combinatória particular de
ingredientes múltiplos” (Le Boterf, 2002: 21) –, mas eles pretendem, ao mesmo
tempo, que um tal mecanismo possa dar origem a uma infinita diversidade de com-
portamentos. Como uma árvore de possíveis poderia comportar uma infinidade de
sub-ramos e ainda funcionar como uma árvore de decisão? Acima de tudo, como
uma combinatória pode produzir um comportamento inédito? Por definição, ela
combina elementos já presentes. Por inédito, seria necessário, portanto, apenas
entender o que ainda não foi encontrado na experiência do agente, mas que um
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 95

cientista julgaria como previsível. Esse agente é simplesmente revertido para uma
associação bem-conhecida, mas ignorada por ele. Novamente, portanto, não há
espaço para uma infinidade.

A vontade de qualificar de infinita a diversidade de situações da atividade parece-


-nos se impor por ela mesma, quando se observa o trabalho concreto, sem ime-
diatamente escamotear o detalhe sob as categorizações que violentam as nuanças.
Essa atenção à complexidade dos dados parece ser a melhor vacina para evitar
simplificações e atalhos teóricos do modelo da aplicação. Nesse sentido, Bourdieu
e G. Le Boterf são muito mais clarividentes do que Lévi -Strauss. Mas, na medida
em que seu modelo não permite gerar a diversidade, que eles, no entanto, atestam,
parece-nos que, com essa incoerência, eles mesmos dão o melhor argumento para
duvidar da pertinência do modelo da combinatória.

Os dois limites desse modelo parecem considerar, de um lado, a redução da varia-


bilidade de uma árvore de possíveis – uma redução que Yves Schwartz qualifica
como impossível (Schwartz, 2007: 123) –, mas, por outro lado e acima de tudo, a
redução da singularidade do ator a uma simples particularidade – uma redução que
Yves Schwartz qualifica de invivível (idem), prolongando nisso as teses centrais de
Canguilhem. Se, portanto, conseguimos superar esses dois pressupostos do modelo
de competência como combinatória, parece-nos que se vai aproximar melhor a
infinitude da diversidade das atividades. De um lado, ela não será mais reduzida
abusivamente, mas, por outro lado, será possível prever, com mais serenidade,
as condições para uma relação ganha-ganha entre as singularidades das pessoas
e a indispensável universalidade das normas antecedentes.

Acima da implementação e do enquadramento ao qual está sujeita, a planificação


consistia em definir os principais eixos do projeto e o detalhe de suas modalidades,
desenhando uma árvore dos possíveis (do tipo do diagrama de Ishikawa Chamado
diagrama de causa e efeito – Ishikawa, 2006: 25-36) com normas antecedentes.
Pensar a competência em termos de combinatória é repetir este mesmo modelo:
o operador estará ele também face a uma árvore de possibilidades. Ora, parece-
96 Competência e atividade de trabalho

-nos que um tal raciocínio negligencia o fato de que estabelecer uma tal árvore
de possíveis pressupõe uma drástica simplificação da realidade. Trata-se de uma
abstração no sentido etimológico, uma vez que isso consiste não só em extrair
pelo pensamento algumas circunstâncias do todo, um todo verdadeiramente inex-
tricável formado pela situação, mas também em percorrer mentalmente a cadeia
de causas e efeitos, de modo a identificar pontos de bifurcações. A melhor prova
de que essa lógica da árvore não é uma representação exaustiva da realidade é
que basta que ocorra um acontecimento imprevisto para que o esquema se torne
obsoleto, exigindo recomeçar a ser elaborado com base nessa nova situação.

Se, portanto, colocamos de lado a ilusão lévi-straussiana, que consiste em supor


que a base do real é ela mesma uma árvore de possíveis, a pretensão de encerrar
definitivamente a variabilidade conjuntural em um diagrama exaustivo encontra,
muito rapidamente, seu desmentido prático: esse controle é impossível. O par
conceitual “trabalho prescrito / trabalho real”, desenvolvido pela ergonomia à
francesa (Wisner, 1996: 29-55), possibilita evidenciar o “encarregar-se” indispen-
sável da variabilidade pelo operador no nível micro e mostra que esse necessário
“encarregar-se” cria, ele mesmo, uma promessa de variabilidade (o que, gradu-
almente, vai ressoar até o nível macro).

Essa análise mostra claramente que a competência do operador, do ponto de vista


do enquadramento, consiste efetivamente na boa gestão da distância prescrito/
real, ou seja, encontrar recursos suficientes para realizar o prescrito adaptando-o
aos casos particulares – esse é o modelo de G. Le Boterf. Mas os mesmos fatos
(que recaem sob as categorias da distância prescrito/real) são susceptíveis de
uma segunda interpretação. Longe de serem exclusivas, essas duas perspectivas
são complementares no sentido de se enriquecerem mutuamente. Ao mobilizar
o conceito canguilhemiano de norma para realizar a análise de uma situação de
trabalho, percebe-se que a aplicação literal forçada (em um modo de governança
do trabalho que confia demais na onipotência do prescrito) não é apenas contra-
producente (ver greve do zelo): ela é patogênica, literalmente invivível. Agora,
se nos detivermos um pouco sobre esse fato, que parece anedótico, é possível
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 97

extrair dele um princípio positivo e universal – exatamente da maneira que, ao


estudar a doença, Canguilhem se dá os meios para entender melhor a saúde. Da
mesma forma, tem-se a impressão, quando alguém está em boa saúde, que o
funcionamento do corpo é apenas um mecanismo bem-azeitado, igualmente se
tem a impressão, quando o trabalho está bem-feito, de que se tratava apenas de
aplicar corretamente o prescrito. Mas, da mesma forma, também que a doença
revela retrospectivamente, sob a saúde, todo o debate que o corpo mantém com
seu meio ambiente, igualmente também os casos de doença ocupacional revelam
o quanto, em tempos normais, geramos (em todos os graus da consciência), um
debate entre as normas antecedentes e as nossas próprias normas, as que compõem
o nosso equilíbrio pessoal (tanto fisiológico como psíquico).

Yves Schwartz modeliza essa apropriação (pela qual a norma antecedente


“faz norma” para nós) graças ao conceito ergológico de atividade como um
encadeamento de debates de normas. Ora, o interesse de tal modelo ultrapassa
a abordagem clínica das situações de trabalho. Da mesma maneira que a mo-
delização canguilhemiana da normatividade vital, o modelo de atividade como
uma sequência de debates de normas mostra toda a sua eficácia quando se trata
de pensar a competência – a gestão, sã e até mesmo potente, das situações de
duplo constrangimento onde nos colocam constantemente as normas. Porque
o ponto de partida da perspectiva ergológica são realmente as duas questões
citadas pelo modelo combinatório. De onde vem a infinidade de comportamentos
possíveis? Como pode neles haver algo inédito?

Ao retomar a ideia canguilhemiana de que “todo homem quer ser sujeito de suas
normas” (Canguilhem, 1947: 153) e lembrando que essa ideia significa que ele
quer ser o centro de um meio de que ele participa na construção, em um universo
de normas antecedentes que é a situação, pode-se dar parte do fato de que existe
uma verdadeira singularidade da pessoa, na medida em que seu ponto de vista é,
,propriamente falando, não antecipável. É, na medida em que esse ponto de vista
não é uma mera particularização de alguma lei normal, que pode ele reivindicar a
singularidade. Em outras palavras, é na medida em que ele reivindica essa singu-
98 Competência e atividade de trabalho

laridade para poder viver que o ator é já sempre singular, e não meramente parti-
cular. Sua posição no universo social, a lista de suas características, sua trajetória
histórica: tudo isso pode ser bastante exaustivamente descrito, pois isso é apenas
um conjunto de particularidades (os elementos de uma combinatória elaborada
pelo sociólogo) que vão se encontrar – inclusive, talvez, no mesmo arranjo – em
outros casos, já que, finalmente, é isso o que constitui a regularidade estatística.
Em compensação, a maneira pela qual a pessoa estabelece sua relação com essa
condição, com sua situação, com as normas antecedentes de que ela tenta se apro-
priar: tudo isso é não antecipável, porque é necessário passar pelo ponto de vista
da totalidade indivisível do corpo-si da pessoa (Schwartz, 2011: 148-177). Para
entender a maneira como ela retrabalhou a norma antecedente (renormalizada, diz
Yves Schwartz), é necessário não apenas deixá-la falar, mas fazer com ela todo
um trabalho de acompanhamento, para ajudá-la a expressar à sua consciência –
através da linguagem – todas as iniciativas que a totalidade biopsíquica de seu
corpo tomou para ganhar microiniciativas sobre as normas do meio.

O lado positivo, portanto, do invivível de uma situação revela todo o trabalho


mais ou menos inconsciente (e não, como Bourdieu afirmou, a adaptação mais ou
menos automática) que realizamos para investir a norma antecedente das nossas
próprias arbitragens no debate que mantemos com o meio. Ora, na medida em
que essa normatividade, essa renormalização constante, é capaz de tomar todos
os graus (a partir, então, de um grau infinitesimal em sofrimento na situação de
alienação máxima), é precisamente essa tentativa de negociação para a iniciativa,
que nos parece ser o objeto próprio do conceito de competência. Na verdade, uma
tal reapropriação pessoal das normas é a condição para uma readaptação pertinente
dessas normas em vista da situação. Porque para ser interpretada, no sentido de
Bourdieu e G. Le Boterf, isto é, difratada para ser adaptada, toda norma deve ser,
primeiramente, interpretada no sentido axiológico: apoderar-se de uma impor-
tância em função das urgências, isto é, uma prioridade, ou seja, um valor. Vamos
detalhar, no que diz respeito aos usos futuros, o que nos parece ser o processo de
uma tal interpretação. É sempre no interior do quadro de Canguilhem (do qual a
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 99

perspectiva ergológica herda) que nós nos colocamos. A interpretação pertinente


do significado das normas (que constitui para nós a competência) é a elaboração
de um ponto de vista sobre a norma, portanto, uma distância crítica que se abre
ao debate – que tem, então, lugar na relação com a norma antecedente.

3. Avaliar

3.1. É a conformidade da operação em relação à sua função que faz a


excelência (Aristóteles)

Nós já evocamos como, entre Aristóteles e Dewey, cada concepção da ação que se
opõe traz consigo a origem de seus critérios. Já que, de acordo com Aristóteles, a
finalidade de um ato precede esse ato (esse é o modelo do projeto), a avaliação do
ato vai consistir em comparar o resultado com o objetivo inicial. Essa visão das
coisas está tão impregnada na mentalidade da Atenas do século V a.C. que ela ali
mesmo até recebeu um nome: é a doutrina de excelência ou virtude. Toda coisa
e também todo ser e toda ação têm uma essência que os define, e essa essência
funciona como um ideal prototípico. Para Aristóteles, a essência – ou ideal – é
a função desse ser: a produção que ela gera ou sua operação autotélica. A partir
daí, uma pessoa ou uma coisa é excelente (ou virtuosa ou ainda divina) quando
ela realiza sua função com perfeição.

“Gostaríamos de dizer mais, claramente, qual é a natureza da felicidade. Talvez


chegássemos a isso se determinássemos a função do homem. De fato, como no
caso de um flautista, de um escultor ou de um artista qualquer – e em geral para
todos aqueles que têm uma função ou uma atividade determinada – é (parece) na
função que residem o bem e a perfeição. Da mesma forma, pode-se pensar que
isso é possível para o homem, se é verdade que exista alguma função própria
de um homem. Seria possível que um carpinteiro ou um sapateiro tivessem uma
função e uma atividade para exercer, mas que o homem não tenha nenhuma e
que a natureza o tenha dispensado de todo o trabalho a cumprir? Ou ainda – da
mesma forma que um olho, uma mão, um pé – e em geral cada parte do corpo –
têm claramente uma função a cumprir, não se deve admitir que o homem tenha,
ele também, além de todas essas atividades particulares, uma função determi-
nada?” (Aristóteles, 1997: 57).
100 Competência e atividade de trabalho

O fato de Aristóteles colocar aqui, no mesmo plano, o órgão, o trabalhador e o


homem não é surpreendente. Porque as suas ações respectivas são pensadas sob
o mesmo modelo (nessa diferença, exceto o homem – é claro, é preciso com-
preender aqui o homem livre, cidadão ateniense –, se fixa ele mesmo seus fins
sob a forma de projeto), suas competências respectivas são pensadas a partir do
mesmo modelo3.

Seguramente, uma tal maneira de ver nos parece rígida e extrema, na me-
dida em que sozinhos os cidadãos atenienses fixando fins, a competência
como perfeição é reduzida, em todos os outros casos, à eficiência em uma
função que não foi escolhida.

Mas a crítica de Dewey deveria interpelar-nos. Segundo ele, é toda concepção


da ação, em que a finalidade precede o ato, que apresenta, na realidade, a mesma
armadilha. Dewey sugere, na verdade, que é a prática da avaliação, apoiando-se
no critério de conformidade do resultado, que traz consigo uma lógica perigosa.
Quais são realmente as condições necessárias e suficientes para que tal sapateiro
seja declarado um bom sapateiro, um verdadeiro sapateiro (se se reduz, com
Aristóteles, a competência à aplicação apropriada)? Onde encontraríamos esses
critérios a não ser inscritos, desde sempre, sob a forma de sapateiro em si? Porque,
para Aristóteles, não há como fazer diferença entre um julgamento descritivo e um
julgamento normativo a respeito do trabalho: se tal sapateiro produz sapatos de
má qualidade (sapatos que não respondem perfeitamente a todas as características
esperadas de sapatos, o que, aliás, é percebido no fato e não no uso, eles não reali-
zam perfeitamente a sua função esperada). Então, segundo Aristóteles, nem esses
sapatos e nem esse sapateiro estão de acordo com seus respectivos conceitos, se
bem que são sapatos e sapateiro apenas no nome. No entanto, parece-nos que se

3 No original: “Puisque leurs actions respectives sont pensées sur le même modèle (à cette dif-
férence près que l’homme – et bien sûr, il faut entendre ici l’homme libre, le citoyen athéniense
fixe lui-même ses fins, sous la forme de projet), leurs compétences respectives sont pensées sur le
même modèle”.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 101

se tem em mente que, de acordo com Aristóteles, a forma pré-existente determina


todos os aspectos da ação (seus meios, sua motivação, sua avaliação), percebe-se,
de certa forma, a influência desse paradigma na convicção do engenheiro F.W.
Taylor (provavelmente de boa-fé, uma vez que todas as evidências – no interior do
dito paradigma – parecem ir nesse sentido) que existiria sempre e necessariamente
uma boa maneira de fazer e uma única, a melhor (the one best way) quando se é
confrontado com esse ou aquele problema.

Eis, de fato, o raciocínio de Taylor:

“Há muitas maneiras diferentes de fazer a mesma coisa, 40, 50 ou 100 talvez na
mesma fábrica, e é por isso que há uma variedade de ferramentas para fazer o
mesmo trabalho. Entre os métodos e as ferramentas utilizadas em cada operação,
há sempre um método e uma ferramenta mais rápida e melhor que os outros. Eles
podem ser descobertos somente após uma análise científica de todos os métodos
e ferramentas usados pela oficina. Análise essa com base num estudo minucioso
e exato dos movimentos e dos tempos.” (Taylor, 1927:33).

Conservando o critério de Dewey, encontramos, nesse trecho, o mesmo princípio


de avaliação na perfeição da poïesis aristotélica. É que – tanto para Aristóteles
como para Taylor (ou mesmo para Clausewitz) – a forma do resultado virtual,
que é o objetivo, determina, via dedução, não só todos os meios possíveis, bem
como os critérios para a sua avaliação e a sua seleção. Então, aqui não há espaço
para o pluralismo e o debate sobre as maneiras de se apropriar deles, uma vez que
essas são todas submetidas a um mesmo critério universal – exaustivo e suficiente
ao mesmo tempo, porque a avaliação é unidimensional e porque a situação de
intervenção é abstrata, reduzida a uma árvore lógica – e que esse critério não
pode apresentar as alternativas senão como deficientes. Novamente, a crítica
construtiva de Dewey vai procurar apreender, na raiz, esse pré-julgamento duplo
(a unidimensionalidade dos critérios e a suposta fixidez da situação) em uma
tentativa de fazer avançar o princípio mesmo da prática de avaliação de um ato
(notadamente profissional).
102 Competência e atividade de trabalho

3.2. É a eficácia com a qual o ato desabrocha no meio que faz a sua
autovalidação (Dewey)

O pragmatismo tem, muitas vezes, má reputação do ponto de vista da avaliação


das ações. Interpretando mal a sua tese de que a verdade não pode ser senão o que
funciona, tachamos os pragmáticos de relativistas. Todo princípio iria se tornar
verdadeiro, pelo simples fato de que se retira dele uma conclusão eficaz – o que,
aliás, é um erro de lógica, porque disso se pode sempre deduzir uma consequência
verdadeira de um princípio errado. Suspeita-se mesmo de que são cínicos, dando
a entender que tudo seria legítimo, contanto que o resultado o justifique retrospec-
tivamente. Acreditou-se, finalmente, ver, no critério de eficácia, uma negação do
pluralismo dos valores como se pode supor, por exemplo, na expressão conotativa
“ele é muito pragmático”, querendo significar que uma pessoa não se incomoda
com princípios. Ora, esse é um contrassenso bastante paradoxal, porque a crítica
de um Dewey, alguém naturalmente democrático, é especificamente dirigida con-
tra a concepção aristotélica de avaliação, que teria a tendência de comprometer
o pluralismo de valores, reduzindo tudo a princípios.

A concepção de avaliação em Dewey nos parece partir da ideia de que todo julga-
mento é um julgamento normativo (consideremos, por exemplo: “ele é um verdadeiro
sapateiro”), no sentido de que esse é um julgamento que se refere a critérios. Ora,
esses critérios são arbitrários se eles pretendem se aplicar à ação, sem terem sido
desenvolvidos aí de maneira autônoma. É nisso que está a sua crítica ao aristotelismo:
os critérios não devem preceder à ação, eles devem, ao contrário ser nela decididos.

“A projeção das consequências [das nossas ações] significa uma solução propos-
ta, uma solução de teste (...) A solução sugerida (‘a ideia’ ou ‘teoria’) deve, então,
ser posta à prova na prática. Se ela produz algumas consequências, algumas
determinadas mudanças no mundo, ela é aceita como válida. Caso contrário, ela
é modificada e submetida a uma nova prova. O pensamento implica cada uma
dessas etapas: o sentido de um problema, a observação das condições, a formação
e a elaboração racional de uma conclusão sugerida e o teste experimental ativo.
Ainda que todo pensamento chegue ao conhecimento, o valor do conhecimento
está subordinado, afinal de contas, à sua utilização no pensamento. Porque nós
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 103

vivemos não em um mundo fixo e acabado, mas em um mundo que progride e


no qual nossa tarefa essencial é prospectiva – um mundo em que a retrospectiva
(e todo o conhecimento distinto do pensamento é retrospectivo) não tem valor
apenas pela solidez, a segurança e pelo enriquecimento que ele proporciona à
nossa maneira de abordar o porvir. “(Dewey, 1983:186).

Dewey sugere que o desenvolvimento multidimensional de uma existência em intera-


ção com seu meio fornece o critério interno para a avaliação de sua própria atividade.
Aqui, por exemplo, são mencionados “a solidez, a segurança e o enriquecimento”
de nossa experiência. Esses são os dois pressupostos aristotélicos que são criticados.

De uma parte, é impossível fixar critérios de avaliação a priori, porque a perti-


nência dos critérios vai depender da situação presente. É ilusório pretender que
determinados critérios poderiam valer universalmente, em qualquer situação, visto
que, justamente de acordo com Dewey, o que faz a legitimidade de um critério é a
sua eficácia (por isso sua adaptação à situação). Ora, é uma contradição nos termos
pretender ser adaptado a tudo. Assim, no plano político, por exemplo, Dewey diz
que o princípio democrático exige que os hábitos sociais e formas institucionais,
contraídos em virtude de sua eficácia, numa dada situação, sejam periodicamente
revistos, atualizados, submetidos a esse mesmo critério de eficácia – mas tendo
como referência a situação presente.

Por outra parte, a unidimensionalidade da avaliação – longe de ser uma fatali-


dade – é um efeito da antecedência dos critérios em relação à ação. O interesse
de Dewey pelo princípio da eficácia consiste não somente em relação à sua per-
formatividade (ele não precisa de nenhuma outra justificação senão ele próprio),
mas especialmente sua fertilidade. Deixando cada um livre para submeter seus
próprios critérios de avaliação à sanção do seu devir, na confrontação in situ, ele
permite abrir caminho a práticas alternativas que, na verdade, não iriam subsistir
senão na medida em que elas têm uma parte de verdade.

Finalmente, uma terceira dimensão dessa renovada avaliação consiste na sua


autonomia. Pois para Dewey, da mesma forma que a origem dos critérios de
104 Competência e atividade de trabalho

avaliação não deve ser procurada em outros lugares senão na atividade em si, da
mesma forma a modalidade de aplicação desses critérios –a prática da avaliação
em si – não deve ser exterior, supostamente imparcial. A autoavaliação é parte
integrante da ação, sendo uma etapa constitutiva dela e é dela que se obtém sua
legitimidade e sua segurança.

A essas três novas características, pode-se objetar a ideia de que um tal modo
de avaliação não pode senão confortar o ator em seus preconceitos, porque sua
grade de critérios funciona aí como uma profecia autorrealizadora (ou círculo
hermenêutico, hipótese de interpretação que se mantém por si mesma) – o que
a priori não favorece o espírito crítico. Mas o argumento de Dewey consiste em
antecipar o fato de que as mudanças contínuas do ambiente impõem se adaptar,
quer dizer, confrontar constantemente nossas grades de interpretação com sua
própria eficácia. O autor adianta que essa é a única garantia da pertinência de
qualquer interpretação. Isso é o que Dewey escolheu reter do princípio darwiniano
da evolução exponencial pela seleção do mais apto a se adaptar, a cada vez, a essa
ou àquela dada situação.

Desde então, o que vale para nós essa definição do agir em competência de acordo
com Dewey? Ela é um pouco desconcertante, porque, em última análise, ela é
apenas formal. A eficácia é um critério que nos reenvia constantemente a critérios
mutáveis, definidos caso a caso – e pelo caso em si mesmo. Mas, sobretudo, ela
não nos parece mais satisfatória do que a concepção aristotélica, porque uma tal
concepção de competência não preenche as especificações ligadas a esse conceito.
Qual é esse caderno de encargos? O desafio específico do conceito de competência
é de poder servir de espaço de encontro entre uma demanda de reconhecimento
(por parte do empregado) e uma demanda de confiança, portanto de responsabili-
dade (por parte do empregador). Uma tal mediação passa pela estabilidade de um
referencial de competências. Ora, criticando a rigidez dos critérios aristotélicos,
Dewey insiste demasiadamente sobre o futuro mutável dos critérios de avaliação.
O que é revelador desse excesso é que os critérios, tais como ele os entende, não
podem, finalmente, ser utilizados senão em uma autoavaliação. Mas, embora esse
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 105

exercício seja útil, enriquecedor e mesmo indispensável, esse exercício representa


apenas a parte subjetiva (interpretativa) do ato de avaliação. Na ausência da outra
parte (objetiva: os fatos dos atos, comparados às expectativas fixadas antes da
missão), não somente a função de controle não pode operar, mas é, sobretudo, toda
possibilidade de debate que fracassa com ela. Com efeito, sem um terreno comum
onde confrontar os pontos de vista, sem fatos sobre os quais se basear para confron-
tar as interpretações, as subjetividades se enfrentam em um face a face estéril e,
muitas vezes, violento. Mais uma vez, então, nós sofremos aqui com a ausência do
conceito de norma – um terceiro neutro arbitrando um debate de pontos de vista.

3.3. É a graça com a qual se encontra espontaneamente a norma que


beneficia a legitimidade ideológica (Bourdieu)

Do ponto de vista da avaliação, o conceito de norma em Lévi-Strauss remete,


sem dúvida, ao obstáculo aristotélico. Imaginar que os indivíduos e os coleti-
vos seguem um programa inconsciente não permite nem a menor modalização
das atividades (adaptação ao inédito), nem sua avaliação (além do permitido/
proibido). Ainda aqui, é por falta que se aplica o critério de conformidade.
É por isso que a proposta de Bourdieu – de pensar as práticas em termos de
estratégias – nos parece ter o interesse em revelar o quanto nossas ações,
em um meio social, são atravessadas pelas normas, a ponto de que nenhum
detalhe de sua implementação concreta não possa continuar insignificante. Na
verdade, sempre se vai considerar isso mais que aquilo – e tal discriminação
será não apenas significativa, mas julgada em relação a tal ambiente social,
sendo relacionada a tal ou tal norma de avaliação.

Já foi dito, o paradoxo estruturalista de pensar a norma sem normatividade (re-


ceptiva) conduz a um modelo de interiorização esquemática que nos parece falso.

“Se o mundo social tende a ser percebido como óbvio (...) é porque as disposições
dos agentes – seus habitus, ou seja, as estruturas mentais, através das quais eles
apreendem o mundo social – são essencialmente o produto da interiorização das
estruturas do mundo social.“ (Bourdieu, 1987:155).
106 Competência e atividade de trabalho

Também já foi dito que a possibilidade de modalização, que Bourdieu confere às


normas, apresenta, no entanto, esse interesse (no que diz respeito a Lévi-Strauss)
que permite, numa primeira aproximação, dar parte da forma como os julgamentos
de competência utilizam as normas para avaliar um comportamento. Uma norma,
na verdade, não funciona como guia ou como condicionamento. Ela é uma pedra
de toque, um referente, servindo de critério ou de fronteira para detectar uma
diferença, para estabelecer uma distinção.

“As representações dos agentes variam de acordo com sua posição (e os in-
teresses que lhes estão associados) e de acordo com seus habitus, como um
sistema de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e avaliativas
que eles adquirem através da experiência sustentável de uma posição no mundo
social. O hábito é, ao mesmo tempo, um sistema de esquemas de produção das
práticas e um sistema de esquemas de percepção e de apreciação das práticas.
E, em ambos os casos, suas operações expressam a posição social em que foi
construído. (...) É o que faz com que nada classifique alguém mais do que suas
classificações.” (Ibid., 156-157).

Nós nos situamos bem aqui no cruzamento entre Aristóteles e Dewey. Contra
Dewey e a favor de Aristóteles, Bourdieu mostra que são os referenciais, estáveis
e comuns, que nos servem para avaliar as práticas. Mas contra Aristóteles e a
favor de Dewey, Bourdieu mostra que esses referenciais avaliando a ação estão
em um perpétuo devir, precisamente porque eles não se constituem senão num
único referencial com os referenciais guiando a própria ação! Mas sente-se bem
a diferença de tom. Ali, onde Dewey transbordava de otimismo e generosidade
democrática, Bourdieu lança um olhar cínico sobre a prática da avaliação. Seu
raciocínio parece, de fato, ter uma visão pragmática no mau sentido do termo.
Ele considera que a avaliação está em tal continuidade com a prática que ela
não é senão um meio de perpetuação, de reprodução.

Isto porque o interesse do pragmatismo de Dewey era o de trazer toda a eficácia


ao desabrochamento de uma atividade que, tendo em si mesma um valor para a
pessoa, iria conferir, dessa vez, valor às ações eficazes. Na análise da avaliação,
de acordo com Bourdieu, pelo contrário, o mesmo princípio de performatividade
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 107

dos critérios gira, de alguma forma, no vazio, porque serve apenas para reforçar
uma posição em uma relação de força.

“O mundo social apresenta-se como uma realidade altamente estruturada (...)


mas os objetos do mundo social podem ser percebidos e expressos de diversas
maneiras, porque eles sempre envolvem uma parte de indeterminação e fluidez e,
ao mesmo tempo, um certo grau de elasticidade semântica: na verdade, mesmo as
combinações as mais constantes sempre são baseadas em conexões estatísticas
entre traços intercambiáveis; (...) esse elemento objetivo de incerteza (...) fornece
uma base para a pluralidade das visões do mundo, ela mesma ligada à plurali-
dade de pontos de vistas; e, ao mesmo tempo, uma base para as lutas simbólicas
para o poder de produzir e impor a visão legítima de mundo.” (Ibid., 157-159).

É esse o termo legitimidade que nos parece importante aqui. Em Dewey, as ava-
liações são legítimas na medida em que elas são autônomas. Aqui, um julgamen-
to depreciativo é legítimo quando ele é bem-sucedido – por um golpe de força
simbólica – para dar o tom, para se fazer passar pela referência, presumindo ser
ele mesmo a medida da legitimidade. Mais uma vez, reencontramos o limite da
concepção de Bourdieu, que considera a norma como um fato tornado direito, ou
seja, uma concepção que reduz “o que faz normas” aos “fatos de normas” – pre-
tendendo, assim, conceber a norma sem normatividade (normatividade receptiva).

O fato de que as normas e as ações que fazem essas normas existirem sejam assim
avaliadas, sendo relacionadas a outras normas, lembra o princípio do relativis-
mo cultural de Lévi-Strauss. Todo julgamento normativo, sendo relacionado ao
sistema de normas que usamos como critérios e toda norma sendo relativa a uma
dada cultura, é ilegítimo – e mesmo absurdo – julgar uma prática fora do sistema
normas do qual ela é a expressão, fora da cultura onde ela ocorre. Mas a sociolo-
gia de Bourdieu pretende romper com o irenismo metodológico da etnologia. Na
verdade, as normas são constantemente ligadas a outras normas, a outros meios,
e o essencial da vida social consiste nessas lutas simbólicas, onde o que está em
jogo é o primeiro lugar (arbitrário) de quem fala por último. Diferentemente
de Dewey de novo, Bourdieu e Lévi-Strauss concebem a avaliação como um
circuito fechado, onde as normas falam às normas, sem jamais se relacionarem
108 Competência e atividade de trabalho

com valores. É que esses dois autores consideram que não há nenhuma outra
fonte de valor senão as normas arbitrárias, que se pretendem baseadas em direito
e impõem artificialmente diferenças de valor. Sem dispor do conceito de norma.
Dewey parece-nos, entretanto, mais inspirado, quando ele relaciona a avaliação
positiva de uma ação à fonte (única, de acordo com ele) do valor: automanutenção
exponencial da atividade. Voltaremos a esse ponto.

Mas a concepção de norma em Bourdieu apresenta, ainda assim, uma nuança


decisiva, que nos faz claramente avançar na construção do conceito de com-
petência. Como havíamos dito anteriormente, a norma serve de referencial de
avaliação. Sim, mas como? Uma norma representa o modelo ao qual o resultado
deverá corresponder, traço a traço (como foi o caso na ideia antiga de exce-
lência)? De acordo com Bourdieu, isso não é tão simples. Lembramo-nos da
célebre crítica que ele dirige a professores que escrevem de forma “demasiado
escolar” na cópia de um estudante:

“A escola não exalta na “cultura geral” o oposto do que ela denuncia como uma
prática escolar da cultura, naqueles cuja origem social condena a não ter nenhu-
ma outra cultura senão aquela que eles devem à escola?’” (Bourdieu, 1964:33).

É que – por mais paradoxal que isso possa parecer na perspectiva de autores
anteriores – a conformidade se torna, em algum grau, contraproducente, quando
queremos ser declarados competentes. Bourdieu sugere não somente que os
julgamentos de competência se voltem primeiramente sobre o domínio, sobre a
facilidade na maneira de fazer, mas que a hipocrisia social de um julgamento de
competência vem daquilo que aí se exige que a norma seja seguida do nada, sem
que isso transpareça. A análise que Bourdieu faz da avaliação culmina, portanto,
no conceito de graça: para ser declarado competente, em um determinado jogo
social, é preciso dar a impressão de que não há necessidade da norma para res-
ponder às expectativas.

A concepção de Dewey nos parecia insuficiente, porque ela implicava que, para ser
competente, era preciso reinventar o prescrito a cada ação. No entanto, Bourdieu
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 109

retifica, de algum modo, a análise. Para ser competente, deve-se, ao mesmo tempo,
realizar as estratégias sempre mais ou menos automáticas do senso prático e dar
a impressão de reinventar, a cada vez, a norma! Além de seu alcance crítico, qual
é, então, a contribuição conceitual de tal retificação? Um ponto positivo é que
Bourdieu nos convida a nos perguntarmos o que se torna norma na ação, visto
que sua aplicação literal é desconsiderada. Já mencionamos a dupla característica
do conceito de norma, pela qual ele responde. Para ser implementada uma forma
que vamos qualificar como competente, a norma deve ser, ao mesmo tempo,
difratada e adaptada na ação. No entanto, apesar do seu interesse, o modelo da
graça nos parece insuficiente, porque ele ignora um fato muito importante. Mais
ainda do que domínio, é a responsabilidade do ator que sanciona o conceito de
competência. Se precisamente o conceito de competência se distingue da graça,
do brio ou ainda do gênio, é porque ele é usado para designar – ao mesmo tempo
que a facilidade do ator – a seriedade da qual ele faz prova, quando se trata de
assumir as consequências (mesmo remotas) de suas ações. Ora, nós encontramos
aqui a inspiração de Dewey e especialmente de Canguilhem (Canguilhem, 1980:
187-188). A responsabilidade, a coerência no que se refere às consequências de
suas ações são noções axiológicas. Em outras palavras, a avaliação não consiste
apenas em relacionar uma ação às normas: através dessas normas e,então, além
delas, é com os valores (e à sua fonte, a relação com as outras) que a conformi-
dade mais ou menos literal é finalmente relacionada. Ora, esse acréscimo quanto
à avaliação das práticas profissionais transforma completamente o conceito de
norma em relação à concepção estruturalista.

3.4. É a reinserção da tarefa no serviço coletivamente realizado que lhe


dá seu sentido e determina sua qualidade (a perspectiva ergológica)

Para apresentar a hipótese que fizemos avançar quanto ao conteúdo do conceito


de competência no plano da avaliação, vamos partir da distinção entre avaliar e
controlar, proposta por Jacques Ardoino e Guy Berger (1986: 120-127). A con-
110 Competência e atividade de trabalho

formidade do resultado com o caderno de encargos4 é uma condição necessária


para a avaliação de alguém como competente. Mas, mesmo por isso, está longe
de ser uma condição suficiente. Com efeito, essa comparação entre o resultado e
o objetivo não corresponde senão ao que os autores chamam a etapa de controle.
Uma tal comparação não é um juízo de valor, mas realmente um julgamento de
fato. O referente ou elemento comparativo (como dizem os gramáticos) é o fato
do prescrito, são as especificações. O referido ou elemento comparado é o fato
do comportamento, é a ação e o estado da situação depois da sua intervenção. . O
ponto de comparação, finalmente, é a mera conformidade, ou seja, a adequação,
a superposição. Um tal controle nunca é suficiente para um julgamento de com-
petência, pois o controle sanciona unicamente os atos, ou os resultados dos fatos
– ao passo que o julgamento de competência julga uma pessoa de acordo com
seus atos. A avaliação propriamente dita, de acordo com Ardoino e Berger, é uma
interpretação. Nós diríamos, de bom grado, que a avaliação de competência é uma
dupla interpretação: interpretação da qualidade do ato (que, ela mesma, já não se
resume à conformidade com as expectativas do resultado do ato) e interpretação
do nexo de causalidade entre o ato e o ator. A respeito desse último ponto, é fácil
imaginar casos em que um ato bem-sucedido (ou até mesmo um ato perfeito)
não valoriza em nada uma competência de seu autor. Pode ser evidente que tudo
tenha acontecido por acaso, ou bem que a pessoa tenha sido ajudada de forma
excessiva, ou mesmo que o ato fosse tão elementar (não importa a razão) que ela
não teve nenhum mérito por ter sido bem-sucedida. Mas vai se hesitar também
em declarar alguém competente, se ele executa o prescrito “ao pé da letra”, ou se
ele faz seu trabalho com má vontade (sobretudo se ela é óbvia). Sente-se, aqui,
mais coragem que na análise de Bourdieu. Não se trata apenas de uma facilidade
que pune o juízo de competência, mas é, também, uma motivação e uma presença
da pessoa (no sentido de: ser voluntário ou ser responsável).

4 N.T. No francês, cahier des charges. Documento contratual que define as regras da execução de
serviços. Ele foi elaborado por uma equipe projetista (prescrição) e deverá ser respeitado quando
da realização das tarefas.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 111

Aqui, toca-se, ao mesmo tempo, em todo problema e em todo desafio do conceito


de competência. No que diz respeito a Dewey, nós havíamos evocado as especifi-
cações ligadas a esse conceito. A definição de seu conteúdo deve permitir à com-
petência (se se consideram as coisas no plano da avaliação) desempenhar apenas
o papel de intermediário, entre a demanda de reconhecimento do funcionário (ser
reconhecido tendo um status) e a demanda de garantias por parte do empregador
(sob a forma de certificação, qualificação, recomendação, etc.). Ora, poderia ser
tentador dar ao conceito de competência um conteúdo estritamente objetivo,
que faça desaparecer o debate entre essas duas demandas – que ele coloque todo
mundo de acordo apresentando fatos que não exigiriam nenhuma resposta. Mas
tal pretensão confunde a avaliação e o controle, na tentativa de desacreditar o
primeiro com o segundo. O que, então, a integração ao conceito de competência,
considerando os motivos e motivações do ator pode ter de chocante aos olhos
de um objetivista ortodoxo é muito mais do que um mal menor: trata-se de uma
oportunidade de progredir em uma avaliação mais justa. Parece-nos mesmo que
esse é o desafio e a oportunidade que a passagem da qualificação à competência
representa. Acreditamos que, se ele vai até o fim de suas especificações, o con-
ceito de competência pode se aproximar da atividade de trabalho de uma maneira
muito mais justa (em todos os sentidos da palavra) do que aquele da qualificação.

Retomemos, por um instante, a distinção entre controlar e avaliar, para aplicá-la


a um objeto. No final de uma fabricação em série, uma máquina pode controlar
totalmente a conformidade dos produtos aos padrões de peso, forma e tamanho.
Para avaliar a qualidade do produto, pelo contrário, deve-se convocar uma pes-
soa – não por falta de padrões, mas em razão da maneira de aplicá-los. Pode-se,
com efeito, em uma lista de critérios, descrever completamente os atributos que
um produto deve apresentar, para que seu aspecto seja percebido como desejá-
vel. Mas, uma vez que esses critérios estejam no papel, não se pode pedir a um
computador que avalie a aparência do produto, a atração que ele é susceptível de
provocar no consumidor. É que esses atributos e critérios são normas: é preciso
passar pelo julgamento de um especialista em marketing, que, de uma maneira ou
112 Competência e atividade de trabalho

de outra, vai procurar “se colocar no lugar” do cliente, para estimar a atratividade
do produto. Isso não é exatamente uma ciência exata, nós reconhecemos bem a
indefinição característica do léxico: o zumbido, a tendência, etc., que agora são
exportados para todo lado.

Essa digressão é útil para mostrar que, se existem casos cujo controle é suficiente
por si mesmo, esses casos são extremamente raros. Na grande maioria deles, o
controle é um momento da avaliação e não é suficiente por si só. Quando dizemos,
neste instante, que a irredutibilidade da avaliação ao controle não era um mal
menor, mas uma chance, é que a consideração dos motivos e motivações – bem
longe de diminuir a objetividade da avaliação – aumenta essa objetividade desde
que não se dê a esse termo seu sentido restrito e restritivo.

Na verdade, existem dois significados para a palavra objetividade: o sentido


científico e o senso comum. O sentido científico está muito bem-resumido pelo
título de um livro do filósofo analítico Thomas Nagel: A objetividade é o ponto
de vista de lugar nenhum. O objetivismo é essa doutrina (ou essa ideologia) que
sustenta que os fatos falam sempre deles mesmos e que se deve, por conseguin-
te, opor a eles opiniões (consideradas em bloco), que, enquanto opiniões, são
todas válidas. Com Bachelard, Canguilhem, acreditamos que esse ponto de vista
do lugar nenhum” é assintomaticamente alcançado pela ciência através de sua
história. Todo método de objetivação, a ruptura epistemológica consistem em
purificar sempre mais os fatos, purificá-los de vieses relacionados à nossa ex-
periência e à nossa existência – essa purificação se dá graças à explicitação das
hipóteses em princípios de uma teoria submetida a críticas. Na medida em que
essa objetividade constitui gradualmente os fatos, ela não está submetida senão a
um controle experimental. Nenhuma avaliação não pode pretender esse estatuto,
a objetividade compreendida nesse sentido. Pelo contrário, o segundo sentido da
expressão (senso comum) é sinônimo estrito de imparcialidade. Quando nós nos
esforçamos para permanecermos objetivos em nossa avaliação, é que fazemos
um esforço para subtrair dos nossos julgamentos de valor a sua quota de unilate-
ralidade, de simplismo. A objetividade, nesse sentido, é o horizonte (novamente)
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 113

de uma compreensão da complexidade do real, que iria reunir todos os pontos


de vista. E, como todos os pontos de vista seriam representados, nem todos eles
valeriam, dado que haveria aí todos os graus de pertinência – desde o nível zero
de autocrítica até o pensamento o mais problemático.

Essas duas formas de objetividade funcionam, então, uma ao contrário da outra:


a primeira exclui ali onde a segunda inclui qualquer ponto de vista: a primeira é
apodítica (ela progride por confirmação de certezas), a segunda é problemática (pro-
gride pelo aprofundamento de questões de uma complexidade sempre inextricável.

Ora, uma avaliação que pretenderia se prender exclusivamente à primeira forma


de objetividade constrange a pessoa avaliada, porque não reflete, com precisão,
a maneira como a pessoa se revelou em seu ato. Já foi dito, o julgamento de
competência está baseado em uma inferência das propriedades do ato àquelas
supostamente do ator. Se essa inferência se contenta com uma visão unilateral
da relação de causa e efeito entre o ator e seu ato, é inevitável que o julgamento
seja parcial – e mesmo parcial, porque favoreceria ilegitimamente um certo tipo
de saber-fazer inútil ou prejudicial, no emprego ou na formação aos quais essa
avaliação dá acesso (sonha-se, por exemplo, com as provas de QCM que condi-
ciona o acesso aos estudos de medicina). Intencionando, então, uma objetividade
absoluta, essa redução da avaliação de controle trai a exigência de objetividade no
sentido corrente. No entanto, se a avaliação dos motivos e das motivações não é
um mal menor, mas um bem, é, que, sob determinadas condições específicas –
ela vem corrigir, no sentido de uma maior objetividade, o que todo controle pode
ter de insuficiente.

Questionar os motivos e motivações de uma ação que se tenta avaliar é mais ge-
ralmente interrogar o ponto de vista do ator, no sentido canguilhemiano do termo:
o posicionamento que a pessoa mantém na presença da norma, que guiou a sua
ação. Assim, quando, depois de ter apresentado sua dissertação, um estudante é
convidado a defender o que escreveu, esses dois momentos representam, respec-
tivamente, o controle (do domínio das noções, da coerência de seu discurso, etc.)
114 Competência e atividade de trabalho

e a avaliação. Nesse segundo tempo, a arguição não é tanto sobre o conteúdo do


trabalho (já apresentado na produção escrita), mas sobre o confronto de pontos de
vista sobre esse conteúdo, entre o candidato e a banca de avaliação, a fim de dar
ao ato de pesquisa o relevo do que está em jogo. Podemos ver que, se o controle
quase nunca é autossuficiente, a avaliação não pode ser feita sem o tempo de
controle. Se não há nenhum fato, objeto, norma sobre os quais analisar os pontos
de vista, a pretendida avaliação não é senão um confronto de opiniões sem tarefa
comum, nem horizonte comum de verdade. A problematização, então, se vira para
o vazio, sem discutir sobre os fatos contraditórios de uma situação real.

Se sairmos do campo da educação para entrar no mundo do trabalho, a comple-


mentaridade entre controle e debate, para compor a avaliação justa, é ainda mais
necessária porquanto os critérios não têm mais a univocidade relativa da cientifi-
cidade. Avaliar uma pessoa como competente envolve os numerosos critérios que
figuram nos referenciais da competência. Na medida em que esses critérios são
conhecidos pela pessoa avaliada antes de seu período de avaliação, eles funcionam
como o elemento comparativo factual, ao qual serão comparados, então, os fatos
da atividade da pessoa e do seu resultado. Esse é o primeiro momento de controle.
Ele apresenta um valor em si mesmo e vai servir como uma pedra de toque no
segundo momento. Não desagradando a Aristóteles, esse controle não é, entretanto,
suficiente quando se avalia a competência de uma pessoa. O momento da avaliação
propriamente dito vai consistir no debate dos pontos de vista sobre o sentido a dar
a essa relação novamente estabelecida entre trabalho prescrito e trabalho real –
relação que dizemos consistir a priori em uma ‘superposição’ entre o objetivo e o
desenvolvimento/resultado. Essa segunda etapa é necessária, precisamente porque
não seria nem desejável nem satisfatório que essa relação se revele, efetivamente,
apenas como uma adequação. Com efeito, da mesma forma que o avaliador vai
procurar entender como o prescrito “fez norma” para a pessoa avaliada, prevendo
seus motivos e suas motivações, da mesma forma ele será conduzido (para fazer
isso) a apresentar seus referenciais de competência, reescrevendo-os na perspectiva
do seu sentido – ou seja, de seus motivos e motivações. Uma grande parte dessa
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 115

parcela de avaliação (de debate) do julgamento de competência vai consistir, de


fato, em estudar como os motivos e motivações de um penetraram nos do outro.
Especificamente, vai se tratar de relatar o afastamento ou a obediência literal da
pessoa com relação à norma antecedente, à maneira como ela compôs seus pró-
prios motivos e motivações com aqueles que a norma incorporava. Na linguagem
a que seremos levados a apresentar no terceiro capítulo – a comprovação dos dois
triângulos “ofício, emprego, trabalho” e “tarefa, serviço, esforço “ – nós diríamos
que, na avaliação propriamente dita, o julgamento de competência estuda como
a tarefa foi reinvestida no serviço – senão que a norma antecedente (definindo
uma tarefa genérica) foi alterada em seu próprio sentido (no sentido da direção
da exigência que ela serve), de acordo com as solicitações da situação singular: e,
inicialmente, do significado desse emprego para com os outros, tanto os clientes
como os colegas, na realidade humana considerada.

Para resumir, diríamos que Aristóteles faz consistir a competência na integração a


mais completa da racionalidade da forma de ação no ator. Dewey a faz consistir, ao
contrário, na reinvenção total – aqui e agora – da forma do projeto, na fusão mútua dos
fins e dos meios na dinâmica da existência da pessoa. Finalmente, Bourdieu negocia
um estranho compromisso entre essas duas posições simétricas: a competência consiste
em ter êxito em fazer passar os seus próprios interesses para a racionalidade prática
(a visão de mundo legítimo), pela qual é preciso doravante julgar as competências.

Quanto a nós, acreditamos que a avaliação da competência expressa um juízo


normativo sobre a maneira como o ator interpretou o que era essencial na norma
antecedente (o referencial de competência), para compreender, o mais fielmente
possível, esse espírito em função de um outro essencial – o da situação. Essa
ligação de dois essenciais (o da tarefa e o do serviço) é feita através do ponto
de vista do ator – no sentido em que esse relacionamento exige uma grade de
hierarquização para fatiar os conflitos de prioridades, que ele vai encontrar nos
equilíbrios internos do seu corpo-si. Finalmente, o julgamento de competência
avalia como a realização do prescrito, através das exigências da situação, manteve-
-se fiel ao espírito da primeira, levando em consideração o sentido das segundas.
116 Competência e atividade de trabalho

Então, há debate porque, em um julgamento de competência, a letra da norma


antecedente está sempre relacionada ao espírito em que ela foi elaborada. Ora,
essa significação, elaborada em desaderência, não pode não ser objeto de um
contrassenso, se a pessoa se contenta em aplicá-la in situ ainda que isso aconteça.
De fato, se bem que ele tenha sido decidido em desaderência, o sentido da norma
antecedente deve ser tratado em aderência, quer dizer confrontado com os desafios
da situação. Essa relação (onde um sentido julga o outro e reciprocamente) é com-
plexa: é a “dramática do uso de si” (Schwartz, 2000:293) no debate de normas,
entre as normas antecedentes e as normas constitutivas da situação presente. Ela
pode ser, portanto, fatiada em um grande número de maneiras diferentes (que
devem ser avaliadas de forma multidimensional) e pode dar origem não só a muitas
formas de insuficiência (não respeito às obrigações, desleixo com as expectativas
do cliente, hesitação prolongada e, finalmente, falsos compromissos, etc.), como
também a numerosas soluções engenhosas e elegantes.

É que o julgamento de competência – para ser normativo – é, ao mesmo tempo,


qualitativo e aberto. Sempre acontece que o debate de normas é fatiado (já o dis-
semos) de forma em parte consciente e em parte inconsciente – mas, em ambos
os casos, em referência a ordens de prioridades que constituem o ponto de vista
axiológico do corpo-si ele mesmo. É nesse sentido que estamos trabalhando com
tudo o que somos. Como todos os nossos atos, nossas atividades de trabalho se
assemelham a nós, porque a maneira como nós resolvemos as restrições duplas
reflete a maneira em que a “tabela de valores” (Canguilhem, 2005:117) própria
ao nosso corpo se tornou um compromisso com eles.

Eis, pois, porque o julgamento de competência ganha em objetividade (em im-


parcialidade) em pertinência, quando ele recontextualiza a adequação entre atos,
resultados e referenciais, na complexidade dos motivos e das motivações, tanto da
norma quanto da pessoa. Essa objetividade pretende ser tão justa quanto possível.
Como um ser de atividade, cada um tem as suas razões, sem ter necessariamente
razão. Ora, nem a conceitualização de Bourdieu nem a de Dewey permitem fazer
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 117

esta distinção crucial: para o primeiro só existe a lei do mais forte; para o segundo,
existe apenas a autonomia, no sentido o mais solipsista. Se bem que a cada um falta
a universalidade de um critério para decidir razoavelmente (aqui: “ter razão”). Por
sua vez, Aristóteles e Taylor pecam pelo excesso oposto. Eles consideram apenas
uma universalidade unilateral do critério puramente racional: razão teórica, filosó-
fica para Aristóteles (conhecimento das essências); razão calculadora, gestionária
para Taylor. Ora, como muito bem assinalou Philippe Meirieu (1991:76), as teorias
atuais de comunicação – pós-kantianas ou aquela desenvolvida por Habermas, por
exemplo – mostram que é completamente possível prever a universalidade de um
critério de juízo de valor, não mais como condição a priori que deveria preceder
o debate, mas como um horizonte, que faria consenso entre os interlocutores que
aceitam o debate. É essa consensualidade do acordo (mesmo tácito, pelo simples
fato de aceitar discutir) servindo de base para discussão, que pode fazer o papel
de critério universal formal, de pedra de toque para separar o ilegítimo (o que
dificulta a discussão) do legítimo. Sem necessariamente retomar, por nossa conta,
a concepção de comunicação de Habermas, é o caminho que ela abre e a direção
que ela mostra que reforçam a ideia de que a reunião dos dois tempos de avalia-
ção (o controle, em seguida, o debate) permite construir um juízo normativo e
axiológico justo – quer dizer nem arbitrário (confronto de opiniões sem o terceiro
neutro da norma antecedente para separá-los), nem redutor (reduzir a avaliação a
um juízo de fato objetivo – por exemplo, a medida quantitativa da produtividade).

4. Formar

4.1. Cultivar as disposições adquiridas, e os hábitos é atualizar as ca-


pacidades (Aristóteles)

A distinção entre o inato e o adquirido passou à língua corrente há muito


tempo. A diferença entre os dois é clara. Há mesmo uma separação nítida,
um dualismo – embora algumas formas de falar ainda cultivem a ambigui-
dade: o dom, o gênio (do latim ingenium: as qualidades inatas), etc. A priori,
118 Competência e atividade de trabalho

quando ela utiliza o conceito de competência, parece-nos, então, evidente


que a formação, e especialmente a formação profissional, diz apenas res-
peito ao adquirido, sem consideração a respeito do inato. No entanto, isso
não é tão simples nas práticas, precisamente por causa da teoria da ação,
subjacente à obra em nossos usos correntes do conceito de competência.
Essa teoria da ação, que desliza do inato ao mais profundo do adquirido,
nós a herdamos novamente de Aristóteles.

A teoria aristotélica da ação é, na verdade, fundamentalmente caracterizada


– sobre o plano da formação dos saber-fazer e saber-ser; hoje, diríamos das
competências – do par conceitual “capacidade inata/disposição adquirida”.
Também para nós, a distinção está a priori clara em Aristóteles. Basta considerar
os exemplos que o autor apresenta. Um sentido como a visão é uma capacidade
porque é inata, natural, própria à espécie à qual pertence o sujeito. Uma virtude,
como a coragem, é uma disposição porque é adquirida, é um hábito (hexis), que
acabou por se tornar para nós uma segunda natureza. Capacidade e disposição
funcionam, portanto, numa ordem cronológica inversa. Para ver alguma coisa,
é preciso possuir a visão (e isso está inscrito na natureza, a essência da espécie),
ali onde, para possuir uma virtude como a coragem, é preciso já ter realizado
atos de coragem. É o nosso famoso: é forjando que nos tornamos ferreiros. A
competência não é, pois, uma capacidade, mas, sim, uma disposição, porque a
desenvolvemos ao longo do tempo, pela força do agir (de errar e acertar). Em
suma: adquirindo experiência. Mesmo se são as competências morais e políticas
que o interessam (a famosa prudência, na praxis), Aristóteles faz compreender
como ele modeliza as disposições referindo-se às profissões artísticas: não se
nasce citarista, torna-se citarista ao tocar cítara.

Até aqui, a distinção é clara. Mas, na prática, a ideia ainda assim fere o senso
comum: como se pode forjar sem já ser ferreiro? Como é que vamos começar a
forjar antes de ser (pelo menos um pouco) ferreiro? Muito sensível a esse para-
doxo, Aristóteles vai considerar o seguinte raciocínio para recolocar, de alguma
forma, o modelo de aquisição de competências:
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 119

“Em geral, tudo o que tem uma dada natureza não saberia se acostumar a se
comportar de outra forma. Assim, então, não é nem pela natureza nem contra-
riamente à natureza que nascem em nós as virtudes, mas a natureza nos deu a
capacidade de recebê-las, e essa capacidade é levada à maturidade pelo hábito.
Com efeito, tudo o que ocorre em nós por natureza, nós o recebemos, de início,
em estado de potência, e é mais tarde que nós o fazemos passar ao ato – como é
evidente no caso de faculdades sensíveis (porque não é depois de uma infinidade
de atos de visão ou de audição que adquirimos os sentidos correspondentes,
mas é o oposto: já tínhamos os sentidos antes de usá-los, e não é depois de ter
usado os sentidos que os tivemos). Mas para as virtudes, ao contrário, possuí-
-las supõe um exercício anterior, como é também o caso para as outras artes.
Efetivamente, as coisas que são necessárias ter aprendido para fazê-las é fazendo
que as aprendemos. Por exemplo, é construindo que nos tornamos construtores,
e tocando a cítara que nos tornamos citaristas. Da mesma maneira, é praticando
ações justas que nos tornamos justos, é praticando as ações moderadas que nos
tornamos moderados, e por ações corajosas nos tornamos corajosos. (...) Na
verdade, se não fosse assim, não haveria necessidade do mestre, mas seríamos
sempre, de nascença, bons ou maus em nossa arte.”

Nessa passagem, Aristóteles reafirma a distinção entre uma capacidade inata


como a audição e uma aptidão adquirida como conhecer a arte da construção.
Mas, ao mesmo tempo e sem nada dizer, ele utiliza um segundo sentido do termo
capacidade. Com efeito, para evitar a redução ao infinito do tipo: para forjar é
preciso ser ferreiro, ou é somente forjando que se começa a ser ferreiro, Aristóteles
precisa: nós só podemos desenvolver tais ou tais disposições somente se caso “a
natureza nos tenha dado a capacidade de recebê-las”. Em relação ao inato, as
capacidades reagrupam as ações que somos imediatamente capazes de fazer (como
para ver, basta abrir os olhos, se eles estão funcionando). Ora, nas aquisições, há
também capacidades – mas dessa vez o termo designa a possibilidade de contrair
um hábito, o poder (no sentido do poder mágico) de desenvolver, um dia, uma
qualidade (ou, até mesmo, seu defeito contrário).

Em Aristóteles, esse segundo sentido da capacidade é tão inato quanto o primeiro.


É a nossa natureza (nossa essência) que, desde sempre, define aquilo de que so-
mos capazes ou não. Em certos casos, isso é bastante evidente: Aristóteles pensa
que a capacidade de desenvolver a disposição para tocar cítara é possuir mãos
120 Competência e atividade de trabalho

que funcionam. Em outros, trata-se de muito menos: “E a natureza quer marcar,


nos corpos, a diferença entre homens livres e escravos: os corpos dos escravos
são robustos, aptos aos trabalhos indispensáveis; os dos outros são destros e
ineptos para tais tarefas, mas tal natureza é adaptada à vida política” (Aristó-
teles, 1993:102). Seria necessário acrescentar que o autor considerasse também
a situação inversa (homens livres tendo corpos de escravos e vice-versa), e isso
nos lembra que a capacidade, no sentido da predisposição, não é uma necessidade
mecânica, mas, sobretudo, uma opção numa gama predefinida.

A ideia aristotélica, que parece ter permanecido no nosso senso comum, é, então,
a seguinte: todo estado atual (de uma coisa ou de uma pessoa), que resulta de uma
transformação, de uma mudança, de uma modificação, “não pode já ter estado lá,
desde sempre”, virtualmente, de uma forma latente – porque nada pode surgir do
nada. Na natureza íntima de um ser (sua essência eterna), Aristóteles inscreve, então,
de antemão, tudo que lhe será possível fazer e se tornar. O conjunto constitui a lista
de suas propriedades em potencial. O desenvolvimento das disposições adquiridas
será, portanto, a atualização do que já está lá, em germe – quer dizer literalmente a
passagem da potência (potencial) ao ato (atual). Claro, hoje não se diz mais: é um
criminoso em potencial! E, contudo, ainda se diz, às vezes: é Mozart que assassi-
namos! Lá, onde Aristóteles via uma forma biológica, vemos, frequentemente, uma
condição social. É um pouco como se a trajetória de uma pessoa consistisse para ela
em seguir uma ou outra opção predefinida. Por que se utiliza, ainda tantas vezes,
o léxico do virtual (potencial, aptidão, recursos, etc.), quando se diz, por exemplo,
de um estudante que pode se dar um pouco mal que ele tem “as capacidades”?

De fato, parece que, em geral, sentimos o mesmo desconforto que Aristóteles


diante da falsa alternativa entre (por exemplo): seja ter a arquitetura infusa, seja
reinventá-la num golpe de inspiração. Mas, como ele, mais do que dar um passo
atrás, recusando a formulação própria desse falso dilema, saímos do impasse por
um misto de duas proposições. A disposição desenvolve uma capacidade que,
nesse intervalo de tempo, se torna uma simples opção. Mais uma vez, o interesse
do debate com essa concepção introduzida por Dewey é que ele se dá, como
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 121

aposta modelizar (e praticar) a formação sem recorrer ao registro do virtual, ou


seja, sem pressupor, em nenhum momento, que o que precisa ser desenvolvido já
estaria ali, sob uma forma latente. Mas, novamente também, por falta do conceito
de norma, essa visão pragmatista vai pecar pelo excesso inverso, se bem que ela
não vai poder senão esclarecer os desafios e a direção da próxima autossuperação
(aquela do reducionismo estruturalista).

4.2. É o crescimento do ator em sua interação com o meio que forma


todo seu devir (Dewey)

O desafio que Dewey se coloca é claro. Trata-se de modelizar e de favorecer a


aprendizagem sem utilizar o léxico do virtual, porque, para um pragmatista, só
existe o que já é efetivo, atual. A propósito da implementação ou enquadramento
da ação – portanto da inteligência (o pensamento) mobilizada e desenvolvida pela
interação com o real –, já havíamos evocado a dimensão formadora que Dewey
reconhece na ação. Em sua perspectiva, de fato, a modificação mútua dos dois polos
da interação (ator e ambiente) é constitutiva da regulação permanente da ação por
ela mesma. Agir de certa maneira, durante um certo tempo, vai mudar minha relação
com meu ambiente. E isso muda a maneira como o percebo – e como me apresento
a ele. É, nesse sentido, que Dewey levanta a metáfora biológica do crescimento,
para opô-la (como uma alternativa de fundo) ao modelo aristotélico da atualização:

“Há uma concepção de educação que pretende se fundar na ideia de desenvolvi-


mento. Mas ela toma com uma mão o que ela dá com a outra. O desenvolvimento
é nela concebido não como um crescimento contínuo, mas como a atualização das
potências latentes em uma direção determinada. O objetivo a alcançar é concebido
como alguma coisa de completo e de perfeito. Considerada em qualquer etapa,
antes que se alcance o objetivo, a vida é apenas um processo de atualização que
nela se estende. (…) A concepção, segundo a qual o crescimento e o progresso
não são senão etapas em direção a um objetivo fixo último, revela uma fraqueza
de espírito em sua passagem de uma compreensão estática a uma compreensão
dinâmica da vida. (…) Já que o crescimento é apenas [de acordo com essa concep-
ção] um movimento em direção a um ser acabado,, o ideal último é imóvel. Esse é
o reino de um futuro abstrato e indefinido, com tudo o que isso implica, quer dizer,
a depreciação das capacidades e das ocasiões presentes.” (Dewey, 1983: 79-80).
122 Competência e atividade de trabalho

Essa alternativa conserva a noção aristotélica de aquisição (que ainda guardamos):


as disposições adquiridas são hábitos de pensar, de agir, que trazemos quando de
nossas interações passadas. Mas Dewey reinterpreta essa ideia para libertá-la de
toda a mitologia das capacidades:

“[No modelo de crescimento] a maleabilidade – ou faculdade de aprender pela


experiência – permite a aquisição dos hábitos. Os hábitos permitem dominar o
ambiente, utilizá-lo para fins humanos. Os hábitos tomam a forma seja da habi-
tuação ou equilíbrio geral e constante das atividades orgânicas com o ambiente,
seja de capacidades efetivas de readaptação da atividade a novas condições. A
primeira fornece o segundo plano do crescimento, a segunda constitui o cresci-
mento. Os hábitos ativos fazem apelo ao pensamento, à invenção e à iniciativa
na aplicação das capacidades a novos fins. Eles se apõem à rotina que detém o
crescimento” (ibid., 76).

Dewey utiliza, ele próprio, o termo capacidade. Simplesmente o autor está atento em
não mais considerar as capacidades tendo em vista o modelo (implícito) da acepção
técnica, trivial dessa palavra: o limite do volume que pode ser estocado em um re-
cipiente. Abandonar a ideia mesma de virtualidade lhe permite, portanto, não mais
pensar as disposições como as diferentes opções à disposição da pessoa, opções
estocadas no espaço delimitado por suas capacidades. E o argumento de Dewey
é significativo. É em razão de o ator estar em devir que ele é transformado em suas
ações – ações que são, para ele, seu esforço para existir no ambiente real. Ou em
razão de ele estar em devir, ninguém sabe do que é capaz um ser de atividade – nem
ele mesmo. Vemos, a rigor, de onde ele parte e qual direção toma sua trajetória, mas
isso dificilmente se abre a uma predição. A ideia de maleabilidade expressa essa
tentativa de pensar de outra forma nossos hábitos. É como uma dobra que tomaria
a forma, de início indiferenciada, de nossa atividade global e espontânea.

“Habituar-se” seria, portanto, a reinterpretação pragmatista da disposição, uma


reinterpretação que a torna independente daquela da capacidade (virtual). A ideia
parece-nos interessante, porque ela consiste, no fundo, em reinscrever a pessoa,
de uma parte, em seu devir – e, de outra parte, em sua trajetória (lá onde ela está
atualmente). Reinscrever alguém em seu devir é reconhecer que nada é definitivo.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 123

Como bem disse Dewey:

“O ponto de partida de todo processo de pensamento é alguma coisa que se está


fazendo, qualquer coisa que, no seu estado normal, é incompleta ou inacabada.
Seu sentido – sua significação – reside no sentido próprio do que ele vai se tornar,
portanto, na maneira como ele vai evoluir” (ibid., 181).).

Esse primeiro tempo lembra assim ao formador que é inteiramente discutível


predizer o que uma pessoa não poderá jamais fazer. Pelo contrário, reinscrever
a pessoa na sua trajetória, portanto, na temporalidade desse devir (seu ritmo,
sua duração, ou seja, o tempo que isso toma, de tornar-se), isso permite pôr em
palavras as incapacidades, as impossibilidades em agir. De fato, o tempo não
é somente a abertura do devir, ele é também a duração incompressível (que se
percebe na espera ou no tédio, por exemplo). Ora, esse é o sentido do conceito de
duração em Bergson – ninguém pode pretender ter acesso a um estado de coisa,
sem passar pela sequência contínua de todas as mudanças que fazem amadurecer
esse estado. Imaginar a ação como projeto, isso fixa um estado ideal e aí articula
as etapas lógicas. Mas tudo isso se concebe como abstração feita do tempo – ora,
as noções de possível, impossível, capaz, incapaz são eminentemente relativas
à duração da ação.

Reconsiderando o tempo real, Dewey consegue livrar a competência (no senti-


do de disposição adquirida) do pressuposto da capacidade virtual. O dilema de
Aristóteles estava, na realidade, malcolocado. Dizer que é impossível que uma
competência nasça do nada é raciocinar exclusivamente sobre o plano das relações
lógicas (de onde, aliás, a solução, que consiste em supor que certas coisas existem
de acordo com a modalidade lógica do possível). Ora, desde que com Dewey se faz
o esforço de estudar a situação concreta, percebe-se que o tempo tem aí um papel
essencial, tanto construtivo (a constituição de uma experiência) quanto constran-
gedor (a urgência de um tempo inexorável e dos prazos que se aproximam). Mas,
se a ruptura que ela introduz é efetivamente decisiva, a alternativa de Dewey nos
parece ainda insuficiente. Ela abandona, de fato, certos aspectos do saber na ação
(saber-fazer, saber-ser), da qual a teoria aristotélica da disposição se esforçava
124 Competência e atividade de trabalho

em relatar. É bem atual, por exemplo, a possibilidade de definir os perfis, visados


por uma formação (que será sancionada em relação a esse objetivo); o papel dos
saberes formais (teóricos) na formação profissional; a relativa estabilidade dos
formulários dos postos de trabalho no tempo, etc.

Dewey parece ter visto bem que a atividade é uma imersão na situação (e no seu
ritmo), mas negligenciou o fato de que as situações são sempre regradas por normas
antecedentes anônimas – que, portanto, têm necessidade, para desempenhar seu
papel estruturante, de aparecer pelo menos no primeiro tempo, como precedendo
absolutamente a situação (vale dizer, assumir uma temporalidade incomensurável).

4.3. É a prática do jogo (aculturação) que nos faz incorporar, interiorizar


as regras (Bourdieu)

Até certo ponto, o conceito de norma em Bourdieu se abre a um conceito de


competência mais fecundo que o de Dewey, por pensar, especialmente, a dimen-
são da formação dos atos. De fato, contrariamente ao pragmatista, o sociólogo
modeliza, em detalhe, a maneira como se faz a adaptação do comportamento à
variabilidade do meio. Do ponto de vista da potência e da utilidade teóricas, seus
conceitos de práticas e estratégias têm, assim, a vantagem de mostrar como uma
ação nunca é espontânea, no sentido de que ela não obedeceria a nenhuma regra,
mas que, em compensação, há sempre uma margem de adaptabilidade que acom-
panha a regra (de maneira tal que ela não esteja jamais fora do contexto). Ora,
essa precisão – que releva, portanto, da competência no plano da implementação
(o enquadramento, na nossa tipologia) – lhe permite, ao mesmo tempo, propor
uma hipótese sobre a maneira como a experiência é formadora. Seu raciocínio
é o seguinte: se uma norma social funciona como um tema, susceptível de se di-
fratar em muitas variações, deve ser possível, então, inferir o tema uma vez que
temos percebido bastantes variações. E, uma vez que assim inferimos o tema, nós
mesmos podemos, nós mesmos, apresentá-lo em variações melhor adaptadas a
tal ou tal situação sem ter jamais por isso encontrado essas variações. É de fato a
Wittgenstein que Bourdieu toma emprestado esse modelo, porque Wittgenstein
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 125

é um pragmatista bem particular – um pragmatista de regra. Assim, Bourdieu,


de um lado, ultrapassa Lévi-Strauss por sua visão pragmatista e, de outro lado,
ultrapassa Dewey por seu conceito de norma.

Pelo contrário, naquilo que Wittgenstein considerava que a norma é uso (no sentido
linguístico, certamente, mas também no sentido da tradição), Bourdieu retoma
Aristóteles e sua teoria das disposições. Na verdade, a célebre definição “o hábito
é uma segunda natureza” é uma paráfrase de Aristóteles. Esse último, que falava
do hábito, descrevia, com essa fórmula, a maneira como as disposições adquiridas,
uma vez plenamente atualizadas, se implementam de forma tão imediata quanto
as capacidades inatas. Esse cruzamento de modelos permite a Bourdieu insistir
em relação ao fato de que essas adaptações (essas variações sobre um tema) são
inconscientes – as famosas estratégias sempre mais ou menos automáticas do
sentido prático. Em Wittgenstein, as regras do jogo da linguagem (2004:73) se
formam no curso da atividade intersubjetiva, para permitir a comunicação – nesse
sentido, elas não são nem conscientes nem inconscientes, exatamente como as
operações que efetuamos para levantar o braço para acenar para alguém. Com
Bourdieu, elas tomam um sentido estruturalista. A metáfora lúdica, salvo peque-
nas diferenças, é utilizada da mesma maneira pelos dois autores: ela serve para
modelizar a aprendizagem da norma, como uma incorporação progressiva pela
força em participar.

“O bom jogador, que é, de algum modo, o jogo feito homem, faz a todo instante
o que deve ser feito, o que o jogo demanda e exige. Isso supõe uma invenção
permanente, indispensável para se adaptar às situações indefinidamente varia-
das, nunca perfeitamente idênticas. O que não garante a obediência mecânica
à regra explícita, codificada (quando ela existe). (...) O sentido do jogo (...)
falha especialmente nas situações trágicas, onde se apela aos sábios, que, em
Cabília, em geral também são poetas e sabem tomar liberdade com a regra
oficial, que permite salvar o essencial daquilo que a regra visava garantir. Mas
essa liberdade de invenção, de improvisação, que permite produzir a infinitude
de lances possibilitados pelo jogo (como no xadrez), tem os mesmos limites do
jogo. As estratégias adaptadas quando se trata de jogar o jogo do casamento
cabila (...) não conviriam no caso de se jogar o jogo do casamento bearnês”
(Bourdieu, 1987:79).
126 Competência e atividade de trabalho

“Nada é simultaneamente mais livre e mais constrangedor, ao mesmo tempo,


do que a ação do bom jogador. Ele fica naturalmente no lugar em que a bola
vai cair, como se a bola o comandasse, mas, desse modo, ele comanda a bola.
O habitus como socialmente inscrito no corpo, no indivíduo biológico, permite
produzir a infinidade de atos de jogo que estão inscritos no jogo em estado de
possibilidades e de exigências objetivas; os constrangimentos e as exigências do
jogo, ainda que não estejam reunidos num código de regras, impõem-se àqueles
– e somente àqueles – que, por terem o sentido do jogo, estão preparados para
percebê-las e realizá-las”. (Ibid., 80) (Ibid., 82).

O deslizamento permanente que Bourdieu opera aqui entre o ato e ator (“o
jogo feito homem”, os jogos de espelho entre o jogador e a bola) é representa-
tivo, simultaneamente, do que o conceito de norma permite doravante pensar
– nossos atos nos constituem pelo menos tanto quanto nós constituímos nossos
atos – e daquilo que faz a especificidade do conceito de competência: é uma
pessoa (e não seu ato) que é competente, mesmo que seja apenas após seus
atos que se vai poder declará-la como tal.

Qual é, então, o aporte específico de Bourdieu quanto ao conceito de competên-


cia em seu componente de formação? É, parece-nos, o modelo do esquema, que
Bourdieu retoma de Kant para dar-lhe uma interpretação em termos de normas
sociais (já que as normas funcionam também, e talvez em primeiro lugar, como
referências cognitivas). Em Kant (2001:224-230), o esquema é a interface neces-
sária entre o conceito (universal) e a percepção sensível (singular). A necessidade
do esquema vem do fato de que seu papel é estabelecer a mediação entre o tipo
(conceitual) e o caso (empírico), de maneira que se reconheça um sob o outro,
que se identifique, então, a coisa que temos diante de nós. Para Kant, o esquema
é uma regra de projeção dos conceitos (formais, abstratos) na imaginação, de
maneira a lhes fornecer uma imagem. Um esquema é, então, a regra de construção
de um exemplo – o esquema do conceito de círculo é, assim, o movimento do
compasso. Como podemos ver, o essencial do conceito de esquema reside em sua
função bem particular: estar na interface, assegurar a mediação entre duas reali-
dades heterogêneas (o abstrato e o concreto, o tipo e o caso). Ora, o que Bourdieu
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 127

vai reter disso é um pouco diferente. Como mais tarde a didática profissional e
principalmente Gérard Vergnaud (2007:11), o sociólogo retém do conceito de
esquema sua labilidade, quer dizer sua capacidade de se modificar facilmente sem
se deformar, para fazer entrar, em sua forma bem-conservada, um conjunto bem
diverso de realidades. O esquema, nestes dois autores contemporâneos, torna-se
uma ferramenta cognitiva – tanto intelectual quanto gestual ou perceptiva – que
permite articular, sob um mesmo tipo (flexível, para não dizer um pouco frouxo),
uma variedade de casos parecidos. Assim transformado, o conceito de esquema se
parece com o conceito de ar de família de Wittgenstein (2004:64) (um conceito
que justamente esse autor propunha como alternativa ao que o conceito tinha de
demasiado rígido). O que captura um esquema não são as propriedades necessárias
e suficientes que formam tradicionalmente a definição de um conceito, mas é “o”
traço que, segundo as necessidades da situação presente, vai se revelar pertinente
(significativo) para fazer a diferença e categorizar tal caso sob tal ou tal tipo.

Isso permite, assim, a Bourdieu considerar que o saber-fazer, adquirido na ex-


periência (formadora) do mundo social, é um gerador diferencial de práticas. “O
habitus (...) permite produzir a infinidade de atos do jogo que aí estão inscritos
em estado de possibilidades” (Bourdieu, 1987:82). Essa é a fecundidade, sem
dúvida, de sua reinterpretação do conceito de norma, como feixe de variações,
do qual uma será finalmente retida, porque adaptada ao caso em presença. Essa
é a especificidade desse conceito de norma que permite a Bourdieu dizer, por-
tanto, simultaneamente que a interiorização das restrições em normas “permite
produzir a infinidade de lances possibilitados pelo jogo”, que o “sentido prático
(...) funciona deste lado da consciência e do discurso” e que ele gera “estraté-
gias mais ou menos automáticas” (idem). Assim, em um sentido, Bourdieu joga
com uma ambiguidade no uso do conceito de norma, uma ambiguidade que ele
denunciava em Lévi-Strauss. Lá, onde esse último fazia de uma representação
teórica (o modelo) o princípio realmente motor da realidade prática, Bourdieu faz
– ao inverso – de um princípio de determinação mecânica (a interiorização, que
permanece seu modelo) o fundamento exclusivo de um saber da experiência e de
128 Competência e atividade de trabalho

um saber-fazer (que é potência de existir no mundo social). O conceito de norma


em Bourdieu é, ao mesmo tempo, fecundo e insuficiente, pelo fato, acreditamos,
de o seu conceito de norma ser separado daquele de normatividade (receptivo).

4.4. É somente a constituição do ponto de vista sobre as normas que


pode tornar a experiência formadora: é preciso se apropriar delas (a
perspectiva ergológica)

O aporte e o limite de cada concepção podem ser vistos perfeitamente sob o


plano da formação. Aristóteles superou seu próprio intelectualismo (contido
em suas teorias da ação como projeto voluntário guiado a todo instante pela
representação discursiva), modelizando a formação dos hábitos. Dewey apostou
em dar conta da formação sem pressupor nada: nossa maleabilidade ativa é
transformada em sua interação com o mundo – ela adquire dobras, encorajada
pelo sucesso de seus atos. Enfim, Bourdieu viu a função do esquema de nossas
aprendizagens (hábitos, conceitos, maneiras de perceber, etc.). É esse conceito
de esquema que nos parece importante, porque ele ultrapassa o dualismo entre
tipo e caso. Certamente, o esquema faz a relação, a mediação entre a univer-
salidade de nossos conhecimentos em desaderência (as premissas maiores de
Aristóteles) e a singularidade de nossos saberes em aderência (a experiência
feita, o vivido em Dewey). Sem essa ligação que opera o esquema, nós nos
encontraríamos na situação absurda (um falso dilema) de dever escolher entre
uma formação pontual hiperespecializada – que só nos permitiria agir em um
domínio extremamente restrito – ou uma formação geral que iria cobrir todos
os aspectos da atividade humana, mas que não nos permitiria concretamente
agir em nenhum domínio. Ora, observa-se bem: formar a competência não é
nem uma nem outra. Nem a segunda, porque isso não consiste em aperfeiçoar
sua cultura nas humanidades, independentemente dos prazos do mundo do trabalho.
Nem a primeira: ao contrário da hiperespecialização, a competência é uma forma de
“cultura”, no sentido em que ela implementa um recuo, uma maturidade do olhar,
uma visão de conjunto dos problemas. Para constatarmos o quanto o primeiro aspecto
é insuficiente, retomamos o contraexemplo de Aristóteles:
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 129

“Há uma ciência do mestre e uma ciência do escravo, aquela do escravo sendo
precisamente a que se ensinava em Siracusa. Lá, de fato, por meio de salários,
os jovens escravos aprendiam o ciclo completo de seus ofícios. E era possível
aperfeiçoar o estudo de certas disciplinas, como a culinária e outros ofícios do
mesmo gênero. Pessoas diferentes têm, de fato, tarefas diferentes, algumas mais
apreciadas, outras mais indispensáveis, e, como diz o ditado: “há escravo abaixo
do escravo e mestre abaixo do mestre”. Tudo isso é, então, ciência de escravo;
quanto àquela do mestre é a do emprego dos escravos” (Aristóteles, 1993:108-109).

Não voltaremos à coerência interna do pensamento de Aristóteles, que torna


totalmente necessárias tais conclusões no interior de seu sistema. O que nos
parece mais interessante é nós nos colocarmos a seguinte questão: como nossas
formações profissionalizantes (ainda mais especializadas do que o que está aqui
descrito) conseguem não reduzir o aprendiz a “uma ferramenta dotada de vida”?
Como os usos atuais da competência permitem, nos dias atuais, não raciocinar
como Aristóteles? Parece-nos que é graças ao fato de que nossas formações ra-
ciocinam bastante sobre os esquemas (as relações a fazer entre teoria e prática, se
quisermos) e que isso os leva a insistir mais sobre os “saber-fazer” transversais
do que sobre as tarefas especializadas.

Sua teoria da norma como esquema permite a Bourdieu responder a esta dupla
questão (até certo ponto). É preciso “universalizar as condições de acesso ao
universal” (Bourdieu, 2001:40), quer dizer aliar a profissionalização e a cultura
geral, completar as formações práticas por meio de uma verdadeira difusão dos
saberes teóricos (primeiramente no sentido etimológico – de theôria, a contem-
plação) desinteressados. Contudo, Bourdieu permanece em um nível de dualismo:
se os primeiros vão servir aos agentes no trabalho, os segundos vão participar na
sua emancipação na ação política (a praxis). Parece-nos, com efeito, que há uma
clara separação em Bourdieu (como em Marx) entre a esfera do trabalho e aquela
do desabrochamento subjetivo. Quanto a nós, pensamos que o conceito de compe-
tência não pode se satisfazer com tal dualismo, porque sua diferença em relação
aos conceitos de qualificação ou de expertise mantém justamente isso que ele põe
em evidência: toda a cultura técnica e social (relacional) que vai distinguir sempre
130 Competência e atividade de trabalho

o trabalho humano de uma tarefa realizada por uma máquina. Se a formação se


esforça em ajudar o aprendiz a tornar-se mais competente que apenas eficaz ou
especializado, é que a cultura (os saberes teóricos das ciências fundamentais e
os saberes desinteressados das humanidades) vão ter um papel de primeiro plano
na transversalidade de seus saber-fazer. Mas, antes de apresentar nossa hipótese
a esse propósito, lembremos brevemente por que, segundo Bourdieu, a cultura
emancipa – lá onde os saberes técnicos não fazem senão servir.

Parece-nos que Bourdieu alterna entre duas respostas a essa questão. Primeiramen-
te, a razão é pragmática: se a cultura humanista parece universal e desinteressada,
é que ela detém, desde sempre, o monopólio da imposição da visão de mundo
legítimo. A cultura liberta porque ela arma os dominados contra essa violência
simbólica (a fim de que eles desarmem as suas armadilhas ou as coloquem a seu
favor). Mas, em segundo lugar, a razão é mais construtiva:

“A ciência que revela, que desmascara poderia exercer, por si só, um efeito
significativo. Mas claro, na condição de que seus efeitos sejam conhecidos por
aqueles que têm o maior interesse em os conhecer.” (Bourdieu, 1997:156).

Enquanto os saberes técnicos são somente úteis, os conhecimentos científicos (so-


bretudo as ciências humanas, sociologia, por exemplo) têm uma objetividade que
desilude e, portanto, emancipa os agentes sociais de sua servidão. No diálogo entre
ciência e sociedade, Bourdieu defende uma rigorosa simetria: é preciso, às vezes,
uma exigência de direito de entrada (no reconhecimento de cientificidade) e uma
exigência de dever de saída para que o conjunto da sociedade aproveite verdades
assim produzidas (Bourdieu, 1996:75-78). Nessa ótica, é preciso não apenas dar
uma formação especializada aos agentes – e para Bourdieu toda formação é uma
formatação (Bourdieu e Passeron, 1973:170-171) –, mas uma formação generalista
complementar deve permitir-lhes retornar a essa formação, a se “desformatar”
tanto quanto possível, para viver fora da esfera do trabalho.

Encontramos nisso aí – assumida pelo autor – a ambiguidade de sua teoria do


sentido prático, que sublinhamos no fim da seção precedente: bachelardiano mais
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 131

ortodoxo que Canguilhem, Bourdieu tem uma concepção dualista da relação entre
saber (da experiência) e conhecimento (científico). É a razão pela qual o senso
prático que Bourdieu utiliza para descrever a competência de um jogador de tênis,
um exemplo retomado por G. Le Boterf – não tem alcance cognitivo senão bastante
relativo e limitado: é simplesmente a latitude a difratar e adaptar automaticamente
nossos esquemas. O senso prático não consiste senão em aderir o mais intima-
mente possível aos reflexos (cognitivos – vieses, preconceitos e corporais) que
estruturam percepções e reações típicas de um microcampo social. Seus exemplos
de jogo de bola mostram bem isso: Bourdieu transporta para uma ação menor
(posicionar-se para receber um passe) o esquema de explicação estatística que ele
desenvolveu sobre as estratégias de percurso social (escolher o estabelecimento
escolar de seus filhos; ou seu cônjuge; ou sua localização administrativa, etc.).

Mas, contrariamente a essa visão das coisas, parece-nos que o conhecimento geral e
a aprendizagem teórica participam, de maneira central, da competência no trabalho.
Por quê? Aqui nós gostaríamos de aprofundar o que entendemos por “ter um ponto
de vista sobre a norma.” Acreditamos que a função de qualquer cultura geral é
diversificar os esquemas (de ação e de percepção) por sua mobilização artificial
em situações extraordinárias – ou seja, situações que ninguém vive no quotidiano.
Estudar em aula de francês a poesia do século XVII torna-se interessante porque
é para o aluno uma maneira de ver funcionar a riqueza expressiva da norma, em
um universo normativo que não é mais válido hoje. Aqui, o acesso ao universal
deve ser “universalizado”, então, não mais para entrar na luta simbólica, nem para
neutralizá-la. Mas é para para ajudar as pessoas a constituir para si um ponto de
vista, para que os agentes existam como atores no interior das relações de poder
que fazem o quotidiano das situações reais.

Bourdieu já tinha sublinhado o alargamento da amostra de variações possíveis


do esquema como um fator de competência: isso permite ao agente não só não
permanecer fechado em um único meio, mas até mesmo cultivar a sua posição nas
interfaces entre os meios. Mas considerar o ponto de vista sob a norma vai mudar
completamente o funcionamento do esquema. Vê-se bem isso com o exemplo do
132 Competência e atividade de trabalho

professor: na fronteira entre duas culturas, ele não se contenta, entretanto, em ser
anfíbio! O professor competente tem que, efetivamente, conseguir apresentar, com
sucesso, um novo sistema de normas (por exemplo, o formalismo matemático)
como válido para si mesmo, enquanto o apresenta nas coordenadas teóricas e
axiológicas da experiência dos estudantes (Bourdieu diria: de seus habitus). Para
conduzir bem esse exercício de mediação com interfaces, o professor deve ter
entendido suficientemente as normas dos dois universos e também ter se distan-
ciado suficientemente em relação a elas, para projetar umas na perspectiva das
outras, sem nunca trair o espírito próprio delas. À luz da definição da competência
que sugerimos como uma hipótese sobre a avaliação, poderia ser descrito nesses
termos o desafio do professor competente:

• ele deve reencontrar a norma antecedente (aqui, os conceitos matemáticos) no serviço


que ele presta concretamente, respondendo, então, às expectativas do público real,
caso contrário, os alunos não se sentem interessados pela norma apresentada a eles;

• mas, sem trair o espírito da norma, ou seja, mandando que os alunos façam a expe-
riência do valor intrínseco, realmente autônomo, de um conhecimento teórico (aqui,
a matemática) – ou da universalidade própria da cultura humanista.

Esse exemplo parece mostrar o que Bourdieu não viu: a diversificação do es-
quema supõe que se tenha desenvolvido um ponto de vista sobre essa norma. O
que acrescentamos é que a diversificação do esquema (a apropriação da norma)
passa em primeiro lugar e, antes de tudo, pela experiência de esquemas “inúteis”
do ponto de vista da eficácia prática. Por quê? Porque são essas referências desin-
teressadas que irão alargar o espectro de difração do esquema, acrescentando a
ele pontos de comparação não automaticamente mobilizáveis. As regras do soneto
são esquemas que jamais serão convocadas pelas situações quotidianas; por outro
lado, sua apropriação abre um leque de perspectivas de formas de se expressar,
efetivamente convocadas pelas situações da vida real. E é esse leque de perspec-
tivas que, precisamente, torna menos automáticos todos esses apelos das normas
pela situação vivida. A pessoa se dá conta de que não é jamais insignificante se
expressar de tal ou tal maneira, mesmo sendo em prosa. Ela percebe que as figuras
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 133

de estilo, que mobilizamos maquinalmente, significam tanto nas normas de cada


situação da verdadeira vida, quanto significavam nas normas artificiais percebidas
na escola. Desta vez, a fala quotidiana deixa seu aspecto neutro e indiferente: ela
se torna objeto de um jogo (e sabemos que o domínio de uma língua estrangeira
é medido pela espontaneidade com a qual se desvia dela, tomam-se liberdades
estilísticas com sua norma), tanto quanto a ferramenta de uma ação performativa
ou, então, a arma de uma luta simbólica. Em todos os casos, a instalação de uma
diversidade extrautilitária revelou o espaço de difração do esquema como o lugar
de um ponto de vista, e a difração/adaptação ela mesma como o resultado de uma
escolha que, talvez, tenha sido cumprida até o momento, apesar de si mesma (au-
tomaticamente), mas que começa a “fazer norma” para nós a partir do momento
em que ele perde sua aparente indiferença.

Uma vez que se considera a atividade como um encadeamento de debates de


normas, o ato se revela como esforço de apropriação de uma norma antecedente,
graças a um ponto de vista que tenta constituir sobre ela. Longe de ser dado tal
qual inicialmente, esse ponto de vista se constitui por meio de tentativas sucessi-
vas de apropriação que são nossos atos. Essa tentativa continuada, construtiva e
exponencial é o que tínhamos chamado, seguindo Yves Schwartz, a experiência
das normas (literalmente: o vivido e a prática de fazer norma, para nós às normas
antecedentes), expressão que foi o título de nossa tese de doutorado. No entanto,
constituir para si um ponto de vista é, primeiramente, ousar contestar a norma,
a fim de, em seguida, avaliar a sua aceitabilidade. Avaliar a aceitabilidade de
uma norma significa, precisamente, colocar uma norma na perspectiva de outra e
vice-versa. Portanto, como mostra Yves Schwartz, a experiência não é formadora
sozinha, por ela mesma. Para se tornar realmente formadora, a experiência da pes-
soa deve ser retrabalhada por ela (Schwartz, 2004:11-23). Em quê? Precisamente
nisso que a pessoa deve construir para si um ponto de vista crítico e refletido, a
partir da evidência do ponto de vista que ela já tinha (mesmo que ele fosse então
infinitesimal), quando ela agiu em uma determinada situação. Retrabalhar sua
experiência para torná-la retrospectivamente formadora é reconhecer-se normativo,
134 Competência e atividade de trabalho

criticar e defender a normatividade da qual se fez prova demonstrada concreta-


mente, sem ainda saber disso. Retrabalhar quer dizer: de uma parte, fazer o esforço
de explicitar a relação entre a sua interação com o meio e os modelos conceituais
(teóricos e organizacionais) que a pessoa aí mobilizou; e, de outra parte, utilizar
essa primeira análise em termos de prescrito para fazer o esforço de explicitar o
devir que ela tem dado a essas normas (ao se apropriar delas para adaptá-las à
situação). E, a partir disso, justificar suas interpretações da norma, situando seu
ponto de vista no interior do debate dos pontos de vista sobre a norma. É, pois,
nessa perspectiva, que apresentamos nossas hipóteses quanto ao conteúdo do
conceito de competência no plano da formação.

Parece-nos que esse modelo esclarece um aspecto tradicionalmente bastante


complexo da competência: em que consiste a transversalidade dos saber-fazer?
De fato, nas concepções da ação aristotélica, deweyana e bourdieusiana atuais,
parece-nos muito difícil modelizar a que título, sob qual forma e por qual viés, uma
aprendizagem fundamental (como a história ou mesmo a literatura) vai intervir e
será mobilizada nas diferentes atividades especializadas da pessoa. Considera-se,
frequentemente, que tudo o que não é diretamente útil nas atividades quotidianas
desenvolve as faculdades (cognitivas, afetivas, etc.), que serão mobilizadas a título
de uma disposição geral, subentendendo-se uma tarefa especializada. Agora, ter
estudado, na escola, A Princesa de Clèves ou a guerra da Argélia, isso obviamente
não nos dá evidentemente a solução para os problemas encontrados em nossas
diferentes atividades de trabalho. Mas não podemos, também, dizer que isso par-
ticiparia somente da educação cívica de maneira geral (porque, afinal, a separação
entre práxis e poièsis seria reconduzida). Na realidade, parece-nos que esse tipo de
formação forma o julgamento (discernimento), de maneira tal que, nas situações
de trabalho, o relacionamento entre as normas do prescrito e as normas da situação
seja estabelecido em um espaço de ponto de vista que esteja em maior destaque,
multidimensional. Porque fazer de forma tal que as normas próprias do estudante
“façam norma” para ele (lutar contra os preconceitos), é ajudá-lo a construir para
si um ponto de vista através do debate com os outros, um ponto de vista que lhe
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 135

vai permitir se posicionar em relação à norma antecedente. Em relação ao plano da


formação, a competência é, portanto, todo o contrário das estratégias sempre mais
ou menos automáticas do senso prático. A competência corresponde ao esforço para
mediatizar as normas antecedentes com a ajuda de um ponto de vista que só existe
depois de ultrapassada sua unilateralidade primeira. Se considerarmos a atividade
como um encadeamento de debates de normas, a competência vai consistir em se
arrancar desse automatismo primeiro – fazendo fazer norma à norma antecedente
na situação em que estamos implicados..

5. Recrutar, mobilizar

5.1. A motivação é a antecipação do benefício recebido pelo resultado


visado (Aristóteles)

Todas as concepções de ação não nos parecem ter o mesmo valor, quando se trata de
considerar o interesse que um ator assume ao realizar sua ação. Ora, essa dimensão
é essencial para poder considerar o que significa o êxito multidimensional de nossas
ações – para além da simples eficácia. Se o julgamento de competência inclui muito
uma apreciação do envolvimento das pessoas nas suas atividades, como se concebe
– na base – o investimento de si na ação? Por que o ator se interessa pelo que ele
faz no trabalho, por exemplo? A visão a mais clássica, que está por trás do nosso
senso comum, mas que foi bem representada, sobretudo por Taylor, corresponde,
outra vez, perfeitamente à teoria aristotélica da motivação. Com efeito, Aristóteles
se pergunta o que exatamente representa um papel, motor, iniciador na ação:

“Quanto à vontade, à impulsão e ao apetite, eles pertencem todos os três ao


desejo, ao passo que a escolha refletida é do domínio, ao mesmo tempo, da razão
e do desejo. Assim, o primeiro motor [da ação] é o objeto visado pelo desejo e
concebido pela razão. (...) Eis por que o motor que preenche essas condições é
um dos bens, mesmo que não seja todo o bem. É, na medida em que uma coisa
age em vista desse bem – e em que ela é o fim das coisas que existem em função
de outra coisa – que ela tem um papel-motor. Mas é necessário admitir que o
bem aparente mantém o lugar do verdadeiro bem, em particular o agradável:
porque o agradável é um bem aparente.” (Aristóteles, 1973: 59-60).
136 Competência e atividade de trabalho

Como a ação é aqui concebida, antes de tudo, como “um projeto”, que tem um
papel de motor, esse é o objetivo em direção ao qual se dirigiu todo o esforço
da pessoa. E, mais precisamente (reencontra-se ali o modelo da forma) esse é o
resultado virtual, visado como objetivo, que suscita – graças às suas qualidades
“desejáveis” intrínsecas – o desejo que coloca em movimento o ator. É de se supor
que é na imaginação do ator que tal apresentação atrativa tem lugar. É interessante
chamar atenção em relação a isso porque, quando, na Idade Média, o aristotelismo
escolástico desenvolve o esquema clássico de ação, o modelo que ele propõe é
o seguinte: toda ação exterior (chamada ato transitivo, no jargão de Tomás de
Aquino especialmente) é a consequência de uma ação interior (ato imanente, que
é a decisão da vontade), se bem que o movimento físico do corpo não comece
senão quando ele já tenha virtualmente terminado em pensamento.

Os detalhes do fim da citação precedente sugerem que a reflexão sobre o interes-


se na ação abre-se, logo em seguida, a uma perspectiva moral normativa. Hoje
ainda, o termo interesse continua ambíguo – no sentido de que ele pode tomar
uma conotação favorável, aperfeiçoada (ver aí um interesse) se bem que perjo-
rativa (ele procura seu interesse). No entanto, nos dois casos, Aristóteles usa o
mesmo modelo explicativo. O que sugere esse modelo, aliás, é que a distinção
entre bem verdadeiro e bem aparente (serão chamados na Idade Média de falsos
bens: riqueza, poder, glória ilusória, prazer) é obrigada a utilizar a mesma palavra
“bem”, ao passo que isso obscurece o discurso. Não se vê, com efeito, qual pode-
ria ser o ponto comum entre bens verdadeiros e falsos. A descrição do processo
de motivação aparece distinguir dois casos: quando é o intelecto que sugere em
que o objeto é ideal, a imaginação será racional e o desejo será voluntário. Ora,
a passagem citada deixa pensar que tal não é o caso, quando são os sentidos que
sugerem em que o objeto é ideal, agradável, lisonjeiro.

De que maneira a teoria da ação como projeto dá conta do fato de que nossos
atos concretos não são sempre tais como tinham sido projetados? Aristóteles
estabelece uma tipologia dos atos, que distingue: os atos voluntários (o projeto
realizado), os atos não voluntários (o reflexo) e os atos involuntários (nossos
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 137

fracassos). Como a ação é um projeto, a deliberação (que é o raciocínio pelo


qual o ator deduz os meios do fim que ele se propõe) parece, então, não dizer
respeito senão aos atos voluntários (Age-se a partir de um princípio). Entretan-
to, os atos voluntários podem degenerar em atos involuntários. Mencionamos
a análise da intemperança – o fato de que nós abandonamos nosso projeto em
curso e, mais exatamente, o fato de que fomos desviados do curso de nossa
ação por uma circunstância que vem mudar o caso (menor) de nossa delibe-
ração. Essa maneira, da qual Aristóteles separa, na ação, o que é da ordem do
voluntário e o que é da ordem do involuntário, faz pensar na maneira como,
hoje, nós clamamos: mas não fiz isso de propósito! Quando uma criança faz
uma besteira por negligência, ela tem espontaneamente a impressão de que essa
observação não somente a desculpa, mas a desculpa liberando retrospectiva-
mente sua responsabilidade do curso dos acontecimentos que ocorreram. Ora,
essa é a mesma lógica, o mesmo limite interno ao esquema clássico de ação
(que a concebe exclusivamente como realização de um projeto) que governa
as concepções aristotélicas da motivação e da responsabilidade.

Não é fácil ultrapassar os limites dessas concepções da motivação e da responsabi-


lidade, que nos são comuns ainda hoje no nosso esquema de ação. Claro, na prática
corrente, nós vamos corrigir, de alguma forma, as insuficiências de tal visão, juntando
a isto um pouco de pragmatismo. Por exemplo, vamos nos lembrar de que, para
que um ator encontre interesse pela sua ação, é necessário que a interatividade, ela
mesma (e não somente o resultado), seja engajadora. Da mesma forma, nós lembra-
mos que, diante de uma catástrofe industrial, a investigação vai procurar sempre,
após ter reconstituído a cadeia das causas materiais, a responsabilidade humana que
precede imediatamente o entusiasmo dos acontecimentos. Se a responsabilidade está
engajada, é, então, de maneira indireta, ou seja, na ideia de que os comportamentos
voluntários trazem consequências para o meio ambiente – consequências que po-
dem acarretar respostas sob a forma de reações em cadeia. Mas, como esse último
exemplo demonstra, mesmo se, nas práticas, nós corrigimos espontaneamente os
excessos do esquema clássico da ação, essas correções encontram rapidamente seus
138 Competência e atividade de trabalho

limites, muito rapidamente e mostram que uma revisão teórica é também útil, talvez
indispensável. Assim, pode-se, por exemplo, prosseguir com a análise da imputa-
ção de responsabilidade, indicando que identificar a causa humana próxima não é
ainda suficiente. Para ser justo (e é bem isso que faz o tribunal), é necessário ainda
procurar quais eram os constrangimentos com os quais o operador foi obrigado a
compor e quais as origens desses constrangimentos. Ora, para ver a complexidade
da responsabilidade na ação, é necessário, portanto, dispor do conceito de norma
e fazer corretamente uso dele.

Colocada de lado a questão da responsabilidade, há pelo menos dois pressupostos


questionados pelo autor na concepção aristotélica da motivação: de um lado, a
possibilidade de que uma propriedade seja desejável em si (independentemente
da variabilidade das pessoas); de outro lado, a ideia de que, no desejo, o colocar
em movimento parte do objeto para se aplicar à pessoa. Ora, como anteriormente,
esses são os dois prejulgamentos com os quais se vai tentar subverter a crítica
de Dewey.

5.2. A motivação é o investimento no ato em que se tenta se realizar,


desenvolver sua existência (Dewey)

Dewey escolhe desenvolver um exemplo mirando especificamente a vida profis-


sional, se bem que nós podemos deduzir dele sua crítica e sua opção alternativa:

“No desenvolvimento normal, um interesse não está somente ligado exterior-


mente a outro; ele nele penetra, o satura e, ao mesmo tempo, o transfigura e lhe
dá um valor novo para a consciência. O pai de família pode ter motivos novos
para realizar seu trabalho quotidiano; ele pode descobrir nisso um significado
original e retirar dessa visão nova uma estabilidade e um entusiasmo que lhe
faltavam antes. Mas, se esse pai não tem essa visão, se ele considera seu trabalho
uma atividade enfadonha, unicamente para obter dela um salário, as coisas se
passam diferentemente. Nesse caso, os meios e os fins ficam afastados; eles não
se penetram. A pessoa não está realmente interessada e vê, na sua tarefa, uma
prova da qual seria vantajoso escapar. Ele não pode, então, lhe dar sua atenção
integral, engajar-se nela plenamente. Mas, para a outra pessoa, cada esforço
realizado no trabalho pode trazer um significado para a família. Exteriormente,
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 139

fisicamente, trabalho e família são entidades afastadas; mentalmente para a


consciência, eles têm o mesmo valor e formam uma unidade. Mas, quando
se trata de uma atividade enfadonha, os meios e o fim permanecem tão separados
para a consciência como eles o são no tempo e no espaço.” (Dewey, 2004: 35-36)

A ideia desenvolvida pelo autor é clara: a insuficiência do modelo do projeto


para explicar a motivação vem da separação, da relação arbitrária e exterior que
ele supõe entre os meios e os fins. Convencer-se (por força de repetir) que uma
ação vai nos dar... ou que nos vai permitir... não é suficiente jamais para torná-
-la interessante. Torna-a tão somente suportável. A ideia de Dewey é, pois, que a
relação entre meios e fim deve ser bem mais que lógica e instrumental. Essa deve
ser uma relação de sentido: a vinculação das duas ações (o meio e o fim) a um
mesmo todo contínuo – a saber, nossa existência em devir. O apelo ao interesse, na
formação como na ação da equipe, não pode, pois, segundo Dewey, senão apelar
para um interesse já existente (e mesmo necessariamente existente): o interesse
que a pessoa assume para a sua própria vida. O autor se impõe não apoiar sua
modelização senão sobre elementos atualmente efetivos:

“O interesse, não mais que o impulso, não precisa de um estimulante externo.


Pelo fato de que os impulsos se selecionam, acontece que a todo o tempo –
quando nosso ser psíquico está em estado de vigília – nós estamos interessados
de uma maneira ou de outra. A ausência completa de interesse, ou o estado de
equilíbrio perfeito na distribuição dos interesses, é um mito, como a história do
asno inventada pela escolástica.” (Ibid: 31)

A ideia inovadora de Dewey é que nós estamos sempre desejando. Por quê?
Porque, de um lado, nós estamos sempre já agindo, e, de outro, o desejo consiste
no fato de que nós sentimos nossa atividade tomar uma evolução exponencial.
Nós nos sentimos desabrochar nessa interação. É esse aspecto construtivo em
Dewey que parece nos indicar a via de uma verdadeira alternativa em relação ao
esquema clássico da ação. O autor inverte, com efeito, a direção dos termos com
os quais nós formulamos habitualmente as coisas. Não é o que nós tiramos de
uma atividade que nos faz desejá-la (pois esse ganho é virtual e iria supor, por-
tanto, o dispositivo aristotélico), mas é, ao contrário, o que nós investimos nessa
140 Competência e atividade de trabalho

atividade, que nos faz desejá-la atualmente, quer dizer amar. Certamente, há certas
condições: nem toda atividade certamente faz desabrochar; mas precisamente são
as condições – o que significa que nenhuma atividade (por exemplo profissional)
não é nela mesma desejável ou detestável. Tudo vai depender das circunstâncias
concretas onde, em regra geral, interagimos com o ambiente.

Voltemos, então, à relação entre meios e fins, relação constitutiva da motivação


como investimento, engajamento da pessoa. Pelo simples fato de o ator estar
vivo, ele está literalmente sempre já motivado por alguma coisa. O desafio da
motivação em toda atividade será, portanto, reunir as condições para que essa
atividade se inscreva na continuidade do esforço de viver. De um tal raciocínio,
Dewey vai tirar a ilação seguinte: é impossível exteriormente tornar interessante
uma atividade. Pelo contrário, a maioria, se não todas as atividades, podem se
tornar interessantes, na medida em que as condições sejam reunidas para que o
ator lhe dê sentido, organicamente unido com o sentido que ele dá à sua exis-
tência global, multidimensional.

“Desta forma, é fácil ver que as teorias que fazem do prazer um motivo, como
aquelas que recorrem ao esforço artificial, resultam praticamente no mesmo resul-
tado. A teoria do esforço implica sempre um apelo ao prazer ou à dor como causa
da ação. De sua parte, na ausência de objetivo intrínseco susceptível em manter e
dirigir as energias psíquicas, a teoria do prazer deve continuamente recorrer aos
elementos exteriores para excitar essas energias enfraquecidas. (...) Os psicólogos
nos mostram que o interesse do eu por um objeto ou por um fim indica que o eu
descobriu sua via e suas necessidades próprias. Nesse caso, os esforços do eu
se justificam; ele sabe por que ele deve desenvolver sua energia: é para atender a
um fim ao qual ele aspira e que lhe permitirá se exprimir.” (Ibid., 45-46).

Como anteriormente já foi dito, essa inversão de perspectiva sobre o que é fun-
damentalmente uma ação parece constituir para nós um verdadeiro avanço no
debate sobre a competência. E, na medida em que nossa modernidade é ainda
profundamente aristotélica, esse debate tem sua atualidade e sua razão de ser.
Mas em relação a esse último aspecto (o recrutamento), e também em relação às
quatro outras funções, a crítica e a alternativa construtiva adiantadas por Dewey
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 141

nos parecem, apesar de tudo, apresentar limites. No caso, o continuísmo radical


que ele afirma entre a atividade vital e a atividade de trabalho – por mais louvável
e salutar que seja, sobretudo quando vem compensar o dualismo, do qual as pes-
soas se satisfazem sempre muito rápido – parece-nos um espectro muito imediato,
porque Dewey se situa num nível demasiadamente geral, abstrato e esquemático
da ação. Ora, para dar um verdadeiro conteúdo ao conceito de competência, é
necessário se impor esta dupla exigência: de um lado, é importante determinar
suficientemente o conceito de competência para que ele capture a especificidade
da atividade profissional, a propósito da qual o mundo do trabalho quer utilizar.
Mas, de outro lado (e retendo aí a lição de Dewey), é necessário reinscrever essa
especificidade da atividade de trabalho no quadro geral de uma atividade global –
aquela que diz respeito à existência da pessoa. Tanto isso é verdade que o conceito
de competência qualifica sempre a atitude geral de uma pessoa em seu trabalho,
uma pessoa que vem com tudo aquilo que ela é.

5.3. A motivação é illusio, quer dizer identificação ilusória em relação


aos interesses da norma no seu campo de poder (Bourdieu)

A reflexão de Dewey, em relação ao esquema aristotélico, levantou o debate


sobre a motivação ao nível de uma interrogação sobre o sentido que a pessoa
dava ao seu trabalho. Esse sentido é, de fato, apresentado por Dewey como
a condição indispensável para que ela se torne interessada por sua atividade
profissional. Ora, as teorias da norma (historicamente, portanto, de início
estruturalistas) emprestam seu modelo do sentido à teoria da significação de
acordo com Saussure – portanto, a um paradigma linguístico. Ora, Saussure
havia fundado a vertente semântica de sua linguística geral a partir de uma
dupla recusa: opondo-se ao senso comum de sua época, o linguista afirmava
que a significação de uma palavra não lhe era conferida nem pela referência a
qualquer coisa do mundo (é o princípio da prescrição do referente), nem pela
intenção (a mensagem a comunicar) da qual o locutor emprega o termo, aqui e
agora. De fato, a significação seria um efeito de estrutura. A relação arbitrária
142 Competência e atividade de trabalho

entre significante e significado vem da integração dessas duas dimensões do


signo num sistema de oposições, fechado nele mesmo.

Ora, quando se trata de evocar o sentido que toma uma norma de acordo com a
experiência daquele que age segundo ela, tanto Lévi-Strauss quanto Bourdieu se
mantêm nos termos de Saussure. Assim, por exemplo, o conceito de interesse,
que Dewey havia tentado reabilitar para mostrar sua nobreza, é substituído, na
sociologia de Bourdieu pelo conceito de illusio – que, para um agente, consiste no
fato de se identificar com os interesses que agitam seu campo, a ponto de acabar
por acreditar que essas são questões existenciais para ele.

“Illusio é o fato de [alguém] ser tomado no jogo, de ser tomado pelo jogo, de crer
que, no jogo, vale a pena o mal que se dá para obtê-lo, ou, para dizer simples-
mente as coisas, que vale a pena jogar. De fato, a palavra interesse, num primeiro
sentido, queria significar, de modo muito preciso, o que coloquei sob essa noção
de illusio, quer dizer que o fato de admitir que o jogo é importante, que o que
se passa aí importa àqueles que estão engajados no jogo, a quem se engaja. O
interesse é “em estar”, participar, admitir que o jogo merece ser jogado e que
os riscos que se engendram no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos; é
reconhecer o jogo e reconhecer os riscos. (...) Se você tem um espírito estruturado
conforme as estruturas do mundo no qual você joga, tudo lhe parece evidente,
e a questão mesmo de saber se o jogo vale a pena não se coloca. (...) Libido
seria, também, totalmente pertinente, para dizer aquilo que chamei illusio, ou
investimento. (...) Uma das tarefas da sociologia é determinar como o mundo
social constitui a libido biológica – pulsão indiferenciada – em libido social,
específica. Há, de fato, tantas espécies de libido quanto existem de campos: o
trabalho de socialização da libido, sendo precisamente esse que transforma as
pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos que não
existem senão em relação a um espaço social no seio do qual certas coisas são
importantes e outras indiferentes” (Bourdieu, 1994: 151-153).

Comparando essa modelização da motivação àquela que propunha Dewey, seria


possível ver aí uma forma de cinismo que prejudica a elucidação do conceito de
competência. Pois, se efetivamente as normas – sendo arbitrárias, mas, no que
diz respeito à performance autolegitimadas no campo de forças, aliás qualificado
de violência simbólica – não precisam, por isso, de ter um sentido, se elas são
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 143

literalmente por elas mesmas sua própria finalidade, esse não é o caso da com-
petência que, enquanto julgamento, tem, de fato, a especificidade de necessitar
de outras. Mas mais fundamentalmente: o limite do modelo de Bourdieu para
dar conta da motivação de uma pessoa competente, parece-nos ser o sintoma
de uma insuficiência teórica, de uma conceitualização incompleta da norma.
Depois de Saussure, os estruturalistas recusam relacionar a norma a um valor,
o que os leva a considerar que o signo pode “fazer norma” pelo simples fato de
seu funcionamento, sem depender de um ator que iria investir na sua atividade.
Ora, nós temos evocado os limites que essa tentativa de pensar assim uma norma
sem normatividade (receptiva) ocasiona: de uma parte, ela reduz o saber a um
condicionamento adaptado (porque adaptável); de outra, ela reduz o sentido à
função (impedindo todo investimento subjetivo, toda interpretação pessoal).

A título de ilustração desse último ponto, e como uma pista de abertura para a
sequência, lembremos algumas trocas que colocaram em oposição, em meados
dos anos sessenta, Lévi-Strauss e Ricoeur sobre a questão da natureza do sentido.
Claude Lévi-Strauss:

“(...) Você disse em seu artigo que O pensamento selvagem faz uma escolha pela
sintaxe contra a semântica; para mim, não há o que escolher. Não há o que escolher,
na medida em que (...) o sentido resulta sempre da combinação de elementos que
não são eles mesmos significantes. Por consequência, o que você procura (...) é um
sentido do sentido, um sentido que está por trás do sentido. Ao passo que, na minha
perspectiva, o sentido não é jamais um fenômeno primeiro: o sentido é sempre redu-
tível. Dito de outro modo, atrás de todo sentido, há um não sentido – e o contrário
não é verdadeiro. (...) O que é o sentido para mim? Um sabor específico percebido
por uma consciência quando ela saboreia uma combinação de elementos, na qual
nenhum deles, tomado em particular, não vai oferecer um sabor comparável. (...)”
(Lévi-Strauss, 1963: 637-641)

“Paul Ricoeur: Eu não disse que o sentido era sentido por ou para a consciên-
cia; o sentido é, inicialmente, aquilo que instrui a consciência; a linguagem é,
primeiramente, veículo de sentido a retomar, e esse potencial de sentido não se
reduz à minha consciência. Não há o que escolher entre o subjetivismo de uma
consciência imediata do sentido e o objetivismo de um sentido formalizado; entre
os dois, há aquilo que o sentido propõe, aquilo que diz o sentido, e é esse “a dizer”
144 Competência e atividade de trabalho

e “a pensar” que me parece ser o outro lado do estruturalismo. E, quando eu digo


o outro lado do estruturalismo, eu não designo necessariamente um subjetivismo
do sentido, mas uma dimensão do sentido que – ela também – é objetiva, mas de
uma objetividade que só aparece pela consciência que o retoma. Essa retomada
exprime a ampliação da consciência pelo sentido, muito mais que o domínio da
consciência sobre o sentido. (...) Eu vejo, no seu trabalho, uma forma extrema
de agnosticismo moderno; para você não há “mensagem”: não no sentido da
cibernética, mas no sentido querigmático [do grego kêrugma, a promessa];
você está no desespero do sentido; mas você se salva pelo pensamento que, se
as pessoas não têm nada a dizer, menos elas o dizem, se bem que é possível
submeter seu discurso ao estruturalismo. Você salva o sentido, mas é o sentido
do não sentido, o admirável arranjo sintático de um discurso que nada diz. Vejo
você nessa conjunção de agnosticismo e de uma hiperinteligência de sintaxes.
Por isso, você é, ao mesmo tempo, fascinante e inquietante.” (Ibid., 644-653)

Assim, a mesma vontade de descartar absolutamente o investimento subjetivo


nas normas que guiam nossas ações reúne, portanto, Bourdieu, Lévi-Strauss e
Saussure. Os três apresentam o funcionamento autotélico das normas como uma
justificativa suficiente para que os atores desejem segui-los e respeitá-los. Ora, a
prática mostra a que ponto esse não é o caso. Uma tal redução metodológica opera
um resumo explicativo que atinge, em grande parte, a pertinência do modelo. Se o
conceito de norma deve ser repensado (em relação à sua definição estruturalista),
é, inicialmente, para tornar enfim compreensível o fato de que uma pessoa pode
investir de um verdadeiro sentido a norma que ela segue na sua ação. Com efeito,
na medida em que a motivação é uma parte integrante da competência, é necessário
reexaminar a questão para saber em que medida a consideração da subjetividade,
na ação normalizada do trabalho, não é uma condição sine qua non para dar um
verdadeiro conteúdo ao conceito de competência.

5.4. Preferir uma norma é entender sua importância como valor: seu senti-
do aparece uma vez recontextualizado no serviço (perspectiva ergológica)

O argumento crítico, que Dewey dirigia à modelagem do interesse, no esquema


clássico de ação, parece-nos definitivo. Se se consideram o fim e os meios como
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 145

exteriores, um ao outro, perde-se completamente a coerência axiológica e existen-


cial que constitui o desejo – se bem que se tenha, de fato, já reduzida, a atividade
do futuro empregado a um meio simples, num projeto coletivo que não lhe diz
respeito senão muito de longe. Trata-se da mesma teoria da ação que se estende
de Aristóteles a Taylor – Canguilhem já sugeria isso criticando a concepção ru-
dimentar que o segundo fazia da motivação:

“Na verdade, devemos, ao mesmo tempo, para justificar o projeto do taylorismo,


conceber o homem como uma máquina acionando adequadamente outras máqui-
nas e como um vivente simplificado, em seus interesses e reações em relação ao
meio, até não conhecer outros incentivos atraentes e repulsivos senão “a ameixa
e o chicote.” O absurdo é aqui – como em outros lugares – a onipotência da
lógica.”(Canguilhem, 1947: 122).

A intuição de uma continuidade entre a vida e o trabalho em Dewey, parece-nos,


portanto, justa – embora muito abrupta, no sentido de que ela negligencia todas
as mediações tornadas necessárias pela inscrição social dessas duas atividades.
Evidentemente é esse o último aspecto que coloca em evidência o estruturalismo,
mas de uma forma tão exclusiva que ela, por causa disso, realmente esquece a
lição de Dewey. O substituto ilusório (imaginado por Bourdieu) para a sua autor-
realização nos parece ser do domínio da mesma hipóstase que o autor denunciava
em Lévi-Strauss: “dar como princípio da prática dos agentes a teoria que se
deve construir para disso ter razão” (Bourdieu, 1987: 76). Após ter modelizado
o espaço social como um campo de forças, o sociólogo precisa explicar que os
agentes dão um sentido ao seu investimento nessas lutas simbólicas. O modelo de
interiorização (interiorização das normas, no modelo da formação; interiorização
das regras das normas, no modelo da motivação) lhe permite fazer economia de
um desvio – custoso teoricamente – do ponto de vista da pessoa. Para modelizar
a motivação e também a responsabilidade (segunda dimensão do recrutamento,
ainda menos explicada, acreditamos, pelo modelo da illusio) de uma forma que
se esforça para reconhecer e manter-se fiel ao ponto de vista (em devir) da pessoa,
pode-se voltar, por um momento, ao conceito canguilhemiano de norma vital.
Identificamos três contribuições fundamentais por meio das quais esse conceito
146 Competência e atividade de trabalho

corrigia e ultrapassava o conceito estruturalista da norma: o polemismo, a inscrição


nos duplos constrangimentos e a irredutibilidade do ponto de vista. É necessário
completar o primeiro por uma precisão, sobre a qual Canguilhem insiste ao lon-
go da sua obra, O normal e o patológico: se o funcionamento orgânico saudável
(normal porque normativo) tem um valor vital positivo, é pelo fato de que ele
é superior – na ordem do poder e do desabrochamento – à norma restrita que o
organismo foi levado a seguir no estado patológico.

“Os filósofos disputam para saber se a tendência fundamental do ser vivente


é a conservação ou a expansão. Parece que a experiência médica traria sobre
isso um argumento de peso ao debate. (...) O instinto de conservação não é,
de acordo com [Goldstein], a lei geral da vida, mas a lei de uma vida retirada.
O organismo sadio procura menos se manter em seu estado e em seu ambiente
presentes do que realizar a sua natureza. Ora, isso requer que o organismo,
enfrentando os riscos, aceite a possibilidade de reações catastróficas. O homem
saudável não se furta diante dos problemas que lhe colocam os transtornos, às
vezes súbitos, de seus hábitos, mesmo fisiologicamente falando; ele mede sua
saúde por sua capacidade de superar as crises orgânicas para instaurar uma nova
ordem. O homem não se sente em boa saúde – que é a saúde – senão quando se
sente mais do que normal (isto é, adaptado ao ambiente e às suas exigências),
mais normativo: capaz de seguir novas normas de vida. (...) Entende-se que a
saúde seja para o homem um sentimento de segurança na vida que não fixa para
ele mesmo nenhum limite. Valere que originou “valor” significa, em latim, ter
saúde. A saúde é uma forma de abordar a existência sentindo-se não apenas
possuidor ou portador, mas também, em caso de necessidade, criador de valor,
instaurador de normas vitais. (Canguilhem, 2005: 132-134).

A extrapolação do vital ao social não é evidente. O valor vital tem uma univo-
cidade (uma evidência) que falta totalmente ao valor social – é por isso que a
metáfora organicista tem sido historicamente utilizada para limitar o pluralismo
dos valores políticos, o debate sobre os fins da vida social (Canguilhem, 2002:
108-123). Isso, em compensação, é, sem dúvida, a força de um raciocínio a fortiori.
Se, desde a vida orgânica, o corpo humano não soubesse, sem sentir-se doente,
se contentar em seguir as normas fisiológicas por elas mesmas, sob o pretexto de
que elas seriam “o normal”, o que será dele no nível da vida social? Canguilhem
coloca em oposição as expressões: criador de valor, instaurador de normas. Elas
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 147

são equivalentes porque descrevem as duas faces de um mesmo processo. É so-


mente na medida em que a norma antecedente encontra a maneira de se inscrever
na dinâmica da sua existência que a pessoa lhe vai dar um valor. Mas parar lá
na descrição, não é senão descrever, pela metade, a realidade da experiência das
normas: pois é também porque ela encontra normas antecedentes em relação às
quais (é preciso) se posicionar, que a normatividade em devir (o ponto de vista
em construção) chega a existir no meio, na sua interação com o ambiente. Ora se,
após Dewey, por exemplo, mas também, após Nietzsche ou após o próprio Can-
guilhem, considera-se que a fonte do valor – pelo menos a vital – é o sentimento
de um desabrochar exponencial dessa existência na sua interação in situ, pode-se
muito bem compreender que estamos interessados (no sentido de Dewey, isto
é, investidos, engajados) na conclusão de nossos próprios debates de normas. O
modo como nós vamos resolver as duplas obrigações (as situações problemáticas
onde nós tentamos impor o nosso ponto de vista), em círculos viciosos ou círculos
virtuosos, decide, de fato, o futuro da nossa existência – de seu desenvolvimento
em emancipação ou em alienação.

Em certo sentido, isso reflete um aspecto essencial da motivação. É muito fre-


quente para ela mesma que se busque a competência. Tornar-se competente é
uma perspectiva de evolução – e, portanto, autoinvestimento – o que faz sentido
porque isso significa não só ganhar em autoridade, aumentar o seu poder (sobre
os constrangimentos do real) ou acumular experiência variada –, mas também
crescer significativamente em autonomia, ou seja, construir para si um ponto de
vista (cognitivo, axiológico, relacional, estético e perceptivo, etc.) mais genuina-
mente pessoal. Parece-nos que é o desejo de se reencontrar que está na base do
amor ao trabalho bem-feito pelo menos tanto quanto o de se realizar. Sobretudo,
essas três expressões – metafóricas e talvez depreciadas – parecem-nos tomar um
sentido muito preciso, quando as modelizamos como constituição de um ponto
de vista sobre a norma, através da atividade entendida como uma sequência de
debates de normas.
148 Competência e atividade de trabalho

Ora, para não cair na armadilha da ilusão solipsista, é necessário ter em mente
que não há “eu” fora de seu relacionamento com os outros.

“Pensar é um exercício do homem que exige consciência de si na presença


do mundo, não como a representação do sujeito Eu, mas como sua reivindi-
cação, porque essa presença é vigilância e, mais exatamente, controle. De
um ponto de vista filosófico, não há contradição em reconhecer uma subje-
tividade sem interioridade, que não cause suspeita de idealismo solipsista.
“(Canguilhem, 1980: 29).

A “reivindicação” faz parte desses esforços para se constituir um ponto de vista


sobre a norma, de modo a fazê-lo fazer norma – e essa é uma reivindicação no
debate com os outros pontos de vista sobre a norma. Uma tarefa – com sua norma
antecedente – ganha todo o seu sentido quando é reinscrita no serviço, porque é vis-
-à-vis do ponto de vista dos outros que a minha interpretação da norma antecedente
ressalta e realmente se torna a minha. Os outros – sob a forma de destinatário do
serviço como colegas com os quais formamos entidades coletivas relativamente
pertinentes (Schwartz, 2000: 34-39) – mediatizam o valor que dou à norma de
minha ação. A unificação (que Dewey descrevia) entre a família e o emprego na
motivação do trabalhador pode, em relação a esse ponto, ser comparada ao que
escreveu Canguilhem a propósito das reações ao taylorismo:

“A prática dos trabalhadores de restrição de rendimento é um sintoma da sua


não integração à empresa. Acredita-se poder remediá-la pelo desenvolvimento
de serviços sociais, dos clubes, das sociedades desportivas. Mas é claro que a
insuficiência dessas práticas revela a incapacidade dos investigadores, agen-
tes a serviço da empresa de ver a empresa pelos olhos dos trabalhadores, de
ver a empresa na sociedade, em lugar de fazer se ajustarem a sociedade e a
empresa. (...) O que Friedman chama a “libertação do potencial do indivíduo
não é outra coisa senão essa normatividade que é para o homem o sentido de
sua vida.” (Canguilhem, 1947: 134-135).
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 149

Conclusão

Partindo de uma definição simétrica da competência – mobilizar os saberes em ação,


produzir, na ação, os saberes – nós nos propusemos quatro perguntas para reabrir (o
tempo da discussão) as caixas pretas sobre as quais uma disciplina deve sempre se
apoiar: nesse caso, as concepções de ação e de saber, que somos levados a pressupor
em nossos raciocínios e debates sobre a competência. Em lugar de apresentar tal e
qual a nossa tipologia dessas diferentes concepções, pareceu-nos interessante encenar
o seu debate. Isso, certamente, permitiu mostrar, ao mesmo tempo, não somente a sua
coerência interna, as linhas de demarcações que indicam os pontos de dissensão (por
isso os riscos do problema), bem como os pontos fortes e os limites que aí encontramos
em nosso próprio trabalho – teórico e prático – com o conceito de competência. Sem
resumir novamente o conteúdo de cada uma dessas concepções (serão encontrados os
principais elementos positivos de cada uma, resumidos na tabela recapitulativa dessa
parte), lembramos, simplesmente, que nós distinguimos três delas: a ação como projeto
(ao qual corresponderia o saber como conhecimento empírico e hiperespecializado
dos meios subordinados); o ato como aventura (ao qual correspondia o saber como
hipótese preditiva sobre as relações entre nossas ações e as consequentes respostas
do ambiente); e, finalmente, a ação como prática de um agente (ao qual correspondia
o saber como panóplia de reflexos adaptáveis, para corresponder espontaneamente
aos comportamentos esperados).

A partir do debate das concepções dessa tipologia, apresentamos – em sua co-


erência interna e nas suas posições em relação aos pontos em debate – nossas
próprias hipóteses quanto à concepção da ação e do saber, a mais capaz de dar
um conteúdo ao conceito de competência que melhor atenda ao seu caderno de
encargos. Considerar a atividade como uma experiência normativa – modelo que
se inscreve diretamente na tradição canguilhemiana e no conceito ergológico de
atividade como uma sequência de debates de normas – permite considerar o saber
como uma interpretação pertinente da situação, a partir dos riscos das normas que
a constituem. Esse saber dos riscos, é, então, fundamentalmente, a constituição
150 Competência e atividade de trabalho

de um ponto de vista sobre a norma (e sobre a situação feita de normas), através


do debate com os pontos de vista dos outros, sobre essa mesma situação.

As quatro questões que abrimos para interrogar as caixas-pretas encontraram,


em cada fase do debate, elementos de resposta, relacionados às concepções cor-
respondentes. Nós vamos resumir aqui somente os elementos que correspondem
às nossas hipóteses sobre a competência:

• acreditamos que os conhecimentos objetivos valem como normas antecedentes (em


desaderência): para torná-las operacionais em aderência (aqui e agora), nós as “des-
-neutralizamos”. – quer dizer que nós as fazemos “fazer norma, para nós”, nas circuns-
tâncias desta situação. Essa operação foi descrita como a constituição de um ponto
de vista sobre a norma, através do debate com aquele dos outros sobre essa norma.

• pensamos que a ação, e, particularmente, a atividade de trabalho, pode ser autônoma


e, contudo, enquadrada por normas antecedentes, na medida em que as condições são
reunidas para que esses fatos de normas possam, efetivamente, “fazer norma” para
o ator. Mas, assim como não há aplicação pura (mecânica), não há pura autonomia
(autárquica): nossa normatividade necessita de, para se exercer, apoiar-se sobre as
normas antecedentes, sem o que ela gira no vazio.

• acreditamos que a resistência do real em nossos atos é concretamente a situação de


duplo constrangimento, que constantemente precisamos interromper. Enfrentar essa
resistência é formador, porque isso coloca à prova o ponto de vista que faz a nossa
compreensão da norma: isso nos dá a fazer a experiência do círculo vicioso ou o
círculo virtuoso, segundo o qual evolui a nossa interação com o meio.

• por fim, acreditamos que a experiência vivenciada no debate de normas nos faz sentir
o que está em jogo, tanto das normas antecedentes como das normas constitutivas da
situação; o objeto próprio do saber da experiência nos parece ser a relação problemá-
tica entre essas duas fontes da norma. Essa é a razão pela qual não podemos evitar
um retorno à perspectiva do ator, quando queremos saber como o fato de norma tem
“feito norma” em sua atividade.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 151

As contribuições de cada concepção para o conteúdo do conceito


de competência

Organizar Chefiar Avaliar Formar Recrutar


Contribuição A competência A competência A competência A competência A competência
da ação como é o fato de é a arte de apli- é a adequação é o desenvol- é uma adesão a
que cada um car bem o tipo perfeita entre vimento de “bem” do obje-
“Projeto” preenche da previsto pelo o objetivo disposições tivo, suficiente
melhor forma plano aos di- previsto e atualizando para fazer
sua função no ferentes casos o resultado algumas capa- desejáveis os
plano encontrados obtido cidades meios

Contribuição A competência A competência A compe- A competência A competência


do ato como é a capacidade é uma atenção tência é uma é a relevância é um engaja-
efetiva de às respostas do autovalidação do levantamen- mento no ato
“aventura” fazer emergir ambiente para performática e to (de hipóte- se consistente
um plano adaptar com exponencial do ses conectando que unifica
estratégico de precisão (via a ato que flores- a priori minha (veja que le
uma interação reflexão) nossa ce a interação ação e a reação identifica) o
autônoma ação do meio) fim e os meios

Contribuição A competência A competência A competência A competência A competência


da ação como é um domínio difrata o esque- toma liber- consiste em en- é o investimen-
das regras (que ma da ação dades com a contrar o tema to na emulação
“prática” de estruturam (em substitui- regra (como se sob variações, (ou rivalidade)
um agente um campo) ção ao “tipo”) ela a esqueces- jogando-o, de que faz com
suficientes para e o adapta à se) e exige sua modo mais que se “jogue
bem se colocar situação (que própria rede ou menos o jogo” das
nas relações substitui o de leitura ao “reflexo” normas
de força “caso”) observador

Contribuição A competên- A competência A compe- A competência A competência


da atividade cia é o fato consiste em se tência é uma é a constituição é o engajamen-
(irredutível) apropriar da compreensão de um ponto to e a presença
como uma de que uma norma antece- suficiente do de vista multi- responsável de
sequência de pessoa nunca dente de forma sentido das lateral sobre a um ator que
“Debates de está satisfeita a implementá- normas (ante- norma (através tenta existir
por fazer o -la concreta- cedentes e in da confronta- em sua relação
normas” que se diz, mente no seu situ) para ficar ção com as dos com as normas
mas sempre próprio sentido fiel aos primei- outros) per- dos meios onde
por antecipar a (interpretar a ros levando mitindo viver ele vive e age.
norma – de to- carta segundo em conta os o que está em
mar a iniciativa o espírito). segundos. jogo.
sobre ela
152 Competência e atividade de trabalho
Parte 3: Modelizar o agir em competência 153

Parte 3:
Modelizar o agir em
competência

1. Os ensinamentos do uso atual da palavra competência

Analisamos, na primeira parte, cinco funções que dizem respeito ao pessoal de


empresa: organizar, chefiar, avaliar, formar e recrutar. Para cada uma delas, bus-
camos o que a gestão entende quando faz uso da palavra competência: a maneira
como ela “bricola” o termo, diante dos desafios que enfrenta. Esse desvio pelas
práticas nos leva a expressar uma primeira formulação do conceito operacional:
a competência é o saber que passa à ação. A fórmula revela imediatamente a
dificuldade que os praticantes enfrentam. Nós pensamos ser claros sobre o input
(aqui, o saber) e sobre o output (aqui, a ação), mas o “que se passa” continua sendo
uma blackbox, uma caixa-preta ... Certamente, pode-se tirar partido de um sistema
não entrando no motor deliberadamente: o problema, e esse é o limite de uma
metáfora mecânica, é que não se geram competências como se dirige um carro.

Na verdade, a competência faz a ligação entre os dois registros de confrontação


no mundo real que Yves Schwartz chama de aderência e desaderência.

O saber pertence ao registro da desaderência, a ação; à aderência. Passar de um


ao outro quer dizer: mudar de registro. Se a competência é compreendida como
um saber que passa à ação, é que a segunda palavra não é mais tomada como
154 Competência e atividade de trabalho

redundância da primeira. Então, não se percebe mais essa mudança de registro


como uma evidência. Entre os profissionais e os teóricos dos “recursos humanos”
no sentido amplo, agora as representações do trabalho evoluíram. O modelo
rigorosamente aplicativo, aquele da época taylorista, já não é usado. Não se de-
fende mais a ideia de um saber que teria uma qualidade operante imediata: isso
não é mais uma questão de passar do programa à sua realização. Todo mundo
ou quase todo mundo admite que existe uma distância entre o trabalho prescrito
e o real. Consequentemente, a intervenção humana é incontornável. Mesmo se
o organizador está bem documentado sobre as condições concretas do trabalho,
ele deve contar com uma competência – uma pessoa competente – para atingir
os resultados esperados. O conceito operacional de competência leva em conta
a realidade da distância, uma vez que não só o operador deve agir de maneira a
aliviar a distância, mas ele mesmo é obrigado a ir mais longe. Ele deve esperar
enfrentar o acontecimento, ter que improvisar respostas em razão da cascata de
imprevistos que, sem dúvida, lhe vai reservar a sua jornada de trabalho. A com-
petência, em seus usos, é, portanto, verdadeiramente uma realidade (e não apenas
uma palavra), uma realidade social, uma norma – uma norma específica, uma vez
que exige ir além da conformidade.

Numa segunda formulação do conceito operatório, diríamos, então, que para os


práticos a competência é o saber que compõe com a ação. Isso é, por exemplo,
o que Guy Le Boterf dá a entender, usando uma analogia musical em uma apre-
sentação sobre competência:

“A partitura (...) é da ordem do prescrito. A interpretação respeita as regras, mas


não se reduz à sua aplicação mecânica. O talento do músico ou da orquestra
intervém. O público experiente sente a diferença entre a execução do iniciante e
a de um mestre (...) A competência necessária é a partitura; essas são as regras
ou critérios que devem ser respeitados. A competência real é a interpretação ou
a improvisação. Enquanto a partitura é a mesma para todos, a interpretação é
própria a cada um. Existe uma singularidade de competência real. Cada pessoa
tem uma certa maneira de “apropriar-se disso” para realizar a atividade com
competência” (1998: 145).
Parte 3: Modelizar o agir em competência 155

Ao considerar, em seu uso da competência, uma composição do saber com a ação,


os especialistas de “recursos humanos” começam a considerar a ideia de situação.
As mudanças no ambiente de trabalho, desde o final dos Trinta Anos Gloriosos1,
impuseram a todas as mentes a ideia da variabilidade, mesmo se, na realidade,
ela sempre tenha estado lá, já que a estandardização não é ela mesma senão uma
representação que se fazia da atividade dos homens produtores. No entanto, como
vamos ver, a impossível padronização continua sendo uma constatação que não
ultrapassa o fato. Cada um dos protagonistas do trabalho apreende um mundo
em movimento, com uma extensão de intervenção que pode evoluir a qualquer
momento, com margens de manobra mais ou menos reduzidas, com condições
finalmente incertas e que supõem “uma inteligência da situação”. Para alguns
observadores, a competência, no fundo, seria primeiramente, procurada, em “uma
capacidade geral para enquadrar a situação, para lhe dar seu sentido, para ler
o contexto que se pode chamar, de acordo com os autores, ‘a inteligência’ ou ‘a
intenção’” (Bellier, 2004: 91).

Ao introduzir a referência sistemática às situações profissionais em sua diversi-


dade, a lógica da competência, sem dúvida, deu início a uma forte perturbação e
a uma reconsideração nas formas de se apropriar, em todos os níveis, da gestão,
do treinamento e do recrutamento de pessoal.

a) A supervisão de linha se tornou, com a chegada da abordagem de com-


petências, menos técnica e muito mais um “gerenciamento de equipe”.
É esse o momento em que as empresas adaptaram seus organogramas,
reduzindo as linhas hierárquicas ao mesmo tempo, para racionalizar,
economizar e responsabilizar. O chefe de equipe é aquele que dá as di-
retrizes de modo a alcançar, apesar de todos os obstáculos, os resultados
que estejam de acordo com os objetivos esperados. Ele tem, portanto,
uma percepção aguda da situação, mas ele não a conceitualiza necessa-

1 N.T.: A expressão atribuída ao demógrafo francês Jean Fourastié foi cunhada em 1979, com a
publicação de seu livro Les Trente Glorieuses ou la révolution invisible de 1946 à 1975.
156 Competência e atividade de trabalho

riamente fazendo uma conexão com a competência formalizada. Existe


uma espécie de paradoxo entre os supervisores locais: eles trabalham
continuamente, nos fatos, com a noção de competência, recompondo
suas equipes de acordo com os riscos, sabendo identificar quem vai
saber se virar melhor com esse ou aquele nó de problemas. E, ao mesmo
tempo, muitas vezes são censurados por não se apropriarem suficientemente
do conceito de competência nos exercícios de avaliação, especialmente
quando das entrevistas anuais com seus subordinados. Tudo se passa como
se a abordagem da competência fosse demasiadamente intelectualizada,
demasiadamente abstrata para que eles façam, diretamente, a relação com
a situação concreta, que eles gerenciam dia após dia.

b) Os formadores estão diretamente ligados, enquanto categoria profissional


emergente, à história recente da abordagem de competência. A generaliza-
ção de abordagens por alternância e os treinamentos a partir do trabalho
fizeram evoluir o ensinamento técnico tradicional, a ponto de que hoje
podemos distinguir o professor do formador de acordo com suas respec-
tivas abordagens de competência. O formador tem, como o supervisor de
linha, uma abordagem global do tipo “ser competente é ter a inteligência da
situação”. Ele não pode desprezar por causa da norma, por causa do saber.
A desneutralização, o posicionamento pessoal, a afirmação de um ponto
de vista são condições da apropriação das maneiras de fazer, de pensar, de
dizer do pelo aluno. O dilema operacional do treinador, de certo modo, é
que ele visa à eficiência em uma situação específica, portanto, singular no
plano de escolhas – e, ao mesmo tempo, ele não quer sobretudo prender
o iniciante nesta situação: ele procura provocar, no formado, uma mu-
dança de ponto de vista, de tal maneira que ele reutilize, em outro lugar,
o que aprendeu em determinado momento. Assim, o treinador vai tender
a deduzir, das situações, os aspectos os mais transversais, neutralizando
os momentos de escolha – com o risco de deixar aparecer a competência
mais como um discurso sobre o domínio relativo dos saberes.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 157

c) Os avaliadores não têm escapado mais do turbilhão da abordagem de com-


petência no mundo corporativo. Foi necessário admitir os limites de um
controle binário da única performance para se questionar, para além do ato
bem-sucedido, sobre a maneira de aí se assumir e avaliar o próprio “agir em
competência”. A dificuldade é que uma tão grande proximidade com a situa-
ção hic et nunc relativiza o ato bem-sucedido (muito preso às circunstâncias
locais e, portanto, às escolhas) e, inversamente, o afastamento da prática
reforça deploravelmente o anonimato do ato. Entre o geral e específico, o
avaliador deve, no entanto, dizer algo relevante sobre a competência do ator.
Seu diagnóstico pretende ser bastante impessoal para ser crível e bastante
pessoal para ser válido. Trata-se ainda de uma interpretação muito cogni-
tivista que oferece – parece – uma saída provisória: baseia-se em alguns
fatos verificáveis, completados por um exercício de reflexividade (ao mes-
mo tempo lógico, portanto, tendendo para o neutro – mas pessoal, porque
traçando um raciocínio adequado). A situação como experiência singular
– isto é, como obrigação de escolha – é finalmente mantida à distância, em
nome de um esforço de objetivação da competência.

d) Do lado do organizador, a chegada da noção de competência sem dúvida


despertou a esperança, já que os modelos anteriores estavam exaustos. A
forma como os gestores tomaram posse da noção de competência é, en-
tretanto, muito particular, uma vez que eles mantiveram principalmente a
ideia de uma diferenciação das pessoas, mais sutil do que a oferecida pelo
sistema de qualificação. Aliás, a competência se tornou, de acordo com
alguns analistas, o equivalente da qualificação nos usos, que, atualmente,
fazem deles os líderes de empresa. É certo, no entanto, que o organizador
deve prever os diferentes tipos de situações que podem se apresentar, a fim
de reunir, da melhor maneira, os meios de responder a isso. Para conseguir
isso, ele precisa necessariamente de uma perspectiva redutora: ao contrário
do supervisor que enfrenta uma situação após a outra, o organizador deve
considerá-las todas. Ele perde em profundidade o que ganha em visão pa-
158 Competência e atividade de trabalho

norâmica. A situação para um organizador, portanto, permanece virtual, e a


percepção da competência permanece, inevitavelmente, esquemática. Essa
é, sem dúvida, a razão pela qual o organizador tende a confundir a com-
petência com a polivalência, isto é, a conduta em situações diversificadas.

e) Resta a função de recrutamento, que também conseguiu acolher, com interes-


se, a rápida difusão das lógicas próprias da competência. A contratação com
base na qualificação adquirida pelos candidatos era, nela mesma, certamente
mais simples, o cargo aberto ao recrutamento podendo, ele também, ser
qualificado, a fim de aproximar os perfis. No entanto, as empresas impuse-
ram claramente aos recrutadores uma missão dupla que não poderia mais
ser preenchida com a ajuda do único sistema de qualificação: o candidato
selecionado não só deverá atender aos requisitos do posto de trabalho, mas
também ter a capacidade de evoluir na empresa, acompanhando o ritmo de
mudança permanente. O recrutador, então, usa o vocabulário da competência
à sua maneira, para designar tudo o que não está explicitamente na quali-
ficação e que ele considera como um atributo pessoal ao fazer sua seleção.
Pode-se pensar, no entanto, que a noção de competência também teve outro
efeito sobre as práticas de recrutamento: o de prestar mais atenção à situação,
no sentido do coletivo de trabalho. Porque não é tanto a singularidade das
situações profissionais que interessam aos recrutadores senão a dimensão do
serviço a ser prestado. Um candidato brilhante por seus conhecimentos das
tarefas pode ser afastado por receio de incompatibilidades com os colegas.

Dissemos que, de acordo com nossa análise, os profissionais e os teóricos dos “re-
cursos humanos” começam hoje a abordar a noção de situação nas suas reflexões
sobre competência entendida como uma aproximação do saber e da ação, mas
observando unicamente o “fato” da impossibilidade de um recurso à estandardi-
zação. É, efetivamente, inegável e, além disso, amplamente demonstrado, que a
situação encontrada pelo operador contradiz, de certa maneira, o que foi prescrito
ou pensado antecipadamente. Para chegar a um resultado que atenda às expectati-
vas, esse operador deve ousar trabalhar de forma diferente. O conceito operacional
Parte 3: Modelizar o agir em competência 159

da competência, aquele manifestado pelos diferentes usos que analisamos, mostra


claramente essa aquisição da referência à situação, que o conceito de qualificação
não possuía O trabalho real foi, com efeito, deliberadamente ignorado pela qua-
lificação, que quer um operador generalizante e impessoal. De agora em diante,
estamos um pouco mais atentos a isso e admitimos a insuficiência do pensamento
organizador, conceitual em relação à diversidade de situações. Somos cuidadosos
com a realidade que surge no trabalho sem ter sido necessariamente antecipada, o
que proíbe falar desse trabalho como uma simples aplicação do prescrito. . Reco-
nhecemos o fato de um retratamento dos modelos da organização por aquele que
intervém realmente na prática, admite-se o fato da personalização das maneiras de
fazer, dos “estilos” – tanto no nível quase imperceptível dos gestos profissionais
quanto na escala dos coletivos.

No entanto, em nossa opinião, esse reconhecimento dos fatos não é suficiente:


estamos, na verdade, no meio do caminho. Embora o reconhecimento da varia-
bilidade das situações tenha sido um avanço definitivo, incontestavelmente ainda
falta alguma coisa no raciocínio sobre a competência no trabalho. Testemunham
isso as duras críticas dirigidas à abordagem de competência, como a de Jean-Pierre
Le Goff, que não hesita em falar de “desumanização”:

“O que pode significar hoje a longa lista de itens de competências para aquele
que trabalha? A atividade de trabalho também se tornou irreconhecível. As com-
petências são divididas em tantas normas apresentadas quanto os objetivos que
os funcionários devem atingir se quiserem se adaptar às mudanças e manter seu
emprego. (...) A ‘mobilização da inteligência’ e a do ‘saber-ser’ são vistas como
fatores-chave no desenvolvimento da produtividade e da qualidade. Mas o que
mudou ao certo em relação à representação mecânica do trabalho humano? Em
referência às ciências cognitivas, a inteligência é considerada como um mecanis-
mo de processamento de informações cujo funcionamento e aperfeiçoamento são
coisas de especialistas. O ‘saber-ser’, que envolve competências comportamentais
e relacionais, também está integrado a esse modelo. Os ‘estados interiores’, as
sensações, os sentimentos, os valores ... são considerados nessa mesma lógica
que reduz o homem no trabalho a um mecanismo que poderia ser dominado e
manipulado livremente” (1999: 34).
160 Competência e atividade de trabalho

O que o autor critica fundamentalmente na abordagem da competência é de ter


ignorado a atividade de trabalho:

“Porque o trabalho não é apenas uma assunto de ‘competências’ ou de atividade


cognitiva, ele não é só um ‘processo’ para racionalizar, ele é também um ‘mundo’
no qual o indivíduo se confronta com os limites do possível, entra em coope-
ração e conflito com os outros, adquire hábitos e valores que são constitutivos
de uma identidade individual e coletiva. A expressão ‘mundo do trabalho’ é a
cada vez menos usada. Essa evolução é significativa não só pela erosão de uma
‘cultura operária’, mas pela maneira como se aborda cada vez mais o trabalho.
Não são apenas as condições em que essa atividade se desenvolve que não são
mais levadas em consideração, mas a experiência humana que ela constitui, a
trama das relações humanas que lhe é inerente. Esse mundo ali do trabalho é
significativo para aqueles que trabalham” (idem: 35).

Nossa hipótese é a seguinte: se as reflexões e práticas de gestão atuais em torno da


noção de competência são denunciadas por sua forma de abordar o ser humano no
trabalho, é porque elas nem sempre levaram realmente em consideração o registro
da aderência. Não basta considerar a variabilidade das situações de trabalho, porque
é possível continuar a pensar que o tratamento dos riscos é viável pela simples
desaderência, isto é, por um “saber-agir” preconstituído. A maioria dos atores da
vida profissional felizmente desistiram da ideia de representar uma separação no
trabalho entre seres humanos que pensam e outros que agem, mas a resistência
ainda está na ideia que se faz de nossa faculdade de conceitos. Os organizadores
do trabalho realmente admitiram sua incapacidade de prever tudo: no entanto, eles
continuam a pensar que é o esforço de neutralização que caracteriza o conhecimento,
que é a única garantia de operacionalidade na prática. Parece que, coletivamente,
temos dificuldade em admitir a insuficiência do conceito, que é sempre ultrapassado
pela vida – ao mesmo tempo em que ele é lançado novamente indefinidamente
na sua conquista do conhecimento, porque é precisamente superado pelo inédito
do ato. Não recebemos bem a ideia de que existe um registro da aderência, em
ruptura com o da desaderência. Porque a aderência inflige um choque às nossas
certezas de poder antecipar tudo: não controlamos tudo. O agir é sempre feito de
um compromisso entre as restrições que vão permanecer restrições e em nossas
Parte 3: Modelizar o agir em competência 161

próprias iniciativas. Essas nos permitem tornar certas restrições em oportunidades,


por servirem ao nosso projeto de transformação ou de conhecimento, enquanto nos
arranjamos com outras restrições que precisamos suportar.

Isto é o que encontramos em filigrana no protesto de J.-P. Le Goff: a vida real, aquela
que todos os dias cada um de nós experimenta, desapareceu na leitura do mundo que
os arautos de uma nova era dominada pela competência propõem. Seus discursos
não levam em consideração a relação entre o ser humano e seu ambiente. É como
se a situação na empresa fosse apenas um caso de figura informativa, que seria su-
ficiente tratar com os bons modelos nas mãos dos organizadores. A vida comum no
local de trabalho é, desse ponto de vista, dominada por quadros em que se pretende
intervir e, assim, condicionar essa vida na direção desejada pela administração.
Ora, podemos dizer exatamente o oposto: além de ser uma sequência pré-pensada,
pré-enquadrada, a situação de trabalho é, em primeiro lugar, um momento de vida,
e é essa vida que confere realidade aos quadros e à organização em geral. As duas
perspectivas estão em interação permanente, em “dupla antecipação”.

2. Avanços e limites do discurso gerencial atual: o caso de


Guy Le Boterf

2.1. O ponto de vista do autor

O discurso gerencial se abre à noção de situação, buscando, assim, o caminho de


uma saída progressiva do paradigma taylorista. No entanto – é nossa hipótese,
como já dissemos – o caminho percorrido não é suficiente. A mudança é bastante
significativa em razão de ter incomodado, há aproximadamente três décadas, em
todos os níveis, todos os protagonistas das situações de trabalho. Entretanto, não
tendo sido bastante bem-sucedida hoje, ela provoca certos requisitórios os mais
severos, como acabamos de ver com o autor de La Barbarie douce (1999) enquanto
todos, incluindo esse último, reconhecem a urgência de uma nova abordagem do
emprego e das competências num mundo em constante mudança, obrigando-nos a
antecipar tudo aquilo que pode ser antecipado. Pensamos que, se interpretado até o
162 Competência e atividade de trabalho

seu limite, o conceito de competência representa uma oportunidade de transformar


nossa percepção do trabalho – e, mais ainda talvez –, de enxergar novas pistas no
viver em coletividade, pois trata-se de compreender a experiência humana como
uma experiência normativa.

Para explicitar, mais ainda, o nosso ponto de vista, propomos partir dos trabalhos
de Guy Le Boterf, que promoveu a abordagem intitulada “agir com competência
em situação”. Autor de inúmeros livros sobre a questão, G. Le Boterf é também
um consultor que goza, atualmente, de uma ampla audiência nas empresas e orga-
nizações socioprofissionais. Ele é um representante importante de um pensamento
gerencial relativamente avançado na maneira de tratar o tema da competência no
trabalho e a engenharia das competências em formação.

Primeiramente, vamos expor o raciocínio de G. Le Boterf a respeito das com-


petências na gestão de “recursos humanos” e em formação (2002b), para os
extratos seguintes:

a) De acordo com G. Le Boterf, entende-se, primeiramente, a competência


como um “saber agir”. Ele pretende atualizar o conceito de competência que
é, na organização taylorista de uma prescrição restrita, um “saber-fazer em
situação.” Nessas circunstâncias, o trabalhador deve “saber executar uma
operação prescrita e aplicar instruções.” Segundo ele, ao contrário, nas
novas organizações de trabalho, quanto mais a prescrição é aberta mais vai se
falar da competência em termos de saber como “saber agir em situação”. O
operador é obrigado a agir com uma margem de autonomia, de arbitrar sem
ter necessariamente todas as informações úteis. Ser competente significa,
no presente, “ir além do prescrito”.

b) A competência significa igualmente para G. Le Boterf um “saber combinar”.


Segundo ele, a competência está organizada em sistema e não em adição de
ingredientes heterogêneos. A pessoa competente é aquela que faz interagir os
recursos de que ela dispõe. Em consequência a validação das competências
Parte 3: Modelizar o agir em competência 163

não saberia ser o controle separado de cada um dos recursos: será necessário
verificar, na situação de trabalho, “que o sujeito é capaz de selecioná-los,
combiná-los e mobilizá-los de forma pertinente.” Isso significa igualmente
que as competências requisitadas, codificadas nos referenciais, não corres-
pondem exatamente à “competência real” elaborada por cada um e que é
“uma disposição para agir numa família de situações”.

c) A competência é, enfim, um “saber interagir com o outro”. Para G. Le


Boterf, mobilizar e combinar seus próprios recursos não basta, pois é
preciso tirar proveito dos recursos em situação no meio ambiente e com
as redes (com tudo que estiver interligado). Os coletivos são, por sua vez,
referências para as maneiras de agir no trabalho, as “regras da arte” e dos
apoios para a cooperação no trabalho diante das incertezas que caracteri-
zam as situações encontradas.

d) Entretanto, acrescenta G. Le Boterf, o reconhecimento de uma competência


não saberia ficar limitado ao ato bem-sucedido, o que pode acontecer por
acaso. É julgado competente aquele que comprova sua reflexividade mos-
trando que pode reinvestir, em contextos distintos, suas maneiras de agir
com sucesso. “É paradoxalmente compreendendo como nos preparamos
para agir eficazmente em um contexto particular que nos preparamos para
agir em um contexto diferente.”

2.2 O ponto de vista crítico sobre o saber agir

Vamos retornar as etapas do raciocínio de Guy Le Boterf de modo a relevar, ao


mesmo tempo, o que é, aos nossos olhos, não somente um incontestável avanço,
mas também o que nos aparece como um limite, considerando a nossa própria
investigação sobre a relação entre a atividade e a competência.

Le Boterf assume posição com relação às práticas das empresas diante da


mudança e da incerteza. Ele denuncia as soluções habituais que consistem em
164 Competência e atividade de trabalho

adicionar sempre mais regras a fim de controlar a variabilidade. Em razão da


demanda crescente de confiança por parte do seu ambiente, os empresários têm
respondido ao imperativo de confiabilidade por meio do aumento de procedi-
mentos e de uma automação excessiva. É o momento, segundo ele, de acreditar
na competência dos profissionais.

Le Boterf leva em consideração, em particular, os resultados da investigação


dos ergonomistas, a propósito do distanciamento entre o trabalho prescrito
e o trabalho real. É preciso:

“pessoas capazes de reagir a acontecimentos ou a riscos,, de serem capazes


de remediar, ainda que de modo provisório, as falhas dos sistemas técnicos,
de enfrentar situações não rotineiras, de ir além dos procedimentos a serem
executados, de lidar com o inédito, de tomar iniciativas pertinentes, arbitrar, de
inovar“(2010: 75).

A dificuldade para nós se encontra nas premissas do raciocínio: haveria momentos


no trabalho em que a tarefa seria suficientemente explícita para ser aplicada ao
pé da letra. A expressão utilizada aqui –“um saber-fazer em situação” – contém,
aliás, uma forma de contradição em relação aos termos. Se partimos da hipótese
de um trabalho inteiramente alienado,no qual bastaria aplicar as instruções, não
vemos o que justificaria nesse “fazer” um espaço qualquer para um saber. Em
seguida, qual seria a diferença entre um trabalho que se limita ao fazer e um outro
que autoriza um “agir”? Para o autor, parece que isso seria uma questão de infor-
mações disponíveis. Contrariamente ao que caracterizava o trabalho na cadeia de
montagem, as organizações atuais não estão em condições de prescrever tudo.
Numa situação da qual não se pode conhecer tudo de antemão, sendo impossível
estandardizar, o operador iria encontrar a matéria para saber e para agir. Cons-
ciente, sem dúvida, da fragilidade da argumentação, G. Le Boterf afirma que ele
não defende uma visão maniqueísta dos empregos: saber-fazer e saber-agir iriam
se alternar como momentos, no intercâmbio entre o indivíduo e a organização.
É o que, de acordo com o autor, iria tornar indispensável uma perspicácia dos
responsáveis pelo pessoal, quanto à natureza das exigências em cada uma das
Parte 3: Modelizar o agir em competência 165

situações de trabalho: se uma delas prevê margens de manobra, as competências


devem corresponder em termos de “saber agir.”

Certamente, o “saber-fazer” é uma expressão que todos utilizam deliberadamente


como uma caixa-preta, para designar um fenômeno óbvio, mas que não se consegue
necessariamente explicar. Todavia, quando o opomos ao “saber agir”, subentende-
-se uma oposição do tipo poiësis e práxis. Ora, pensamos que é inconcebível
limitar o trabalho de um ser humano ao funcionamento de uma máquina, isto é,
à sua estrita aplicação. Não é mais aceitável falar de uma alternância “homem-
-máquina/ homem inteligente.” Não se compreende uma situação de trabalho sob
o ângulo exclusivo da troca de informações. E aquele que evolui nessa situação
não se deixa, tampouco, simplificar, para não existir senão no plano cognitivo –
e mais, sobre o modo o “on” ou “off”. Não há trabalho sem agir e nem agir sem
interpretação. O agir corresponde a uma experiência normativa, o que significa
que um assujeitamento é conduzido por uma iniciativa. Um supõe o outro, um
passa pelo outro: estruturalmente, a poïesis supõe uma práxis. Afirmar isso não
é, entretanto, o equivalente da proposição de G. Le Boterf “um saber agir com-
porta e combina diversos saber-fazer” (2002b). Queremos dizer que uma norma
visa ao assujeitamento, mas ela supõe um ser normativo, então, um “relais” de
existência. Não se trata da ideia de um saber agir (inventar normas quando não
há normas) que iria conter saberes de produzir (bem respeitar a norma explícita):
como as diferentes formas do segundo poderiam se reencontrar no primeiro? Agir
em situação nova não é reencontrar normas que já eram conhecidas, é sobretudo,
reinventar, readaptar as normas ao inédito. O fazer/poïèsis não saberia ser imper-
meável ao agir/práxis... Agir significa “fazer alguma coisa” no sentido de seguir
uma regra, mas retomando a iniciativa sobre essa regra, de maneira a que ela não
permaneça somente como um constrangimento, mas apareça igualmente como
uma oportunidade. Não existe o “puro ator” da norma: cada um tenta, modesta-
mente, ser um pouco autor (portanto, relativamente responsável) daquilo que ele
empreende para alcançar a norma. Ele não a aplica sem habitá-la a norma com
aquilo que ele é, caso contrário, ele seria um robô.
166 Competência e atividade de trabalho

2.3 O ponto de vista crítico sobre o saber combinar

Em seguida, Guy Le Boterf propõe falar da competência como um saber combinar.


Isso levanta outras questões. “As competências não são entidades que existiriam
independentemente das práticas de avaliação que procuram identificá-las”, escre-
ve o autor de uma outra maneira (1998:144). Estamos completamente de acordo
em que uma competência seja entendida como uma convenção, uma maneira de
falar da maneira de agir de alguém. Nós nos juntamos, portanto, ao autor para dizer
que não existe um perfil-tipo da competência, nenhum critério universal (formal,
estrutural) para julgar a priori, se tal pessoa é competente ou não. Quando se fala
de competências requeridas, fixamos, de algum modo, as normas antecedentes da
tarefa: isso não significa que o operador vá extrair potencialidades que dormem
nele, mas isso quer dizer que as pessoas se põem de acordo sobre um referencial:
a base de uma exigência (eis o que lhes peço e vou julgá-los com base nesses
critérios); a base de uma reivindicação (eis com quais índices quero ser reconhe-
cido à altura da tarefa que me é confiada) e de um direito (eis qual será a minha
contribuição e tenho direito aos meios que a acompanham: um poder de agir).

Na medida em que a competência exprime, assim, uma convenção, uma linguagem


comum a propósito de um agir, o que pode querer dizer “combinar” competências?
A competência no singular representa um julgamento geral sobre a pessoa e seu
trabalho, enquanto as competências no plural levam o julgamento sobre os detalhes
desse trabalho. Contudo, em todos os casos, falamos de uma descrição categorial,
formal da atividade de qualquer pessoa – e não de elementos tangíveis. Para se
explicar, G. Le Boterf toma o exemplo do ciclista: ele deve saber pedalar, frear,
acelerar e, entretanto, sua competência global é mais do que uma adição de saber-
-fazer. Certamente, o modelo de competência como acumulação não é crível, mas o
modelo da combinatória para nós é igualmente dificilmente aceitável. Efetivamente,
se se analisa com exagero, perde-se a relação, e isso faz o autor dizer que existe
uma dinâmica interacional entre os elementos da competência, que ele qualifica
de “sistema” (2002b). Entretanto, não pensamos que a singularidade do ato e sua
Parte 3: Modelizar o agir em competência 167

irredutibilidade são do domínio de uma lógica combinatória: é possível predizer,


com grande precisão, diferentes formas de um modelo matemático, mas jamais as
de uma ação! Além disso, uma combinatória não faz uma singularidade. O ciclista
chega a andar de bicicleta não porque agencia recursos segundo um estilo próprio,
mas porque ele encara a estrada para ficar em equilíbrio: ele está em debate com o
seu meio, enfrentando obstáculos os quais ele tenta superar, arrancar sua iniciativa.
Ele aprende e sabe efetivamente andar de bicicleta dado que está em atividade,
movido por uma insatisfação que é um desejo de existir singularmente. Mas essa
singularidade não é um fato constatado de antemão: ela deve ser conquistada e isso
é precisamente o que incita o ciclista a voltar a subir em sua bicicleta (...).

Por sua vez, Yves Schwartz (1997) apresenta seu modelo de inteligibilidade da
competência como uma combinação de ingredientes heterogêneos. Ele não fala
de uma combinatória, porque esse termo sugere uma configuração de um número
finito de elementos, mas de uma mistura como quando se coloca uma comida
pronta no prato. Os componentes do agir em competência – que agem uns sobre
os outros – não são todos tratados da mesma maneira, isto é, de maneira lógica,
porque eles são trabalhados mais sobre um plano axiológico. As normas antece-
dentes que permitem que uma situação de trabalho aconteça vão ser reprocessadas
por cada um em função da sua percepção das urgências, de seus preconceitos, do
que é norma para ele. Falaremos de debate de normas para designar a comensu-
rabilidade conflituosa das normas. Além disso, quando comenta seu modelo, Y.
Schwartz sublinha que o tratamento heterogêneo de ingredientes heterogêneos
não se presta a uma avaliação homogênea. A maneira, por exemplo, como uma
pessoa participa das sinergias coletivas não pode ser avaliada da mesma maneira
como pode ser avaliado o seu domínio de técnicas.

Guy Le Boterf, ao contrário, procura unificar, com um mesmo termo, o que ele
chama de “recursos”, confundindo o que é geralmente distinguido no esquema
da ação: as condições – circunstâncias objetivas, subjetivas – os meios, a ação de
pôr em trabalho... Essa generalização favorece a abstração a ponto de fazer desse
“recurso” uma pura possibilidade (pode-se tratar de um meio, de um esforço, de
168 Competência e atividade de trabalho

uma autorização, de uma alternativa, de uma oportunidade etc.), da qual se fala


como um elemento objetivável, “um dado” na análise da situação. Ora, um recurso,
na realidade, não aparece como tal senão em função de um ponto de vista: em ou-
tros termos, em função da atividade de alguém, em relação com seu meio de vida.

Essa questão da combinatória de recursos vai criar uma nova dificuldade na ava-
liação da competência. Guy Le Boterf recomenda não mais se limitar a controlar
separadamente a aquisição dos recursos, mas “assegurar que o sujeito é capaz de
selecioná-los, combiná-los e de mobilizá-los de modo pertinente em uma situação
de trabalho particular” (2002b). Parece-nos que o autor confunde aqui a avaliação
e o controle, na medida em que a avaliação, como cruzamento de pontos de vista,
visa à competência no singular, e o controle (a coleta de fatos probantes) diz
respeito mais às competências no plural. Num primeiro momento, acreditamos, a
avaliação olha o exercício singular de uma pessoa a quem se confiou uma tarefa.
Essa pessoa defende sua interpretação, que é submetida a debate. O referencial vai,
na sequência, apresentar uma pedra de toque e, portanto, uma proteção diante do
arbitrário das interpretações. Constata-se um fato, que é recortado com outros fatos
para daí concluir do real ao possível, à capacidade de fazer: existe sempre uma
margem de debate, sobre o qual se pondera com a avaliação – essa dependendo
igualmente de uma aposta interpretativa. Em suma, utiliza-se a estabilidade de
um referencial (resultante, aliás, de um debate) para dar à avaliação, ao mesmo
tempo, uma pertinência e uma legitimidade. Essa maneira de utilizar o referencial
nos lembra de que a aquisição de que se fala não é outra senão a atividade própria:
não estocamos “as aquisições” em nós mesmos, numa loja interior; estamos total
e simplesmente em atividade.

O mal-entendido se prolonga com a distinção que G. Le Boterf efetua entre as


competências requeridas e as competências reais. A competência é sempre da
ordem de um discurso (normativo) que se apoia sobre fatos. Trata-se de uma con-
venção de descrição, uma maneira de falar do agir de uma pessoa bem-identificada.
Quando se desloca da palavra para a coisa, do substantivo para a substância,
deixa-se acreditar que a competência/convenção não seria senão um reflexo de
Parte 3: Modelizar o agir em competência 169

uma competência/realidade. E o que surge desse imbróglio é uma (des) realiza-


ção da única coisa que é real, a saber, a própria convenção dela mesma! A dupla
“competência requerida e competência real” nos parece, então, ser uma distinção
falsa que ocasiona problemas falsos: as competências não precedem a ação como
suas condições de possibilidade (condições subjetivas, no sentido de pertencerem
ao sujeito da ação), mas ao contrário, a ação sendo realizada, as competências
são uma grade, uma referência, um conjunto de coordenadas para descrever e
formalizar a posteriori essa ação, como uma maneira de falar dessa ação.

Com razão, Le Boterf faz notar que um referencial está em discordância com a
realidade, ele não dá a imagem fiel do agir de uma pessoa em um determinado
momento. É que a pessoa em atividade está em evolução, ao passo que o refe-
rencial é uma ferramenta, uma maneira de falar da atividade. Aí não pode haver
uma homotesia2 entre os dois, o referencial e a atividade, uma vez que o primeiro
pertence ao registro da desaderência, e a segunda, ao registro da aderência. O
que conta é não se enganar em relação ao registro, ter o referencial em razão do
que ele é: um traço, sem dúvida, mais parcial que parcial, dessa atividade de
que não se pode falar sem norma. A norma antecedente é sempre, uma referência
(um sinal indicador, não o trilho...) para aqueles que devem agir – e é para isso
que serve o referencial, tanto para o administrador quanto para o empregado.

2.4. O ponto de vista crítico sobre o saber interagir e a reflexividade

Guy Le Boterf propõe, finalmente, associar a competência a um “saber interagir


com o outro”: saber tomar de empréstimo e utilizar os meios dos outros; saber
falar com o cliente, mostrar-se profissional em relação a ele; saber resolver as
situações-problemas em relação às normas do ofício e da empresa. Saber interagir
não traz como consequência nada de novo, já que o saber agir já está enraizado
na situação, a qual só existe em relação com os outros. Além disso, como no
conjunto de sua argumentação, G. Le Boterf usa aqui a palavra saber como si-
nônimo da competência. Ora, se a competência era identificada a um saber, ela

2 N. T.: Propriedade de figuras semelhantes e semelhantemente dispostas (Aurélio, 2009).


170 Competência e atividade de trabalho

poderia ser ensinada – e esse não é o caso. Trata-se, sobretudo, de uma relação
ao saber, sobre a qual trazemos um julgamento: julgamos positivamente alguém
declarando-o competente; reconhecemos seu domínio da situação, ou seja, a sua
relação com o saber, entendido como um ponto de vista sobre as normas e seu
investimento na situação.

Último ponto: a reflexividade. Sem sombra de dúvida, adotar um ponto de vista


crítico sobre o que se empreende é um meio de se tornar mais competente. Con-
sideramos que a competência caracteriza aquele que desenvolve um ponto de
vista sobre a norma, de maneira a assumi-la normativamente, existindo face a
ela e através dela. Contudo, no modelo proposto por G. Le Boterf, a inclusão de
um capítulo sobre a reflexividade pode surpreender. Na verdade, “autorregular a
sua ação” e “compreender como se segurar nessa ação” deveriam ser os funda-
mentos do saber agir, ele mesmo identificado com a competência pelo autor. Se
a reflexividade é até agora uma dimensão adicional, uma capacidade cognitiva
para desenvolver novas estratégias, já não se entende mais exatamente o que
recobre o saber agir.

“Poder analisar e explicar sua maneira de fazer” (2002b) pode ser entendido
como o domínio do porquê, em complemento ao como. Contudo, não pensamos
que a competência possa ser unicamente de natureza cognitiva, refeita unica-
mente pela análise lógica. Todo o sentido da retomada crítica é ir além da análise
da eficácia dos meios, para provar o recuo axiológico, colocado em perspecti-
va, a fim de cruzar os diferentes pontos de vista. No singular, a competência é
uma apreciação geral que sanciona e encoraja o distanciamento e a formação
de um ponto de vista. O debate interpretativo serve para entender a relação
com as normas, que faz com que a pessoa tenha ultrapassado o prescrito, tenha
reinterpretado sua tarefa no serviço. As linhas do referencial vêm apoiar este
esforço de interpretação, propondo a formulação “ser capaz de” que identifica
as competências no plural, como um ensaio de generalização e de abandono do
imediatismo, da particularidade da tarefa.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 171

Não saber agir com competência em tal situação: isso significa que a pessoa não
soube o que fazer? Ou que ela não soube restituir o que ela aprendeu entrando no
concreto? No segundo caso, respondemos que isso não é necessariamente um proble-
ma de análise lógica, porque o problema pode também relevar um posicionamento
axiológico. Na primeira hipótese, diríamos que um insucesso não significa que a
pessoa não era competente. Resta saber o que ela faz da sua situação de insucesso:
ser competente, acreditamos, é gerir, de uma maneira pertinente, um insucesso
eventual, que não depende jamais unicamente de nós. Seria possível mesmo dizer
(cf. Mendel, 1998) que, já que agir é, de alguma forma, surfar sobre a crista ativo/
passivo, nossos sucessos não dependem apenas de nós. Na perspectiva da atividade,
nós não temos nem de nos culparmos de nossos fracassos, nem de nos glorificarmos
de nossas realizações: tudo depende da forma como gerimos a evolução do curso
das coisas, na situação em que nela se investiu. Podemos ter sucesso em coisas
sem sermos competentes (se tudo corre bem, as situações se ajustam, às vezes,
por si mesmas) assim como o inverso. E é também por essa razão que um júri de
avaliação das competências vai buscar verificar, na perspectiva da pessoa, se ela é
ou não competente: ela será julgada em relação à maneira como geriu a situação.

2.5. Conclusão sobre a obra de G. Le Boterf

Na área de “recursos humanos”, Guy Le Boterf exige uma renovação da abordagem


de competências na empresa. Ele denuncia a fixidez da abordagem tradicional,
o seu lado fragmentado, que lista separadamente as características prescritas da
tarefa e do ator e a generalidade do proposto, ao passo que seria necessário partir
das situações de trabalho específicas. O autor representa um progresso inegável
no pensamento gerencial hexagonal. Sua abordagem é, manifestadamente, muito
inspirada pelas teorias da ação, com o esquema clássico do processo: um sujeito
independente, que é tomado em circunstâncias (que não dependem dele) e meios
(que dependem dele), no momento de se engajar em uma ação (com um projeto e
sua execução) e de produzir um resultado. Encontra-se esse esquema em todos os
três componentes do saber agir: primeiramente, os recursos (pessoais e externos –
172 Competência e atividade de trabalho

esses são os meios); em seguida, as atividades-chave a serem realizadas (esses sãoos


objetivos) e, finalmente, os resultados. Guy Le Boterf, porém, insiste em três coisas:
a particularização das situações variáveis no trabalho; a recombinação do prescrito
em estratégias particulares; finalmente, a transferibilidade das competências, uma
generalidade que não é dada com antecedência, mas que se constrói pela análise
lógica reflexiva. Essa é sua introdução de situações particulares que o levaram a
transformar a trilogia “saber, saber-fazer, saber-ser” em um novo triângulo: o querer
agir (representando o sujeito e o que o motiva); o poder agir (representando as
circunstâncias/condições da situação, os meios); e o saber agir (aplicar o procedi-
mento sob a forma de uma estratégia adaptada à situação particular).

Guy Le Boterf se dedica à mentalidade muito aplicativa que domina, ainda hoje,
amplamente, a governança do trabalho. Ele gasta, então, bastante energia explican-
do o que será descoberto levantando o véu da aplicação: de uma parte, a situação
profissional, em que nem tudo é prescrito pela organização e, de outra parte, o
comportamento de elaboração de uma estratégia, para essa situação particular, por
um indivíduo. Para o autor, a competência é sinônimo de combinação original de
recursos ou ainda “de interpretação da partitura.”

Os dois conceitos de situação profissional e de prática profissional correspondem a


um duplo movimento que realmente caracteriza o trabalho: primeiramente, a abs-
tração/generalização e, depois, a recontextualização. No entanto, para essa análise
do trabalho, G. Le Boterf se atém estritamente ao estrito plano cognitivo. Isso é
o que o distingue de uma abordagem pela atividade, tal como foi proposto pela
análise ergológica. Yves Schwartz, com efeito, reconhece, no esforço de abstração/
generalização, que ele chama de “desaderência” uma tensão tanto conceitual quanto
axiológica: e essas duas formas de desaderência só têm sentido ligadas. Na verdade,
é porque queremos ganhar em objetividade (incluindo aí o sentido corrente de con-
senso) que desaderimos conceitualmente – e isso supõe se desfazer de seus juízos de
valor, a fim de se esforçar para se tornar imparcial. Então, se não fizermos a ruptura
epistemológica, vamos procurar desalojar os juízos de valores residuais até negar a
Parte 3: Modelizar o agir em competência 173

humanidade de seu próprio ponto de vista (cf. “a função essencial da ciência é a de


desvalorizar as qualidades dos objetos que compõem o meio próprio, propondo-se
como teoria geral do meio real, quer dizer inumano”; Canguilhem, 1965: 153).

O ser humano está constantemente em aderência com o meio em que vive, nota-
damente no trabalho. E, simultaneamente, ele busca sem descanso se distanciar
desse meio e desse momento, graças à sua faculdade de pensar em desaderência.
Quando não se afrouxa essa tensão entre a aderência e desaderência, no momento
de refletir sobre uma questão relativa ao humano, percebe-se que as análises que
nos pareciam colar à realidade, refleti-la, ao contrário se destacam dela – o que
deixa aparecer o espaço de um debate, ou seja, o reconhecimento de um ponto
de vista naquele que é o objeto dessa análise. Esse destaque sistemático, graças
ao par aderência/desaderência, não conduz necessariamente o analista ergólogo
a contradizer o que se diz sobre a atividade humana (além disso, ele não traz
nenhum fato novo), mas, frequentemente, desloca os pontos de vista justamente
ao jogar luz sobre os debates da atividade, os debates de normas.

É por isso que nós nos felicitamos pela abordagem adotada por Guy Le Boterf
para levar o pensamento gerencial a considerar mais as situações de trabalho.
Porém, esse autor se posiciona sempre em desaderência. Inclusive quando fala
de singular, uma vez que ele pensa sobre as combinatórias, ele não percebe a
aderência. Esse acantonamento no registo do geral o impede de se apoderar do
específico simultaneamente. Ele continua no único esquema clássico da ação. Ora,
quando se ignora a atividade, corre-se o risco de se ficar preso em um dualismo.
Percebe-se o ato como o confronto de dois blocos, um interior e o outro exterior
àquele que age: eu e o mundo. “Eu me preparo, eu otimizo meus meios depois
enfrento o mundo – que me é favorável ou não nas circunstâncias em que ele se
opõe a mim.” Para nós, isso não é a atividade. A atividade está numa aventura
de uma confrontação incerta com o mundo porque, quando tem início a ação, eu
não gerencio tudo. “O risco é o ato, como o caroço é parte integrante da cereja”
escreve G. Mendel (1998:323).
174 Competência e atividade de trabalho

3. O estado de nossa pesquisa: gerar os modelos para desen-


volver e avaliar as competências que respondam equitativa-
mente à dupla exigência de objetividade e de diálogo

3.1. Dar visibilidade à aderência, a fim de melhor falar da competência


com os Dispositivos Dinâmicos a Três Polos

Como um sistema de normas, já dissemos, uma organização deve se instalar em


um paradoxo, o de se apoiar simultaneamente sobre uma anonimização e uma
personalização. A anonimização permite a gestão das competências porque as
maneiras de fazer a gestão seriam por demais pressionadas se fosse necessário
levar em conta singularidades. Inversamente, é a personalização que torna possível
a implementação do prescrito, visto que o trabalho não pode se realizar de forma
neutra. O debate entre a qualificação e competência deu ainda mais acuidade a esse
paradoxo normativo. Com a qualificação, a controvérsia em torno da interpretação
dos conteúdos e dos níveis hierárquicos era explícita porque o julgamento era
suficientemente exteriorizado e francamente distante do trabalho real. No modelo
de competência, o julgamento é mais interiorizado e não aparente. Logo, é mais
difícil distinguir a anonimização e a personalização pelo fato de que buscamos
colá-las à realidade do trabalho.

Se os modelos atuais de gestão das competências ainda geram muita insatisfação


entre os seus utilizadores, é porque as duas exigências de objetivação (condição
objetiva, neutralização, anonimização) e de transformação (interpretação de
acordo com um ponto de vista, portanto tendenciosa, uma personalização) são
mais justapostas que integradas. De fato, tem-se, de um lado, o uso, às vezes
intempestivo, de grades anônimas para delimitar a competência através de uma
codificação (uma desincorporação que incita alguns a falar de desumanização,
como vimos) e, de outro lado, um apelo contínuo ao engajamento pessoal, uma
imposição à iniciativa e à inovação no trabalho.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 175

A modelização, proposta pela abordagem ergológica, repousa sobre a atividade


entendida como uma sequência de debates de normas e apreendida em “dupla
antecipação”: é esse modelo que permite dar conta da competência como um
fenômeno, ao mesmo tempo, livre dos pontos de vista (julgamento sobre o ator,
esforçando-se em ser objetivo) e imerso nos pontos de vista (julgamento funda-
mentado no ato, que leva em conta um ponto de vista singular e em situação).

A dupla antecipação é uma maneira de representarmos a relação complexa entre o


conhecimento e os saberes, o conhecimento sendo teórico e os saberes experenciais,
práticos. O conhecimento vai intervir, acima da situação de trabalho, na elaboração
racional da situação de trabalho (definição de tarefas e procedimentos, divisão
do trabalho), na modelização gerencial e na formação dos operadores. Contudo,
como o demonstraram durante décadas os trabalhos da ergonomia, esses esforços
de antecipação teórica da atividade não serão jamais suficientes. Serão necessá-
rios saberes informais para suceder ao conhecimento em situação concreta: esses
saberes de proximidade do evento são interpretações, pontos de vista, iniciativas
que permitem ir além do prescrito, ultrapassá-lo – e é, nesse sentido, que se pode
falar deles como de uma “segunda antecipação”.

Uma situação de trabalho supõe a articulação de duas antecipações, porque ela exige
tanto a proatividade (o domínio de certo número de variáveis) quanto a reatividade
(não somente de inteligência prática, do raciocínio lógico, mas também um enga-
jamento em valor, um esforço de viver). A primeira antecipação [da ação] é uma
construção racional e discursiva, ao passo que a segunda antecipação [na ação] é
uma compreensão feita de julgamentos de valores, de apreciações e de estimativas.

O saber da experiência, que a abordagem ergológica caracteriza como uma segunda


antecipação, não é uma mera opinião. Ele é um ponto de vista sobre a situação, o
que quer dizer duas coisas: em primeiro lugar, ele traduz o fato de que os conteúdos
da norma (conceitos com pretensão universal, modelos predefinidos) fazem norma
para alguém que deles se apropria; depois, ele é capaz de trazer um esclarecimento
inédito sobre um aspecto desconhecido da realidade. Assim, o saber nascido da
176 Competência e atividade de trabalho

experiência não é mais somente um obstáculo epistemológico na produção do


conhecimento científico; ele é, também, uma condição positiva, indispensável à
apropriação desse conhecimento. Reencontra-se essa dupla dimensão cognitiva
na atividade entendida como uma sequência de debates de normas: ou seja, um
debate interno à entidade que age, presa entre as normas antecedentes que ambi-
cionam orientar sua ação e suas próprias normas, em nome das quais ela propicia
uma coerência à situação.

A força do modelo da “dupla antecipação” é de nada ceder à exigência de rigor


conceitual do conhecimento em primeira antecipação, reconhecendo o lugar dos
saberes interpretativos, portanto largamente axiológicos e relativos a uma dada
situação. Longe de alterar a validade das neutralizações sobre as quais repousam
as ciências e as técnicas, a segunda antecipação assume o conjunto das escolhas
e a parcialidade dos pontos de vista da experiência e justifica que se procure,
pelo contrário, retirar todo o valor residual pela ruptura epistemológica, quando
se trata da primeira antecipação. Em lugar de desprezá-las como ilusões ou con-
teúdos pré-científicos, tomamos a sério os saberes da experiência reforçando a
objetividade do conhecimento. Não se trata de relativismo, trata-se de se dar os
meios de melhor considerar a atividade humana que é multidimensional. Porque
cada um dos dois registros tem necessidade do outro. Os saberes da experiência
não podem bastar para prever, coordenar e regulamentar o trabalho; por seu lado,
o conhecimento racional e abstrato está interessado por naquilo que a experiência
pode dizer de inédito sobre a realidade em situação.

Consequentemente, o modelo da dupla antecipação torna possível a dialética


do conhecimento e dos saberes. Essa dialética afirma sua descontinuidade, o
que os justifica em sua diferença; mas, ao mesmo tempo, ela afirma sua conti-
nuidade, pois eles têm, através de sua respectiva consistência, a mesma razão
de ser: considerar a realidade.

Temos assim, em toda situação de trabalho, duas formas de recursos intelectuais,


distintos, mas que podem ser medidos: os saberes da atividade, tipos de constru-
Parte 3: Modelizar o agir em competência 177

ções híbridas, mais ou menos em aderência, portanto, atados a valores retratados


localmente – e saberes constituídos mais ou menos em desaderência, ou seja,
próximos de uma elaboração conceitual. Para promover o diálogo dessas formas
de saberes em um contexto institucional ou de empresa, Yves Schwartz propõe
imaginar “dispositivos dinâmicos a três polos”. Ele situa os saberes instituídos e
os saberes investidos na atividade sobre dois polos diferentes – o termo polo aqui
significa que estamos lidando com as tendências, não com recortes marcados. Na
verdade, não se trata de caricaturar uma oposição entre conceptores de um lado
e executantes do outro. As mesmas pessoas podem estar no primeiro polo, o dos
saberes constituídos, porque elas são mestres de obra, posicionando-se no segundo
polo, sob o ângulo de sua atividade de trabalho.

O diálogo desses dois polos não é nada evidente. O polo 1, certo do prestígio
do conceito, pode se satisfazer em construir os saberes sob a forma de mode-
lizações neutralizantes e continuar a ignorar o retrabalho desses saberes na
atividade. O polo 2, tomado pelas urgências da ação, não tem necessariamente
a disponibilidade para a formalização, bem como a manutenção de uma certa
opacidade dos saberes no trabalho pode ser um verdadeiro desafio. Daí a abor-
dagem ergológica que preconiza um terceiro polo, susceptível em provocar a
interfecundação dos saberes. Vamos falar de um estado de espírito ou ainda de
uma postura específica a sustentar (via uma animação ou uma formação ad hoc):
impossível, de fato, se encontrar sem que haja aí uma expectativa mínima de
cooperação, um tipo de desconforto que incita a ir em direção ao outro polo.
Duas condições de possibilidade: a primeira é de ordem epistemológica porque
é uma questão de produção original de saberes, implicando a preocupação de ir
buscar novas fontes; a segunda é de ordem ética, porque uma escuta real passa
pela autêntica convicção do inédito na palavra do outro, uma vontade de saber,
um certo olhar em seu semblante. No fundo, cada um deve “estar disponível
para redesenhar a sua quota de ignorância sempre recomeçada, sem em nada
ceder da ambição de saber” (Schwartz 2000: 126). Modéstia e não saber de um
lado, rigor e exigência de saber do outro.
178 Competência e atividade de trabalho

O terceiro polo é não só o provocador dos encontros, mas também o beneficiário


do trabalho cooperativo. Ele produz saberes novos, que também são, na perspec-
tiva de uma conduta de mudança, verdadeiras “reservas de alternativas”, porque
a atividade transborda de novas ideias nascidas dos debates de normas. Juntos,
entramos no coração da atividade humana, aprendendo a desdobrar os triângulos:
agir – valores – saberes. Cria-se, assim, um espaço mediano entre dois imperativos,
o de pensar através de conceitos e o de lidar com as urgências.

Como já dito, Yves Schwartz designa o agenciamento assim constituído sob o


nome de dispositivo dinâmico a três polos. A palavra dinâmico faz referência a
tudo o que tais matrizes podem gerar, em particular o fato de tornar visíveis as
renormalizações; as tomadas de consciência provocadas por sua colocação em
palavras; o exercício muito formador que consiste em “torcer o conceito”; a reno-
vação dos valores humanos, sociais, coletivos; a renovação dos saberes formais
e disciplinares; a transformação dos meios ambientes.

Um dispositivo dinâmico de três polos permite às duas formas saber que são
claramente distinguidas para melhor dialogar em seguida. O polo dos saberes
codificados responde à exigência epistêmica, aquela que tende à objetividade
e à universalidade, ao passo que o polo dos saberes investidos na atividade
responde à exigência ergológica, aquela que dá conta das escolhas e dos de-
bates de normas. O terceiro polo permite, em primeiro lugar, compreender a
atividade como uma experiência normativa: cada indivíduo é confrontado com
as normas antecedentes, numa relação triangular, pois essa confrontação inclui
necessariamente outra pessoa. Essa experiência repousa sobre a dinâmica nor-
ma/renormalização: é a própria dinâmica da competência, que para nós é uma
arte de gerar seus debates de normas. O emprego do termo “arte” é aqui nossa
maneira de sublinhar vários aspectos da competência: ela não é um processo,
mas uma aposta; ela assinala a convergência de uma demanda de confiança e
de uma demanda de reconhecimento; ela expressa o ato sempre perfectível de
alguém, uma pessoa bem-identificada, mas sempre através do olhar dos outros;
Parte 3: Modelizar o agir em competência 179

ela repousa sobre o debate de normas, mas corresponde mais largamente à


experiência normativa ela mesma, quer dizer à modificação de seus diferentes
ingredientes (cf. os ingredientes da competência, Schwartz, 1997).

O terceiro polo permite, em seguida, compreender a importância de distinguir,


sem jamais separá-los, os dois registros da aderência e da desaderência, porque
eles representam a tensão entre os dois movimentos contrários, mas necessários,
da relação entre as normas e os homens normativos: a anonimização e a perso-
nalização. O primeiro polo representa o esforço de anonimização: liberam-se
as condições específicas para alcançar o nível geral de uma instituição, de uma
organização. O segundo polo representa o esforço de personalização: através de
nossos debates de normas, interpretamos a demanda institucional em função das
realidades encontradas, o que gera de inédito – e esse inédito vai tornar sempre vão
o projeto de uma modelização exaustiva. Quando perdemos de vista essa tensão
aderência/desaderência, arrisca-se a assimilar o primeiro registro à “teoria” ou
à “concepção”, e o segundo registro à “prática” ou à “realização em contexto”.
Nesse caso, no lugar de ver a competência através do modelo da dupla antecipação,
como um esforço para renovar, sem cessar, a tarefa numa interpretação pertinente
do serviço, vamos olhar essa competência como uma qualidade que se vai possuir
ou não, a partir de uma imagem congelada da realidade – já que a relação, sempre
problemática, entre aderência e desaderência, terá sido perdida de vista.

Enfim, o terceiro polo encoraja a produção de novos saberes sobre a atividade


humana (e notadamente sobre o agir em competência), no quadro do diálogo
dos dois tipos de saberes postos em comensurabilidade. Será visto, então, como
as práticas e os discursos, hoje dominantes em torno da noção de competência,
certamente têm eficácia e pertinência, mas eles mesmos se limitam pela unila-
teralidade de sua abordagem das situações de trabalho. Porque, aproximando o
trabalho unicamente pela desaderência, ignorando, portanto, a aderência e a rela-
ção dos dois registros, pode-se limitar a constatar fatos: o trabalho real, o desvio
do prescrito, a singularidade das maneiras de se posicionar em uma situação, os
estilos, a impossível estandardização do trabalho. O dispositivo a três polos, pelo
180 Competência e atividade de trabalho

contrário, põe vis-à-vis a norma e a renormalização: é nisso que a norma aparece,


como outra coisa e não um constrangimento – e que a renormalização aparece, por
seu lado, como mais que uma maneira de fazer: ela é o resultado de um debate de
normas. Pois o que justifica um dispositivo dinâmico a três polos é a atividade,
na medida em que ela ultrapassa o fato da renormalização. Para chegar lá, o autor
deste retrabalho das normas propôs ele mesmo perspectivas, considerou as possi-
bilidades e renúncias, pesou as soluções e maneiras de ver opostas, que são tantas
alternativas portadoras de mudanças potencialmente fecundas – na condição de
lhes dar alguma visibilidade (à qual visa o terceiro polo).

Podemos tomar novamente, por nossa própria conta, a metáfora teatral preferida
de Le Boterf (1998), aquela do papel e da interpretação do papel, sublinhando o
que falta ao raciocínio. Na verdade, a norma e a renormalização podem ser efe-
tivamente ilustradas pelo papel previsto pelo roteirista e pela interpretação que
delas faz o comediante. No entanto, a atividade desse artista vai muito além de sua
apresentação visível, tal noite em tal lugar. Seu saber da experiência, isto é, tudo o
que ele pode nos dizer da realidade considerada de seu ponto de vista, serão suas
próprias arbitragens que ele vai, em seguida, analisar e criticar. O que ele não fez
é também tão interessante de conhecer quanto o que ele realmente fez, uma vez
que entra em suas razões de agir: sua maneira de ver a cadeia de causas e de
efeitos, sua interpretação dos fatos, vistos como impedimentos ou oportunidades,
notadamente em atos formulados por outros simultaneamente, etc.

3.2. Compreender a situação através da dupla impossível/invivível, a


fim de melhor julgar a competência

Acabamos de descrever um dispositivo susceptível de lançar mais luz sobre essa


“matéria ativa”, pela reflexão que chamamos atividade humana e a partir da qual é
possível entender melhor o agir em competência. Vamos descrever, um pouco mais
longe, um exemplo desses dispositivos dinâmicos a três polos. Antes, gostaríamos
de aprofundar um pouco mais o conceito de aderência, na medida em que temos,
como hipótese, que é isso que escapa às reflexões atuais sobre a competência.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 181

Como temos sublinhado por diversas vezes, a noção de distanciamento entre o


trabalho prescrito e o trabalho real não tem sido realmente debatida na literatura
gerencial de hoje. A variabilidade das situações de trabalho é um fato confirma-
do: nós, então, superamos um obstáculo na desconstrução das representações
simplistas do homem produtor, mas isso não é suficiente. É preciso ir mais longe
e colocar a questão: o que advém desse distanciamento prescrito quando ele é
assumido por alguém? Essa é a pergunta à qual Yves Schwartz (2003) procurou
responder formulando quatro proposições que ele vai resumir assim:

• o distanciamento entre o prescrito e o real é universal; ele é encontrado


fatalmente em todos os lugares;

• esse distanciamento não é jamais o mesmo de uma situação a outra, ele é


singularizado;

• esse distanciamento é gerado por alguém, um corpo-si, que vai renormalizar;

• esse distanciamento leva a se confrontar com um mundo de valores, com


uma obrigação de escolher.

Propusemos o seguinte comentário em um trabalho anterior:

“O enunciado poderia, de alguma forma, tornar-se um vade-mecum para qual-


quer pessoa interessada em questões do trabalho. Ele contém, de fato, o essencial
em uma perspectiva ergológica:

– A primeira proposição indica que existe um impossível: a pressão do real é


irredutível. Nunca, em lugar nenhum, vamos suprimir completamente a resistência
que o mundo real nos opõe. Essa proposição responde imediatamente a eventuais
objeções, alegando, por exemplo, uma insuficiência da informação dos organiza-
dores do trabalho. Mesmo melhor documentados, eles não têm senão que esperar
modelizar inteiramente uma situação de trabalho, anulando o distanciamento.

– A segunda proposição destaca a existência de um invivível: a iniciativa do


protagonista de uma situação de trabalho é também irredutível. Quando con-
frontado com um constrangimento, o ser normativo não tem jamais resposta
estandardizada. Longe de reduzir o distanciamento, ele o aprofunda através de
182 Competência e atividade de trabalho

sua iniciativa que afasta, um pouco mais, a situação vivida pela sua modelização
precedente. Assim, outra objeção é refutada por antecedência: não se vai apoiar
jamais em estatísticas para controlar o distanciamento entre o prescrito e o real.

– A terceira proposição indica o fato das renormalizações. Em relação à tarefa


prescrita, o desvio não é uma alucinação ou uma fantasia. É uma versão dessa
tarefa que dá aquele ou aquela que arbitra. Uma criação respeitando uma exigên-
cia prévia (Jouanneaux, 1994:42). Devemos sempre considerar a renormalização
em relação à própria norma, como uma contribuição pessoal, verificável. Esse
ponto interdita pensar a priori que a interpretação da norma equivale à sua
recusa ou à sua negação.

– A quarta proposição representa a originalidade da perspectiva ergológica. Sim,


há criação, mas isso não é um milagre da desaderência. A renormalização se
obtém subtraída por um esforço, na aderência, porque temos um invivível lutando
com um impossível, uma iniciativa que quer rejeitar seu limite e uma sujeição
que resiste a ele. Quem age está no coração de uma dramática, com a obrigação
de escolher. Esse último ponto lembra a natureza profundamente controversa do
uso de si e também de sua dinâmica. “(Durrive, 2015: 118.

O que chamamos aqui de aderência, seguindo Y. Schwartz, não é, por conse-


guinte, o equivalente ao trabalho real. Esse é, sobretudo, o ponto de partida da
reflexão sobre a aderência. Constata-se que não é possível antecipar tudo no
trabalho, porque as pressões do real vão surgir sempre, qualquer que seja o es-
forço de previsão, de planificação dos organizadores. A pessoa que é chamada
a gerir o distanciamento entre o prescrito e o real deve se virar, “fazer com”.
Consequentemente, trabalhar é pensar. Certamente: a intervenção humana é
exigida para encontrar soluções inteligentes face ao problema da variabilidade
do trabalho e a insuficiência da organização. É preciso, como sempre recorda G.
Le Boterf, “ir além do prescrito” (1998). No entanto, o que nos dizem as quatro
proposições vai mais longe. A atividade humana exigida no trabalho não se re-
duz a restabelecer as conexões lógicas quando há lacunas no raciocínio prévio.
Se não fosse isso, então a automação poderia, um dia, substituir totalmente o
trabalhador. Ora, sabemos que esse não é o caso: “As máquinas ditas inteligen-
tes são máquinas de produzir relações entre os dados que lhes são fornecidos,
mas elas não estão em relação com o que o usuário se propõe, a partir das
Parte 3: Modelizar o agir em competência 183

relações que elas engendram para ele” (Canguilhem, 1980:27). O privilégio


do ser humano é “relação a”, ao passo que as máquinas, produtos dos conceitos,
são limitadas à “relação entre”. Trata-se de uma outra maneira de dizer que a
desaderência, que permite à humanidade escapar ao único momento presente, é
sempre dupla: ela é conceitual (relação entre), mas também axiológica (relação
a) Pensar corresponde ao esforço de categorizar, de generalizar, liberando-se
do invólucro dos valores próprios à ação situada. É graças à objetivação, à
anonimização que a organização se torna concebível. Mas, inversamente, nada
não é possível sem a personalização, sem o retorno às situações marcadas pelos
valores, pelas escolhas. Viver é escolher, portanto optar por tal ou tal solução
preferencialmente. E o que torna a intervenção humana insubstituível por um
autômato é bem isto: ser capaz de preferir, em nome de uma avaliação, o que
parece importante em relação ao que parece secundário no momento presente. A
avaliação não é somente lógica (relação entre), ela é também axiológica (relação
b) Consequentemente, trabalhar é pensar, mas é também viver – no sentido de
avaliar continuamente sua relação com o meio.

Compreender a aderência é compreender que o ser humano, colocado diante da


distância prescrito/real, não está somente diante uma escolha. Não fosse isso,
poderíamos imaginar uma árvore lógica e precondicionar a conduta da escolha.
Não, o humano não faz somente a experiência da escolha (latitude entre várias
soluções possíveis), ele faz a experiência da obrigação de escolha. Na verdade,
ele deve decidir, assumir a responsabilidade de seu ato. E, a partir desse ponto
de vista, então, até mesmo não fazer nada é um ato posto.

Quando se detém a reflexão sobre a atividade unicamente na renormalização


(ou na “interpretação do papel”), não se faz senão a metade do caminho – se se
segue essa hipótese da obrigação da escolha. Na verdade, a solução que a pessoa
encontrou na maneira de aí se assumir poderá figurar numa árvore de escolhas
possíveis. Mas trabalhar significa mais do que apresentar uma “solução”: foi
necessário tomar partido, ter um ponto de vista bastante forte para excluir todas
as outras soluções possíveis.
184 Competência e atividade de trabalho

Quando compreendemos isso, nós nos aproximamos da noção de norma na linha de


Canguilhem: uma norma é polêmica porque ela se impõe às outras maneiras de fazer.
Agir é escolher – ou seja – é reter uma só das hipóteses possíveis. E é exatamente
por isso que a atividade ultrapassa a renormalização, que é tão somente a solução
retida. A atividade é, segundo Yves Schwartz (1992), uma “dramática do uso de si”
porque ela recobre os debates íntimos do eu: seu próprio projeto, que deve aceitar
ajustes com o projeto do outro. O que é possível e o que é, ao contrário, impedido
por outro, o que a pessoa sonhava em fazer e o que ela pôde realizar: é isso o debate
de normas – ou atividade (como sequência de debates de normas).

Quando dizemos que a literatura gerencial e, mais globalmente, aquela que hoje em
dia trata das competências, está, de alguma forma, no meio do caminho, queremos
dizer isto: a impossível estandardização é, daqui em diante, reconhecida, mas o
invivível (no sentido daquilo que a estandardização de uma atividade humana, em
particular no trabalho, teria de insuportável, de invivível), isso ainda não é levado
em conta. Ora, a dialética “impossível/invivível” descrita por Yves Schwartz (2000;
2003; 2009) é justamente aquela que constitui a situação de trabalho.

Quando falamos aqui de “situação”, queremos dizer: “a situação de um ser de


atividade”. Efetivamente, trata-se de designar a forma concreta que a realidade
toma (portanto, o real) para alguém bem-identificado: é a sua experiência, positiva
ou negativa, dessa realidade. A situação é aquela que viveu a pessoa da qual se
fala. Claro que o mundo real vai estar lá, inclusive na ausência dessa pessoa. No
entanto, se se quer falar sobre “saber da experiência”, portanto de uma perspectiva
própria, inédita, sobre a realidade, então é preciso delimitar a situação a partir
da consciência singular que está no comando da situação (é a parte “realidade”
que ela representa), ao mesmo tempo que ela está aí engajada, implicada (essa é
a parte do ‘real’ a que ela se submete sem necessariamente representá-lo). Essa
consciência que percebe, à sua maneira, certo estado de coisas, vai tentar ocupar
o seu centro, o que significa que ela vai buscar retomar a iniciativa sobre as re-
gras. Essa é a condição para que se passe algo, no encontro da atividade, ou seja,
em tal lugar e tal momento. De fato, apesar de sua imersão no real governado
Parte 3: Modelizar o agir em competência 185

pela cadeia de causas e efeitos, um real ao qual a pessoa não vai escapar – então,
apesar disso, ela vai se mostrar irredutivelmente ativa, portanto, normativa. Ela
vai tomar uma iniciativa, colocar ali, pois, uma espécie de início, lá onde não há
senão encadeamento determinado de obrigações. Ela vai mudar (por pouco que
seja) o curso das coisas, o encadeamento dos fatos, graças à sua interpretação do
real que resiste a ela. Certamente, ela não pode fazer qualquer coisa: a realidade
está aí, os fatos são “teimosos”... Mas, na situação que lhe diz respeito e da qual
ela reivindica a posição central, a pessoa consegue encontrar subjetivamente uma
coerência, que é, também, uma condição para agir em seu nível. Por sua presença,
como existência, reivindicando uma iniciativa sobre o meio, ela vai modificar,
de uma maneira local, o real, colocando-o em movimento, portanto, em devir,
apesar de sua grande inércia (cf. o peso dos constrangimentos, que nunca cessa).

Na abordagem ergológica, a situação de trabalho se caracteriza, portanto, pela


dialética do impossível/invivível. À irredutibilidade dos constrangimentos (a
estandardização é impossível) responde a irredutibilidade da iniciativa (a es-
tandardização seria também invivível). É por essa razão que – todo mundo o
constata – o prescrito é sempre ultrapassado: ocorre alguma coisa numa situação
de trabalho. Essa não é a simples execução de um modelo, é uma sequência da
história humana que segue seu curso, muito modestamente na maioria das vezes.

É isso que é preciso compreender na palavra “aderência”: não somente o fato da


variabilidade, não somente o fato da renormalização, do estilo próprio na maneira
de fazer, mas também todas as interpretações, todos os debates de normas da pessoa
que pilota essa situação – debates que vão fazer aparecer, diante de seus olhos,
as oportunidades e impedimentos. Evitemos, imediatamente, um mal-entendido
afirmando que: “piloto da situação” não significa que a pessoa é mestre de tudo o
que está acontecendo! Pelo contrário: o significado de sua presença, de sua luta,
de seu trabalho é tentar alcançar ser um pouco mais ativa do que passiva, nessa
situação. Mas ela só pode aspirar a isso reivindicando estar ao centro, organizar
a coerência do meio em função dela:
186 Competência e atividade de trabalho

“o meio próprio do homem é o mundo da sua percepção, ou seja, o campo de


sua experiência pragmática onde suas ações, orientadas e regradas pelos valo-
res imanentes às tendências, recortam objetos qualificados e os situam uns em
relação aos outros e todos em relação a ele. De modo que o ambiente ao qual
ele supostamente reage encontra-se originalmente centrado nele e por ele”
(Canguilhem, 1965:152).

A aderência é, finalmente, “o presente do meio a viver” do ponto de vista de


alguém único. É esse o sentido da quarta proposição de Yves Schwartz citada
anteriormente: a distância prescrito/real vai levar alguém a se confrontar com um
mundo de valores, com uma obrigação de escolher.

Segundo nossa análise, é essa percepção da aderência que falta hoje nas reflexões
sobre a competência.

Na verdade, todos ou quase todos concordam em admitir que uma situação de


trabalho sempre vai escapar à modelização exaustiva, o que justifica a presença
do ser de atividade. Mas só se percebe a conexão cognitiva entre o registro do
que é pensado com antecedência e o registro do atual, o que supõe repensar a
instrução em função do problema a resolver. Ora, a desaderência é dupla: lógica e
axiológica, conceitual e em valor. E é isso que, acreditamos, permite indiretamente
apreender a noção de aderência.

3.3. Os dois eixos de nossa pesquisa atual: partir das situações e apro-
ximá-las em uma dinâmica a três polos

Como dissemos, supomos que o pensamento gerencial hoje não considera suficien-
temente os aspectos cruciais da competência por falta de se apoderar da noção de
aderência e, além disso, da noção de “debate de normas”. Trata-se de compreender
que a realidade não é somente um conjunto de fatos sobre os quais, em seguida,
nós todos vamos poder intervir com toda objetividade. A realidade, portanto, e a
realidade no trabalho igualmente são também interpretações que orientam os fatos e
fazem história. A realidade são fatos e, também, opiniões preconcebidas. O esforço
de desaderência nos permite dominar melhor essa realidade, de nela intervir mais
Parte 3: Modelizar o agir em competência 187

eficazmente do que improvisando nossa luta com os pesos do momento presente.


É esse, certamente, o formidável privilégio do humano entre os outros seres
vivos. Na verdade, se necessitamos de desaderência é não somente para reduzir
a realidade nos modelos (reconduzir o complicado ao complexo), mas também
para alcançar certa neutralidade. Porque a aderência, ao inverso, é um mundo de
valores, de escolhas a fazer, em função não somente da lógica, mas também dos
valores ambientais, aqueles dos outros, aqueles que são compartilhados ou não,
mas dos quais será preciso de toda forma levar em conta. Se fazemos as coisas
se mexerem ativando-nos, se conseguimos colocar o real como devir, isso não é
só pela força de nossos conceitos, mas é também pela força dos valores que nós
não cessamos de retrabalhar com os outros, nossos semelhantes humanos.

De acordo com nosso ponto de vista, o chefe hoje parece querer raciocinar sobre
a situação de trabalho com “toda objetividade”. Ele observa uma configuração
de situações diversas que se apresentam e espera respostas idôneas. É, portanto,
competente aquele que demonstra um bom raciocínio lógico (e, aliás, este será um
critério de avaliação). Isso é apenas parcialmente exato, uma vez que, se olharmos
de perto, percebemos que uma resposta adequada passa primeiramente por uma
avaliação pertinente. A lógica seria suficiente se as premissas do raciocínio fossem
inamovíveis, sempre intactas. Ora, é difícil imaginar isso, uma vez que a situação
se inscreve em uma história, as coisas evoluem. A impossível estandardização de
respostas está bem ali. O que é preciso apreender para além de uma ação racionali-
zada no trabalho são dados que mudam muito, que devem ser apreciados, pesados,
comparados em relação a custos e vantagens. Mas isso não é tudo: vamos fazer um
apelo ao ser humano que é capaz de avaliação, mas ele deve avaliar a situação para
ele mesmo antes de se engajar. Isso significa que, em nenhum caso, não podemos
conceber o homem como uma simples solução, como uma peça em uma engrena-
gem que vai se mover porque as outras se movem: ele deve, primeiramente, aderir
à coisa empreendida. Aderir significa duas coisas: em primeiro lugar, que ele tenha
um projeto de uso de si mesmo que vá no sentido do uso que os outros querem fazer
dele; em seguida, que ele encare como um problema (um obstáculo ao seu projeto)
188 Competência e atividade de trabalho

aquilo que levanta problema para os outros. Essa é a condição para agir como ser
autônomo no seu trabalho. E é isso que expressa a invivível estandardização: o ser
humano é insubstituível porque é capaz de avaliar, ou seja, de afrontar não só os
problemas lógicos, mas também o vazio lógico, em nome de sua percepção do que
é importante, o que vale para ele e para os outros num dado momento. No entanto,
a condição de sua participação é que ele viva a si mesmo no trabalho não como
uma pequena roda que se articula com uma grande, mas como um ser de iniciativa
“sujeito de suas normas” (Canguilhem, 1947).

O agir em competência é para nós: primeiramente, demonstrar uma avaliação per-


tinente da situação antes de mobilizar os recursos (aqueles do ambiente e os seus).
Essa maneira de apresentar as coisas põe em evidência o que, de acordo com a
nossa análise, está faltando hoje ao pensamento gerencial: a noção de norma, no
sentido canguilhemiano, ou seja, o que é associado com a normatividade. É essa
lacuna que nos parece estar na origem de um raciocínio errado sobre a subjetividade
no trabalho. Constata-se o ato nos fatos que ele engendra, o que é observável, até
mesmo mensurável (por exemplo, o ato técnico). Percebe-se, claramente, que há
um ator, adivinha-se: mas o que continua profundamente obscuro é a relação entre
o ato e o ator. Na falta de capturar a norma e o que a acompanha, a normatividade,
não se compreende que é o ato que faz o ator, como o ator faz o ato (da mesma
forma, a norma faz o homem normativo, como o homem normativo faz a norma).
No entanto, mais do que nunca, os chefes são sensíveis à instabilidade do ato téc-
nico: eles já não confiam unicamente na qualificação, porque ela não serviu senão
para caracterizar o ato, sem nunca dizer nada do ator. Então, eles vão se ocupar em
cercar o ator como tal e multiplicar a racionalidade sobre a subjetividade no traba-
lho, muitas vezes fora do ato (que, acreditamos, é a porta aberta para todos os tipos
de manipulação). Ora, tão longamente se separa o ato do ator, não se compreende,
acreditamos, a dinâmica da competência. A subjetividade não é “a terceira dimen-
são” da competência justaposta ao domínio dos saberes e àquela do saber-fazer: a
subjetividade é a atividade ela mesma (Schwartz, 2009b). São os debates de normas
no ato presente, entre saberes (dos outros e de si mesmo) e valores (dos outros e de
Parte 3: Modelizar o agir em competência 189

si mesmo), uma tensão permanente – ‘aderência/desaderência’; debates geridos por


um ator ‘corpo-si’, o que significa um ser inteiro, historicizado por sua experiência
do mundo e dos outros e visando a um projeto de uso de si.

Esses são nossos dois eixos de pesquisa hoje. Primeiramente, trabalhar com os
protagonistas das situações de trabalho, compreendendo a situação não apenas
como um campo de obrigações que vão condicionar a atividade, mas também
como o ponto de vista de alguém sobre esse campo de obrigações, a perspectiva
dada por um ser de iniciativa, que busca se colocar no centro de seu próprio meio,
a fim de nele intervir em conformidade com um projeto de uso de si. Em segundo
lugar, trabalhar a partir dessas situações segundo a abordagem de um dispositivo
dinâmico a três polos. Isso quer dizer que não encaramos as normas sem a nor-
matividade: colocam-se, face a face, as normas antecedentes e renormalizações,
a fim de fazer aparecer o que caracteriza a atividade: o debate de normas. É
ele que vai ocupar o terceiro polo. A noção da realidade que o protagonista de
uma situação de trabalho pode ter é, inicialmente, muito parcial. No entanto, o
ponto de vista vai se tornar cada vez mais sólido e pertinente à medida que ele
se confronta, no dispositivo, com o ponto de vista dos outros. O protagonista vai
progredir duplamente, fazendo de seu ponto de vista um verdadeiro “saber da
experiência”: de uma parte, ele vai se mostrar cada vez mais aberto e compreen-
sivo em relação às outras maneiras de ver – e, de outra parte , ele vai reforçar sua
própria singularidade à medida que ele critica suas próprias interpretações, que
existem doravante no debate com uma opinião fundamentada e uma consciência
aguçada dos desafios. Portanto, bem longe de uma simples opinião.

Vamos fazer duas considerações a partir disso. Primeiramente, o que acabamos


de descrever sobre o protagonista engajado em uma abordagem ‘a três polos’ é
uma verdadeira postura de aprendizagem, para retomar a expressão de P. Carré
(2005): voltar metodicamente sobre si, para melhor se abrir ao mundo e aos outros,
encontrar o autêntico projeto “de uso de si por si”, que vai permitir se arrimar a
um “projeto de uso de si para outros”. Entendemos, então, que o ponto de vista,
quando ele é trabalhado, aprofundado, escavado não é um vago julgamento que
190 Competência e atividade de trabalho

teríamos sobre as coisas do momento, mas é um “ponto de vida”, uma ancoragem


no fundo de si para melhor se engajar na aderência, consolidando suas abordagens
por todas as formas de desaderência.

Nossa segunda consideração visa à oportunidade destes cadinhos de novas ideias


que são os dispositivos dinâmicos a três polos. Temos consciência de que é menos
arriscado atribuir certa neutralidade, quando se fala do trabalho, do que avançar
sobre o terreno dos valores. Não falamos aqui de escolhas societais em geral,
mas de situações como microescolhas no quotidiano do trabalho. O gestor está à
vontade para incentivar a reflexividade, o raciocínio lógico numa abordagem de
competência. De fato, trabalhar é pensar – e a inteligência passa doravante para um
requisito do trabalho. Em compensação, quando evocamos o retorno aos pontos
de vista, sobre a questão das escolhas e dos valores, percebe-se frequentemente
certo temor entre os seus interlocutores. O mal- entendido seria acreditar que os
dispositivos a três polos abrem a caixa de Pandora: seria semear a dúvida sobre
o bom fundamento das escolhas da organização. Ora, esse não é jamais o caso, e
a explicação é simples. Quando se dá como disciplina sempre abordar as renor-
malizações colocando as normas antecedentes face a face, permite-se à pessoa
expressar sua iniciativa “no” campo das obrigações e não fora dele. Essa é a
diferença: os atos sobre os quais retornamos são tratados não isoladamente, mas
em referência à experiência normativa in situ, tal como ela é mediatizada pelos
outros. O parapeito, que evita derrapagens em uma causalidade geral e estéril, é
a relação entre a desaderência/aderência (ou “localização-ancoragem”). Nessas
condições, podemos serenamente abordar, no trabalho, a questão dos valores dos
pontos de vista, e não apenas aquela do raciocínio lógico neutro. Os protagonistas
logo percebem que é nos valores e pontos de vista que se encontra a fonte tanto
de sua singularidade quanto de sua eficácia. O exercício favorece uma cons-
cientização, no sentido de uma tomada de consciência do que está em jogo, para
os outros e para si mesmo, de uma medida de sua responsabilidade, certamente
limitada, mas precisa e coordenada com a responsabilidade de outros no agir junto.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 191

4. A função “organizar”

4.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “organizar”

O desafio da organização é tornar possível e eficaz a ação coletiva a serviço de um


projeto. Para isso, ela deve, ao mesmo tempo, produzir a norma (antecedente e
anônima) e poder contar com homens normativos, isto é, em condições de exercer
sua normatividade, de efetuar um retrabalho pessoal das normas, no momento de
se confrontar com a realidade, de maneira a atingir os objetivos fixados. O erro de
certo número de organizadores foi o de, durante muito tempo, sustentar a ideia de
que os planos, os programas, os procedimentos, os métodos, etc. teriam o poder de
modelizar perfeitamente uma ação, de pensá-la com antecedência e ‘exaustivamente’,
o que quer dizer de maneira exaustiva, pois nada da realidade lhes escaparia. Ora,
isso é impossível, pois, posicionada em desaderência, a organização opera neces-
sariamente uma redução da realidade. O administrador dirigente tem uma visão
mais ampla que profunda das situações de trabalho que ele supervisiona de longe.

Nós propomos uma ferramenta derivada da abordagem ergológica voltada para os


dirigentes. Ela é um dispositivo susceptível de dinamizar a relação entre os dirigentes
e as pessoas engajadas na prática. Trata-se dos “grupos de encontros do trabalho”
(GRT) que são eles próprios uma modalidade de dispositivos dinâmicos a três polos
(DD3P) oriundos de uma abordagem ergológica. Como dissemos precedentemente,
o DD3P organiza o encontro entre os saberes acadêmicos, universitários de uma
parte, e, de outra parte, os saberes da experiência. Também os GRT fazem referência
à dialética dos conceitos e da vida, mas, tratando de refletir sobre o funcionamento
de uma organização, a ferramenta do pensamento é considerada – prioritariamente
e não exclusivamente – por seu segundo uso, a estruturação da vida social (seu uso
primeiro sendo a produção de seus conhecimentos).

O projeto de um GRT é fazer circular os saberes entre os protagonistas das situ-


ações de trabalho, aqueles que lhe asseguram a implementação e os que a tornam
possível instituindo os enquadramentos normativos. Entretanto, esse não é um exer-
192 Competência e atividade de trabalho

cício assimilável para um diálogo clássico “pessoas da administração e pessoas dos


ateliês”, ou ainda os teóricos com os operadores engajados na prática. Trata-se aqui
de uma outra coisa. Inicialmente, uma prática já foi colocada em palavras e, então,
compartilhada: ora, o GRT tenta fazer existir o ponto de vista da atividade no que ele
tem de único, antes de socializá-lo e de sair, graças a uma abordagem feita de escuta
e de espírito crítico (no senso construtivo), sobre a produção de saberes originais
a respeito das situações encontradas. Ele oferece perspectivas novas sobre a reali-
dade, esclarecimentos que interessam tanto aos dirigentes quanto aos operadores.

Lembremo-nos de que essa socialização de pontos de vista em um GRT não é pro-


vocada de maneira anárquica e irresponsável, pois a abordagem ergológica consiste
sempre em considerar, em conjunto, o par “norma, renormalização”. Isso significa
que o ponto de vista da pessoa que realiza uma tarefa é colocado face a face com a
própria tarefa. Uma iniciativa só encontra sentido na medida em que as exigências
às quais ela responde são explícitas e claras aos olhos de todos. E reciprocamente:
aquele que institui a norma, definindo as suas tarefas, vai considerar a renormalização
como uma condição de uma tradução dessas na realidade.

O imperativo de manter juntos o par “norma e renormalização” não é necessa-


riamente uma postura reivindicadora. Trata-se da saída do modelo aplicativo
da tarefa, que associava a sequência eficaz de uma regra e sua obediência cega.
Quando se compreendeu que seguir uma regra supõe um jogo de normas, não
se defende mais a ideia de uma aplicação mecânica ou dócil: sabe-se que o ser
humano deve, inicialmente, existir face à norma para poder se submeter razoa-
velmente, conformar-se a ela, porém guardando a iniciativa de seu ato. Efetiva-
mente, no trabalho, dobrar-se a uma ordem sem reagir com um ponto de vista,
sem resistir através de um debate íntimo (um debate de normas), isso quer dizer
não se apropriar da instrução, renunciar a ser – por pouco que seja – o autor e o
responsável de seus atos, deixar-se guiar e se levar pelos acontecimentos, enfim
ser totalmente ineficaz. Apoderando-se, ao contrário, do jogo entre a norma e sua
renormalização, descobre-se o manancial de saberes que cada um dos protagonistas
pode apresentar sobre as situações consideradas.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 193

O problema, entretanto, é que não existem saberes – no senso estrito – que se-
jam espontâneos. Um saber é certamente uma captura única sobre a realidade:
alguém “sabe”, isso quer dizer que ele tem o privilégio de uma visão sobre a
realidade que outros não têm de modo idêntico, porque essa percepção é, ao
mesmo tempo, conceitual e axiológica. No entanto, o saber está lá a não ser em
estado bruto, de alguma maneira, como promessa de um verdadeiro saber (o agir
concreto em uma situação dada que permite a formação de conceitos incoativos,
em formação, à espera de serem trabalhados, de serem circunscritos: Schwartz,
1992: 69). Um saber é, de fato, sempre o fruto de um trabalho crítico, no sentido
de que é preciso separar o essencial do secundário – é preciso modelar, fabricar
o saber bruto que gera a ação.

É impossível esperar recolher imediatamente os saberes da experiência realmente


novos, como se recolheriam os frutos da árvore... Tenho um “ponto de vista”
saído da minha experiência normativa, portanto uma perspectiva original sobre
a situação; mas preciso ainda fazer um trabalho de colocar em palavras esse
ponto de vista que, paradoxalmente, já está lá. Assim, o material de um retorno
de experiência tem necessidade de ser aperfeiçoado, criticado, em primeiro lugar
pelo interessado. Toda a força do ser humano está, de fato, no discernimento: ele é
capaz de criticar sua própria interpretação. Isto é o fundamento de uma abordagem
racional no sentido científico.

O encontro entre os saberes de experiência e os saberes institucionais, para ser bem-


-sucedido, supõe, além do mais, um dispositivo, uma construção ad hoc: é o grupo
de encontros do trabalho. É necessário um primeiro polo, aquele que dá visibilidade
às “normas antecedentes” da organização (inclusive quando elas são tidas como
evidentes). É indispensável mobilizar esses saberes formais, fazer o inventário deles
e torná-los presentes nos GRT, porque são eles que vão funcionar como normas
para as pessoas que trabalham – os seres dotados de normatividade. Na falta de um
lugar para uma renormalização, as normas antecedentes da organização não vão
funcionar como normas, mas unicamente como exigências.
194 Competência e atividade de trabalho

Enfim, é necessário um segundo polo; esse representa os protagonistas em situação,


os que estão em atividade. São eles que vão levar, sem interrupção, um material
novo, inédito no GRT, mas na condição de não se deter somente aos fatos. Isso
porque a atividade é a interpretação indefinida dos fatos: dessa forma, a atividade
reorienta os fatos provocando, por causa disso, novos fatos, modificando, assim, os
meandros da história que está tomando forma. Graças ao segundo polo, no GRT,
toma-se consciência das iniciativas feitas para administrar as obrigações, no coração
do “trabalho real”. O que é inédito e fonte de um saber original sobre a situação é
a maneira como cada um reprocessa as normas antecedentes contestando-as, não
pelo espírito de rebelião, mas enquanto um ser de iniciativa, para existir face a elas
e chegar, desse modo, a se apropriar dessas normas.

O GRT, que não se confunde com um grupo de apoio, tem a necessidade de refletir
sobre a dupla “normas/renormalizações”: o primeiro polo (os saberes que tendem
à neutralidade) e o segundo polo (os saberes tomados através dos valores). Isso vai
fazer existir tanto as renormalizações quanto os saberes – o que lhes vai permitir se
colocar em comensurabilidade com as outras formas de saberes na organização e,
se as condições o permitirem, de dialogar com eles.

Enfim, é necessário um terceiro polo. É aquele que propõe um novo regime de


produção de saber: um saber saído da experiência e que é capaz – uma vez que
ele foi construído como um saber – de dialogar com os saberes institucionais.
Esse terceiro polo é um polo de trabalho colaborativo: se ele não estivesse lá,
nós iríamos deixar as duas formas de saber se olharem fixamente e sem polidez.
Esse é o polo que permite que a atividade normativa seja percebida. Ele tem o
papel de animação do GRT, dando garantias aos que vão expor seus “debates de
normas”. Inicialmente, evitar a arrogância daquele que já sabe: é preciso estar à
escuta de um relato da atividade que ninguém conhece a priori, porque o narra-
dor vai testemunhar através de uma captura inédita da realidade. Em seguida, o
terceiro polo deve tratar o conteúdo da atividade normativa emergente: depois da
exigência de escuta e modéstia, há que se fazer prova de rigor. Isso porque cada
Parte 3: Modelizar o agir em competência 195

um deve tentar compreender aquilo que, em seu relato, mereça ser retido como
uma perspectiva singular e essencial, uma maneira original de ver as coisas – e que
nos ensina ainda mais sobre o que se vive nessa situação, especialmente sobre os
desafios que ela contém. Em resumo, as diferentes interpretações de uma situação
se tornam “saber da experiência” na medida em que elas nos informam sobre o
espírito dessa situação – pelo contraste com a anotação da situação (aquilo que
objetivamente seria possível dizer dela, simplesmente descrevendo os fatos, as
constatações sobre as quais todos já estão de acordo).

Enfim, o terceiro polo assegura o respeito de um princípio: ter um ponto de vista


diferente, o que não é “não ter compreendido nada da situação”. O real é con-
traditório, não há que esperar a revelação de uma realidade coerente sob nossas
interpretações. Isso não dá “razão” mecanicamente a ninguém, mas isso quer
dizer que cada um tem “suas razões” de ver as coisas através do seu ponto de
vista. É o espírito crítico que deve tirar o verdadeiro ensinamento da experiência,
sustentada, em seguida, coletivamente. Um DD3P reconcilia, assim, os dois usos
do conceito, o uso compreensivo e o uso explicativo.

O GRT, um lugar
3o polo – que permite às duas
ética/crítica formas de saber de se
Saberes novos nutrir reciprocamente.

O objetivo = progredir
juntos sobre uma
questão dada.

1. Saberes
das
organizações

Trocas
recíprocas 2. Saberes da
atividade
196 Competência e atividade de trabalho

4.2. Ilustração a partir de um breve exemplo

Participamos, uma vez por ano, da animação de um dispositivo na Assistência


Pública/ Hospitais de Marselha (APHM). Os chefes de saúde organizam aí GRTs
com uma frequência bimensal. O GRT permite retornar, sem cessar, à ligação
entre a norma e a renormalização, a fim de delimitar o debate de normas que
está no centro da competência profissional. Apresentamos um extrato de um
relatório interno do nosso encontro com os participantes de um GRT. O objetivo
é, ao mesmo tempo, a ampliação dos saberes e a transformação das situações,
graças à instrução de normas antecedentes (uma norma é dita “instruída”, no
sentido em que ela se abre a pontos de vista da experiência e leva em conta,
sobretudo, as renormalizações).

“O que diferencia um GRT de simples grupos de apoio sobre o trabalho é a di-


nâmica de coprodução de elementos de saberes novos sobre a atividade. A parte
de inédito desses saberes não traz soluções prontas, mas permite a construção de
muitas respostas aos problemas levantados. Reflete-se sobre normas antecedentes
porque a função de chefiar é, atualmente, um novo ofício em relação ao que se
vivia até agora nos estabelecimentos, mas essas mudanças não são formalizadas.
Tenta-se colocar em palavras nossos valores no trabalho, a representação dos
valores do ofício. Para nós, “fazer uso do seu corpo si”, por exemplo, significa
algo, isso permite falar do sofrimento da chefia. Existem riscos produzidos por
um executivo em sofrimento no interior de uma equipe, face a uma norma an-
tecedente indecisa, à ausência de uma nova definição da função de chefiar”.

“As coisas se fazem graças às nossas arbitragens cotidianas. Mas temos um pro-
blema a comunicar sobre essas arbitragens. Por falta de palavras, generaliza-se
deixando à direção dizer frases do tipo “vamos fazer mais com menos”, porque
nós, não chegamos a colocar em palavras esses momentos cruciais, que são
nossos debates de normas. Nós é que sozinhos tomamos decisões em situação
– mas são os gestores que decidem sozinhos em nome da racionalidade lógica.

Por exemplo, o aquecedor entrou em pane nesse inverno em um dos setores


do hospital. O tratamento da pane pode ser executado pelo polo I, puramente
técnico. O que nos interessa no GRT são os saberes ligados à convivência com
um meio: é o que isso faz com pacientes quando um aquecedor está estragado.
Finalmente o que o GRT quer apresentar como saberes é o domínio da realidade
Parte 3: Modelizar o agir em competência 197

de cada uma das pessoas que trabalha, mas isso a todo momento e não somente
quando isso não funciona. Já que é “todo o trabalho” que nos pertence – e não
unicamente o que não deu certo ou o que vai mal.

Nós tentamos responder à questão: “O que fazer isso significa?” Será mostrado,
às vezes, que existe uma excessiva solicitação da normatividade em uma situação
de trabalho. Existe, então, um problema com as normas. Isso não quer dizer que
se pede às normas ocuparem toda a prática. Quer-se encontrar um melhor equi-
líbrio, que permita à normatividade do operador de ser exercida nas melhores
condições. Hoje, em face de um déficit de normas (em qualidade), o chefe de saúde
é obrigado a inventar o que não existe. É isso que conduz ao burn-out. Tivemos,
por exemplo, um problema com a administração penitenciária que não equipa seu
pessoal com os mesmos aparelhos que aqueles dos cuidadores. A telecomunicação
interna torna-se, então, impossível, e é o chefe de saúde que deve correr pelos
corredores para coordenar as equipes quando os detentos estão hospitalizados.
O que falta do ponto de vista de gestão na ocorrência é perceber o desafio da
atividade real: o que significa trabalhar com os aparelhos não coordenados? O
GRT esclarece graças a uma perspectiva original. O ponto de vista do chefe de
saúde sobre esse tema não interessa somente a ele, trata-se de um saber útil a
todos, uma perspectiva sobre uma realidade, principalmente sobre os desafios”
(Marie-Hélène Dassa - documento não publicado).

5. A função “chefiar”

5.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “chefiar”

A chefia imediata assume um papel complementar ao quadro da direção, já


que ela está diretamente no comando das equipes. O desafio dessa função é de
atingir, apesar de tudo, o resultado previsto. A chefia deve saber navegar sobre
os mares agitados, jamais conduzir os homens em função dos acontecimentos, a
fim de não perder o ponto fixado pela organização. De qualquer modo, é a tática
em resposta e em apoio à estratégia. A chefia tem de se haver com a distância
entre o prescrito e o real, ela não pode, então, contentar-se de ter previsto um
procedimento para cumprir sua tarefa e de fazer com que este seja aplicado.
Além de um objetivo de conformidade, ele deve se assegurar uma ultrapassagem,
com efeito, útil: seus subordinados, de fato, devem fazer “mais do que lhes foi
pedido” sem, todavia, sair da rota.
198 Competência e atividade de trabalho

A ferramenta de acompanhamento no trabalho que nós propomos, quando se trata


de concretizar a abordagem ergológica junto à chefia imediata, encarregada de
supervisionar um iniciante, é o modelo “tarefa/serviço” em dupla antecipação. O
chefe de equipe – chefe de seção ou o chefe de oficina – pouco importa – vê bem
as urgências: ele tem clientes e fornecedores, e ele deve lhes trazer a boa resposta
no bom momento, dando as instruções adaptadas. Esse chefe está comprometido
com exigências, o que nós chamamos “em aderência”, o mais próximo da reali-
dade do trabalho. Mas esses não são os pesos, as dificuldades que ele tem em sua
mente: ele está preocupado com o programa, com os horários, com a sequência
das operações, com os custos de cada uma das iniciativas que ele poderia tomar.
A chefia tem, então, em sua mente, esse registro da desaderência, que lhe permite
conceber e modelar o trabalho a ser feito.

Se nós atrairmos sua atenção sobre o que o preocupa, mostrando-lhe que ele não
cessa de gerir a defasagem entre o plano e a realidade encontrada, nós o teremos
rapidamente convencido. Existe certamente uma distância ente o prescrito e o real.
Provavelmente, nós o faremos provavelmente admitir um outro ponto importante:
essa distância não se dá devido a uma deficiência, mas em razão de uma impossi-
bilidade. Não há, pelo menos de maneira significativa, que procurar a causa dos
seus problemas nas carências de organização – mesmo que seja sempre possível
fazer melhor. Se o chefe imediato está sempre a correr, a vigiar o calor da ação, é
porque ele está colocado em um plano diferente do plano do chefe dirigente. Ele
opera no concreto da vida, e é bem por isso que é reconhecido em meio aos ope-
radores. Por seu lado, o organizador está posicionado em desaderência, à distância
das situações reais de trabalho, e é esse posicionamento que lhe oferece outra
perspectiva, um outro horizonte para a negociação com os parceiros da empresa.

Entretanto, além dessas duas observações (existe uma distância e esta é irredutível),
vai se esperar um tropeço no raciocínio com nosso interlocutor supervisor. Admite-
-se o fato, sim, mas e depois? Essa é bem a questão que persegue o pensamento
gerencial há meio século. O que fazer com essa distância prescrito/real? Vê-se
bem que é preciso ir além do prescrito – isso é tudo. É nesse ponto da reflexão que
Parte 3: Modelizar o agir em competência 199

nossa ferramenta de acompanhamento em situação de trabalho encontra todo o seu


lugar. Porque o conceito de dupla antecipação de Yves Schwartz (1988) permite
colocar em movimento o que era até então uma imagem fixa, sobretudo bastante
embaraçante: “o prescrito e o real”, ou seja, a diferença incompressível entre os
dois registros de apreensão do mundo real pelos humanos, o registro do conceito
e o da vida. Tudo o que na empresa é da ordem do conceitual (o programa da
jornada, as faturas de entrega, o catálogo dos preços, as fichas de autocontrole,
etc.) aparece como normas do trabalho porque está a cargo dos viventes humanos
(seres humanos) dotados de normatividade. Uma norma e sua renormalização são
solidárias: é isso o que explica a característica da norma, que, contrariamente a
uma lei física, não tem nenhum efeito por ela mesma.

No seu modelo da dupla antecipação do qual já falamos, Yves Schwartz nos


explica que essas normas devem ser pensadas como anteriores aos sujeitos,
que devem “fazer com”. Entretanto, é a história desses sujeitos, ela mesma
anterior a essas normas, que permite aproximar, de maneira local, o resultado
das negociações de onde se origina, a cada vez, a reconfiguração do meio.
Vamos retomar as etapas do raciocínio: a) a situação de trabalho é pré-cons-
truída por uma série de regras que vão se impor aos operadores: é mesmo essa
posição de anterioridade que vai conferir uma certa autoridade aos quadros
regulamentares; b) entretanto esses operadores já viveram, eles têm cada um
uma história; c) cada um vai abordar a regra com sua história e, na medida
em que lhe reconhece uma pertinência e autoridade, ele faz dela sua norma;
d) negociando o seu uso da norma em um meio específico e com uma história
singular, o operador vai reconfigurar a situação de trabalho. É preciso desta-
car que uma regra, de início, neutra, anônima, tornou-se na ação uma norma
pessoal, atualizada. A regra tem o efeito de uma norma a partir do momento
em que alguém tem relação com ela em sua vida concreta (à distância, ela lhe
será indiferente). A desneutralização permitiu fazer existir a norma fazendo
mover o meio. Finalmente, não é a estrita aplicação que se obtém, mas ainda
mais: a norma foi colocada em história e gerou história. Ela provocou sua
200 Competência e atividade de trabalho

própria superação (aperfeiçoamento). E, para continuar provocando essa su-


peração, a norma vai reivindicar ainda sua anterioridade (ela pretende, então,
superar sua superação), depois será superada de novo e assim por diante. Eis
o motivo pelo qual falamos de “dupla antecipação”.

Para traduzir operacionalmente essa dinâmica da distância prescrito/real, nós pro-


pomos a dupla “tarefa/serviço”. A tarefa será aqui tomada como uma metonímia
pois ela designa, por ser a menor unidade do prescrito, o conjunto de exigências
da situação de trabalho pré-pensada. Entretanto, essa tarefa não existe fora daquele
que vai encarná-la por sua atividade. E essa vai se desenvolver na única realida-
de, a realidade humana que existe (o mundo “desumano” sendo o real). É nesse
sentido que nós compreendemos a palavra serviço: esse termo recupera para nós
a obrigação de agir (cf. em inglês on duty), induzida pela presença de outros ou
indiretamente por sua influência. Em dupla antecipação, reconhece-se, então, a
tarefa como um movimento de conquista conceitual da realidade, com o serviço
subjacente que é o esforço para colocá-la na história (para alguém que estava
lá antes e estará lá depois), na exigência de outras histórias humanas que estão
sendo escritas. A tarefa é, pois, metamorfoseada pelo serviço. A tarefa a cumprir
se distingue do serviço a prestar sem jamais se separar dele, porque ambos cor-
respondem aos polos de uma unidade dialética. Um age sobre o outro: cada um
disputa a prioridade sobre o outro no seio de uma mesma atividade.

Mas isso não é tudo, falta um terceiro termo. Se se aceita a definição seguinte – o
trabalhador é aquele que, em sinergia com os outros protagonistas da situação,
gere, à sua maneira, as variabilidades do momento, a fim de responder, da melhor
forma possível, às instruções iniciais, então serão reconhecidos três níveis de
aprofundamento na análise. Existem inicialmente as instruções relativas à tarefa
a cumprir, portanto, formuladas anteriormente; há, em seguida, a ancoragem
dessa tarefa no contexto presente, sempre em mudança e que vai redesenhá-la
parcialmente, provocando a famosa distância entre o prescrito e o real; há, enfim,
uma segunda ancoragem na medida em que a pessoa que vai tratar dessa distância
vai trazer sua marca e vai dar à tarefa realizada um caráter inteiramente singular.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 201

É preciso, então, mencionar, em nossa ferramenta, o engajamento daquele que


trabalha, em função do que ele aceita da tarefa “e” do serviço.

A ferramenta que propomos analisa minuciosamente o agir em “projeto de uso de si”,


que se interpreta como um triplo posicionamento: em relação aos outros (o serviço
a fazer), em relação ao mundo real que me resiste (a tarefa a cumprir) e em relação
a si mesmo (os recursos que devo mobilizar). Essa ferramenta esclarece, ao mesmo
tempo, a competência nascente no iniciante e suas eventuais dificuldades. Quando
a dificuldade é melhor colocada, novas pistas se abrem (veja o exemplo a seguir):

O relativo
domínio das
tarefas

O projeto
de uso de si
A mobiliza- O serviço a
ção dos seus ser realizado
recursos para os outros

5.2. Ilustração a partir de um breve exemplo

Por ocasião de um estudo realizado pela Associação de Gestão do Fundo para a


Inserção Profissional das Pessoas Deficientes (AGEFIPH), encontramos uma equipe
de profissionais da grande distribuição que acolheu um empregado de self service,
iniciante. Trata-se de Matthias, com idade de 18 anos e com diploma nesse setor de
atividade. Esse jovem homem deseja ardentemente entrar na vida ativa, mas, depois
de um mês de experiência, a empresa decide não ficar mais com ele. Matthias foi
admitido no departamento de padaria de um supermercado, onde ele demonstrou
uma excepcional lentidão. O chefe que tomou a decisão sabe que esse jovem é
reconhecido como trabalhador com deficiência leve: tratava-se, talvez, de uma
dispragia, que provoca dificuldade de ter certos automatismos na movimentação.
202 Competência e atividade de trabalho

A pedido do jovem e daqueles que o acompanhavam e com o objetivo de ver


quais são as alavancas eventuais para favorecer a sua inserção na empresa,
uma análise em situação de trabalho foi realizada com um vídeo comentado
em autoconfrontação.

A conclusão desse estudo coloca em evidência, no caso de Matthias, um bom


domínio das tarefas que lhe são confiadas: ele acaba de concluir sua formação em
técnicas de distribuição de produtos alimentares. As imagens mostram que o jovem
chega a executar as operações com uma certa destreza e, se ele comete, às vezes,
algumas faltas, é, sobretudo, quando está indo muito rápido. Nesse caso, por que se
reprova sua lentidão? Nossa ferramenta de análise permite formular uma hipótese:
não é o cumprimento das tarefas que causa o problema desse aprendiz e que o faz
lento. É, sim, o trabalho ligado aos outros. Mathias, que não manifesta nem um
retardo intelectual, nem má vontade, não consegue entrar na dinâmica do “serviço”.
Ele fica paralisado pelo medo de fazer malfeito, tomado da preocupação de agir em
conformidade, o que faz dele um colaborador fatigante para as suas coequipes: “eu,
o que eu quero, eu quero fazer bem, é isso que conta para mim!”. O controle parece
uma obsessão para Mathias. Nós o vemos continuamente retornar, ou ainda voltar
para verificar que nada foi esquecido por ele sobre a mesa ou sobre uma prateleira,
no chão, em uma seção. Ele examina cada baguete para estar certo de que ela esteja
bem-apoiada no fundo do saco. No momento da retirada, ele manipula várias vezes
os produtos na prateleira, para ter a certeza de que eles não estão malposicionados.
Quando ele utiliza a impressora, ele verifica cada etiqueta, para verificar se um códi-
go não teria sido apagado antes dele. A respeito das idas e vindas entre o laboratório
e o espaço de vendas, nós o interrogamos: não poderia ele se organizar para limitar
seus deslocamentos? “Sim, existem carrinhos, mas é preciso ter um deles livre, é
este o problema”. Essa resposta é reveladora do posicionamento do estagiário no
coletivo de trabalho. Ele não ousa reivindicar sua presença como protagonista no
ambiente de produção, ele se mantém afastado de forma sistemática. Um outro e
não ele – pensa – poderá precisar do carrinho. Além do mais, pegar um carrinho
em um espaço tão reduzido, vai certamente atrapalhar a passagem.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 203

É a mesma discrição que Matthias mostra quando ele deve compartilhar com
uma colega uma mesa de trabalho prevista para um só operador. Ele espera que
ela saia para deslocar sua pilha de pães para a balança e não ousa, mesmo nessas
condições, deslocar caixas vazias que ela deixou no local, reduzindo enormemente
seu espaço de trabalho, o que o torna ainda mais lento porque ele é obrigado a co-
locar no chão a sua caixa e se abaixar constantemente para efetuar suas operações.

Encarregado de condicionar os pães e e produtos finos, Matthias deve utilizar


numerosos códigos de padaria. Parece que ele não reteve nenhum deles, apesar
de numerosas semanas de prática. Podemos pensar que a perda de memória é um
efeito do estresse, na medida em que o iniciante parece viver seu trabalho com
uma tensão nervosa persistente. Seu mal-estar é perceptível até em sua aparência
ligeiramente arqueada, seu sorriso raro e, sobretudo, em seus olhos.

“Ele tem uma inquietude em seu olhar que lhe tiram certos recursos” diz o chefe
a respeito desse jovem. “Ele tem um ar de quem diz: eu vou ser criticado, porque
eu não consigo fazer o que eles me pediram?” Nós lhe perguntamos por que
ele solicita constantemente a padeira a respeito do código dos artigos: “Eu lhe
pergunto para estar certo...Eu sei, mas eu tinha ainda uma dúvida”. O medo de
fazer malfeito? “Sim, é sempre isso”. Matthias está efetivamente dividido entre
duas exigências, que ele traduz assim: “Desde que eu não compreenda, eu devo
perguntar a ela. Caso contrário, isso lhe fará perder tempo também, se eu erro
depois. Ela deve refazer tudo e corrigir tudo.” Ele chega ao cúmulo de interromper
continuamente a padeira em seu trabalho, porque ele quer evitar o erro... que vai
fazer essa profissional perder tempo.

A ferramenta que propusemos para a chefia em situação de trabalho permite abrir


um debate sobre o trabalho como “projeto de uso de si”: a explicação é suces-
sivamente dirigida ao controle das tarefas, ao controle do serviço a ser feito e à
mobilização dos recursos. No caso de Matthias, a dinâmica desses três polos deve
começar levando-o a trabalhar não em prioridade em relação às tarefas ou em
relação aos recursos a mobilizar (porque ele já está mobilizado e formado profis-
204 Competência e atividade de trabalho

sionalmente), mas de preferência em relação ao serviço como diálogo e troca com


os outros em situação de trabalho. Matthias não tem necessidade de que o levemos
a um posto, ele deve se autorizar a conquistar seu lugar, a incomodar existindo pelo
seu trabalho – ou seja, reivindicar existir como os outros, a fim que se reconheça
sua prestimosidade tanto por sua utilidade como por sua conformidade.

6. A função “avaliar”

6.1. Apresentação da ferramenta da nossa pesquisa na função “avaliar”

Avaliar é estimar, apreciar – e consequentemente, reconhecer –, julgar: a fim de


se entender sobre o valor de algo. A avaliação é uma interpretação, portanto, a
ser discutida necessariamente. Ela consiste em comparar um estado atual com
um estado ideal (referido/ referente) para valorizar o existente, formar projetos,
decidir, corrigir, reorientar. O desafio da função de avaliação é, primeiramente,
o reconhecimento de uma realidade presente e seu desenvolvimento posterior: a
melhoria das performances individuais e coletivas.

A ferramenta que propomos para a avaliação em situação de trabalho se inclui


numa perspectiva ergológica. A atividade é vista como um encadeamento de
debates de normas. Devemos pensar em dois eixos ortogonais de modo a expres-
sar, entre o registro da aderência e o registro de desaderência, ao mesmo tempo
a diferença de natureza quanto à sua necessária confirmação – uma vez que não
há atividade senão em tensão entre os dois. Enquanto horizontalmente tenta-se
explicar a aderência da vida concreta com suas densidades, representam-se, no
mesmo esquema (mas desta vez verticalmente), os vários graus de desaderência,
ou seja, o distanciamento da simples generalização da experiência à sua mode-
lização e sua teorização graças a uma conceitualização cada vez mais rigorosa.
Toda situação de trabalho está, pois, na encruzilhada de um esforço para conhecer
(desaderência) e de um esforço de viver (aderência), o primeiro respondendo a
uma neutralização axiológica, necessária porém tendenciosa, e o segundo, a uma
desneutralização igualmente indispensável.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 205

Nossa ferramenta tenta, eloquentemente, ilustrar a tensão que caracteriza a ati-


vidade humana e que o avaliador vai considerar quando ele tentar dizer algo
de pertinente a propósito de um ser de atividade. O eixo horizontal representa
a flecha do tempo histórico, o desenvolvimento dos fatos, o encadeamento das
causalidades, a inércia do real. Quando se evoca a aderência, assinala-se a luta
diária dos humanos que mobilizam suas forças intelectuais e físicas para enfrentar
esse real, resistir a ele como ele lhes resiste, a fim de retornar, oportunamente, a
uma parte da coerção do meio. Pelo contrário, o eixo vertical visualiza a caracte-
rística do ser pensante, o privilégio que lhe dá toda a sua humanidade: é o poder
de adotar uma postura de desaderência, de se descolar do presente, de criar, entre
ele mesmo e a coerção atual, um espaço, uma distância, que pode ir da simples
categorização a fim de integrar o caso, de o subsumir sob um tipo até às operações
mentais extremamente sofisticadas, à formação de uma rede de conceitos bastante
rica que oferece uma inteligibilidade nova e extraordinária sobre fenômenos
observados no real. O eixo vertical é, portanto, aquele de um novo controle do
humano sobre a realidade em graus muito diversos. O controle mais imediato é o
esquema, cognitivo ou gestual, que permite fazer algo com a impressão de “não
pensar nisso”; em seguida, vêm os diferentes graus de mediações conceituais. Mas
é muito importante reconhecer uma dupla desaderência, aquela dos conceitos e
aquela dos valores. Na verdade, pensar significa não só produzir categorias e re-
lações lógicas, mas também desvincular-se de preconceitos e preferências para se
alcançar o caso geral. E essa crítica da interpretação atinge seu auge com a ruptura
epistemológica: trata-se, então, de perseguir os valores residuais na modelização
do real, de neutralizar tanto quanto possível o que resulta das escolhas humanas,
a fim de fabricar modelos que abrem novos horizontes da vida, porque o controle
sobre a realidade terá aumentado. Essa é a aventura da ciência.

Concebemos nosso esquema de tal forma que as oposições sejam explícitas: o


registro do conceito, tão longe que se possa aprofundá-lo, não vai se confundir
com o registro da vida. Essas são duas direções solidárias, mas opostas. Porque
os dois registros se distinguem fundamentalmente, o sonho taylorista de uma
206 Competência e atividade de trabalho

realidade perfeitamente dominada conceitualmente não pode ser defendido. Em


compensação, os dois registros são inseparáveis: é a sua simultaneidade que
produz a dinâmica do conhecimento e da história. Para o avaliador, é essencial
capturar essa dinâmica, porque ele quer julgar o ator através de seus atos. O ato
está na encruzilhada dos dois eixos, o horizontal e o vertical. Isso significa, pri-
meiramente, que ele nunca é cem por cento livre, ativo – e nunca cem por cento
alienado, passivo. O ato traduz uma interação com o meio ambiente: mas até que
ponto? É exatamente a isso que o avaliador deve tentar responder. É certo que o
ato deve muito às circunstâncias, e, também, às interações com outros humanos,
mas não se pode renunciar a qualificar, diferenciar e, depois, confiar tarefas às
pessoas individualmente. É por isso que a avaliação é indispensável, mas ela
deve levar em conta a dupla origem do ato que ela procura isolar e apreciar. De
um lado, esse ato é o resultado de uma neutralização uma vez que manifesta um
modelo profissional pensado à distância das escolhas; por outro lado, ele provém
de uma desneutralização porque nenhuma apropriação de um modelo é feita de
modo neutro; é necessário, ao contrário, afirmar uma opinião, uma preferência
para dominá-lo e usá-lo. Contudo, a desneutralização é, também, um compromisso
entre a tarefa (a regra) e o serviço (os outros). A avaliação deve qualificar esse
compromisso, que pode ser muito profissional ou, ao contrário, errado, no que se
refere às prioridades coletivas das regras da arte, etc.

Nossa abordagem de avaliação, sob a base da ferramenta que propusemos, é


aquela que nomeamos: a localização e a ancoragem. A localização é um exer-
cício conduzido junto com o avaliado para explicitar as normas antecedentes
da situação de trabalho analisada. Trata-se de um meio de reconhecer aquilo
em função do que agimos e, também, de recolocar no seu lugar – que é crucial
– as normas que se querem neutras e anônimas, justamente para permitir uma
personalização delas, uma atividade. Por exemplo, as normas do ofício são a
expressão de um conhecimento teórico, portanto, desinteressado. O agir (mais
ou menos conforme, segundo essas regras da arte) que o avaliador vai apreciar,
é, ao inverso, a expressão de um saber, aquele de alguém que tem uma opinião
Parte 3: Modelizar o agir em competência 207

preconcebida, que está interessado, que tem um ponto de vista: e felizmente,


caso contrário, ele não seria eficaz. E, exatamente, isso corresponde à segunda
etapa de nossa abordagem, a ancoragem. Entramos na atividade “aqui e agora”,
retomando o relato situado e datado até na cronologia dos fatos. Parece-nos,
então, fundamental adotar uma entrada coletiva na jornada de trabalho, porque a
renormalização não pode ser compreendida de forma solipsista. Há desneutrali-
zação porque há um outro: não apenas um, mas “uns” homens normativos. Cada
um dos protagonistas será colocado, como o avaliado, na obrigação da escolha
– e a iniciativa que se quer avaliar deve ser apreciada entre outras iniciativas que
coincidem no tempo presente. Com a ancoragem, entramos na singularidade,
mas sem nos afogarmos aí porque temos uma boia: a norma antecedente, em
função da qual o protagonista da situação arbitrou.

O terceiro tempo, depois da localização e da ancoragem, é aquele do debate. Certo


número de fatos foi trazido à superfície: trata-se de interpretá-los e, para isso,
o referencial tem seu papel a representar. Ele pertence às normas antecedentes,
e, a esse título, ele autoriza a atividade, a dinâmica entre norma e renormali-
zação. Por isso, é preciso lembrar sempre a necessidade de um referencial – e,
sobretudo, não o tomar por evidente. Porque não é senão na medida em que o
referencial aparece como uma norma, isto é, uma maneira privilegiada de fazer
entre todas aquelas que são possíveis (então resultante de uma escolha), que a
pessoa no trabalho vai poder preferi-la. Pelo contrário, se o referencial é apre-
sentado como uma evidência, ele é, de alguma maneira, naturalizado, imposto
como um fato e não se abre para uma nova escolha.

Mas o fato, que terá sido reconhecido graças ao referencial, não fala sozinho. Essa
etapa é aquela do controle, mas a avaliação também deve se apoiar sobre um ponto
de vista de um ator, que não se contenta em ser apenas ator. A desneutralização
significa que o avaliado tomou a iniciativa sob coação: ele se coloca, mesmo
modestamente, como autor de suas formas de agir, inclusive de acordo com as
regras da arte. A norma é reinvestida por aquele que trabalha, ele a habita, ele a
orienta, ele lhe dá todo o seu significado. Avaliar será, então, cruzar os pontos de
208 Competência e atividade de trabalho

vista, e nossa ferramenta busca provocar este debate: em que condições a tarefa se
tornou “minha” tarefa? É essa reflexão que vai dar conta da subjetividade como
uma atividade – um uso de si, por si e pelos outros.

Na falta de dialetizar a avaliação a partir da atividade, corre-se o risco de tomar


o potencial por algo mágico, em vez de ver nele o desenvolvimento de um do-
mínio que começa a apontar; corre-se o risco de tomar a motivação como algo
metafísico, em lugar de ver nisso um alerta sobre o estado dos debates efetivos de
normas na pessoa em questão; corre-se o risco de considerar a competência como
uma coisa, em vez de pensá-la como uma ferramenta, uma linguagem comum;
corre-se o risco de, finalmente, tomar o referencial como uma camisa de força,
ao passo que deve ser o motor da relação norma/renormalização.

Flecha da tomada de
distância crescente
VERTICAL:
DESADERÊNCIA

Ruptura epistemológica
“Saberes científicos”

CONCEITUALIZAÇÃO
CONCEITOS OBJETIVOS

“Saberes experienciais”
CONCEITOS ORGANIZACIONAIS

HORIZONTAL:
ADERÊNCIA “Saberes experienciais”
CONCEITOS ORDINÁRIOS & OPERATÓRIOS Flecha do
tempo
RENORMALIZAÇÃO
Esforço de viver
Zona do não formulado

“Saberes incorporados”
ESQUEMAS
Ati
vid
ade

Esforço de conhecer
Parte 3: Modelizar o agir em competência 209

6.2. Ilustração a partir de um breve exemplo

Com o Departamento de Ensino do Alto-Reno, conduzimos recentemente uma ação


experimental numa seção de ensinamento geral e profissional adaptada (SEGPA). O
objetivo era propor aos professores uma ferramenta de avaliação nascida da análise do
trabalho, para ajudá-los a acompanhar melhor os períodos que os estudantes gastam
no meio profissional. O estágio é efetivamente considerado como parte integrante
de uma pedagogia que visa restabelecer a autoestima e o sentimento de sucesso
na aprendizagem. Segundo as recomendações ministeriais, a avaliação do estágio
deve, particularmente, permitir apreciar “o nível de domínio, expresso pelas compe-
tências relevando da vida social e profissional (se informar, analisar uma situação
na globalidade, implicar-se em uma ação, comunicar)” (Circular no. 2009-060).

Em resumo, nossa pesquisa teve, como ponto de partida, a constatação de que


a abordagem atual das situações de trabalho pelos estudantes e professores é
essencialmente orientada no que é antecipado, modelizado pelas organizações
produtivas: em um sentido amplo, as tarefas a serem cumpridas e previstas nas
condições de execução previstas. Esse aspecto das realidades em empresas é muito
importante, porque se trata do quadro lógico, colocado no mundo a transformar.
No entanto, o aluno não é encorajado a entrar no inédito de seu próprio trabalho
a partir de uma compreensão mais perfeita das tarefas que lhe são confiadas. Por
definição, essas podem ser conhecidas antecipadamente e podem, aliás, ser obje-
to de uma descrição exaustiva. Em compensação, para ter acesso à atividade de
trabalho e, portanto, à parte inédita, é preciso estar atento à dupla ancoragem das
tarefas: a ancoragem na atualidade de uma realidade humana específica, um serviço
reconfigurando sem cessar a implementação da tarefa; ancoragem mais profunda
ainda numa pessoa única, encarregada de realizar o trabalho em questão – uma
pessoa que fará escolhas e terá uma perspectiva original sobre uma situação que
se acreditava estereotipada.

Quando do retorno da experiência depois da estadia na empresa, o aluno e tam-


bém o professor vão modificar a sua maneira de ver o trabalho. A percepção da
210 Competência e atividade de trabalho

dupla ancoragem das tarefas (ou “aderência”) enriquece, a seus olhos, todas as
situações, inclusive aquelas que, à primeira vista, parecem repetitivas, aponta-
das antecipadamente. O uso das palavras e até mesmo o debate se justificam,
ao passo que, anteriormente, falar sobre um trabalho que se confundia com as
tarefas parecia enfadonho, até absurdo, na medida em que tudo parecia já dito
na descrição do trabalho. Eles percebem, daqui em diante, que as inumeráveis
bifurcações contidas na atividade de trabalho não têm, jamais, uma solução única e
indiscutível. E, sobretudo, a colocação da experiência em palavras vai transformar
profundamente a relação do aluno com o trabalho e, mais amplamente, com seu
universo de normas: uma melhor conceitualização, um aumento na autonomia,
um distanciamento nas escolhas profissionais.

A abordagem de avaliação do trabalho que propomos foi muito apreciada pelos


professores associados ao projeto. No eixo vertical de nosso instrumento, pôde-se
ver funcionar uma abordagem de formação profissional que consiste em trazer um
olhar objetivo sobre o mundo, em aprender a observar os fatos com um espírito
crítico, à distância dos julgamentos de valor muito ligados às situações singulares.
Cada um aprende a se descentrar de si mesmo para chegar ao conhecimento de
alcance geral. Mas, inversamente, retornando ao eixo horizontal do esquema, cada
um deverá, em seguida, se recentrar sobre si mesmo para “fazer seu” o saber,
descobrir-se portador de um ponto de vista singular sobre o mundo, ou seja, centro
de avaliação. Tal é a atividade humana, ritmada como a respiração: alternando
“aderência” com uma situação de vida singular e “desaderência” relativa, isto é,
descolamento em graus diversos (sucessivamente: a narrativa, a explicação, os
modelos teóricos) em relação ao momento único da vida, aquele das escolhas a
serem feitas, levando às renormalizações.

7. A função “formar”

7.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “formar”

No mundo do trabalho, formar significa que se prepara alguém para enfrentar


os desafios que o esperam na ação: tal é o desafio. A formação é, portanto, mais
Parte 3: Modelizar o agir em competência 211

focada, mais curta, mais formal e menos centrada na pessoa que a educação – sem
estar dela, no entanto, muito distante. Certamente, a formação no trabalho responde
a preocupações técnicas e profissionais, mas, em nenhum caso, ela não se resume
à transmissão de um corpus de saberes e saber-fazer. A formação profissional,
porque ela visa diretamente à ação, está também preocupada com a postura do
aprendiz, com sua relação com a norma, sua relação com o saber. Mais do que o
professor pode fazer na sala de aula, o formador verifica o grau de apropriação
dos conteúdos pela pessoa formada. No entanto, ele se choca com um paradoxo:
a situação é, ao mesmo tempo, para ele um suporte e uma eventual armadilha. O
objetivo a seus olhos é observar se o aprendiz domina as tarefas no serviço que
ele está fazendo, assegurando que esse novato não se agarre ao molde, a ponto
de ser dependente das circunstâncias profissionais. Nós diríamos, no vocabulário
ergológico, que o formador deve apreender a competência como a maneira própria
de alguém gerir a tensão entre aderência e desaderência.

A ferramenta dos triângulos encaixados, que nós propomos, é aquela do “ergo-


formador”, um neologismo cujo interesse é de se dirigir à aderência, quando a
profissão orienta sistematicamente os olhares em direção à desaderência. Com-
preende-se bem esse cuidado de ficar autônomo em relação às condições de um
emprego particular, contextualizado, uma vez que a transferência é o indicador de
sucesso para o formador. Em contraste, a imagem da pessoa que terá conseguido
se adaptar a seu posto é aquela que os profissionais de formação temem. Mas é
precisamente para estimular a pessoa formada a relativizar o caráter único de sua
experiência que pensamos ser útil entrar na singularidade e fazer descobrir, com
nosso instrumento, uma estrutura que permite falar mais disso.

O formador, com efeito, pede ao aprendiz que reconheça, na situação que ele vive,
um caso particular entre as configurações possíveis da profissão. O iniciante deve
se apropriar dos saberes profissionais para mobilizá-los com conhecimento de
causa e também tirar ensinamentos de sua experiência, fazendo dele, então, um
saber útil para ser reinvestido em outros lugares. Ora, se os saberes são imagi-
nados como uma bagagem autônoma que a pessoa iria trazer com ela com mais
212 Competência e atividade de trabalho

ou menor felicidade, desliza-se em direção a um dualismo ineficaz, que separa


o sujeito e o mundo, o sujeito que possui ou não “informações”. Aliás, não é,
mais eficaz imaginar que a experiência seria para sempre revivida, que ele não
teria aí uma distinção a fazer entre si mesmo e os saberes... Pensamos, seguindo
a abordagem ergológica, que convém pensar a atividade de maneira sintética: o
saber é uma perspectiva própria a cada um sobre uma realidade; essa perspectiva
é uma interpretação subjetiva, um vivido – mas não somente: ela é, também, a
interpretação de uma situação verdadeiramente real. Em outros termos, pela sua
experiência de vida, cada um tem um ponto de vista sobre o mundo: e esse ponto
de vista não interessa senão a ele. Porque a situação real, aquela do trabalho, por
exemplo, não envolve unicamente os “fatos brutos’’; ela envolve, também, as
interpretações que orientam esses fatos atribuindo-lhes uma significação.

Há duas maneiras de interpretar uma situação: pelo seu comportamento e por suas
representações. Quanto mais a pessoa em formação terá podido retornar aos seus
comportamentos e às suas representações em diferentes momentos de arbitragem
no trabalho, mais ela será conscientizada, isto é, terá consciência do que a situação
lhe pediu. E quanto mais ela for conscientizada, mais ela terá ganhado margens de
liberdade e de singularidade, de controle da situação e de poderio no agir em novos
contextos. A reflexão sobre a aderência vai, simultaneamente, consolidar o que pode
fazer “saber” na situação considerada e o que do ponto de vista do ator é relevante.

O método preconizado nesse instrumento de ergoformação é representar, de iní-


cio, a racionalidade lógica da tarefa: os objetivos, os meios e os resultados – tais
como eles são programados pela organização e reconhecidos no exercício da lo-
calização. Visualiza-se, em seguida, graças a um recorte certamente artificial, mas
pedagógico, o posicionamento da pessoa termo a termo. É esse posicionamento que
vai representar seu ponto de vista, aquele a partir do qual ela verá sua existência
em face da norma, que ela age “de alguma parte” – e isso terá um duplo efeito:
liberar o que há de se saber sobre a situação, que pode se destacar do ponto de
vista que permitiu compreendê-lo; fortalecer o ponto de vista da própria pessoa,
desde que ela se reconheça como autor e não só como ator de seu trabalho.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 213

Há, no ato, matéria a ser conhecida e matéria relacionada a ponto de vista. Ou


melhor: porque há um ponto de vista no ato (e não simples realização de um tipo
mecânico), há qualquer coisa a saber sobre a realidade. “O ato é uma aventura”,
como disse muito bem G. Mendel (1998), o que significa que, no ato, desliza-se
sobre seu próprio projeto intencional e, ao mesmo tempo, somos sacudidos pelas
circunstâncias. Mas apega-se justamente a essas circunstâncias, para não ser so-
mente balançado: é o que significa o debate das normas, mostrando que não há ato
e atividade senão na mediação de um dado, o retrabalho desse dado por alguém.

Como cavar o posicionamento da pessoa em formação, em relação à sua experi-


ência de trabalho? Propomos nossos dois triângulos encaixados: numa primeira
antecipação, o triângulo da racionalidade lógica, que se pretende tendencialmente
neutro (OMR, para objetivo, meio, resultado). Em seguida, na segunda antecipação,
o triângulo da racionalidade axiológica, aquela que aparece nas escolhas, quando
“a” tarefa se torna “minha” tarefa (FRE, para fins, riscos e desafios).

a) De início, os fins: há várias entradas pessoais no objetivo que a organização


me exige, porque nós não temos todos os mesmos “fins”, pelo fato de que
nós todos temos uma história e pontos de vista diferentes. Os fins, isso sig-
nifica, também, até onde estou disposto a me engajar na tarefa. O buquê de
razões pelas quais “eu estou lá e não em outro lugar” vai desneutralizar o
objetivo que se apresenta em uma lógica organizacional anônima e neutra.

b) Em sequência, os desafios: essa é a maneira como vou interpretar os resul-


tados desde a perspectiva que eu adoto. Em que esses resultados não me
deixam indiferente? Qual é a cor que eu lhes dou, para além da forma fria
e neutra desenhada pela organização? Esse não é um caso privado, que diria
respeito somente a mim mesmo: é uma parte da realidade que eu percebo
do meu ponto de vista– e é nisso que esse último interessa aos outros, para
além de mim. Eu sou sensível aos desafios que os outros não veem e que
dão uma outra aparência aos resultados da ação empregada.
214 Competência e atividade de trabalho

c) Enfim, os riscos: é essa minha maneira de apreender os meios que a orga-


nização me dá para atingir o resultado. Eu trabalho, então, eu me arrisco
porque não é possível se agarrar a um molde e de não ter nenhuma conta
a prestar de seus atos. Eu não sou nunca unicamente um ator, sou sempre
(inclusive na obediência às “ordens”) igualmente autor do que eu faço, em
graus variados. Agir em situação é, então, sempre, mais do que seguir uma
regra ou obedecer a uma prescrição: é fazer história.

É claro que esse esquema não representa nada senão um artifício para se exercitar
em extrair de sua experiência, ao mesmo tempo, seu ponto de vista e o que se
estrutura em torno, no esforço da coerência do mundo, que nós realizamos neces-
sariamente em nossos diferentes atos. À medida que se é consciente dos desafios,
por vezes microdesafios, tais quais eles nos aparecem na situação, ganhamos
em latitude intersticial, para tomar iniciativas a tempo, fazendo dos obstáculos
oportunidades: é isso que conduz à transferência tão procurada pelo formador.

FINS

Objetivos

Triângulo exterior
- racionalidade
axiológica

Triângulo
interior - neutro
racionalidade
lógica

RISCOS Meios Resultados DESAFIOS

Desneutralização
Uso de si
Parte 3: Modelizar o agir em competência 215

Além disso, percebendo os desafios do ponto de vista dos outros, a pessoa se en-
riquece com o debate, com a polêmica com outras formas de ver. Compreende-se
melhor as contradições internas da situação, a qual nos aparece mais tridimensional
(entre si, os outros e o mundo). Nossa própria vida se torna menos unidimensional,
mais rica, mais variada, poderosa e florescente, mais pessoal também. Porque, bem
longe de se fechar na mesmice, não se realiza verdadeiramente uma identidade
pessoal a não ser na ipseidade, no seio do debate: ser “de qualquer parte” em um
debate, colocando no debate esse lugar de onde se fala.

7.2. Ilustração a partir de um breve exemplo

Na Escola de Segunda Oportunidade do Baixo-Reno, acompanhamos uma equipe


de formadores em sua reflexão para aproveitar as situações de trabalho graças às
ferramentas de ergoformação – e para desenvolveras aprendizagens em dupla tutoria
(Durrive, 2016). Vamos tomar o exemplo de Adile, um jovem de 21 anos. Ele faz
um curso de treinamento na indústria de alimentação e está realizando um estágio
como ajudante de cozinha. O restaurante está instalado em uma casa da velha Es-
trasburgo. O cenário é não só típico, mas também muito restritivo pela antiguidade
de sua arquitetura. A cozinha está ocupando o andar de cima em quatro salas, com
diferenças de níveis que levam a patamares entre os setores. Adile percorre uma
espécie de corredor e tem várias tarefas a realizar: a lavação dos pratos, a preparação
de pratos frios, as tortas flambadas e a gestão do guichê de saída dos pratos. O guichê,
nesse contexto, é um eixo ainda mais estratégico dado que as equipes de salão e de
cozinha não se veem e devem aproveitar ao máximo esse vetor de comunicação.
Aparentemente desimportante sob o ângulo das tarefas, o posto é, assim, na realidade
do serviço, um tipo de pivô sobre o qual repousa o bom funcionamento do conjunto.
Apesar de sua falta de experiência, Adile vai investir nesse posto com uma notável
capacidade de encarar o trabalho em função dos outros. Quando chega de manhã,
ele dá uma revisada geral e busca preparar o que puder, buscando explicações dos
menus. Ele jamais fala de sua carga de trabalho pessoal primeiramente, mas fala
antes da carga de toda a equipe. Ele compreendeu perfeitamente que, em caso de
grande fluxo, terá que sair de seu posto para dar uma mão no bar lavando os copos,
216 Competência e atividade de trabalho

no terraço onde ele precisa preparar ou retirar as mesas, na câmara fria no momento
das entregas. Na gestão cotidiana de seu posto, ele também consegue administrar
as prioridades graças à sua visão geral: ocupado na lavação, ele sabe como mudar
suas prioridades se os pratos quentes forem anunciados, se o chefe não puder mais
se ocupar das entradas frias, ou, se for urgente, fazer tortas flambadas. No final da
jornada, Adile ainda está muito ativo para o armazenamento e a limpeza das insta-
lações, com o risco de chegar tarde à sua casa.

A preocupação do formador de Adile é prepará-lo para o trabalho: ele tem distancia-


mento suficiente para transferir para outro lugar o que ele aprende neste restaurante,
em que ele coloca toda a sua energia? Os retornos de experiência permitem distinguir
o que lhe é solicitado a fazer (em termos de objetivos, meios e resultados) e a maneira
de apreendê-lo com seu ponto de vista pessoal: em outras palavras, exercita-se em
fazer a diferença entre a norma e a renormalização. Para ilustrar isso, tomaremos
uma sequência durante a qual Adile comenta sobre a produção de tortas flambadas,
esse prato alsaciano preparado com o uso de um retângulo de massa de pão, cober-
to com creme, cebolas e bacon, cozido no forno por cerca de três minutos. Como
aprendiz, o jovem recebeu instrução sobre o procedimento. Mas ele não age como
autômato, ele também tem sua ideia sobre a questão.

“Quando cheguei, o chefe me enviou ao restaurante ao lado para pegar algumas


cebolas picadas. Eu vi que eles as compravam descascadas e depois as pica-
vam. É três vezes mais barato. Então eu disse ao cozinheiro-chefe para pedir as
cebolas descascadas, eu ia picá-las. Nós temos uma máquina que está lá, sem
fazer nada!”.

Adile obteve o sinal verde do chefe, que inicialmente recusou e depois se rendeu
com a condição de que o aprendiz assumisse a carga o tempo todo – e ele cumpriu
o acordo por vários meses.

Para o formador, há ali a matéria para um debate sobre o posicionamento de Adile.


A tarefa que ele pediu vem se somar ao resto de sua carga: é ele quem toma a
iniciativa dessa nova obrigação. . É interessante aprofundar o ponto de vista do
jovem com ele. No lado dos objetivos, ele deve pensar sobre o propósito da or-
Parte 3: Modelizar o agir em competência 217

ganização e suas próprias razões para estar lá: em que direção ele deveria ir? Em
relação aos desafios, ele vai reconhecer o que é importante para ele por um lado,
e, por outro lado, o que é uma prioridade para os outros na empresa, para evitar
possíveis mal-entendidos sobre a hierarquia das restrições, mas de modo a não
confundir suas próprias escolhas com as da empresa. Por fim, do lado dos riscos,
o iniciante vai permanecer atento à mobilização razoável dos meios, embora seja
claro que o prescrito está sempre para além porque ele se coloca aí nesse contexto.
Precisamente, o interesse em debater essas microarbitragens com um iniciante
é ajudá-lo a reconhecer a norma para melhor reconhecer suas renormalizações.
A transferência, que é feita sempre graças a um ponto de vista forte, poderá, em
seguida, se efetuar tanto mais facilmente quando se colocam, de um lado as exi-
gências da empresa e, do outro lado, o que faz norma para o indivíduo.

8. A função “recrutar”

8.1. Apresentação da ferramenta de nossa pesquisa na função “recrutar”

Recrutar alguém para o trabalho é engajá-lo, interessá-lo para levá-lo a integrar


um coletivo de trabalho. Procura-se completar uma equipe segundo um alvo
determinado, localizado no ambiente do serviço que se quer prestar juntos.
Quando se contrata, decidimos confiar algumas tarefas ao recruta, em função
de um serviço globalmente atendido. O desafio consiste em reforçar o coletivo,
conseguir renová-lo sem freá-lo.

O recrutamento é uma aposta – da mesma forma que a competência que é sem-


pre uma inferência – porque não são os fatos que vão determinar realmente o
recrutamento. É verdade que encontramos indícios, e estes são como ajudas na
decisão: tal experiência profissional; tal formação; tal diploma; tal percurso...
Mas, se a adequação entre a oferta de emprego e a oferta de trabalho se realiza,
isso não é segundo a única lógica “eis o que é necessário fazer no posto – eis o
que o candidato sabe fazer”. O recrutamento vai se apoiar, finalmente, em um
encontro, em argumentos, na defesa de um ponto de vista.
218 Competência e atividade de trabalho

A ferramenta que nós propomos ao recrutador é precisamente um provocador


de argumentações, um agitador de posições. Ela repousa sobre o postulado da
abordagem ergológica: a atividade é um encadeamento de debates de normas.
Isso significa, de início, que o instrumento quer servir para colocar, em palavras,
o ponto de vista do candidato ao emprego: encaramos o emprego-alvo a partir
de sua perspectiva. Isso significa, em seguida, que se retomam os termos da
contradição do uso de si: alguém é solicitado por outrem a fazer alguma coisa:
“Fazer alguma coisa” é o eixo da tarefa a realizar, aquela que se presta bem a
uma conceitualização, ou seja, a um enquadramento prévio. Além da tarefa, são
encontradas, sobre o mesmo eixo, as regras de conformidade, as regras de arte,
o ofício, então. “Solicitado por outrem” é o eixo do serviço a prestar. Esse não se
presta senão parcialmente à antecipação, pois será levado pelo acontecimento,
pela gestão das variabilidades cuja origem é essencialmente humana: se meu
trabalho é, de fato, complicado, é, antes de tudo, porque outrem não cessa de
interferir, de se misturar com o meu interesse pela tarefa, de perturbar a sua
implementação. Além do serviço a realizar, achamos bem seguro o emprego.
Com o ofício e o emprego, temos os dois termos, acreditamos, que caracteri-
zam o uso de si pelos outros. É importante sublinhar, antes mesmo de encarar a
contradição interna do uso de si, que esse uso de si “pelos outros” carrega nele
os germes de um conflito. De fato, pede-se àquele que trabalha que se atenha ao
ofício: mas, com bastante frequência, nas urgências do emprego, vai se pedir a
ele que faça de outra forma, que faça mais rápido esquecendo a excelência da
qualidade. O imperativo de conformidade e aquele de utilidade não convivem
sempre em harmonia, e acaba sendo o titular do cargo que vai pôr à prova a
situação. Trata-se de uma outra maneira de ilustrar a tensão entre o registro da
desaderência e aquele da aderência.

Mas isto não é tudo. De fato, o uso de si, que está no centro do esquema, no
coração da atividade, não é decidido mecanicamente... Existe uma polêmica
interna quanto ao uso de si, é o projeto de agir. Em seu foro íntimo, ninguém
deixa o projeto do outro substituir o seu.. Dizendo de outra forma, para que o
Parte 3: Modelizar o agir em competência 219

problema a resolver seja problema para mim, é necessário que ele corresponda
ao meu projeto. Pode-se certamente extorquir de alguém sua concordância, mas
não podemos esperar de um ser humano que ele seja a tal ponto transparente
que um outro senão ele poderia agir nele: “uma reação forçada é uma reação
patológica”, lembra Canguilhem (1947: 128). O uso de si é polêmico porque,
se a solicitação dos seres humanos for fundamental enquanto oportunidade de
existir, há uma posição prévia de contestação que deve permitir ao interessado
encarar a possibilidade de recusar, o que abre para ele a possibilidade de preferir
fazê-lo – e, portanto, de se engajar. O projeto de uso de si por si faz, então, existir
o problema do outro enquanto “problema para mim mesmo”. E é somente nesse
momento que a pessoa no trabalho vai procurar, com seus próprios recursos, o
que poderia satisfazer a demanda e trazer uma solução. Esse terceiro eixo não
representa o trabalhador: porque esse se encontra no centro do esquema. Esse
é o eixo dos “recursos a mobilizar”: e, de fato, o trabalhador “tem” recursos, e
ele “não é” ele mesmo um recurso.

Além das soluções imediatamente mobilizadas, podemos efetivamente chamar


esse último ramo do esquema de o eixo do trabalho. Essa é a resposta da pessoa
às duas questões que lhe são colocadas pela tarefa/ofício de uma parte e pelo
serviço/ emprego de outra parte: o que fazer – e por quem fazer? Aos nossos
olhos o interesse desse terceiro eixo – ‘trabalho’ – é problematizar a contribuição
pessoal sem tratar o ator fora de seu ato. Fala-se de disposições da pessoa em
função da tarefa e do serviço a realizar. O ator fica bem no centro do modelo
que propomos, assim como seu ato. Segundo o projeto que ele terá para ele
mesmo, esse ator vai procurar em si os recursos que lhe possibilitarão estar à
altura disso que lhe está sendo pedido.

Nosso esquema, intitulado “TOE” (trabalho, ofício, emprego), tenta ilustrar os


três grandes eixos de um debate de normas, um agindo sobre os outros. Demons-
trar competência será tudo ao mesmo tempo: sobre o eixo “ofício”, demonstrar
um bom domínio das técnicas; sobre o eixo “emprego”, fazer prova de pertinên-
220 Competência e atividade de trabalho

cia nas arbitragens impostas por outrem, hit et nunc; sobre o eixo “trabalho”,
manifestar uma real implicação, ter gosto pelo trabalho e soluções pessoais a
fornecer. Mas não esqueçamos que se mostrar competente é globalmente “estar
em atividade” de tal maneira que ocasione a aprovação e o reconhecimento dos
outros. A competência enquanto tal é uma convenção, uma maneira de falar da
atividade: é por isso que o esquema é ligado ao julgamento que os outros vão
fazer sobre si. Esse será um julgamento de beleza (Dejours, 1993) ou de con-
formidade para o ofício, aquele de utilidade para o emprego e, enfim, aquele
de fiabilidade para o trabalho.

Nossa ferramenta é considerada para a problemática do recrutamento no


campo da inserção profissional. Ela deve perturbar não somente as represen-
tações do candidato à inserção, mas também dos operadores de recrutamento
ou de acompanhamento, sobre o que é o objeto de sua reflexão comum: o
emprego aberto à contratação. Esse alvo não deve ser considerado somente
sob o único ângulo da lógica, da comparação de dados. Um emprego não é
uma soma de informações, é uma situação de trabalho. Essa situação pode ser
parcialmente conhecida por um esforço de documentação, mas, no fundo, ela
será uma situação a ser vivida. Isso significa que o protagonista será mesmo
o próprio candidato. Ele deve trabalhar seu próprio posicionamento graças a
essa ferramenta. É ele que tem encontro marcado com a situação de trabalho,
que nós vamos definir como “uma realidade mediatizada pelos outros da qual
ele será o piloto”. Nós vamos reencontrar ali nosso esquema de três eixos.
No centro, aquele que está no comando da situação que ele está vivendo: ele
deve negociar com o real do qual ele faz a experiência, e, de início, através
do fracasso, como lembra Dejours (2003). É o nosso eixo da tarefa/ofício.
Ele vai perceber igualmente, à prova do real, que os conteúdos do emprego
não são – nem de longe – resumidos pelas tarefas: o serviço pedido a ele é
necessariamente tomado nas malhas das interações quotidianas no trabalho, e
sua disponibilidade no serviço será tão julgada quanto a sua destreza pode ser
julgada nas tarefas. Enfim, estando no cargo dado para o qual foi contratado, o
Parte 3: Modelizar o agir em competência 221

candidato à inserção vai medir pessoalmente tudo “o que isso lhe demanda”,
segundo a expressão dos ergonomistas.

Tende ao ofício:
CONFORME
nas tarefas
Polos atrativos:
trabalho, ofício,
emprego

Atividade
=
tensões

Tende ao Tende ao em-


trabalho: prego: ÚTIL
CONFIÁVEL no serviço
no esforço dos outros

Ele deverá mobilizar muitos recursos pessoais, sem dúvida, bem mais do
que ele imaginava – sobretudo se ele esteve muito tempo distanciado do em-
prego. Vê-se que o debate de normas pode deslocar seu centro de gravidade
nesse esquema: uma instabilidade do novo assalariado poderá, parcialmente,
vir da relação com os outros (que, muito rapidamente, se tornem, talvez,
muito exigentes), ou ainda ter sua origem no sentimento de ser ultrapassado
pela complexidade das tarefas, ou enfim, de ser provocado por uma imagem
degradada de si mesmo, a qual o impede de mobilizar recursos próprios, o
impede de encontrar a energia para lutar e guardar a iniciativa frente a todas
as coações. Entretanto, os três eixos interagem, fazem retorno uns sobre os
outros – e não é, então, uma única explicação que prevalece.
222 Competência e atividade de trabalho

A ferramenta “TOE” é um provocador de debate que aponta em diferentes dire-


ções, para solicitar uma tomada de decisão dos atores do recrutamento, a começar
pelo candidato. Essa ferramenta foi retomada por uma abordagem mais global
de ergo-acompanhamento em um projeto de serviço de formação contínua da
Universidade de Estrasburgo (ver o exemplo).

8.2. Ilustração a partir de um breve exemplo

A originalidade de nossa abordagem TOE consiste em reunir as três fases da inser-


ção profissional (mobilizar, qualificar, colocar) em torno de uma mesma pessoa.
Trata-se de trabalhar simultaneamente sobre as obrigações (técnicas, sociais) que
se apresentam e sobre a tomada de posição da pessoa referida. Essa abordagem foi
retomada e desenvolvida para confeccionar um instrumento de acompanhamento
através do e/no emprego intitulado: “Emprego-piloto”, projeto comum da fundação
Jeunesse Avenir Entreprise3 (JAE) da Universidade de Estrasburgo – Serviço de
Formação Continuada, em colaboração com o Laboratório Interuniversitário das
Ciências da Educação e da Comunicação – LISEC).

O Emprego-piloto é definido não somente como uma linguagem comum entre


os operadores e com o candidato à inserção, mas também como uma ferramenta
de mediação, na medida em que ele vai gerar a verbalização e o cruzamento dos
pontos de vista sobre as pressões de uma situação: sob o ângulo do trabalho, do
ofício, do emprego. Cada uma das três dimensões é apresentada em uma dezena
de itens, eles mesmos associados a grades que distinguem as pressões, classifi-
cadas do grau mínimo ao grau máximo. Cada item é um fator decisivo de acesso
ao emprego ou, inversamente, à exclusão.

Daí o termo de “ergo-acompanhamento”:

“No momento em que há um risco de ‘desligamento’, é importante analisar glo-


balmente e objetivamente as razões dessa inadequação para estabilizar a pessoa
no emprego. A comprovação das três dimensões ou tipos de exigências – trabalho,

3 Cf: www.foundation-jae.org, empresa de utilidade pública destinada a fornecer orientação e


acompanhamento profissional aos jovens franceses.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 223

ofício, emprego – dá um novo esclarecimento sobre a competência a valorizar e


as dificuldades a ultrapassar. Uma vez o diagnóstico da situação estabelecido,
as necessidades e os pontos a trabalhar são localizados e identificados” (Marc
Poncin, Manual Pilot-Emploi, 201: 52).

Observam-se juntos os três desafios simultâneos que a pessoa deve necessariamente


relevar em atividade: aquele de se engajar no esforço, de mobilizar seus recursos
(é o eixo do trabalho), a fim de se tornar disponível aos outros e de ser eficaz (é o
eixo do emprego), graças ao seu domínio relativo das tarefas prescritas (é o eixo
do ofício). O ponto de vista da pessoa em relação à combinação de exigências
do ofício oferecido será cruzado com o ponto de vista do supervisor de inserção,
de maneira a dispor da boa distância na elaboração do perfil. Enfim, vai-se ao
encontro das expectativas de quem oferece o emprego, aquele que se prestou ao
jogo de definir seu posto em função de um candidato inicialmente virtual, depois
real. O debate que vai surgir dessa confrontação com as grades TOE vai permitir
encarar uma evolução, um deslocamento de pontos de vista de uns e dos outros
e a sua eventual aproximação.

“Certas dificuldades não podem ser resolvidas sem apelar para organismos es-
pecialistas em seus domínios (Ex: adequação do nível em francês). Assim, atrás
de cada distanciamento, uma ação específica pode ser realizada para reduzi-lo.
As soluções podem tomar diversas direções: mediação, regulação, acompanha-
mento ou formação.”

“A objetivação e a legibilidade definidas pela linguagem comum permitem


dissolver os a priori e as representações das diferentes partes. É, então, uma
maneira de otimizar os percursos mudando o olhar sobre a situação e sobre a
pessoa” (idem:52).

Conclusão

Nosso objetivo era mostrar como nossas atuais pesquisas, no campo aberto pela
análise da atividade e mais particularmente pela abordagem ergológica, podiam
contribuir para o aprofundamento do conteúdo do conceito de competência, muito
solicitado hoje em dia, em todas as funções do manejo e da formação de adultos.
224 Competência e atividade de trabalho

Tratava-se para nós de apresentar o que pudemos experimentar em diferentes dis-


positivos, no prolongamento da abordagem ergológica – e de ver em que medida a
integração de um debate entre os pontos de vista (próprios a todas as pessoas em
atividade, numa situação de trabalho) iria dinamizar novamente os modelos que
inspiram atualmente o desenvolvimento, a avaliação e a gestão de competências
nas organizações. Expusemos, de início, em uma perspectiva de problematização,
os usos atuais da competência, seguindo o que nos aparece como as cinco grandes
funções, associadas diretamente ou indiretamente à administração. Continuamos a
aprofundar essas cinco maneiras de se apoderar da abordagem pela competência,
para uma melhor conceitualização. Enfim, propusemos formalizar uma alternativa
para cada uma das funções localizadas, a partir dos modelos que construímos com
a abordagem ergológica.

Para a função “organizar”, analisamos um uso da competência que tende a se


aproximar da qualificação. A competência é somente um meio suplementar para
o organizador diferenciar as pessoas e estruturar as equipes. Com o instrumento
ergológico (Grupo de Encontros do Trabalho, no meio hospitalar), o ponto de vista
do gestor pode ser debatido, eficazmente, com o ponto de vista dos operadores. A
condição é guardar, vis-à-vis, normas antecedentes e as renormalizações.

Para a função “chefiar”, analisamos um uso da palavra competência, que sepa-


ra, artificialmente uma abordagem sintética (aquela que se mobiliza quando se
formam as equipes e quando incentivadas na gestão da distância prescrito/real) e
uma abordagem analítica (aquela que se adota durante as entrevistas anuais, por
exemplo, quando se volta às únicas tarefas). Com a ferramenta ergológica (tarefa-
-ofício-esforço), coloca-se em debate a relação entre a tarefa a realizar e serviço
a fazer, a fim de articular os dois registros em lugar de os justapor.

Para a função “avaliar”, nós analisamos um uso da competência em que se apoiava


em fatos (provas), pesquisando também um meio de dar conta da singularidade –
o que se realiza com a reflexividade, ficando sobre o único plano cognitivo. Com
o instrumento ergológico (diagrama de eixos ortogonais), coloca-se, em debate,
Parte 3: Modelizar o agir em competência 225

a aderência e a desaderência, a fim de construir o ponto de vista embasando a


constatação dos fatos. Avaliam-se, assim, não somente a pertinência das arbitragens
lógicas, mas também as escolhas argumentadas.

Para a função “formar”, analisamos um uso da competência em que se hesitava


em entrar na singularidade de uma situação, para aí não se perder e, finalmente,
reduzir a formação a uma simples adaptação. Com a ferramenta ergológica (triân-
gulos encaixados: lógica/axiológica), pode-se, ao contrário, se aproximar o mais
possível das microarbitragens, para melhor se desvencilhar delas e transferi-las em
seguida. É possível isso, na medida em que analisamos a fundo essas arbitragens,
distinguindo a tarefa do ponto de vista sobre a tarefa.

Para a função “recrutar”, analisamos um uso da competência em que ela era


(tendencialmente) rebaixada,isso em relação aos aspectos da personalidade, como
se o ato técnico fosse avaliado pela qualificação e pelo potencial através da com-
petência. Com a ferramenta ergológica (trabalho-ofício-emprego e mediação),
propõe-se, sobretudo, tomar em consideração toda a situação de trabalho à qual
a oferta se refere, pedindo ao candidato tomar uma posição, entrar, então, em um
debate de pontos de vista sobre as diferentes obrigações futuras.

Propusemos ver por onde acontece a mudança nas práticas. Parece-nos que acon-
tece por uma abordagem multilateral das situações de trabalho, mais do que por
uma abordagem unilateral, como é ainda, majoritariamente, o caso. De fato, os
modelos atuais de avaliação, de desenvolvimento e de gestão das competências
encaram as situações somente pelo lado das normas antecedentes. Ora, o julga-
mento de competência não pode ser justificado por um raciocínio lógico (esse
não é o resultado de uma abordagem hipotético-dedutiva), nem ser justificado
de maneira simplesmente pragmática (se a verdade da competência era somente
a eficácia, seria possível falar de performance). Conclui-se, então, que a única
modalidade de julgamento de competência é uma avaliação que passa pelo debate
(debate de interpretação) e se esforça por chegar a um consenso – sobre a base
de fatos objetivos, mas que são eles mesmos sempre, em parte, reconstruídos
226 Competência e atividade de trabalho

pelas interpretações. A competência aparece, então, como o objeto de um debate


necessário (em que os referenciais têm um papel de pedra de toque), se quisermos
escapar ao duplo obstáculo do arbitrário e do julgamento redutor.

Modelos para trabalhar com as competências

Organizar Chefiar Avaliar Formar Recrutar


O uso atual da O uso atual O uso atual da O uso atual da O uso atual da O uso atual
competência da competên- competência competência competência da compe-
cia tende a tende a separar tende a buscar, tende a sobre- tência tende
aproximar-se indevidamente com apoio de voar a especifi- a trabalhar
da qualificação uma aborda- provas (fatos), cidade de uma somente com
para diferen- gem global uma singulari- situação para os aspectos da
ciar o pessoal para o adminis- dade somente evitar a adap- personalidade
e estruturar as trador e uma pela reflexi- tação e garantir (potencial,
equipes abordagem vidade (plano a transferência etc.), a qua-
para as tarefas cognitivo dos aspectos lificação no
durante as unicamente) gerais âmbito do ato
entrevistas técnico

O modelo O grupo de A ferramenta O diagrama A ferramenta A mediação


alternativo encontros tarefa/serviço dos eixos orto- dos “triângu- oficio-profis-
de trabalho (exemplo rela- gonais (exem- los lógico e são-emprego
apresentado (exemplo do tivo à empresa) plo tomados axiológico” (exemplo de
hospital) nos colégios) (exemplo de uma associa-
uma escola ção para a
de segunda inserção)
chance)

O que esses O ponto Tarefa e O ponto de Aproximar-se Treinar o


modelos de vista do serviço não são vista pode das microar- candidato
administrador duas realidades fazer parte de britagens sem em tomar
alternativos pode dialogar mas uma só, uma avaliação confundir-se. posição sobre
ensinam com os pontos eles estão em se é posicio- Diferenciar a as diferentes
de vista dos articulação nado diante da tarefa e o ponto restrições a
operacionais norma de vista sobre vir integrar
a tarefa para o técnico e o
uma melhor subjetivo
transferência

Contribuição O desvio pelos A implemen- A colocação O ponto de O debate dos


da abordagem pontos de vista tação é uma em debate vista não se en- pontos de vista
vai instruir a interpretação relata o sentido gessa dentro do auxilia a inte-
ergológica norma antece- (a carta e a das normas singular mas se grar novos
dente mente) liberta dele meios
Conclusão geral 227

Conclusão geral

Em seguida a nossa tese, A experiência das normas (2006), fizemos um balanço


de nossos trabalhos e de nossas perspectivas de pesquisa. Para esse balanço de
etapa, consideramos cinco funções associadas à gestão das pessoas no trabalho:
organizar, chefiar, formar, avaliar e recrutar. Elas estão, ao mesmo tempo, em
descontinuidade (são missões diferentes) e em continuidade, pois todas estão
interessadas pela questão da competência. Todas estão preocupadas com a ligação
entre o saber e a ação e com a relação do homem com o trabalho: até onde será pos-
sível fazer coexistir um aumento de normas com um apelo constante à iniciativa?

Nossos trabalhos tendem a mostrar o que seria, segundo a expressão de Yves


Schwartz, uma “ergogestão”. Dizendo de outra forma: em que a tomada da ati-
vidade, como um encadeamento de debate de normas, e a tomada da competência,
como “uma arte de gerir seus debates de normas”, permitem melhor compre-
ender o que seguir uma regra significa para um ser humano. Acompanhamos
nossas reflexões sobre a produção de instrumentos, que foram experimentados
no quadro dessas cinco funções associadas à administração. O seu ponto comum
228 Competência e atividade de trabalho

é considerar que a situação de trabalho vá além de suas condições objetivas; ela


é o lugar onde cada um dos protagonistas forma para si um ponto de vista único
sobre a realidade. Esse ponto de vista é somente subjetivo, ele dá um esclareci-
mento original sobre a realidade, e, nisso, merece ser trabalhado, colocado em
palavras, analisado e constituído como um saber de experiência. Tornando-se
assim comunicável, ele pode ser submetido à confrontação de saberes, participar
na instrução de normas antecedentes e dinamizar a experiência normativa, quer
dizer, desenvolver a competência.
Referências bibliográficas 229

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economia, psicologia e educação.

Estudos de controvérsias científicas e da construção social da tecnologia des-


crevem o trabalho cotidiano da ciência e tecnologia em laboratórios e empresas.
Evidenciam também as habilidades e saberes de cientistas, técnicos e usuários,
que constróem e sustentam os fatos científicos e artefatos. Os estudos sociais de
ciência e tecnologia se contrapõem ao modelos canônicos de ciência e tecnologia,
que desconsideram o saber empírico e habilidades práticas dos atores sociais, as
intuições baseadas na experiência, o conhecimento tácito e os juízos de valor
implícitos em qualquer fazer humano.

“Verdades científicas” e “ótimos tecnológicos” são sempre criados dentro de


um contexto social: o que funciona é sempre julgado em relação às necessidades
de uma comunidade particular e pode parecer bem diferente quando julgado por
outra perspectiva. O “fechamento” de uma controvérsia científica ou tecnológica
só ocorre quando o grupo vitorioso é capaz de estabilizar os mundos sociais e
236 Competência e atividade de trabalho

naturais e impor um paradigma dominante. O estudo de como as controvérsias


são “fechadas” ilustram como que conhecimentos e práticas antes contingenciais
são reificadas como o resultado inevitável do progresso científico e tecnológico.
Pelo menos a este respeito, não existem diferenças essenciais entre a produção
de fatos científicos nas ciências sociais e nas ciências da natureza.

As obras publicadas pela Fabrefactum examinam como o conhecimento é acor-


dado, disputado, modificado e transmitido. A produção de novos conhecimentos é
a produção de novos acordos sociais sobre o que se deve considerar como sendo
“certo” ou “errado”. Isso implica reconhecer as dimensões cognitiva e subjetiva
da prática científica e o saber tácito dos agentes sociais envolvidos, sejam eles
cientistas, tecnólogos ou cidadãos que detenham saberes específicos. Pretende-se
questionar os mitos da ciência e tecnologia, sem com isso negar a importância do
conhecimento especializado.

As obras da Fabrefactum também aprofundam a compreensão da recorrente


questão da natureza do trabalho humano e sua substituição por máquinas, em
especial os limites e possibilidades do uso da inteligência artificial e de siste-
mas especialistas. Em termos práticos contribuem para o projeto de tecnologias
orientadas para a atividade, ao mostrar o papel das pessoas em fazer possível o
uso rotineiro, manutenção e atualização de qualquer tecnologia. A socialização e
a imersão em “formas de vida” se tornam centrais na transferência de tecnologia
e gestão do conhecimento tácito.

A compreensão da natureza social do conhecimento científico e tecnológico tem


implicações em outras esferas da vida. A desmitificação da ciência lhe retira a
autoridade e o poder advindos de uma posição supostamente privilegiada de
acesso à realidade absoluta. Abre-se assim um espaço onde indivíduos que detêm
uma “expertise baseada na experiência”, mas não necessariamente titulações
acadêmicas, possam contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas.
A participação popular em questões científicas e tecnológicas passa a ter valor
tanto epistêmico como político. Estas mudanças trazem um novo desafio: como
Referências bibliográficas 237

definir critérios de inclusão, exclusão e de contribuição de cada grupo social –


problema que se mostra ainda mais agudo quando se tem uma controvérsia que
ainda não foi fechada.

Por fim, as obras publicadas pela Fabrefactum pretendem transformar a educação


em ciências e a compreensão destas pelo público. O modelo conônico de ciência se
sustenta no mito da infalibilidade do método científico ao ensinar que a “verdade
científica” é o resultado de um método impessoal e objetivo que iniciantes têm de
aprender a valorizar e aplicar. Ao mesmo tempo em que não se nega a importância
desta atitude como uma aspiração, os estudos sociais da ciência mostram que esta
não é uma descrição fidedigna de como ciência e tecnologia são produzidas. O
ensino de ciências só pode melhorar se as idéias tradicionais forem complemen-
tadas por uma compreensão das maneiras pelas quais controvérsias científicas e
tecnológicas emergem, são fechadas e reabertas.

Compreender a ciência e tecnologia como instituições sociais – e assim abrir a


possibilidade de propostas alternativas – é um pré-requisito essencial para o desen-
volvimento de um diálogo efetivo e crítico entre ciência, tecnologia e sociedade.
A Fabrefactum espera, com suas publicações, contribuir para este movimento.
238 Competência e atividade de trabalho

Louis Durrive – Competência e atividade de trabalho


Louis Durrive é professor associado do Laboratório Interuniversitário de Ci-
ências, da Educação e da Comunicação (Lisec), da Faculdade de Ciências da
Educação de Estrasburgo, França. Doutor em Ciências da Educação pela Uni-
versidade de Estrasburgo.

Sua publicação Competência e atividade de trabalho é importante, pois, exami-


nando os discursos e as práticas do management e da formação profissional hoje,
não podemos deixar de nos surpreender com a distância entre, de uma parte, o
uso inflacionado da noção de competência, e, de outra, a grande banalidade do
conteúdo conceitual dado atualmente a esta “lógica competência” por assim
dizer revolucionária.

O eixo problemático em torno do qual circunda nosso estudo será o seguinte:


como as práticas e os discursos atualmente dominantes em torno da noção de
competência veem sua eficácia e sua pertinência fortemente limitadas por um
viés que tende à unilateralidade de sua abordagem da situação de trabalho? E,
sobretudo, em que a especificidade do conceito de competência – notadamente
em relação ao conceito de qualificação que ele tende a substituir progressiva-
mente – tenderia justamente àquilo que ele define primeiramente como um
consenso emergente do debate de pontos de vista, por fazer se reencontrarem
as exigências da confiança e do reconhecimento?

Com efeito, a armadilha da substancialização da competência (sua redução às


listas de um referencial) é ultrapassada uma vez que observamos a atividade
de trabalho como um vai e vem entre a “norma antecedente” (anônima) e a “re-
normalização”, ou seja, a maneira própria a cada um de se encarregar da norma
em um momento de vida. Para desenrolar esse fio condutor e desdobrar todas as
potencialidades inscritas na atividade de trabalho, retornaremos constantemente,
ao longo deste livro, a este vai e vem entre normas antecedentes e renormalização.
Referências bibliográficas 239

Sobre o livro
Formato: 16x23 cm
Mancha: 12,4x19 cm
Tipologia: Texto – Minion Regular (corpo 11 pt)
Títulos – Minion Regular (corpo 30 pt)
Subtítulo 1 – Minion Regular (corpo 14 pt)
Subtítulo 2 – Minion Regular (corpo 12 pt)
1ª Edição: 2021

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