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Série Trabalho e Sociedade
Trabalho e o Poder de Agir
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Profa. Maíra Baumgarten Prof. Yves Schwartz
Universidade Federal do Rio Grande Université de Provence
LOUIS DURRIVE
Competência e
atividade de trabalho
1ª Edição
Belo Horizonte
2021
© 2021 Fabrefactum Editora Ltda. Todos os direitos da tradução e desta edição reservados à Fabrefactum
Editora. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem a prévia autorização,
por escrito, da Fabrefactum Editora Ltda.
Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2021 Carlos Drummond de Andrade
da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério Francês da Europa e das Relações
Exteriores.
Durrive, Louis
Competência e atividade de trabalho [livro
eletrônico] / Louis Durrive. -- 1. ed. -- Belo
Horizonte, MG : Fabrefactum Editora, 2021.
PDF
ISBN 978-85-63299-24-6
21-86177 CDD-370.11
Tradução
Marlene Machado Zica Vianna
Com colaboração de:
Admardo B. Gomes Júnior
Deise de Souza Dias Revisão Técnica
Ênio Rodrigues da Silva Admardo B. Gomes Júnior
Estela Aparecida Oliveira Vieira Daisy Cunha
Jurandir Soares da Silva Revisão Geral Fabrefactum Editora Ltda.
Lecy Rodrigues Moreira Marlene Machado Zica Vianna Rua Miranda Ribeiro,165
Luciana Gelape dos Santos Apoio de Produção Belo Horizonte – Minas Gerais
Mônica de Fátima Bianco Vera Margarete Maia Pereira Pessoa CEP 30380-660 – Brasil
Rosimare Alves Petitjean Capa, Projeto Gráfico e Editoração http://www.fabrefactum.com.br
Sirley Araújo Dias Burnier Branding & Marketing E-mail: gerencia@fabrefactum.com.br
Sumário
INTRODUÇÃO.........................................................................................17
CONCLUSÃO GERAL.....................................................................................227
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................229
LINHA EDITORIAL......................................................................................235
Apresentação da edição brasileira 13
xiii
Apresentação da
edição brasileira
Daisy Moreira Cunha
Admardo B. Gomes Júnior
Trata-se de uma obra que contribui com vários campos disciplinares que estudam
o trabalho, tais como a Administração, a Engenharia de Produção, a Educação
e Formação Profissional, a Economia, a Psicologia e a Sociologia do Trabalho
e, em especial, com o campo dos Recursos Humanos, ou melhor, com aqueles
que preferem uma Gestão com Pessoas. Isso porque o autor, durante todo o li-
vro, discute as bases das funções que compõem esse campo: organizar, chefiar,
avaliar, formar, recrutar e mobilizar pessoas. Durrive faz esse debate trazendo os
14
xiv Competência e atividade de trabalho
dilemas do trabalhar, seja na relação com outrem (colegas de setor e/ou gestores
de outros níveis hierárquicos, usuários de serviços e/ou clientes comerciais), seja
na relação com as disposições tecnológicas e sóciotécnicas em espaços laborais.
Nessas relações de trabalho, estão sempre em questão infindáveis procedimentos
que requisitam competências diversas. Em Competência e Atividade de Trabalho, o
autor nos apresenta importantes e sólidas reflexões sobre elementos do quotidiano
da gestão do trabalho humano, as quais, efetivamente, conseguem incluir o ponto
de vista daquele que trabalha.
(Yves Schwartz)
16 Competência e atividade de trabalho
Introdução 17
Introdução
A presente obra – que se apoia no texto de uma Tese de Habilitação para Dirigir
Pesquisas1, defendida em 2013, pretendia ser uma contribuição para a compre-
ensão do conceito de competência, determinando as condições de um uso mais
pertinente do ponto de vista teórico e mais legítimo do ponto de vista prático. De
fato, pensamos que, sob a condição de compreender a sua riqueza desconhecida,
esse conceito pode se constituir em uma verdadeira oportunidade de mudar nossa
forma de ver, pensar e gerir as situações de trabalho e de aprendizagem.
Definir a competência não é evidente. Como ponto de partida, vamos dizer que a
competência é entendida como uma hipótese: uma hipótese sobre a maneira pela
qual alguém enfrentará um problema (no sentido de uma questão a ser resolvida),
numa dada situação. Ora, os profissionais da prática que utilizam os diferentes
1 Cf. A tese Habilitação para Dirigir Pesquisas (Habilitation à Diriger des Recherches - HDR)
confere um diploma de reconhecimento de competência científica aos professores pesquisadores
franceses que os habilita a dirigir pesquisas e orientar teses.
18 Competência e atividade de trabalho
perto, uma razão objetiva dessa correlação estabelecida – um tal raciocínio rigoroso
é inconcebível no tratamento da competência. De novo, é importante esclarecer
a operação cognitiva sobre a qual repousam os julgamentos de competência que
utilizamos no quotidiano, pois isso deve permitir compreender melhor os riscos
e as potencialidades dessa noção.
O eixo problemático em torno do qual vai girar nosso estudo será, pois o seguinte:
redinamizando os dispositivos, a conceitualidade e os modelos atualmente em uso
para conceber e gerir as competências, como a integração, no âmago mesmo do
conceito de competência de um debate entre os pontos de vista (próprios a todas
as pessoas em atividade numa situação de trabalho) seria permitido mostrar não
só o motor explicativo e performativo, como também os limites e as condições
sob as quais eles poderiam ser aperfeiçoados no seu sentido próprio.
limitadas por um viés que tende à unilateralidade de sua abordagem das situações
de trabalho? E, sobretudo, em que a especificidade do conceito de competência
– notadamente no que diz respeito àquele da qualificação que ele visa substituir
aos poucos – iria tender justamente ao que se define, em primeiro lugar, como um
consenso emergente do debate de pontos de vista para fazer que se reencontrem
as exigências de confiança e do reconhecimento?
O fio condutor que vai guiar nossa reflexão para responder a essa problemática
toma, como ponto de partida, o conceito ergonômico de distância entre o trabalho
prescrito e o trabalho real. Seguindo Yves Schwartz, acreditamos que é preciso
insistir sobre o caráter fundamentalmente paradoxal dessa distância. Com efeito,
na dinâmica da atividade, o prescrito (ou seja, o quadro normativo preexistente à
situação) só obtém sua efetividade da atividade humana que o utiliza – aplicando-o
a si mesmo – o que corresponde à incontornável “personalização da tarefa” na etapa
de realização. Mas, ao mesmo tempo, não haveria aí nenhuma atividade efetiva
sem o plano de normas antecedentes, que a guia e suporta (até estandardizá-la, para
organizar a cooperação em grande escala) – o que corresponde à indispensável
“anonimização da tarefa” quando da sua planificação.
Sobre esse ponto, uma precisão terminológica se impõe logo de saída. Trabalho
prescrito e trabalho real não são simplesmente objetos distintos, fatos separados
– um discursivo (o prescrito) e outro empírico (o real). Trabalho prescrito e tra-
balho real engajam também maneiras de analisar o trabalho, as quais são muito
Introdução 21
diferentes: para “ver” o trabalho prescrito, é preciso tomar distância no que diz
respeito aos detalhes anedóticos do concreto, é preciso focalizar sua atenção sobre
as regularidades, ajustar as lentes da abstração. Pelo contrário, para reconhecer
o trabalho real, é preciso “ir vê-lo” (de acordo com as palavras do ergonomista
Jacques Duraffourg), quer dizer que é preciso – tanto quanto possível – se apro-
ximar da situação tal como é gerada aqui e agora e por uma pessoa específica.
Analisando o trabalho dos outros ou mesmo o seu próprio, não se percebe a
“atividade” (o esforço da interação que retrabalha o prescrito no real) senão ao
preço de um ir e vir constante entre esses dois ângulos de análise de uma mesma
realidade: tal situação de trabalho. Para insistir a respeito de cada um desses dois
possíveis pontos de vista sobre a atividade, o filósofo Yves Schwartz propõe
batizá-los respectivamente a “aderência” e a “desaderência”, um binômio que
esse autor define de acordo com as palavras que se seguem.
A aderência é o desafio de viver o mais perto das reais restrições, a fim de tentar
utilizá-las como oportunidades:
Não há nenhuma vida humana que não seja como que chamada a viver, de uma
parte, no que nomeamos ‘a aderência’: seja a mobilização de nossas energias,
incorporadas não só às nossas faculdades mentais, como também aos nossos
equipamentos biológicos, para detectar o que se torna ponto de resistência e
ponto de apoio no presente do meio onde se vive (2009a: 16).
A desaderência é
Uma primeira parte será uma coletânea dos usos do termo “competência” nas
situações de comunicação profissional em que ele opera – em que ele quer dizer
alguma coisa. Realizada a partir de trabalhos universitários em contextos de
formação contínua, essa coletânea classifica todos os casos em famílias de usos,
correspondendo às diferentes funções do manager: organizar, chefiar2, formar,
avaliar, recrutar. Confirmadas com os casos típicos discutidos na literatura geren-
cial, essas situações de uso revelam, nos autores relacionados, representações, a
cada vez, diferentes da competência.
Uma segunda parte vai consistir em reconstruir a lógica das concepções da ação
e do saber, associadas a cada um desses conceitos operatórios da competência.
A ideia é reencontrar e compreender a coerência de conjunto que permite aos
diferentes atores verem a competência de tal ou tal maneira. Reconhecemos três
lógicas com – a cada vez – sua força e seus limites: (a) considerar que a compe-
tência é um “saber aplicar bem” as etapas do projeto comum; (b) conceber, tendo
em vista as circunstâncias que não cessam de mudar, a competência, sobretudo
como um “saber improvisar no trabalho”, ser mais reativo que proativo; enfim
(c), em face dessas duas visões demasiadamente unilaterais, alguns opõem um
caminho mediano: a competência significa, então, adaptar o prescrito para se
propor regras. Três concepções que subentendem para nós os discursos sobre a
competência. Ilustrando-as, a cada vez, com um autor representativo (Aristóte-
les, Dewey, Bourdieu), queremos realçar sua grande coerência interna, antes de
confrontá-las cada uma com (d), o conceito de atividade tal como o desenvolve
a abordagem ergológica a partir de uma perspectiva antropológica. O objetivo é
aqui mostrar que a competência aparece de maneira particularmente clara (em cada
um dos usos), quando os conceitos de ação e saber utilizados levam em conta, ao
mesmo tempo, a norma e o ponto de vista sobre a norma.
A ideia aqui é mostrar que é possível elaborar dispositivos para que a competência
seja estudada e gerida considerando, ao mesmo tempo, a norma e o ponto de vista
sobre a norma. Em relação a cada uso, nós apresentamos, alternadamente, uma
ferramenta saída de nossa prática ou o modelo teórico em que ele se assenta. Nós
recontextualizamos cada uma dessas “modelizações” nos projetos em que eles
foram elaborados. Esta síntese tem por objetivo balizar um programa de uma
pesquisa futura, interdisciplinar, visando aprofundar essa investigação sobre as
condições de atualização concreta da competência de uma pessoa em situação.
24 Competência e atividade de trabalho
Parte 1: Problematizar a competência 25
Parte 1:
Problematizar a competência
sua hierarquia. De modo mais geral, uma organização formal define, como ação,
as operações repetitivas e rotineiras, que correspondem ao saber considerado
estritamente necessário e suficiente. Ora, alcançam-se rapidamente as fronteiras
de tal representação do trabalho: a cada vez que se fixam a priori as fronteiras
entre os atores da produção, arrisca-se a confinar, em seus limites, os saberes
especializados, em lugar de encorajar as interações no momento das diferentes
arbitragens em produção.
A aceleração das mudanças, no curso das três últimas décadas, tem levado a re-
pensar essa relação entre os saberes e a ação coletiva: evolução das tecnologias;
evolução dos consumidores; evolução da duração de vida dos produtos, etc. Os
saberes produzidos pela empresa são não somente aqueles extraídos do trabalho
pensado antecipadamente, mas também aqueles ligados à percepção das mudanças
e à identificação das respostas mais bem-adaptadas. Gradualmente, o problema
de tirar partido dos saberes, graças a uma divisão dos domínios e aos níveis de
decisão, desloca-se em direção a uma perspectiva mais global, aquela da estratégia
da empresa face à complexidade e à instabilidade do mercado. Mais que nunca,
é preciso poder contar com as interações entre os protagonistas das situações de
trabalho a fim de efetuar as boas arbitragens no momento adequado. Cada indivíduo
é não somente uma fonte de saberes de experiência, mas, além disso, ele vai gerar
novos saberes, graças às relações que estabelece com seus pares.
Sem dúvida, a questão de uma melhor manifestação sobre o trabalho real e a ativi-
dade se apresenta como uma questão social, que ultrapassa em muito os aspectos
de comunicação tal como a linguagem comum. Há muito tempo se fala da “crise
de prescrição”: outrora, um feedback se instalava, de modo relativamente fácil,
entre operadores e os prescritores, permitindo a esses últimos atualizar seu conhe-
cimento da prática. Hoje, torna-se cada vez mais difícil para os gestores ter esse
conhecimento profundo das realidades do trabalho, o qual lhes permitiria ajustar
as normas estruturantes da situação de atividade. Aí está, talvez, uma espécie de
círculo vicioso: os prescritores, estando de preferência na defensiva, têm tendência
a acolher, com distanciamento, os saberes da experiência, desencorajando, por fim,
o setor operacional (operadores e gestores locais) de desempenhar o papel de me-
diadores entre sua atividade de trabalho e o prescrito que a torna possível – e essa
retenção faz aumentar, um pouco mais, a relativa defasagem dos organizadores.
entre saberes e ações e desenvolvendo, sobre essa base, uma estrutura eficaz. Em
primeiro lugar, diferenciar, para, em seguida, reunir: ou seja, fazer a diferença entre
os funcionários, para alcançar as boas combinações coletivas. O organizador deve,
pois, nomear a relação entre saber e ação de acordo com a capacidade de cada
indivíduo, para compor, a partir disso, as equipes que vão gerar novos saberes. A
qualidade do trabalho vai se apoiar nas identidades profissionais fortes, produzidas
por sólidos sistemas de interação, de comunicação e de ajustamentos recíprocos.
Uma vez que é considerado como estratégico, o saber da experiência não pode ser
totalmente comandado, teleguiado. Há, certamente um limite, é a entrevista para
prestar contas dos resultados. Porém, uma tal pressão artificial é pouco compatível
com o engajamento de compartilhar um saber de experiência. A confusão arrisca-
-se, então, rapidamente a se instalar entre a avaliação da performance e avaliação
da competência. E diríamos que uma armadilha se fecha. Escolhendo, no início,
um critério de cooperação altamente personalizado, aquele da competência em
lugar da qualificação, liberam-se espaços de autonomia. Mas, se essa escolha é
feita em razão do valor dos controles acrescentados e de um retorno ao output,
então estamos em contradição com o desejo de nos apoiarmos mais em saberes
da experiência relacionada com a ação situada, ou seja, de mobilizar ainda mais
a competência para assumir a situação de trabalho...
Vê-se que, para a organização, não é fácil fazer uso do termo competência. Julgar
a relação entre os saberes e as ações é, de alguma forma, responder a uma dupla
Parte 1: Problematizar a competência 31
Via-se bem, na relação saberes e ação, por que razão os organizadores do trabalho
têm de se debater com a suspeita de favorecer o papel do indivíduo – enquanto as
atividades profissionais têm objetivamente um caráter coletivo e interdependente.
Renuncia-se a representar a ação no trabalho como uma simples aplicação de sa-
beres, o que significa que nós nos aproximamos da mobilização efetiva dos saberes
na ação. Por consequência, introduz-se inevitavelmente um elemento perturbador,
o poder de agir. O indivíduo que age é convocado à responsabilidade, ele deve
assumir a realidade encontrada no trabalho. Ele aceita, mais ou menos, essa con-
vocação para agir, em função do grau de iniciativa que, em parte, lhe é concedido
e que, de outra parte, ele certamente quer aceitar. Um novo tipo de relação entre
o indivíduo e o coletivo resulta, inevitavelmente, do uso do termo competência.
A situação: é isso que traz dificuldade do ponto de vista da organização. Até que
ponto a situação pode ser a pedra de toque que distingue os protagonistas do
trabalho? A situação nos aparece como um intermediário entre a classificação e
a performance. Do lado da classificação, o raciocínio sobre a diferenciação se
baseia sobre no sistema das qualificações. Do lado da performance, quando ela é
o único critério, a diferença se faz de acordo com os “talentos” (Pigeyre, 2011).
34 Competência e atividade de trabalho
O organizador deseja refinar a sua percepção das forças em presença, mas isso
não se deve fazer nem em prejuízo do indivíduo, nem em detrimento do coletivo.
Ora, já vimos isso, falar da competência já é transbordar, colocar-se para além da
única designação dos saberes úteis à ação. Inevitavelmente, toca-se nas relações
humanas. O ato no que diz respeito ao saber nos humanos não é comparável a
uma operação correspondente a um programa de informática, por exemplo. Agir
forma uma unidade com os saberes e os valores – e os valores conduzem, nos seus
sulcos, à questão dos outros, das preferências e das prioridades. Essa unidade do
agir humano incomoda, de maneira inevitável, o raciocínio de um organizador
que, caso contrário, iria adorar se aproximar das realidades do trabalho. O gesto
técnico, que se queria neutro a fim de melhor indexá-lo, é intimamente investido
por uma personalidade. O operador, que gostaríamos de observar à parte para
refletir sobre seu percurso, está estreitamente misturado ao trabalho dos outros...
O que nós retemos de nossa análise do uso que os organizadores do trabalho podem
fazer da palavra competência é, primeiramente, isto: eles aprenderam a pensar as
competências de uns em relação aos outros. Aproximando o binômio “saberes –
ações” requerido pela competência, apreendemos melhor, sem dúvida, a medida
das interdependências que uma visão por demais racionalista do trabalho poderia
mascarar na época taylorista.
1NT: Ecumenismo.
36 Competência e atividade de trabalho
mos em dizer que o foco é colocado sobre o sujeito); de outra parte, pretender que
a competência responderia a critérios objetivos não negociáveis, porque fundados
cientificamente (admite-se, agora, que eles podem ser objeto de uma negociação).
ficar do lado dos dirigentes, pois ele está claramente em posição de subordinação,
mas ele também não pode estar do lado das pessoas do chão de fábrica. Mesmo
que a relação disciplinar não seja mais do tipo taylorista, ele precisa manter uma
distância mínima para preservar a sua autoridade. Aliás, considera-se, muitas vezes,
que ele possui responsabilidades operacionais tendo um desempenho funcional pelo
estatuto. A partir do papel que lhe é prescrito (Bellini e Labit, 2005: 227), o gerente
vai tentar – ele mesmo – construir um papel para si mesmo ao lado de sua equipe,
evitando, se for possível, dois obstáculos: o do amigo e o do “pequeno chefe”.
A diretoria usa o chefe de setor como uma correia de transmissão, ao passo que
as equipes lhe pedem que ele seja o porta-voz delas. Como está na escuta das
diferentes preocupações, estratégicas para uns e operacionais para outros, ele
assume uma função de regulação, até mesmo de agente da paz social. A posição
entre os dois grupos é, sem dúvida, um freio para o desenvolvimento de um
profissionalismo e de uma verdadeira autoridade no âmbito da missão confiada a
essa categoria de trabalhadores.
tutor em outro contexto, “se fala muito pouco de competências no meio do trabalho”
(Gasser-Franco, 2012: 68). Para a chefia, a competência se vive muito mais do que
se diz. Disso devemos concluir, como Guy Le Boterf, que “a competência requerida
é a que está presente nos referenciais de competências. A competência real é aquela
construída por cada pessoa” (Le Boterf, 2002)? Parece-nos, ao contrário, que preci-
samos evitar a armadilha de tal dicotomia: competência teórica, competência real. É
evidente que o chefe de setor percebe algo diferente daquilo que o chefe hierárquico
percebe, mas esse “algo diferente” não significa que aí existam dois fenômenos a
levar em conta separadamente. Isso seria transformar a competência especificamente
em uma coisa, uma substância que iríamos poder apreender como tal – quer se tenha
tomado ou não a precaução de associá-la ao contexto. Na realidade, os chefes hie-
rárquicos e de setor consideram um só e mesmo fenômeno: a pessoa em atividade.
A única diferença está na abordagem: em desaderência para uns, em aderência para
os outros. Como ele apreende seu julgamento de competência no peso da situação
real, multidimensional, com inúmeras pressões e porque, na sua maioria, ele não
as escolheu no seu projeto de ação, o chefe de setor não vai compartimentar o seu
raciocínio. Se ele tiver que achar um substituto na esmaltaria para a caldeiraria, ele
sabe que os operadores altamente especializados correm o risco de viver isso como
degradante, mesmo se não se trata senão de uma ajuda. Ele vai tomar a questão
da competência como uma única realidade a fim de convencer o profissional: ele
não vai analisar separadamente os aspectos técnicos e psicológicos ou ligados à
personalidade. Ele vai, também, considerar o momento e mobilizar, na sua retórica,
tanto os valores quanto os argumentos lógicos.
ato e do ator: segundo eles, o ato repetitivo seria realizado como uma operação
neutra, claro que na minha presença, mas sem um “eu” investido…
Levando em conta o que se acaba de dizer, será que a avaliação das competên-
cias é possível? De qualquer maneira, ela se impõe. Nós precisamos saber o que
sabemos coletivamente e individualmente, quando se trata de passar à ação, de
realizar um projeto. A exigência de avaliar a competência é inteiramente legítima.
Então, avaliar sim, mas o que avaliar? Descrevem-se ações profissionais em longas
listas de itens. O frenesi do corte tomou conta de muitos avaliadores, e isso não é
surpreendente. Querendo aproximar o saber e a ação, vamos abordar necessaria-
mente “a atividade”, que é um operador sintético. Essa atividade é transgressiva
em relação às nossas categorias intelectuais, ela perturba, simultaneamente, o
dualismo e o solipsismo ambientes. O dualismo considera, separadamente, o
homem por um lado e o mundo externo do outro. O solipsismo isola o sujeito
individual de seus semelhantes como se ele fosse sozinho uma realidade em si.
No entanto, ao analisar o agir em competência, temos que constatar duas coisas.
Em primeiro lugar, no momento de passar à ação, o protagonista não supera tudo;
ele não domina o mundo pelo fato de ser um pensante racional, mas, ao contrário,
ele luta com múltiplas exigências das quais muitas não foram levadas em conta no
seu projeto. Em segundo lugar, esse mesmo protagonista nunca age sozinho. Ele
reage tanto quanto age: as interações em situação reconfiguram, incessantemente,
o seu esquema inicial de intervenção. Em consequência, o ato planejado, logica-
mente pensado, segundo uma intenção, é inevitavelmente transformado pelo real,
pois o agir é um tecido de escolhas a fazer continuamente. É claro que isso não
impede a modelização e, depois, a realização de um projeto, mas proíbe imaginar
correspondências não equívocas entre o ato formulado hipoteticamente, indexado
de maneira anônima numa grade de avaliação, de um lado, e, por outro lado, o
ato tal como verificado na realidade, às vezes tornado temporal e personalizado.
Já foi dito, os avaliadores tendem em detalhar, cada vez mais, a realidade do tra-
balho, afrontando, com certa ousadia, a inextricável complexidade da atividade
42 Competência e atividade de trabalho
humana. Eles elaboram a hipótese de que, com a força da precisão conceitual, terão
delimitado os contornos de uma parte da experiência da vida concreta do avaliado
na empresa nesse caso. Por exemplo, para relatar o fenômeno de um agir em que
é difícil distinguir a si mesmo do outro, vamos forjar a expressão “competência
coletiva”. É muito significativo o uso de uma representação da competência que
fica, no fundo, ainda desencarnada, um tipo de fenômeno que pode caracterizar
um grupo, além das personalidades que o compõem. Não se trata para nós de
questionar a realidade das emergências coletivas, as sinergias entre atores, mas
de ver que exatamente o termo “competência” pode facilmente ser transportado a
uma escala que não é mais individual, ao passo que, na origem, busca-se identificar
as arbitragens de alguém, de uma personalidade que é o autor de um ato julgado
exitoso. A discordância é, aliás, acentuada por outros motivos ainda:
Desde o fim dos anos 90, parece-nos, são reconhecidas duas correntes na avalia-
ção das competências na empresa. A primeira, da qual se falava anteriormente,
apresenta uma abordagem mais positivista. Trata-se de reconhecer as provas do
que o trabalhador consegue fazer: de um lado, dentro de um dado contexto, o
que testemunha o seu desempenho; de outro lado, e independentemente desse
contexto, o que fornece indícios da sua empregabilidade. Há uma segunda
corrente que é orientada pela preocupação da interpretação. Os fatos existem,
mas, certamente, eles não falam deles mesmos. É ainda mais justificável lembrar
isso quando se pensa na competência, a qual sempre supõe o olhar do outro.
No ambiente de trabalho, por exemplo, no momento de se pronunciar sobre a
competência de um trabalhador, será privilegiada a conformidade (as regras
da arte, mais ou menos respeitadas) ou, sobretudo, a utilidade (a qualidade e a
eficiência do serviço feito, mesmo tomando algumas liberdades em relação às
maneiras canônicas do fazer na profissão)? O debate sempre volta à tona: ele
nunca vai ser resolvido, pois ele é consubstancial ao trabalho como atividade, em
tensão entre uma forma de desaderência (o prescrito, a profissão) e uma forma
de aderência (as urgências da hora, as realidades do momento).
Se ficarmos com a ideia de que, para o ser humano, nenhum ambiente está livre
da tensão entre aderência e desaderência, percebe-se que os contornos da função
de formador permanecem como objeto de um debate. Pois podemos querer apro-
ximar o saber e a ação, mas quando vamos dizer que tratamos com um docente
ou um formador? A diferenciação entre a aprendizagem e a competência é posta
nas entrelinhas de uma maneira implícita:
necessário fazer escolhas incessantes. Não se aplica uma tarefa, no sentido estrito,
quando não estamos no trabalho real: as possibilidades são avaliadas localmente
e tenta-se realizar a tarefa da melhor maneira possível.
O formador leva em conta a ação situada e datada: entretanto, isso não quer di-
zer que ele fique preso ao aspecto específico das situações encontradas. Ele vai
fazer tudo ao contrário para evitar que a pessoa capacitada não se feche no caso
singular que ela examina.
O uso que o formador vai fazer do termo competência será fortemente impregnado
dessa preocupação de apreender globalmente uma situação e de encorajar a cons-
tituição de um ponto de vista a fim de transferir o que foi aprendido, sobretudo
de não ser somente “adaptado” à especificidade dessa situação. É por isso que a
dimensão axiológica da competência está muito presente no seu discurso. É muito
diferente do avaliador que adota uma abordagem analítica e tem mais dificuldade
em adotar o ponto de vista pessoal, reconduzindo-o, às vezes, à maneira que é
própria a cada um de raciocinar logicamente em situação. Ora, o ponto de vista
Parte 1: Problematizar a competência 51
A função de recrutador, tal como a entendemos, corresponde àquela que dota uma
organização com competências necessárias, atraindo candidatos para selecioná-los.
Mesmo existindo, cada vez mais, uma problemática no recrutamento interno nas
empresas, com uma pressão crescente sobre a mobilidade dos trabalhadores em
termos de cargo, não vamos considerar esse aspecto da administração em nosso
estudo. O recrutador é aqui aquele que vai integrar progressivamente uma pessoa
externa num coletivo de trabalho. O recrutador não ocupa necessariamente sempre
um lugar na empresa: hoje, essa função é muitas vezes assegurada por uma rede
de participantes, os “operadores de instalação”, privados ou públicos.
Nas diferentes funções GRH2 que consideramos, todas têm algo de imediatamen-
te híbrido entre a aderência e a desaderência (nunca estamos inteiramente num
registro ou noutro), no entanto, com uma dominante evidente a cada vez. Para o
recrutador, entretanto, parece-nos mais difícil dizer o que é preponderante, pois
ele está dividido entre os dois registros. É justamente essa ambiguidade do “fora-
-dentro” que passa pela função de recrutamento, a nosso ver. O organizador e o
avaliador têm como missão desvincular-se do hic et nunc, dizer algo de pertinente
a respeito da competência disponível, para oportunizar um raciocínio ulterior a
respeito dos trabalhadores. O gestor e o formador são eles também representantes
sem rodeios: eles devem orientar os seus interlocutores no cerne de uma situação
multidimensional, incentivá-los a se engajarem com um ponto de vista forte que
chamamos competência. O recrutador, por sua vez, está no limiar, se considerarmos
que o cerne da competência é a própria situação de trabalho. Sobre sua face externa,
a sua missão consiste em adequar o que se deve fazer tecnicamente no emprego
ao perfil daquele que saberá fazê-lo: a aproximação pode, então, ser pensada de
2 NT
52 Competência e atividade de trabalho
Essa ambiguidade entre análise e pressentimento pode ser achada num manual
recente de administração. O autor recomenda que se exijam duas variáveis dos
pretendentes a um cargo:
“os candidatos serão selecionados pela sua eficiência comparada para ocupar
o cargo aberto ao recrutamento. No entanto, o recrutador não poderá limitar seu
julgamento nessa única dimensão do trabalho. Trabalhar não é, verdadeiramente,
somente produzir bens e serviços, é também transformar seu capital humano,
adquirir novas competências, modificar suas características (…). De uma maneira
mais geral, o recrutador deverá levar em conta a sua capacidade de adaptação
às mudanças ou ao seu potencial de evolução” (Stankiewicz, 2007: 221-222).
Dado que o mercado de trabalho vem se tornando cada vez menos estável, o
recrutador não para de manobrar com estes dois imperativos: achar a resposta
para o problema criado pelo cargo vago agora e pensar, ao mesmo tempo, no seu
eventual desaparecimento; achar, então, uma solução, um recurso para resolver
problemas ainda não formulados. É por isso que, se o organizador é mais sensível
ao interesse da qualificação para as operações de classificação, a ponto de pegar
a competência como a sua “irmã gêmea” (cf supra), o recrutador, por sua vez,
está longe de confundir os dois termos. A qualificação lhe é preciosa para que ele
identifique, de maneira relativamente objetiva, as grandes características do cargo
a ser preenchido, mas ela é impotente em dar conta dos conteúdos do trabalho além
do que se faz o objeto do contrato entre o trabalhador e o empregador. Contudo, a
Parte 1: Problematizar a competência 53
competência, muito mais abarcadora do que a qualificação, vai ser muito útil para
o recrutador na sua estratégia de resposta ao excesso de exigências, que pesam
sobre ele quando da aproximação da oferta e da procura: achar um candidato não
somente que sabe fazer, mas também que poderia fazer.
De maneira geral, o uso da competência pelo recrutador é cada vez mais dirigido
ao único “ator” ao passo que as pessoas se distanciam da realidade do ato técnico
em si. As duas temáticas próprias ao recrutamento testemunham neste sentido: a
transmissibilidade e a empregabilidade. Trata-se de satisfazer uma dupla exigência:
o que foi adquirido em situação deve permitir passar de um emprego a outro,
como recursos para fazer face a situações no futuro. E a própria pessoa tem que se
manter sempre em condição de procurar outro emprego que não o seu: de alguma
maneira, viver desligada do contexto de trabalho no qual ela está evoluindo.
Parte 1: Problematizar a competência 55
“É necessário evocar, mais uma vez, a questão da integração. Com efeito, através
da ideia da transmissibilidade/transversalidade, está um tipo de relação com a
organização que integra imediatamente uma parte de mobilidade, de não de-
terminado, de evolutividade, de desconhecido. Quando a organização contrata
uma pessoa, ela contrata mais do que um conjunto de saber-fazer. Ela tem o
direito de esperar mais do que está escrito no currículo. Ela tem também o dever
de possibilitar o desenvolvimento das competências. Há, então, um reforço da
implicação do indivíduo. Mas, por outro lado, o reconhecimento dessas compe-
tências cria uma distância importante entre o indivíduo e a organização: afinal
de contas, a mobilidade pode também existir fora da empresa. Supõe-se que o
indivíduo não está desprovido pois que ele pode transferir suas competências.
Estamos longe do esquema do trabalhador vitalício que se torna incompetente
fora da sua empresa. Cria-se uma relação ambígua: supõe-se que o indivíduo
faça mais que o previsto, supõe-se que a empresa possa administrar esse “mais”,
mas, ao mesmo tempo, uma distância maior se instaura diante da organização
da qual se tem a possibilidade de sair.” (Bellier, 2004: 91-92).
Parte 2:
Elaborar o conceito
de competência
Por mais esclarecedora que seja, esta hipótese de pesquisa é ainda demasiado
formal. Se se quiser construir um verdadeiro conceito de competência, utilizável
e útil tanto para prática como para a modelização, não se pode evitar a abertura
das “caixas pretas” (no sentido teórico) que essa formulação contém em quiasmo:
“mobilizar os saberes em ação”, “produzir, na ação, saberes”. Quatro questões
inevitáveis são supostamente resolvidas em tal definição da competência:
• quais operações estão sendo submetidas aos conhecimentos objetivos para torná-los
operacionais, quando nós os mobilizamos em uma situação?
• em que minha confrontação (no ato) com a resistência do real é construtiva, forma-
dora até mesmo esclarecedora?
58 Competência e atividade de trabalho
Essa questão de análise pode parecer abstrata. No entanto, jamais será por elas
mesmas que serão estudadas as diferentes concepções em debate. O que nos in-
teressa é, a cada vez, o desafio do debate – esse termo desafio sendo tomado em
duplo sentido: de uma parte, qual é o ensinamento específico a ser aproveitado de
um debate geral sobre as relações entre saberes e ação quanto ao desafio colocado
pela competência? De outra parte, qual é o pomo da discórdia que opõe as partes
em debate e que, portanto, cada um tenta apontar (para dizer com suas palavras)
nessas relações entre a ação e o saber?
Ao invés de apresentar tal e qual nossa tipologia de três concepções que encontra-
mos nos debates atuais sobre a competência – concepções da ação, em primeiro
lugar, acompanhadas, em seguida, pela concepção do saber da experiência que,
a cada vez, elas implicam – parece-nos mais interessante colocar em cena seu
debate. E é, realmente, a leitura de dois artigos – “The influence of Darwinism on
philosophy” (Dewey, 1977: 3-14) e “De la règle aux stratégies” (Bourdieu, 1987:
75-93) – que nos permitiu organizar facilmente esses debates. Seguiremos, ao
mesmo tempo, a ordem cronológica (o fio da história) e uma ordem argumentativa,
colocando em evidência o que trouxe cada etapa para a constituição do conceito
de competência. A essa tipologia de três conceitos, nós adicionamos, aos poucos,
o quadro teórico no qual avançamos nossas próprias hipóteses:
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 59
Essas quatro grandes etapas entre os debates da relação entre saber e ação parecem,
com efeito, estabelecer gradualmente os fundamentos dos conceitos de competên-
cia atualmente em discussão no campo das ciências da educação. É, então, para
situar suas respectivas contribuições, umas em relação às outras, que nós vamos
passá-las pelo crivo da tipologia anteriormente estabelecida. Essa apresentação nos
permitirá expor, a cada vez, a solidariedade teórica de nossas hipóteses no contexto
das discussões de onde elas derivam o seu sentido. E o movimento geral que vai
se desenhar da sequência repetida dessas quatro etapas deverá, finalmente, nos
permitir sugerir uma visão um pouco mais unificada do conceito de competência,
a partir de seus cinco usos precedentemente repertoriados.
1. Organizar
este é, portanto, o objetivo final que faz de uma ação o que ela é – um processo
voluntário, intencional. Aristóteles modeliza, assim, o caráter voluntário da ação:
o ator começa por se representar um estado ideal (desejável) e, então, vai deduzir
as condições de sua realização, levantando toda a cadeia de causas e efeitos até
sua situação presente. O objetivo é, então, o resultado virtual, e os meios são as
condições a preencher para que o resultado virtual se concretize em resultado
efetivamente real. Conseguir deduzir corretamente quais são as condições de
possibilidade de um estado ideal requer certa competência, Aristóteles, com efeito,
considera que um tal raciocínio (que é inteiramente a priori) não é dado a todos.
De fato, ele supõe poder predizer a maneira como as causas e os efeitos vão se
relacionar na situação futura. Para fazer tal previsão, é preciso conhecer, de maneira
abstrata, como os efeitos de um determinado tipo dependem universalmente das
causas do tipo correspondente. Ora, Aristóteles considera que tal conhecimento
é científico, e ele vai opor esse conhecimento, muito nitidamente, ao saber da
experiência daquele que (agindo) observa bem as regularidades gerais, mas que
permanece incapaz de identificar sua causa.
“Em Aristóteles, de fato, o ato tem vocação natural para a perfeição que é aquela
do pensamento abstrato. O ato normal retorna à norma do ato, que é aquela da
manifestação do ser, a atualização de uma potência, ou, em termos aristotélicos,
a passagem da potência ao ato” (Mendel, 1998: 30).
Para uma pessoa que constrói uma casa, o fim em vista (end in view) é um obje-
tivo distante e final que seria enfim alcançado após um número suficientemente
importante de movimentos impostos ter sido cumprido corretamente. O fim em
vista é um plano que é operatório de maneira contemporânea na seleção e dis-
posição dos materiais. Esses últimos – tijolos, pedra, madeira e argamassa – são
meios, na medida em que o fim à vista se incorpora a eles, dando-lhes forma.Eles
são, literalmente, o fim em sua forma atual de realização. O fim em vista está
presente em cada etapa do processo; ele está presente enquanto significação do
material utilizado e dos atos desempenhados; sem a sua presença formadora,
esses últimos não são, de modo algum, meios. Eles são simplesmente condições
causais extrínsecas (Dewey, 1984: 281- 282, traduzido em Renault, 2012: 131).
66 Competência e atividade de trabalho
Claro, a sociedade não consiste senão nas relações que entretêm os indivíduos,
sob qualquer forma que seja. E todas as relações são interações, não moldes
fixos. (...) A organização, como não importa em qual ser vivo, é o consenso de
cooperação de inúmeras células, cada uma vivendo de suas trocas com as outras
(Dewey, 1984: 82 -83; traduzido pelo autor1).
A metáfora organicista, empregada aqui por Dewey, nos incomoda – porque, como
lembra Canguilhem (Canguilhem, 2002: 101-122), ela é, por vezes, suspeita pelos
usos dos quais tem feito historicamente o objeto, e falsa pelo amálgama que ela
opera entre norma vital e norma social. Mas, em geral, sabe-se que esse modelo
de organização cooperativa permanece em estado de princípio maior na obra de
Dewey. Enquanto ele o defende em um plano ético e político,
1 N.T. Texto original: Society is of course but the relations of individuals to one another in this
form and that. And all relations are interactions, not fixed molds. (...); organization, as in any living
organism, is the cooperative consensus of multitudes of cells, each living in exchange with others.
2 N. T. Texto original: That the economic and industrial life is in itself ethical, that it is to be
made contributory to the realization of personality through the formation of a higher and more
complete unity among men, this is what we do not recognize; but such is the meaning of the
statement that democracy must become industrial.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 67
Esse modelo nunca é detalhado nas suas modalidades concretas de aplicação. Ora,
isso corresponde precisamente à dificuldade e ao limite da revolução copernicana
que Dewey propõe. Ao jogar assim a tática contra a estratégia – para retomar a
famosa distinção de Clausewitz (Clausewitz, 2000: 102) –, Dewey nos parece
muito radical, a ponto de, finalmente, cair de um excesso para outro.
a mascara, como uma tela, para a consciência coletiva. Com efeito, os modelos
conscientes – comumente chamados “normas” – estão entre os mais pobres, em
razão de sua função, que é de perpetuar as crenças e costumes, ao invés de expor
suas causas (Lévi-Strauss, 2009: 335).
Quando comecei o meu trabalho, como etnólogo, eu queria reagir contra o que
eu chamei de juridismo, quer dizer, contra a tendência dos etnólogos de descre-
ver o mundo social no idioma da regra, e a agir como se tivéssemos percebido
as práticas sociais, logo que se enunciou a regra explícita segundo a qual elas
são supostamente produzidas. Fiquei muito feliz de encontrar, um dia, um texto
de Weber, que dizia algo como: “Os agentes sociais obedecem à regra quando
o interesse em obedecer a ela supera o interesse em desobedecer a ela”. Essa
boa e sã fórmula materialista é interessante porque lembra que a regra não é
automaticamente eficaz por si só e que ela obriga perguntar em quais condições
uma regra pode agir (Bourdieu, 1987: 76).
O autor censura o conceito lévi-straussiano pelo fato de a norma ser mística: ele
parece retornar a uma concepção aristotélica da forma presidindo a ação, lá onde
Bourdieu representaria aqui uma concepção deweyana dessa mesma forma. Mas
nós não vamos retornar, entretanto, ao primeiro debate, porque Bourdieu acrescenta:
Então, quando Bourdieu define seu trabalho (no início desse artigo) como um es-
truturalismo construtivista, ele coloca, imediatamente, a continuidade e a ruptura
a respeito da questão da forma na ação. Ele é estruturalista na medida em que
considera que um ato socializado (isto é, toda ação) é a implementação mais ou
menos automática das normas. Mas ele é construtivista na medida em que considera
que essas formas (ou normas) não são nem herdadas de um grande sistema, nem
aplicadas mecanicamente como que por sonâmbulos. Então, seu construtivismo
modaliza e precisa sua concepção estruturalista da ação sobre dois aspectos: sobre
a origem e a modalidade de intervenção das normas. Ora, esses dois aspectos são
decisivos quanto à organização.
Para repensar a origem das normas na ação, Bourdieu forja o conceito de práti-
cas. As práticas são as maneiras de se comportar aceitáveis ou exigidas em um
determinado meio social. A gênese dessas normas já não é mais uma implicação
de acordo com um movimento de cima para baixo – top-down – (como em Lévi-
-Strauss), mas uma diferenciação, de acordo com um movimento de baixo para
cima – bottom-up. Essas são as microrrelações de poder próprias a um campo ou
subcampo que vão ditar localmente as previsões condicionando a aceitabilidade
dos comportamentos. Agir é, então, sempre inscrever suas práticas nas práticas
de um determinado meio (aquele em que sempre se evoluiu, aquele de onde se
vem ou aquele onde se quer entrar enunciando essa ação). E, precisamente o que
Bourdieu chama, nesse extrato, o senso prático, é a espontaneidade com a qual
uma pessoa adapta as normas de sua ação às normas do meio. Então, o que faz a
74 Competência e atividade de trabalho
Ora, essa redefinição não existe sem alterar a concepção das modalidades de inter-
venção de normas na ação. Com efeito, se a emergência de normas, que governa
as práticas, vem das relações de força nas quais elas estão investidas, é que os
agentes sociais não seguem maquinalmente a norma (nesse ponto Lévi-Strauss
está errado), mas eles a seguem porque eles veem aí o seu interesse em fazê-lo.
Bourdieu forja, assim, o conceito de “estratégias” para insistir sobre o fato de que
uma norma não faz norma senão a partir do momento em que o agente percebe
como o respeito a ela lhe dará uma vantagem nas relações de poderes constitutivos
de seu campo. Mas Bourdieu precisa imediatamente que as estratégias são sempre
mais ou menos automáticas. Em seu espírito, as normas formam como que uma
panóplia de reflexos, entre os quais o hábito nos faz desenvolver o que melhor
se adapta à situação. Essa metáfora parece justa para mostrar o limite do modelo
de Bourdieu. Certamente esse modelo consegue esquematizar a maneira como
as normas precedem a ação, tendo sido desenvolvidas nas ações. Nesse sentido,
Bourdieu opera uma autossuperação do impasse em que se opõem as deficiên-
cias de Aristóteles e Dewey. Mas a redução metodológica que o sociólogo opera
para estabelecer seu modelo – pensar a norma sem normatividade (no sentido da
recepção e não somente da imposição) – encontra rapidamente seu limite teórico.
O que ele chama de “ação” não é mais verdadeiramente uma ação.
– inicialmente, Canguilhem insiste sobre o fato de que uma norma é sempre polê-
mica. “O conceito de normal é ele mesmo normativo” (Canguilhem, 2005: 178).
De sua parte, o estruturalismo faz um uso descritivo desse conceito, reduzindo “o
que faz norma” ao simples fato da norma, postulando que uma norma é um fato
tornado lei. Canguilhem explica que uma norma só “faz norma” na medida em
que ela retifica e corrige. É porque um comportamento é julgado insatisfatório em
função de certos valores que se decreta uma norma: a infração precede a norma
(idem, 176), se bem que uma norma se define como uma exigência que se impõe
a uma existência – existência que, então, precede a norma.
a experiência que tem o organismo “daquilo que faz para viver”. É fundamental:
tomar em consideração a ação do ponto de vista do organismo – e a fortiori do
ser humano – é a única maneira de ver se e como a norma “faz norma”. “Nós
sustentamos que a vida de um vivente (ainda que de uma ameba) reconhece as
categorias de saúde e doença apenas sob o plano da experiência” (Canguilhem,
2005: 131). Em outras palavras, para determinar se um estado é patológico ou
não, é preciso, uma vez ou outra, interrogar inevitavelmente o ponto de vista do
paciente. Generalizada à norma social, essa conclusão significa que isso nunca
ocorre automaticamente, mas sempre sendo reinterpretada e reinvestida numa
situação (por um ponto de vista, no sentido axiológico) em que uma norma “faz
norma”. Esse ponto de vista não é necessariamente consciente, uma vez que é,
primeiramente, o ponto de vista do corpo. É, por exemplo, o corpo tal como ele
se expressa nas alterações posturais, constantes e, no entanto, totalmente incons-
cientes – aquelas pelas quais administramos a fadiga muscular sem o saber. Para
insistir sobre o fato de que o ponto de vista constitui nossa normatividade excede
a opinião que se pode exprimir em um testemunho consciente, Yves Schwartz
propõe o conceito de corpo-si (Schwartz, 2011: 148-177), em que o fisiológico
e o psíquico participam ativamente de nossa tentativa de nos apropriarmos das
normas antecedentes, a fim de existirmos no meio social.
Parece-nos que é sobre a base desse novo conceito de norma que se pode vanta-
josamente renegociar o ir além do do debate entre top-down e bottom-up, sobre a
competência na organização. Aqui, nós nos apoiamos no conceito de dupla ante-
cipação (Schwartz 2004: 261-294), que clarifica e prolonga essas três proposições
canguilhemianas. Antes de mais nada, isso nos leva a contestar a maneira como
Bourdieu negociou o ir e vir entre a priori e a posteriori.
de ser antecedente significa que a regra que precede minha ação, a fim de limitá-
-la e guiá-la, foi concebida de maneira anônima, ou seja, abstraída de qualquer
consideração das particularidades das pessoas ou situações. Para designar essa
antecedência, ou essa abstração que permite a generalização, Yves Schwartz fala
de raciocínios em desaderência (Schwartz, 2009: 15- 28) em relação às situações
de implementação concreta. O que Dewey não observou, quando imaginava que
a tática podia inventar a sua própria estratégia, é que todo poder estratégico chega
às normas guiando a ação dessa postura em desaderência das normas antecedentes.
Essa é, certamente, a condição dessa racionalidade exponencial que dá às empresas
coletivas um domínio sempre maior de constrangimentos reais – que nos fazem,
parafraseando Descartes, mestres e possuidores da natureza.
Mas, por outro lado, o organizador, que, dessa maneira, planeja, está igualmente
sujeito a normas antecedentes. É em função de constrangimentos, tão diversos
e moventes como a legislação, os cadernos de encargos, o organograma, etc.
que ele deverá elaborar as grandes linhas de um projeto. Ora, o organizador não
aplica mecanicamente essas normas antecedentes. A sua ação não é o produto das
normas, como um movimento (em física clássica) é resultante da composição de
forças mecânicas que se opõem. Colocado em injunções paradoxais, ele tenta
separá-las mediante a imposição de uma linha de ação (uma norma), que funciona
como um compromisso entre as exigências que lhe pareceram prioritárias. Então,
paradoxalmente, é o duplo constrangimento que revela o ponto de vista. Para
não ficar preso como um robô (que funcionaria aqui como o asno de Buridan), a
pessoa se arrisca em interpretar a hierarquia das prioridades. E essa hierarqui-
zação não pode ser neutra, como se a ordem das prioridades pudesse ser pensada
à parte da situação, em função de um resultado previsto ou, bem , segundo um
algoritmo de decisão. A questão de saber – aqui e agora, em razão das urgências
e oportunidades sempre em parte imprevisíveis – qual norma deverá precisar a
outra retificando-a, depende da avaliação da situação presente. Se ela tiver que
ser fixada com antecedência (em desaderência), uma tal ordem de prioridade
não poderia incluir nenhuma nuança e especialmente nenhuma das exceções que
80 Competência e atividade de trabalho
Essa maneira de ver o ir e vir top down, bottom up, é muito nova; ela não
retoma aquela de Bourdieu. Os conceitos de aderência e desaderência mos-
tram isso bem. Porque a norma segundo Bourdieu é apenas um feixe de
variantes, garantindo uma adaptação ideal no caso do cenário encontrado.
Bourdieu também estipula, para enfatizar que não é realmente necessário
expressar seu ponto de vista sobre a norma assim definida, que sua utilização
diferencial visando adaptá-la (a estratégia do sentido prático) é sempre mais
ou menos automática. Bourdieu não diz apenas “inconsciente”: é automá-
tico, porque a operação é passiva. Longe de apelar por um ponto de vista,
este reflexo condicionado produziu o que Bourdieu chama de ponto de vista:
Na interação da pessoa com o seu meio, opera-se, então, um debate entre as nor-
mas antecedentes do ambiente e as normas próprias das pessoas (seus equilíbrios,
físicos e mentais). É por isso que a contribuição específica de Yves Schwartz aos
conceitos de ação como norma é modelizar a atividade como um encadeamento
de debates de normas (Schwartz 2004: 265).
2. Chefiar
“Assim, quando se pensa que todo homem deve andar e que é você mesmo um
homem, você anda incontinente; quando, ao contrário, se considera que as cir-
cunstâncias exigem que nenhum homem ande, e que é você mesmo um homem,
a consequência imediata é que ficamos paralisados: e, nos dois casos, o homem
age, a menos que alguma coisa o impeça ou o constranja. ‘É preciso que eu
faça qualquer coisa que seja boa para mim; ora, uma casa é algo bom’; e ime-
diatamente faz-se uma casa. “Eu preciso de me cobrir; ora, um casaco serve
para cobrir; eu preciso de um casaco; é preciso, então, fazer um casaco’. E a
conclusão, ‘é preciso fazer um casaco’ é uma ação. Age-se a partir de um prin-
cípio. Se estabelecermos que haverá um casaco, é necessário que tal proposição
seja admitida; se ela é admitida do mesmo modo outra; e, ao fazê-lo, agimos
imediatamente. Portanto, é evidente que a ação representa a conclusão. Quanto
às proposições que preparam a ação, elas são de duas ordens, aquela do bem e
aquela do possível. Mas (...) o raciocínio não se detém necessariamente sobre a
segunda proposição, que é evidente, ele a deixa de lado. Por exemplo, se pensa-
mos que a marcha é um bem para o homem, não nos detemos na proposição de
que você mesmo é um homem. E é por isso que todas as ações que fazemos sem
raciocinar nós as fazemos rapidamente. Na verdade, quando se age para atingir
o fim que propõe a sensação, a imaginação ou a razão, fazemos imediatamente
o que queremos. No questionamento ou na reflexão, substitui-se o ato do desejo.
“Eu tenho que beber”, diz o apetite; “Aqui está uma bebida”, diz a sensação: e
bebemos imediatamente. “(Aristóteles, 2002: 60- 61).
Mas, uma destacado o lado artificial de uma tal modelização, não se reconhece
nossa própria concepção de implementação, da realização de uma ação? De fato,
o que nos diz Aristóteles aqui? Simplesmente que, para agir em uma situação, nós
reunimos dois elementos: um tipo e um caso. O tipo é a regra de ação em geral,
e o caso é a situação particular que se apresenta aqui e agora. Ora, não somente
essa concepção é exatamente aquela que governa nossa concepção usual da re-
lação entre a formação teórica e a prática (os modelos universais aprendidos na
escola devem ser recusados pelo aluno, num certo número de casos particulares,
de maneira a que ele identifique – corretamente – os casos sob os tipos e aplique
corretamente os tipos aos casos); mas, sobretudo, o conceito aristotélico de com-
petência é explicitamente definido como a justa relação entre o tipo e o caso.
“A experiência implica uma relação da ação ou do ensaio com uma consequência que
é sustentada. Separar a fase ativa do agir e a fase passiva do submeter-se destrói a
significação real de uma experiência. Pensar é criar, de uma maneira precisa e deli-
berada, as relações entre o que é feito e suas consequências. (...) A incitação a pensar
reside no desejo de determinar a significação de um ato realizado ou a realizar: preve-
mos, então, suas consequências. Isso implica que a situação existente é – seja de fato,
seja para nós – incompleta, portanto, indeterminada. A projeção das consequências
significa uma solução proposta, uma solução de ensaio. Para perfazer essa hipótese,
é preciso examinar, com cuidado, as condições existentes e desenvolver as implicações
da hipótese – operação que chamamos “raciocínio”. A solução sugerida (a “ideia” ou
“teoria”) deve, então, ser posta à prova na prática” (Dewey, 1983:186).”
Essa passagem mostra bem o antidualismo do autor. Ela é dirigida contra uma
concepção de tipo aristotélico em que somente o utilizador (o cavaleiro, por
exemplo) viveria uma experiência (estando sozinho na posição de receptor das
respostas do meio ambiente) e deveria, consequentemente, informar o artesão (o
seleiro, neste exemplo) das finalidades que ele deduziu a partir dessas respostas.
A mesma dificuldade nos parece se aplicar na utilização que Clausewitz faz da
distinção que ele propôs entre tática e estratégia. Em seu discurso, tudo mostra
que ele só concebe o papel do tático como aquele que nivela as circunstâncias,
para que a situação pareça o mais possível aquela prevista pelo planejamento
(Clausewitz, 2000:187-190). Na sua perspectiva, o tático não deve – e nem pode
– tomar a iniciativa, mas cabe ao estrategista, sim, ajustar o planejamento, se for
88 Competência e atividade de trabalho
Aqui, ao contrário, a força do raciocínio de Dewey vem, sem dúvida, de sua recusa
em separar a pertinência teórica – mesmo a mais intelectual – da eficácia prática.
Nessa ótica, certamente, a competência aparece como uma certa performatividade
de nossas referências (nossas representações, nossos hábitos). Já que a prática é,
fundamentalmente, uma interação com o real, é, em seu próprio devir, que ela
encontra os critérios para guiá-la. O feedback que nos reenvia o meio ambiente
nos informa, a todo instante, se nossa interação com ele está em uma espiral
ascendente ou mesmo descendente, em um círculo virtuoso, ou, ao contrário,
vicioso. A ideia pragmática é, certamente, a de que uma representação mental
não tem realidade senão quando ela induz mudanças no real. Ora, a utilização
que Dewey faz dessa ideia lhe permite pensar a estruturação dinâmica da ação.
Tanto a determinação de nossos fins quanto a articulação dos meios para atingi-los
são operações cognitivas que se desenvolvem na interação com o meio ambiente
real. Nossos projetos emergem, portanto, de nossa atividade espontânea que, aliás,
é, na origem, uma atividade vital, orgânica: essa é, assim, anterior em relação a
esses projetos que acreditávamos primeiros, porque eles lhe dão uma orientação.
A tese, bem conhecida, segundo a qual são os insucessos dessa atividade espon-
tânea que provocam a reflexão (a análise intelectual), permite a Dewey marcar a
diferença entre uma atividade que se contenta em tatear ao acaso (ensaio e erro) e
uma atividade que – ainda que ela permaneça sempre uma experimentação – faz
o esforço não somente de religar a ação e a reação, mas ainda de antecipar essa
resposta por uma hipótese sobre a natureza de sua relação. Sem dúvida, isso é,
para Dewey, o agir em competência.
O limite de seu raciocínio, para nós, tem empenho em que – sem mais precisão
sobre a relação que se instala entre nossa interação e as regras sociais que a
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 89
Considerar, portanto, que a tática vai elaborar sempre sua própria estratégia, dito
de outra forma, em nosso vocabulário, que os raciocínios em aderência podem
dispensar qualquer raciocínio em desaderência, tanto no plano teórico, quanto no
plano organizacional: é aí que o autor nos parece operar um resumo explicativo.
As normas antecedentes são indispensáveis para reconfigurar tanto a ação coletiva
quanto a ação individual. Sobretudo, é preciso insistir em relação ao fato de que
a iniciativa e a engenhosidade têm necessidade desses esboços normativos, para
poder reinterpretá-los e antecipá-los novamente. Falar, como o faz Dewey, de uma
emergência da estratégia, a partir de uma pura tática, parece-nos tão ilusório quanto
o sonho do todo estratégico. Mas, principalmente, isso parece limitar, de forma
drástica, os avanços da reflexão sobre a competência. Nesse sentido, é preciso
ultrapassar isso que um tal espontaneísmo tem de simplificador. É precisamente
a isso que visam não somente as ambições científicas de Bourdieu, como também
as de Lévi-Strauss ao utilizarem o conceito de norma.
90 Competência e atividade de trabalho
2.3. Não se segue a norma como uma regra de gramática, mas como a re-
gra do jogo: o senso prático adapta a norma a uma estratégia (Bourdieu)
Ora, isso quer dizer ao menos duas coisas quanto à implementação, para nós,
portanto, da questão do enquadramento. Primeiramente, por mais normatizado
que seja, um ato pode ser concluído de várias maneiras diferentes, e todas essas
maneiras vão dar tantos atos quanto forem as significações performativas diferen-
tes. Em seguida, por mais normatizado que seja, o ato tem lugar numa situação
singular, ainda que é, nesse contexto, e em relação a ele, que a norma terá sua
efetividade e seu sentido. Por mais que eu não tenha escolhido as regras da gra-
92 Competência e atividade de trabalho
mática e que o meu discurso deva se apoiar nessas regras para esperar produzir
um sentido compreensível para os outros, isso não reduz a minha tomada da fala
numa recitação. Assim, por exemplo: respeitar, não respeitar, ou mesmo respeitar
demais (hipercorreção) uma regra de gramática, constituem não somente três atos
diferentes, mas é impossível evocar esses atos sem precisar o contexto onde eles
realizam a norma. Ora, o mesmo ato será inteiramente diferente de acordo com o
lugar onde acontece em tal ou qual quadro, de tal ou qual meio.
É bem exatamente esse conceito de norma que mobiliza Guy Le Boterf no definir
a competência como uma “disposição a agir em uma família de situações” (Le
Boterf, 2002:21). Na verdade, mesmo se, por um outro ponto de vista, esse autor
qualificasse essa disposição como uma “combinatória de recursos”, é o conceito
de estratégia de Bourdieu que ele tem em mente. Efetivamente, não somente ele
segue a metáfora do chefe de orquestra (Le Boterf, 2009:75), mas, de maneira
geral, ele considera que a competência (na execução de tarefas e no enquadramento
dessas) consiste na adaptação ótima das maneiras de agir às particularidades da
situação. Não indo mais longe, acreditamos, é deter-se no meio do caminho na
definição do conceito de competência. Veremos por quê.
Até certo ponto, o modelo de Bourdieu de uma norma, como prática estratégica,
quer dizer como tema e variação, permite ultrapassar uma redução da implemen-
tação competente em aplicação em conformidade com a norma. Mas, até certo
94 Competência e atividade de trabalho
ponto apenas, porque ele considera o ato competente unicamente como a escolha
ótima em uma árvore de possíveis: a gama de reflexos sociais à disposição do
agente, quer dizer para os quais ele desenvolveu uma disposição.
cientista julgaria como previsível. Esse agente é simplesmente revertido para uma
associação bem-conhecida, mas ignorada por ele. Novamente, portanto, não há
espaço para uma infinidade.
-nos que um tal raciocínio negligencia o fato de que estabelecer uma tal árvore
de possíveis pressupõe uma drástica simplificação da realidade. Trata-se de uma
abstração no sentido etimológico, uma vez que isso consiste não só em extrair
pelo pensamento algumas circunstâncias do todo, um todo verdadeiramente inex-
tricável formado pela situação, mas também em percorrer mentalmente a cadeia
de causas e efeitos, de modo a identificar pontos de bifurcações. A melhor prova
de que essa lógica da árvore não é uma representação exaustiva da realidade é
que basta que ocorra um acontecimento imprevisto para que o esquema se torne
obsoleto, exigindo recomeçar a ser elaborado com base nessa nova situação.
Ao retomar a ideia canguilhemiana de que “todo homem quer ser sujeito de suas
normas” (Canguilhem, 1947: 153) e lembrando que essa ideia significa que ele
quer ser o centro de um meio de que ele participa na construção, em um universo
de normas antecedentes que é a situação, pode-se dar parte do fato de que existe
uma verdadeira singularidade da pessoa, na medida em que seu ponto de vista é,
,propriamente falando, não antecipável. É, na medida em que esse ponto de vista
não é uma mera particularização de alguma lei normal, que pode ele reivindicar a
singularidade. Em outras palavras, é na medida em que ele reivindica essa singu-
98 Competência e atividade de trabalho
laridade para poder viver que o ator é já sempre singular, e não meramente parti-
cular. Sua posição no universo social, a lista de suas características, sua trajetória
histórica: tudo isso pode ser bastante exaustivamente descrito, pois isso é apenas
um conjunto de particularidades (os elementos de uma combinatória elaborada
pelo sociólogo) que vão se encontrar – inclusive, talvez, no mesmo arranjo – em
outros casos, já que, finalmente, é isso o que constitui a regularidade estatística.
Em compensação, a maneira pela qual a pessoa estabelece sua relação com essa
condição, com sua situação, com as normas antecedentes de que ela tenta se apro-
priar: tudo isso é não antecipável, porque é necessário passar pelo ponto de vista
da totalidade indivisível do corpo-si da pessoa (Schwartz, 2011: 148-177). Para
entender a maneira como ela retrabalhou a norma antecedente (renormalizada, diz
Yves Schwartz), é necessário não apenas deixá-la falar, mas fazer com ela todo
um trabalho de acompanhamento, para ajudá-la a expressar à sua consciência –
através da linguagem – todas as iniciativas que a totalidade biopsíquica de seu
corpo tomou para ganhar microiniciativas sobre as normas do meio.
3. Avaliar
Nós já evocamos como, entre Aristóteles e Dewey, cada concepção da ação que se
opõe traz consigo a origem de seus critérios. Já que, de acordo com Aristóteles, a
finalidade de um ato precede esse ato (esse é o modelo do projeto), a avaliação do
ato vai consistir em comparar o resultado com o objetivo inicial. Essa visão das
coisas está tão impregnada na mentalidade da Atenas do século V a.C. que ela ali
mesmo até recebeu um nome: é a doutrina de excelência ou virtude. Toda coisa
e também todo ser e toda ação têm uma essência que os define, e essa essência
funciona como um ideal prototípico. Para Aristóteles, a essência – ou ideal – é
a função desse ser: a produção que ela gera ou sua operação autotélica. A partir
daí, uma pessoa ou uma coisa é excelente (ou virtuosa ou ainda divina) quando
ela realiza sua função com perfeição.
Seguramente, uma tal maneira de ver nos parece rígida e extrema, na me-
dida em que sozinhos os cidadãos atenienses fixando fins, a competência
como perfeição é reduzida, em todos os outros casos, à eficiência em uma
função que não foi escolhida.
3 No original: “Puisque leurs actions respectives sont pensées sur le même modèle (à cette dif-
férence près que l’homme – et bien sûr, il faut entendre ici l’homme libre, le citoyen athéniense
fixe lui-même ses fins, sous la forme de projet), leurs compétences respectives sont pensées sur le
même modèle”.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 101
“Há muitas maneiras diferentes de fazer a mesma coisa, 40, 50 ou 100 talvez na
mesma fábrica, e é por isso que há uma variedade de ferramentas para fazer o
mesmo trabalho. Entre os métodos e as ferramentas utilizadas em cada operação,
há sempre um método e uma ferramenta mais rápida e melhor que os outros. Eles
podem ser descobertos somente após uma análise científica de todos os métodos
e ferramentas usados pela oficina. Análise essa com base num estudo minucioso
e exato dos movimentos e dos tempos.” (Taylor, 1927:33).
3.2. É a eficácia com a qual o ato desabrocha no meio que faz a sua
autovalidação (Dewey)
A concepção de avaliação em Dewey nos parece partir da ideia de que todo julga-
mento é um julgamento normativo (consideremos, por exemplo: “ele é um verdadeiro
sapateiro”), no sentido de que esse é um julgamento que se refere a critérios. Ora,
esses critérios são arbitrários se eles pretendem se aplicar à ação, sem terem sido
desenvolvidos aí de maneira autônoma. É nisso que está a sua crítica ao aristotelismo:
os critérios não devem preceder à ação, eles devem, ao contrário ser nela decididos.
“A projeção das consequências [das nossas ações] significa uma solução propos-
ta, uma solução de teste (...) A solução sugerida (‘a ideia’ ou ‘teoria’) deve, então,
ser posta à prova na prática. Se ela produz algumas consequências, algumas
determinadas mudanças no mundo, ela é aceita como válida. Caso contrário, ela
é modificada e submetida a uma nova prova. O pensamento implica cada uma
dessas etapas: o sentido de um problema, a observação das condições, a formação
e a elaboração racional de uma conclusão sugerida e o teste experimental ativo.
Ainda que todo pensamento chegue ao conhecimento, o valor do conhecimento
está subordinado, afinal de contas, à sua utilização no pensamento. Porque nós
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 103
avaliação não deve ser procurada em outros lugares senão na atividade em si, da
mesma forma a modalidade de aplicação desses critérios –a prática da avaliação
em si – não deve ser exterior, supostamente imparcial. A autoavaliação é parte
integrante da ação, sendo uma etapa constitutiva dela e é dela que se obtém sua
legitimidade e sua segurança.
A essas três novas características, pode-se objetar a ideia de que um tal modo
de avaliação não pode senão confortar o ator em seus preconceitos, porque sua
grade de critérios funciona aí como uma profecia autorrealizadora (ou círculo
hermenêutico, hipótese de interpretação que se mantém por si mesma) – o que
a priori não favorece o espírito crítico. Mas o argumento de Dewey consiste em
antecipar o fato de que as mudanças contínuas do ambiente impõem se adaptar,
quer dizer, confrontar constantemente nossas grades de interpretação com sua
própria eficácia. O autor adianta que essa é a única garantia da pertinência de
qualquer interpretação. Isso é o que Dewey escolheu reter do princípio darwiniano
da evolução exponencial pela seleção do mais apto a se adaptar, a cada vez, a essa
ou àquela dada situação.
Desde então, o que vale para nós essa definição do agir em competência de acordo
com Dewey? Ela é um pouco desconcertante, porque, em última análise, ela é
apenas formal. A eficácia é um critério que nos reenvia constantemente a critérios
mutáveis, definidos caso a caso – e pelo caso em si mesmo. Mas, sobretudo, ela
não nos parece mais satisfatória do que a concepção aristotélica, porque uma tal
concepção de competência não preenche as especificações ligadas a esse conceito.
Qual é esse caderno de encargos? O desafio específico do conceito de competência
é de poder servir de espaço de encontro entre uma demanda de reconhecimento
(por parte do empregado) e uma demanda de confiança, portanto de responsabili-
dade (por parte do empregador). Uma tal mediação passa pela estabilidade de um
referencial de competências. Ora, criticando a rigidez dos critérios aristotélicos,
Dewey insiste demasiadamente sobre o futuro mutável dos critérios de avaliação.
O que é revelador desse excesso é que os critérios, tais como ele os entende, não
podem, finalmente, ser utilizados senão em uma autoavaliação. Mas, embora esse
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 105
“Se o mundo social tende a ser percebido como óbvio (...) é porque as disposições
dos agentes – seus habitus, ou seja, as estruturas mentais, através das quais eles
apreendem o mundo social – são essencialmente o produto da interiorização das
estruturas do mundo social.“ (Bourdieu, 1987:155).
106 Competência e atividade de trabalho
“As representações dos agentes variam de acordo com sua posição (e os in-
teresses que lhes estão associados) e de acordo com seus habitus, como um
sistema de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e avaliativas
que eles adquirem através da experiência sustentável de uma posição no mundo
social. O hábito é, ao mesmo tempo, um sistema de esquemas de produção das
práticas e um sistema de esquemas de percepção e de apreciação das práticas.
E, em ambos os casos, suas operações expressam a posição social em que foi
construído. (...) É o que faz com que nada classifique alguém mais do que suas
classificações.” (Ibid., 156-157).
Nós nos situamos bem aqui no cruzamento entre Aristóteles e Dewey. Contra
Dewey e a favor de Aristóteles, Bourdieu mostra que são os referenciais, estáveis
e comuns, que nos servem para avaliar as práticas. Mas contra Aristóteles e a
favor de Dewey, Bourdieu mostra que esses referenciais avaliando a ação estão
em um perpétuo devir, precisamente porque eles não se constituem senão num
único referencial com os referenciais guiando a própria ação! Mas sente-se bem
a diferença de tom. Ali, onde Dewey transbordava de otimismo e generosidade
democrática, Bourdieu lança um olhar cínico sobre a prática da avaliação. Seu
raciocínio parece, de fato, ter uma visão pragmática no mau sentido do termo.
Ele considera que a avaliação está em tal continuidade com a prática que ela
não é senão um meio de perpetuação, de reprodução.
dos critérios gira, de alguma forma, no vazio, porque serve apenas para reforçar
uma posição em uma relação de força.
É esse o termo legitimidade que nos parece importante aqui. Em Dewey, as ava-
liações são legítimas na medida em que elas são autônomas. Aqui, um julgamen-
to depreciativo é legítimo quando ele é bem-sucedido – por um golpe de força
simbólica – para dar o tom, para se fazer passar pela referência, presumindo ser
ele mesmo a medida da legitimidade. Mais uma vez, reencontramos o limite da
concepção de Bourdieu, que considera a norma como um fato tornado direito, ou
seja, uma concepção que reduz “o que faz normas” aos “fatos de normas” – pre-
tendendo, assim, conceber a norma sem normatividade (normatividade receptiva).
O fato de que as normas e as ações que fazem essas normas existirem sejam assim
avaliadas, sendo relacionadas a outras normas, lembra o princípio do relativis-
mo cultural de Lévi-Strauss. Todo julgamento normativo, sendo relacionado ao
sistema de normas que usamos como critérios e toda norma sendo relativa a uma
dada cultura, é ilegítimo – e mesmo absurdo – julgar uma prática fora do sistema
normas do qual ela é a expressão, fora da cultura onde ela ocorre. Mas a sociolo-
gia de Bourdieu pretende romper com o irenismo metodológico da etnologia. Na
verdade, as normas são constantemente ligadas a outras normas, a outros meios,
e o essencial da vida social consiste nessas lutas simbólicas, onde o que está em
jogo é o primeiro lugar (arbitrário) de quem fala por último. Diferentemente
de Dewey de novo, Bourdieu e Lévi-Strauss concebem a avaliação como um
circuito fechado, onde as normas falam às normas, sem jamais se relacionarem
108 Competência e atividade de trabalho
com valores. É que esses dois autores consideram que não há nenhuma outra
fonte de valor senão as normas arbitrárias, que se pretendem baseadas em direito
e impõem artificialmente diferenças de valor. Sem dispor do conceito de norma.
Dewey parece-nos, entretanto, mais inspirado, quando ele relaciona a avaliação
positiva de uma ação à fonte (única, de acordo com ele) do valor: automanutenção
exponencial da atividade. Voltaremos a esse ponto.
“A escola não exalta na “cultura geral” o oposto do que ela denuncia como uma
prática escolar da cultura, naqueles cuja origem social condena a não ter nenhu-
ma outra cultura senão aquela que eles devem à escola?’” (Bourdieu, 1964:33).
É que – por mais paradoxal que isso possa parecer na perspectiva de autores
anteriores – a conformidade se torna, em algum grau, contraproducente, quando
queremos ser declarados competentes. Bourdieu sugere não somente que os
julgamentos de competência se voltem primeiramente sobre o domínio, sobre a
facilidade na maneira de fazer, mas que a hipocrisia social de um julgamento de
competência vem daquilo que aí se exige que a norma seja seguida do nada, sem
que isso transpareça. A análise que Bourdieu faz da avaliação culmina, portanto,
no conceito de graça: para ser declarado competente, em um determinado jogo
social, é preciso dar a impressão de que não há necessidade da norma para res-
ponder às expectativas.
A concepção de Dewey nos parecia insuficiente, porque ela implicava que, para ser
competente, era preciso reinventar o prescrito a cada ação. No entanto, Bourdieu
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 109
retifica, de algum modo, a análise. Para ser competente, deve-se, ao mesmo tempo,
realizar as estratégias sempre mais ou menos automáticas do senso prático e dar
a impressão de reinventar, a cada vez, a norma! Além de seu alcance crítico, qual
é, então, a contribuição conceitual de tal retificação? Um ponto positivo é que
Bourdieu nos convida a nos perguntarmos o que se torna norma na ação, visto
que sua aplicação literal é desconsiderada. Já mencionamos a dupla característica
do conceito de norma, pela qual ele responde. Para ser implementada uma forma
que vamos qualificar como competente, a norma deve ser, ao mesmo tempo,
difratada e adaptada na ação. No entanto, apesar do seu interesse, o modelo da
graça nos parece insuficiente, porque ele ignora um fato muito importante. Mais
ainda do que domínio, é a responsabilidade do ator que sanciona o conceito de
competência. Se precisamente o conceito de competência se distingue da graça,
do brio ou ainda do gênio, é porque ele é usado para designar – ao mesmo tempo
que a facilidade do ator – a seriedade da qual ele faz prova, quando se trata de
assumir as consequências (mesmo remotas) de suas ações. Ora, nós encontramos
aqui a inspiração de Dewey e especialmente de Canguilhem (Canguilhem, 1980:
187-188). A responsabilidade, a coerência no que se refere às consequências de
suas ações são noções axiológicas. Em outras palavras, a avaliação não consiste
apenas em relacionar uma ação às normas: através dessas normas e,então, além
delas, é com os valores (e à sua fonte, a relação com as outras) que a conformi-
dade mais ou menos literal é finalmente relacionada. Ora, esse acréscimo quanto
à avaliação das práticas profissionais transforma completamente o conceito de
norma em relação à concepção estruturalista.
4 N.T. No francês, cahier des charges. Documento contratual que define as regras da execução de
serviços. Ele foi elaborado por uma equipe projetista (prescrição) e deverá ser respeitado quando
da realização das tarefas.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 111
de outra, vai procurar “se colocar no lugar” do cliente, para estimar a atratividade
do produto. Isso não é exatamente uma ciência exata, nós reconhecemos bem a
indefinição característica do léxico: o zumbido, a tendência, etc., que agora são
exportados para todo lado.
Essa digressão é útil para mostrar que, se existem casos cujo controle é suficiente
por si mesmo, esses casos são extremamente raros. Na grande maioria deles, o
controle é um momento da avaliação e não é suficiente por si só. Quando dizemos,
neste instante, que a irredutibilidade da avaliação ao controle não era um mal
menor, mas uma chance, é que a consideração dos motivos e motivações – bem
longe de diminuir a objetividade da avaliação – aumenta essa objetividade desde
que não se dê a esse termo seu sentido restrito e restritivo.
Questionar os motivos e motivações de uma ação que se tenta avaliar é mais ge-
ralmente interrogar o ponto de vista do ator, no sentido canguilhemiano do termo:
o posicionamento que a pessoa mantém na presença da norma, que guiou a sua
ação. Assim, quando, depois de ter apresentado sua dissertação, um estudante é
convidado a defender o que escreveu, esses dois momentos representam, respec-
tivamente, o controle (do domínio das noções, da coerência de seu discurso, etc.)
114 Competência e atividade de trabalho
esta distinção crucial: para o primeiro só existe a lei do mais forte; para o segundo,
existe apenas a autonomia, no sentido o mais solipsista. Se bem que a cada um falta
a universalidade de um critério para decidir razoavelmente (aqui: “ter razão”). Por
sua vez, Aristóteles e Taylor pecam pelo excesso oposto. Eles consideram apenas
uma universalidade unilateral do critério puramente racional: razão teórica, filosó-
fica para Aristóteles (conhecimento das essências); razão calculadora, gestionária
para Taylor. Ora, como muito bem assinalou Philippe Meirieu (1991:76), as teorias
atuais de comunicação – pós-kantianas ou aquela desenvolvida por Habermas, por
exemplo – mostram que é completamente possível prever a universalidade de um
critério de juízo de valor, não mais como condição a priori que deveria preceder
o debate, mas como um horizonte, que faria consenso entre os interlocutores que
aceitam o debate. É essa consensualidade do acordo (mesmo tácito, pelo simples
fato de aceitar discutir) servindo de base para discussão, que pode fazer o papel
de critério universal formal, de pedra de toque para separar o ilegítimo (o que
dificulta a discussão) do legítimo. Sem necessariamente retomar, por nossa conta,
a concepção de comunicação de Habermas, é o caminho que ela abre e a direção
que ela mostra que reforçam a ideia de que a reunião dos dois tempos de avalia-
ção (o controle, em seguida, o debate) permite construir um juízo normativo e
axiológico justo – quer dizer nem arbitrário (confronto de opiniões sem o terceiro
neutro da norma antecedente para separá-los), nem redutor (reduzir a avaliação a
um juízo de fato objetivo – por exemplo, a medida quantitativa da produtividade).
4. Formar
Até aqui, a distinção é clara. Mas, na prática, a ideia ainda assim fere o senso
comum: como se pode forjar sem já ser ferreiro? Como é que vamos começar a
forjar antes de ser (pelo menos um pouco) ferreiro? Muito sensível a esse para-
doxo, Aristóteles vai considerar o seguinte raciocínio para recolocar, de alguma
forma, o modelo de aquisição de competências:
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 119
“Em geral, tudo o que tem uma dada natureza não saberia se acostumar a se
comportar de outra forma. Assim, então, não é nem pela natureza nem contra-
riamente à natureza que nascem em nós as virtudes, mas a natureza nos deu a
capacidade de recebê-las, e essa capacidade é levada à maturidade pelo hábito.
Com efeito, tudo o que ocorre em nós por natureza, nós o recebemos, de início,
em estado de potência, e é mais tarde que nós o fazemos passar ao ato – como é
evidente no caso de faculdades sensíveis (porque não é depois de uma infinidade
de atos de visão ou de audição que adquirimos os sentidos correspondentes,
mas é o oposto: já tínhamos os sentidos antes de usá-los, e não é depois de ter
usado os sentidos que os tivemos). Mas para as virtudes, ao contrário, possuí-
-las supõe um exercício anterior, como é também o caso para as outras artes.
Efetivamente, as coisas que são necessárias ter aprendido para fazê-las é fazendo
que as aprendemos. Por exemplo, é construindo que nos tornamos construtores,
e tocando a cítara que nos tornamos citaristas. Da mesma maneira, é praticando
ações justas que nos tornamos justos, é praticando as ações moderadas que nos
tornamos moderados, e por ações corajosas nos tornamos corajosos. (...) Na
verdade, se não fosse assim, não haveria necessidade do mestre, mas seríamos
sempre, de nascença, bons ou maus em nossa arte.”
A ideia aristotélica, que parece ter permanecido no nosso senso comum, é, então,
a seguinte: todo estado atual (de uma coisa ou de uma pessoa), que resulta de uma
transformação, de uma mudança, de uma modificação, “não pode já ter estado lá,
desde sempre”, virtualmente, de uma forma latente – porque nada pode surgir do
nada. Na natureza íntima de um ser (sua essência eterna), Aristóteles inscreve, então,
de antemão, tudo que lhe será possível fazer e se tornar. O conjunto constitui a lista
de suas propriedades em potencial. O desenvolvimento das disposições adquiridas
será, portanto, a atualização do que já está lá, em germe – quer dizer literalmente a
passagem da potência (potencial) ao ato (atual). Claro, hoje não se diz mais: é um
criminoso em potencial! E, contudo, ainda se diz, às vezes: é Mozart que assassi-
namos! Lá, onde Aristóteles via uma forma biológica, vemos, frequentemente, uma
condição social. É um pouco como se a trajetória de uma pessoa consistisse para ela
em seguir uma ou outra opção predefinida. Por que se utiliza, ainda tantas vezes,
o léxico do virtual (potencial, aptidão, recursos, etc.), quando se diz, por exemplo,
de um estudante que pode se dar um pouco mal que ele tem “as capacidades”?
Dewey utiliza, ele próprio, o termo capacidade. Simplesmente o autor está atento em
não mais considerar as capacidades tendo em vista o modelo (implícito) da acepção
técnica, trivial dessa palavra: o limite do volume que pode ser estocado em um re-
cipiente. Abandonar a ideia mesma de virtualidade lhe permite, portanto, não mais
pensar as disposições como as diferentes opções à disposição da pessoa, opções
estocadas no espaço delimitado por suas capacidades. E o argumento de Dewey
é significativo. É em razão de o ator estar em devir que ele é transformado em suas
ações – ações que são, para ele, seu esforço para existir no ambiente real. Ou em
razão de ele estar em devir, ninguém sabe do que é capaz um ser de atividade – nem
ele mesmo. Vemos, a rigor, de onde ele parte e qual direção toma sua trajetória, mas
isso dificilmente se abre a uma predição. A ideia de maleabilidade expressa essa
tentativa de pensar de outra forma nossos hábitos. É como uma dobra que tomaria
a forma, de início indiferenciada, de nossa atividade global e espontânea.
Dewey parece ter visto bem que a atividade é uma imersão na situação (e no seu
ritmo), mas negligenciou o fato de que as situações são sempre regradas por normas
antecedentes anônimas – que, portanto, têm necessidade, para desempenhar seu
papel estruturante, de aparecer pelo menos no primeiro tempo, como precedendo
absolutamente a situação (vale dizer, assumir uma temporalidade incomensurável).
Pelo contrário, naquilo que Wittgenstein considerava que a norma é uso (no sentido
linguístico, certamente, mas também no sentido da tradição), Bourdieu retoma
Aristóteles e sua teoria das disposições. Na verdade, a célebre definição “o hábito
é uma segunda natureza” é uma paráfrase de Aristóteles. Esse último, que falava
do hábito, descrevia, com essa fórmula, a maneira como as disposições adquiridas,
uma vez plenamente atualizadas, se implementam de forma tão imediata quanto
as capacidades inatas. Esse cruzamento de modelos permite a Bourdieu insistir
em relação ao fato de que essas adaptações (essas variações sobre um tema) são
inconscientes – as famosas estratégias sempre mais ou menos automáticas do
sentido prático. Em Wittgenstein, as regras do jogo da linguagem (2004:73) se
formam no curso da atividade intersubjetiva, para permitir a comunicação – nesse
sentido, elas não são nem conscientes nem inconscientes, exatamente como as
operações que efetuamos para levantar o braço para acenar para alguém. Com
Bourdieu, elas tomam um sentido estruturalista. A metáfora lúdica, salvo peque-
nas diferenças, é utilizada da mesma maneira pelos dois autores: ela serve para
modelizar a aprendizagem da norma, como uma incorporação progressiva pela
força em participar.
“O bom jogador, que é, de algum modo, o jogo feito homem, faz a todo instante
o que deve ser feito, o que o jogo demanda e exige. Isso supõe uma invenção
permanente, indispensável para se adaptar às situações indefinidamente varia-
das, nunca perfeitamente idênticas. O que não garante a obediência mecânica
à regra explícita, codificada (quando ela existe). (...) O sentido do jogo (...)
falha especialmente nas situações trágicas, onde se apela aos sábios, que, em
Cabília, em geral também são poetas e sabem tomar liberdade com a regra
oficial, que permite salvar o essencial daquilo que a regra visava garantir. Mas
essa liberdade de invenção, de improvisação, que permite produzir a infinitude
de lances possibilitados pelo jogo (como no xadrez), tem os mesmos limites do
jogo. As estratégias adaptadas quando se trata de jogar o jogo do casamento
cabila (...) não conviriam no caso de se jogar o jogo do casamento bearnês”
(Bourdieu, 1987:79).
126 Competência e atividade de trabalho
O deslizamento permanente que Bourdieu opera aqui entre o ato e ator (“o
jogo feito homem”, os jogos de espelho entre o jogador e a bola) é representa-
tivo, simultaneamente, do que o conceito de norma permite doravante pensar
– nossos atos nos constituem pelo menos tanto quanto nós constituímos nossos
atos – e daquilo que faz a especificidade do conceito de competência: é uma
pessoa (e não seu ato) que é competente, mesmo que seja apenas após seus
atos que se vai poder declará-la como tal.
vai reter disso é um pouco diferente. Como mais tarde a didática profissional e
principalmente Gérard Vergnaud (2007:11), o sociólogo retém do conceito de
esquema sua labilidade, quer dizer sua capacidade de se modificar facilmente sem
se deformar, para fazer entrar, em sua forma bem-conservada, um conjunto bem
diverso de realidades. O esquema, nestes dois autores contemporâneos, torna-se
uma ferramenta cognitiva – tanto intelectual quanto gestual ou perceptiva – que
permite articular, sob um mesmo tipo (flexível, para não dizer um pouco frouxo),
uma variedade de casos parecidos. Assim transformado, o conceito de esquema se
parece com o conceito de ar de família de Wittgenstein (2004:64) (um conceito
que justamente esse autor propunha como alternativa ao que o conceito tinha de
demasiado rígido). O que captura um esquema não são as propriedades necessárias
e suficientes que formam tradicionalmente a definição de um conceito, mas é “o”
traço que, segundo as necessidades da situação presente, vai se revelar pertinente
(significativo) para fazer a diferença e categorizar tal caso sob tal ou tal tipo.
“Há uma ciência do mestre e uma ciência do escravo, aquela do escravo sendo
precisamente a que se ensinava em Siracusa. Lá, de fato, por meio de salários,
os jovens escravos aprendiam o ciclo completo de seus ofícios. E era possível
aperfeiçoar o estudo de certas disciplinas, como a culinária e outros ofícios do
mesmo gênero. Pessoas diferentes têm, de fato, tarefas diferentes, algumas mais
apreciadas, outras mais indispensáveis, e, como diz o ditado: “há escravo abaixo
do escravo e mestre abaixo do mestre”. Tudo isso é, então, ciência de escravo;
quanto àquela do mestre é a do emprego dos escravos” (Aristóteles, 1993:108-109).
Sua teoria da norma como esquema permite a Bourdieu responder a esta dupla
questão (até certo ponto). É preciso “universalizar as condições de acesso ao
universal” (Bourdieu, 2001:40), quer dizer aliar a profissionalização e a cultura
geral, completar as formações práticas por meio de uma verdadeira difusão dos
saberes teóricos (primeiramente no sentido etimológico – de theôria, a contem-
plação) desinteressados. Contudo, Bourdieu permanece em um nível de dualismo:
se os primeiros vão servir aos agentes no trabalho, os segundos vão participar na
sua emancipação na ação política (a praxis). Parece-nos, com efeito, que há uma
clara separação em Bourdieu (como em Marx) entre a esfera do trabalho e aquela
do desabrochamento subjetivo. Quanto a nós, pensamos que o conceito de compe-
tência não pode se satisfazer com tal dualismo, porque sua diferença em relação
aos conceitos de qualificação ou de expertise mantém justamente isso que ele põe
em evidência: toda a cultura técnica e social (relacional) que vai distinguir sempre
130 Competência e atividade de trabalho
Parece-nos que Bourdieu alterna entre duas respostas a essa questão. Primeiramen-
te, a razão é pragmática: se a cultura humanista parece universal e desinteressada,
é que ela detém, desde sempre, o monopólio da imposição da visão de mundo
legítimo. A cultura liberta porque ela arma os dominados contra essa violência
simbólica (a fim de que eles desarmem as suas armadilhas ou as coloquem a seu
favor). Mas, em segundo lugar, a razão é mais construtiva:
“A ciência que revela, que desmascara poderia exercer, por si só, um efeito
significativo. Mas claro, na condição de que seus efeitos sejam conhecidos por
aqueles que têm o maior interesse em os conhecer.” (Bourdieu, 1997:156).
ortodoxo que Canguilhem, Bourdieu tem uma concepção dualista da relação entre
saber (da experiência) e conhecimento (científico). É a razão pela qual o senso
prático que Bourdieu utiliza para descrever a competência de um jogador de tênis,
um exemplo retomado por G. Le Boterf – não tem alcance cognitivo senão bastante
relativo e limitado: é simplesmente a latitude a difratar e adaptar automaticamente
nossos esquemas. O senso prático não consiste senão em aderir o mais intima-
mente possível aos reflexos (cognitivos – vieses, preconceitos e corporais) que
estruturam percepções e reações típicas de um microcampo social. Seus exemplos
de jogo de bola mostram bem isso: Bourdieu transporta para uma ação menor
(posicionar-se para receber um passe) o esquema de explicação estatística que ele
desenvolveu sobre as estratégias de percurso social (escolher o estabelecimento
escolar de seus filhos; ou seu cônjuge; ou sua localização administrativa, etc.).
Mas, contrariamente a essa visão das coisas, parece-nos que o conhecimento geral e
a aprendizagem teórica participam, de maneira central, da competência no trabalho.
Por quê? Aqui nós gostaríamos de aprofundar o que entendemos por “ter um ponto
de vista sobre a norma.” Acreditamos que a função de qualquer cultura geral é
diversificar os esquemas (de ação e de percepção) por sua mobilização artificial
em situações extraordinárias – ou seja, situações que ninguém vive no quotidiano.
Estudar em aula de francês a poesia do século XVII torna-se interessante porque
é para o aluno uma maneira de ver funcionar a riqueza expressiva da norma, em
um universo normativo que não é mais válido hoje. Aqui, o acesso ao universal
deve ser “universalizado”, então, não mais para entrar na luta simbólica, nem para
neutralizá-la. Mas é para para ajudar as pessoas a constituir para si um ponto de
vista, para que os agentes existam como atores no interior das relações de poder
que fazem o quotidiano das situações reais.
professor: na fronteira entre duas culturas, ele não se contenta, entretanto, em ser
anfíbio! O professor competente tem que, efetivamente, conseguir apresentar, com
sucesso, um novo sistema de normas (por exemplo, o formalismo matemático)
como válido para si mesmo, enquanto o apresenta nas coordenadas teóricas e
axiológicas da experiência dos estudantes (Bourdieu diria: de seus habitus). Para
conduzir bem esse exercício de mediação com interfaces, o professor deve ter
entendido suficientemente as normas dos dois universos e também ter se distan-
ciado suficientemente em relação a elas, para projetar umas na perspectiva das
outras, sem nunca trair o espírito próprio delas. À luz da definição da competência
que sugerimos como uma hipótese sobre a avaliação, poderia ser descrito nesses
termos o desafio do professor competente:
• mas, sem trair o espírito da norma, ou seja, mandando que os alunos façam a expe-
riência do valor intrínseco, realmente autônomo, de um conhecimento teórico (aqui,
a matemática) – ou da universalidade própria da cultura humanista.
Esse exemplo parece mostrar o que Bourdieu não viu: a diversificação do es-
quema supõe que se tenha desenvolvido um ponto de vista sobre essa norma. O
que acrescentamos é que a diversificação do esquema (a apropriação da norma)
passa em primeiro lugar e, antes de tudo, pela experiência de esquemas “inúteis”
do ponto de vista da eficácia prática. Por quê? Porque são essas referências desin-
teressadas que irão alargar o espectro de difração do esquema, acrescentando a
ele pontos de comparação não automaticamente mobilizáveis. As regras do soneto
são esquemas que jamais serão convocadas pelas situações quotidianas; por outro
lado, sua apropriação abre um leque de perspectivas de formas de se expressar,
efetivamente convocadas pelas situações da vida real. E é esse leque de perspec-
tivas que, precisamente, torna menos automáticos todos esses apelos das normas
pela situação vivida. A pessoa se dá conta de que não é jamais insignificante se
expressar de tal ou tal maneira, mesmo sendo em prosa. Ela percebe que as figuras
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 133
5. Recrutar, mobilizar
Todas as concepções de ação não nos parecem ter o mesmo valor, quando se trata de
considerar o interesse que um ator assume ao realizar sua ação. Ora, essa dimensão
é essencial para poder considerar o que significa o êxito multidimensional de nossas
ações – para além da simples eficácia. Se o julgamento de competência inclui muito
uma apreciação do envolvimento das pessoas nas suas atividades, como se concebe
– na base – o investimento de si na ação? Por que o ator se interessa pelo que ele
faz no trabalho, por exemplo? A visão a mais clássica, que está por trás do nosso
senso comum, mas que foi bem representada, sobretudo por Taylor, corresponde,
outra vez, perfeitamente à teoria aristotélica da motivação. Com efeito, Aristóteles
se pergunta o que exatamente representa um papel, motor, iniciador na ação:
Como a ação é aqui concebida, antes de tudo, como “um projeto”, que tem um
papel de motor, esse é o objetivo em direção ao qual se dirigiu todo o esforço
da pessoa. E, mais precisamente (reencontra-se ali o modelo da forma) esse é o
resultado virtual, visado como objetivo, que suscita – graças às suas qualidades
“desejáveis” intrínsecas – o desejo que coloca em movimento o ator. É de se supor
que é na imaginação do ator que tal apresentação atrativa tem lugar. É interessante
chamar atenção em relação a isso porque, quando, na Idade Média, o aristotelismo
escolástico desenvolve o esquema clássico de ação, o modelo que ele propõe é
o seguinte: toda ação exterior (chamada ato transitivo, no jargão de Tomás de
Aquino especialmente) é a consequência de uma ação interior (ato imanente, que
é a decisão da vontade), se bem que o movimento físico do corpo não comece
senão quando ele já tenha virtualmente terminado em pensamento.
De que maneira a teoria da ação como projeto dá conta do fato de que nossos
atos concretos não são sempre tais como tinham sido projetados? Aristóteles
estabelece uma tipologia dos atos, que distingue: os atos voluntários (o projeto
realizado), os atos não voluntários (o reflexo) e os atos involuntários (nossos
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 137
limites, muito rapidamente e mostram que uma revisão teórica é também útil, talvez
indispensável. Assim, pode-se, por exemplo, prosseguir com a análise da imputa-
ção de responsabilidade, indicando que identificar a causa humana próxima não é
ainda suficiente. Para ser justo (e é bem isso que faz o tribunal), é necessário ainda
procurar quais eram os constrangimentos com os quais o operador foi obrigado a
compor e quais as origens desses constrangimentos. Ora, para ver a complexidade
da responsabilidade na ação, é necessário, portanto, dispor do conceito de norma
e fazer corretamente uso dele.
A ideia inovadora de Dewey é que nós estamos sempre desejando. Por quê?
Porque, de um lado, nós estamos sempre já agindo, e, de outro, o desejo consiste
no fato de que nós sentimos nossa atividade tomar uma evolução exponencial.
Nós nos sentimos desabrochar nessa interação. É esse aspecto construtivo em
Dewey que parece nos indicar a via de uma verdadeira alternativa em relação ao
esquema clássico da ação. O autor inverte, com efeito, a direção dos termos com
os quais nós formulamos habitualmente as coisas. Não é o que nós tiramos de
uma atividade que nos faz desejá-la (pois esse ganho é virtual e iria supor, por-
tanto, o dispositivo aristotélico), mas é, ao contrário, o que nós investimos nessa
140 Competência e atividade de trabalho
atividade, que nos faz desejá-la atualmente, quer dizer amar. Certamente, há certas
condições: nem toda atividade certamente faz desabrochar; mas precisamente são
as condições – o que significa que nenhuma atividade (por exemplo profissional)
não é nela mesma desejável ou detestável. Tudo vai depender das circunstâncias
concretas onde, em regra geral, interagimos com o ambiente.
“Desta forma, é fácil ver que as teorias que fazem do prazer um motivo, como
aquelas que recorrem ao esforço artificial, resultam praticamente no mesmo resul-
tado. A teoria do esforço implica sempre um apelo ao prazer ou à dor como causa
da ação. De sua parte, na ausência de objetivo intrínseco susceptível em manter e
dirigir as energias psíquicas, a teoria do prazer deve continuamente recorrer aos
elementos exteriores para excitar essas energias enfraquecidas. (...) Os psicólogos
nos mostram que o interesse do eu por um objeto ou por um fim indica que o eu
descobriu sua via e suas necessidades próprias. Nesse caso, os esforços do eu
se justificam; ele sabe por que ele deve desenvolver sua energia: é para atender a
um fim ao qual ele aspira e que lhe permitirá se exprimir.” (Ibid., 45-46).
Como anteriormente já foi dito, essa inversão de perspectiva sobre o que é fun-
damentalmente uma ação parece constituir para nós um verdadeiro avanço no
debate sobre a competência. E, na medida em que nossa modernidade é ainda
profundamente aristotélica, esse debate tem sua atualidade e sua razão de ser.
Mas em relação a esse último aspecto (o recrutamento), e também em relação às
quatro outras funções, a crítica e a alternativa construtiva adiantadas por Dewey
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 141
Ora, quando se trata de evocar o sentido que toma uma norma de acordo com a
experiência daquele que age segundo ela, tanto Lévi-Strauss quanto Bourdieu se
mantêm nos termos de Saussure. Assim, por exemplo, o conceito de interesse,
que Dewey havia tentado reabilitar para mostrar sua nobreza, é substituído, na
sociologia de Bourdieu pelo conceito de illusio – que, para um agente, consiste no
fato de se identificar com os interesses que agitam seu campo, a ponto de acabar
por acreditar que essas são questões existenciais para ele.
“Illusio é o fato de [alguém] ser tomado no jogo, de ser tomado pelo jogo, de crer
que, no jogo, vale a pena o mal que se dá para obtê-lo, ou, para dizer simples-
mente as coisas, que vale a pena jogar. De fato, a palavra interesse, num primeiro
sentido, queria significar, de modo muito preciso, o que coloquei sob essa noção
de illusio, quer dizer que o fato de admitir que o jogo é importante, que o que
se passa aí importa àqueles que estão engajados no jogo, a quem se engaja. O
interesse é “em estar”, participar, admitir que o jogo merece ser jogado e que
os riscos que se engendram no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos; é
reconhecer o jogo e reconhecer os riscos. (...) Se você tem um espírito estruturado
conforme as estruturas do mundo no qual você joga, tudo lhe parece evidente,
e a questão mesmo de saber se o jogo vale a pena não se coloca. (...) Libido
seria, também, totalmente pertinente, para dizer aquilo que chamei illusio, ou
investimento. (...) Uma das tarefas da sociologia é determinar como o mundo
social constitui a libido biológica – pulsão indiferenciada – em libido social,
específica. Há, de fato, tantas espécies de libido quanto existem de campos: o
trabalho de socialização da libido, sendo precisamente esse que transforma as
pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos que não
existem senão em relação a um espaço social no seio do qual certas coisas são
importantes e outras indiferentes” (Bourdieu, 1994: 151-153).
literalmente por elas mesmas sua própria finalidade, esse não é o caso da com-
petência que, enquanto julgamento, tem, de fato, a especificidade de necessitar
de outras. Mas mais fundamentalmente: o limite do modelo de Bourdieu para
dar conta da motivação de uma pessoa competente, parece-nos ser o sintoma
de uma insuficiência teórica, de uma conceitualização incompleta da norma.
Depois de Saussure, os estruturalistas recusam relacionar a norma a um valor,
o que os leva a considerar que o signo pode “fazer norma” pelo simples fato de
seu funcionamento, sem depender de um ator que iria investir na sua atividade.
Ora, nós temos evocado os limites que essa tentativa de pensar assim uma norma
sem normatividade (receptiva) ocasiona: de uma parte, ela reduz o saber a um
condicionamento adaptado (porque adaptável); de outra, ela reduz o sentido à
função (impedindo todo investimento subjetivo, toda interpretação pessoal).
A título de ilustração desse último ponto, e como uma pista de abertura para a
sequência, lembremos algumas trocas que colocaram em oposição, em meados
dos anos sessenta, Lévi-Strauss e Ricoeur sobre a questão da natureza do sentido.
Claude Lévi-Strauss:
“(...) Você disse em seu artigo que O pensamento selvagem faz uma escolha pela
sintaxe contra a semântica; para mim, não há o que escolher. Não há o que escolher,
na medida em que (...) o sentido resulta sempre da combinação de elementos que
não são eles mesmos significantes. Por consequência, o que você procura (...) é um
sentido do sentido, um sentido que está por trás do sentido. Ao passo que, na minha
perspectiva, o sentido não é jamais um fenômeno primeiro: o sentido é sempre redu-
tível. Dito de outro modo, atrás de todo sentido, há um não sentido – e o contrário
não é verdadeiro. (...) O que é o sentido para mim? Um sabor específico percebido
por uma consciência quando ela saboreia uma combinação de elementos, na qual
nenhum deles, tomado em particular, não vai oferecer um sabor comparável. (...)”
(Lévi-Strauss, 1963: 637-641)
“Paul Ricoeur: Eu não disse que o sentido era sentido por ou para a consciên-
cia; o sentido é, inicialmente, aquilo que instrui a consciência; a linguagem é,
primeiramente, veículo de sentido a retomar, e esse potencial de sentido não se
reduz à minha consciência. Não há o que escolher entre o subjetivismo de uma
consciência imediata do sentido e o objetivismo de um sentido formalizado; entre
os dois, há aquilo que o sentido propõe, aquilo que diz o sentido, e é esse “a dizer”
144 Competência e atividade de trabalho
5.4. Preferir uma norma é entender sua importância como valor: seu senti-
do aparece uma vez recontextualizado no serviço (perspectiva ergológica)
A extrapolação do vital ao social não é evidente. O valor vital tem uma univo-
cidade (uma evidência) que falta totalmente ao valor social – é por isso que a
metáfora organicista tem sido historicamente utilizada para limitar o pluralismo
dos valores políticos, o debate sobre os fins da vida social (Canguilhem, 2002:
108-123). Isso, em compensação, é, sem dúvida, a força de um raciocínio a fortiori.
Se, desde a vida orgânica, o corpo humano não soubesse, sem sentir-se doente,
se contentar em seguir as normas fisiológicas por elas mesmas, sob o pretexto de
que elas seriam “o normal”, o que será dele no nível da vida social? Canguilhem
coloca em oposição as expressões: criador de valor, instaurador de normas. Elas
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 147
Ora, para não cair na armadilha da ilusão solipsista, é necessário ter em mente
que não há “eu” fora de seu relacionamento com os outros.
Conclusão
• por fim, acreditamos que a experiência vivenciada no debate de normas nos faz sentir
o que está em jogo, tanto das normas antecedentes como das normas constitutivas da
situação; o objeto próprio do saber da experiência nos parece ser a relação problemá-
tica entre essas duas fontes da norma. Essa é a razão pela qual não podemos evitar
um retorno à perspectiva do ator, quando queremos saber como o fato de norma tem
“feito norma” em sua atividade.
Parte 2: Elaborar o conceito de competência 151
Parte 3:
Modelizar o agir em
competência
1 N.T.: A expressão atribuída ao demógrafo francês Jean Fourastié foi cunhada em 1979, com a
publicação de seu livro Les Trente Glorieuses ou la révolution invisible de 1946 à 1975.
156 Competência e atividade de trabalho
Dissemos que, de acordo com nossa análise, os profissionais e os teóricos dos “re-
cursos humanos” começam hoje a abordar a noção de situação nas suas reflexões
sobre competência entendida como uma aproximação do saber e da ação, mas
observando unicamente o “fato” da impossibilidade de um recurso à estandardi-
zação. É, efetivamente, inegável e, além disso, amplamente demonstrado, que a
situação encontrada pelo operador contradiz, de certa maneira, o que foi prescrito
ou pensado antecipadamente. Para chegar a um resultado que atenda às expectati-
vas, esse operador deve ousar trabalhar de forma diferente. O conceito operacional
Parte 3: Modelizar o agir em competência 159
“O que pode significar hoje a longa lista de itens de competências para aquele
que trabalha? A atividade de trabalho também se tornou irreconhecível. As com-
petências são divididas em tantas normas apresentadas quanto os objetivos que
os funcionários devem atingir se quiserem se adaptar às mudanças e manter seu
emprego. (...) A ‘mobilização da inteligência’ e a do ‘saber-ser’ são vistas como
fatores-chave no desenvolvimento da produtividade e da qualidade. Mas o que
mudou ao certo em relação à representação mecânica do trabalho humano? Em
referência às ciências cognitivas, a inteligência é considerada como um mecanis-
mo de processamento de informações cujo funcionamento e aperfeiçoamento são
coisas de especialistas. O ‘saber-ser’, que envolve competências comportamentais
e relacionais, também está integrado a esse modelo. Os ‘estados interiores’, as
sensações, os sentimentos, os valores ... são considerados nessa mesma lógica
que reduz o homem no trabalho a um mecanismo que poderia ser dominado e
manipulado livremente” (1999: 34).
160 Competência e atividade de trabalho
Isto é o que encontramos em filigrana no protesto de J.-P. Le Goff: a vida real, aquela
que todos os dias cada um de nós experimenta, desapareceu na leitura do mundo que
os arautos de uma nova era dominada pela competência propõem. Seus discursos
não levam em consideração a relação entre o ser humano e seu ambiente. É como
se a situação na empresa fosse apenas um caso de figura informativa, que seria su-
ficiente tratar com os bons modelos nas mãos dos organizadores. A vida comum no
local de trabalho é, desse ponto de vista, dominada por quadros em que se pretende
intervir e, assim, condicionar essa vida na direção desejada pela administração.
Ora, podemos dizer exatamente o oposto: além de ser uma sequência pré-pensada,
pré-enquadrada, a situação de trabalho é, em primeiro lugar, um momento de vida,
e é essa vida que confere realidade aos quadros e à organização em geral. As duas
perspectivas estão em interação permanente, em “dupla antecipação”.
Para explicitar, mais ainda, o nosso ponto de vista, propomos partir dos trabalhos
de Guy Le Boterf, que promoveu a abordagem intitulada “agir com competência
em situação”. Autor de inúmeros livros sobre a questão, G. Le Boterf é também
um consultor que goza, atualmente, de uma ampla audiência nas empresas e orga-
nizações socioprofissionais. Ele é um representante importante de um pensamento
gerencial relativamente avançado na maneira de tratar o tema da competência no
trabalho e a engenharia das competências em formação.
não saberia ser o controle separado de cada um dos recursos: será necessário
verificar, na situação de trabalho, “que o sujeito é capaz de selecioná-los,
combiná-los e mobilizá-los de forma pertinente.” Isso significa igualmente
que as competências requisitadas, codificadas nos referenciais, não corres-
pondem exatamente à “competência real” elaborada por cada um e que é
“uma disposição para agir numa família de situações”.
Por sua vez, Yves Schwartz (1997) apresenta seu modelo de inteligibilidade da
competência como uma combinação de ingredientes heterogêneos. Ele não fala
de uma combinatória, porque esse termo sugere uma configuração de um número
finito de elementos, mas de uma mistura como quando se coloca uma comida
pronta no prato. Os componentes do agir em competência – que agem uns sobre
os outros – não são todos tratados da mesma maneira, isto é, de maneira lógica,
porque eles são trabalhados mais sobre um plano axiológico. As normas antece-
dentes que permitem que uma situação de trabalho aconteça vão ser reprocessadas
por cada um em função da sua percepção das urgências, de seus preconceitos, do
que é norma para ele. Falaremos de debate de normas para designar a comensu-
rabilidade conflituosa das normas. Além disso, quando comenta seu modelo, Y.
Schwartz sublinha que o tratamento heterogêneo de ingredientes heterogêneos
não se presta a uma avaliação homogênea. A maneira, por exemplo, como uma
pessoa participa das sinergias coletivas não pode ser avaliada da mesma maneira
como pode ser avaliado o seu domínio de técnicas.
Guy Le Boterf, ao contrário, procura unificar, com um mesmo termo, o que ele
chama de “recursos”, confundindo o que é geralmente distinguido no esquema
da ação: as condições – circunstâncias objetivas, subjetivas – os meios, a ação de
pôr em trabalho... Essa generalização favorece a abstração a ponto de fazer desse
“recurso” uma pura possibilidade (pode-se tratar de um meio, de um esforço, de
168 Competência e atividade de trabalho
Essa questão da combinatória de recursos vai criar uma nova dificuldade na ava-
liação da competência. Guy Le Boterf recomenda não mais se limitar a controlar
separadamente a aquisição dos recursos, mas “assegurar que o sujeito é capaz de
selecioná-los, combiná-los e de mobilizá-los de modo pertinente em uma situação
de trabalho particular” (2002b). Parece-nos que o autor confunde aqui a avaliação
e o controle, na medida em que a avaliação, como cruzamento de pontos de vista,
visa à competência no singular, e o controle (a coleta de fatos probantes) diz
respeito mais às competências no plural. Num primeiro momento, acreditamos, a
avaliação olha o exercício singular de uma pessoa a quem se confiou uma tarefa.
Essa pessoa defende sua interpretação, que é submetida a debate. O referencial vai,
na sequência, apresentar uma pedra de toque e, portanto, uma proteção diante do
arbitrário das interpretações. Constata-se um fato, que é recortado com outros fatos
para daí concluir do real ao possível, à capacidade de fazer: existe sempre uma
margem de debate, sobre o qual se pondera com a avaliação – essa dependendo
igualmente de uma aposta interpretativa. Em suma, utiliza-se a estabilidade de
um referencial (resultante, aliás, de um debate) para dar à avaliação, ao mesmo
tempo, uma pertinência e uma legitimidade. Essa maneira de utilizar o referencial
nos lembra de que a aquisição de que se fala não é outra senão a atividade própria:
não estocamos “as aquisições” em nós mesmos, numa loja interior; estamos total
e simplesmente em atividade.
Com razão, Le Boterf faz notar que um referencial está em discordância com a
realidade, ele não dá a imagem fiel do agir de uma pessoa em um determinado
momento. É que a pessoa em atividade está em evolução, ao passo que o refe-
rencial é uma ferramenta, uma maneira de falar da atividade. Aí não pode haver
uma homotesia2 entre os dois, o referencial e a atividade, uma vez que o primeiro
pertence ao registro da desaderência, e a segunda, ao registro da aderência. O
que conta é não se enganar em relação ao registro, ter o referencial em razão do
que ele é: um traço, sem dúvida, mais parcial que parcial, dessa atividade de
que não se pode falar sem norma. A norma antecedente é sempre, uma referência
(um sinal indicador, não o trilho...) para aqueles que devem agir – e é para isso
que serve o referencial, tanto para o administrador quanto para o empregado.
poderia ser ensinada – e esse não é o caso. Trata-se, sobretudo, de uma relação
ao saber, sobre a qual trazemos um julgamento: julgamos positivamente alguém
declarando-o competente; reconhecemos seu domínio da situação, ou seja, a sua
relação com o saber, entendido como um ponto de vista sobre as normas e seu
investimento na situação.
“Poder analisar e explicar sua maneira de fazer” (2002b) pode ser entendido
como o domínio do porquê, em complemento ao como. Contudo, não pensamos
que a competência possa ser unicamente de natureza cognitiva, refeita unica-
mente pela análise lógica. Todo o sentido da retomada crítica é ir além da análise
da eficácia dos meios, para provar o recuo axiológico, colocado em perspecti-
va, a fim de cruzar os diferentes pontos de vista. No singular, a competência é
uma apreciação geral que sanciona e encoraja o distanciamento e a formação
de um ponto de vista. O debate interpretativo serve para entender a relação
com as normas, que faz com que a pessoa tenha ultrapassado o prescrito, tenha
reinterpretado sua tarefa no serviço. As linhas do referencial vêm apoiar este
esforço de interpretação, propondo a formulação “ser capaz de” que identifica
as competências no plural, como um ensaio de generalização e de abandono do
imediatismo, da particularidade da tarefa.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 171
Não saber agir com competência em tal situação: isso significa que a pessoa não
soube o que fazer? Ou que ela não soube restituir o que ela aprendeu entrando no
concreto? No segundo caso, respondemos que isso não é necessariamente um proble-
ma de análise lógica, porque o problema pode também relevar um posicionamento
axiológico. Na primeira hipótese, diríamos que um insucesso não significa que a
pessoa não era competente. Resta saber o que ela faz da sua situação de insucesso:
ser competente, acreditamos, é gerir, de uma maneira pertinente, um insucesso
eventual, que não depende jamais unicamente de nós. Seria possível mesmo dizer
(cf. Mendel, 1998) que, já que agir é, de alguma forma, surfar sobre a crista ativo/
passivo, nossos sucessos não dependem apenas de nós. Na perspectiva da atividade,
nós não temos nem de nos culparmos de nossos fracassos, nem de nos glorificarmos
de nossas realizações: tudo depende da forma como gerimos a evolução do curso
das coisas, na situação em que nela se investiu. Podemos ter sucesso em coisas
sem sermos competentes (se tudo corre bem, as situações se ajustam, às vezes,
por si mesmas) assim como o inverso. E é também por essa razão que um júri de
avaliação das competências vai buscar verificar, na perspectiva da pessoa, se ela é
ou não competente: ela será julgada em relação à maneira como geriu a situação.
Guy Le Boterf se dedica à mentalidade muito aplicativa que domina, ainda hoje,
amplamente, a governança do trabalho. Ele gasta, então, bastante energia explican-
do o que será descoberto levantando o véu da aplicação: de uma parte, a situação
profissional, em que nem tudo é prescrito pela organização e, de outra parte, o
comportamento de elaboração de uma estratégia, para essa situação particular, por
um indivíduo. Para o autor, a competência é sinônimo de combinação original de
recursos ou ainda “de interpretação da partitura.”
O ser humano está constantemente em aderência com o meio em que vive, nota-
damente no trabalho. E, simultaneamente, ele busca sem descanso se distanciar
desse meio e desse momento, graças à sua faculdade de pensar em desaderência.
Quando não se afrouxa essa tensão entre a aderência e desaderência, no momento
de refletir sobre uma questão relativa ao humano, percebe-se que as análises que
nos pareciam colar à realidade, refleti-la, ao contrário se destacam dela – o que
deixa aparecer o espaço de um debate, ou seja, o reconhecimento de um ponto
de vista naquele que é o objeto dessa análise. Esse destaque sistemático, graças
ao par aderência/desaderência, não conduz necessariamente o analista ergólogo
a contradizer o que se diz sobre a atividade humana (além disso, ele não traz
nenhum fato novo), mas, frequentemente, desloca os pontos de vista justamente
ao jogar luz sobre os debates da atividade, os debates de normas.
É por isso que nós nos felicitamos pela abordagem adotada por Guy Le Boterf
para levar o pensamento gerencial a considerar mais as situações de trabalho.
Porém, esse autor se posiciona sempre em desaderência. Inclusive quando fala
de singular, uma vez que ele pensa sobre as combinatórias, ele não percebe a
aderência. Esse acantonamento no registo do geral o impede de se apoderar do
específico simultaneamente. Ele continua no único esquema clássico da ação. Ora,
quando se ignora a atividade, corre-se o risco de se ficar preso em um dualismo.
Percebe-se o ato como o confronto de dois blocos, um interior e o outro exterior
àquele que age: eu e o mundo. “Eu me preparo, eu otimizo meus meios depois
enfrento o mundo – que me é favorável ou não nas circunstâncias em que ele se
opõe a mim.” Para nós, isso não é a atividade. A atividade está numa aventura
de uma confrontação incerta com o mundo porque, quando tem início a ação, eu
não gerencio tudo. “O risco é o ato, como o caroço é parte integrante da cereja”
escreve G. Mendel (1998:323).
174 Competência e atividade de trabalho
Uma situação de trabalho supõe a articulação de duas antecipações, porque ela exige
tanto a proatividade (o domínio de certo número de variáveis) quanto a reatividade
(não somente de inteligência prática, do raciocínio lógico, mas também um enga-
jamento em valor, um esforço de viver). A primeira antecipação [da ação] é uma
construção racional e discursiva, ao passo que a segunda antecipação [na ação] é
uma compreensão feita de julgamentos de valores, de apreciações e de estimativas.
O diálogo desses dois polos não é nada evidente. O polo 1, certo do prestígio
do conceito, pode se satisfazer em construir os saberes sob a forma de mode-
lizações neutralizantes e continuar a ignorar o retrabalho desses saberes na
atividade. O polo 2, tomado pelas urgências da ação, não tem necessariamente
a disponibilidade para a formalização, bem como a manutenção de uma certa
opacidade dos saberes no trabalho pode ser um verdadeiro desafio. Daí a abor-
dagem ergológica que preconiza um terceiro polo, susceptível em provocar a
interfecundação dos saberes. Vamos falar de um estado de espírito ou ainda de
uma postura específica a sustentar (via uma animação ou uma formação ad hoc):
impossível, de fato, se encontrar sem que haja aí uma expectativa mínima de
cooperação, um tipo de desconforto que incita a ir em direção ao outro polo.
Duas condições de possibilidade: a primeira é de ordem epistemológica porque
é uma questão de produção original de saberes, implicando a preocupação de ir
buscar novas fontes; a segunda é de ordem ética, porque uma escuta real passa
pela autêntica convicção do inédito na palavra do outro, uma vontade de saber,
um certo olhar em seu semblante. No fundo, cada um deve “estar disponível
para redesenhar a sua quota de ignorância sempre recomeçada, sem em nada
ceder da ambição de saber” (Schwartz 2000: 126). Modéstia e não saber de um
lado, rigor e exigência de saber do outro.
178 Competência e atividade de trabalho
Um dispositivo dinâmico de três polos permite às duas formas saber que são
claramente distinguidas para melhor dialogar em seguida. O polo dos saberes
codificados responde à exigência epistêmica, aquela que tende à objetividade
e à universalidade, ao passo que o polo dos saberes investidos na atividade
responde à exigência ergológica, aquela que dá conta das escolhas e dos de-
bates de normas. O terceiro polo permite, em primeiro lugar, compreender a
atividade como uma experiência normativa: cada indivíduo é confrontado com
as normas antecedentes, numa relação triangular, pois essa confrontação inclui
necessariamente outra pessoa. Essa experiência repousa sobre a dinâmica nor-
ma/renormalização: é a própria dinâmica da competência, que para nós é uma
arte de gerar seus debates de normas. O emprego do termo “arte” é aqui nossa
maneira de sublinhar vários aspectos da competência: ela não é um processo,
mas uma aposta; ela assinala a convergência de uma demanda de confiança e
de uma demanda de reconhecimento; ela expressa o ato sempre perfectível de
alguém, uma pessoa bem-identificada, mas sempre através do olhar dos outros;
Parte 3: Modelizar o agir em competência 179
Podemos tomar novamente, por nossa própria conta, a metáfora teatral preferida
de Le Boterf (1998), aquela do papel e da interpretação do papel, sublinhando o
que falta ao raciocínio. Na verdade, a norma e a renormalização podem ser efe-
tivamente ilustradas pelo papel previsto pelo roteirista e pela interpretação que
delas faz o comediante. No entanto, a atividade desse artista vai muito além de sua
apresentação visível, tal noite em tal lugar. Seu saber da experiência, isto é, tudo o
que ele pode nos dizer da realidade considerada de seu ponto de vista, serão suas
próprias arbitragens que ele vai, em seguida, analisar e criticar. O que ele não fez
é também tão interessante de conhecer quanto o que ele realmente fez, uma vez
que entra em suas razões de agir: sua maneira de ver a cadeia de causas e de
efeitos, sua interpretação dos fatos, vistos como impedimentos ou oportunidades,
notadamente em atos formulados por outros simultaneamente, etc.
sua iniciativa que afasta, um pouco mais, a situação vivida pela sua modelização
precedente. Assim, outra objeção é refutada por antecedência: não se vai apoiar
jamais em estatísticas para controlar o distanciamento entre o prescrito e o real.
Quando dizemos que a literatura gerencial e, mais globalmente, aquela que hoje em
dia trata das competências, está, de alguma forma, no meio do caminho, queremos
dizer isto: a impossível estandardização é, daqui em diante, reconhecida, mas o
invivível (no sentido daquilo que a estandardização de uma atividade humana, em
particular no trabalho, teria de insuportável, de invivível), isso ainda não é levado
em conta. Ora, a dialética “impossível/invivível” descrita por Yves Schwartz (2000;
2003; 2009) é justamente aquela que constitui a situação de trabalho.
pela cadeia de causas e efeitos, um real ao qual a pessoa não vai escapar – então,
apesar disso, ela vai se mostrar irredutivelmente ativa, portanto, normativa. Ela
vai tomar uma iniciativa, colocar ali, pois, uma espécie de início, lá onde não há
senão encadeamento determinado de obrigações. Ela vai mudar (por pouco que
seja) o curso das coisas, o encadeamento dos fatos, graças à sua interpretação do
real que resiste a ela. Certamente, ela não pode fazer qualquer coisa: a realidade
está aí, os fatos são “teimosos”... Mas, na situação que lhe diz respeito e da qual
ela reivindica a posição central, a pessoa consegue encontrar subjetivamente uma
coerência, que é, também, uma condição para agir em seu nível. Por sua presença,
como existência, reivindicando uma iniciativa sobre o meio, ela vai modificar,
de uma maneira local, o real, colocando-o em movimento, portanto, em devir,
apesar de sua grande inércia (cf. o peso dos constrangimentos, que nunca cessa).
Segundo nossa análise, é essa percepção da aderência que falta hoje nas reflexões
sobre a competência.
3.3. Os dois eixos de nossa pesquisa atual: partir das situações e apro-
ximá-las em uma dinâmica a três polos
Como dissemos, supomos que o pensamento gerencial hoje não considera suficien-
temente os aspectos cruciais da competência por falta de se apoderar da noção de
aderência e, além disso, da noção de “debate de normas”. Trata-se de compreender
que a realidade não é somente um conjunto de fatos sobre os quais, em seguida,
nós todos vamos poder intervir com toda objetividade. A realidade, portanto, e a
realidade no trabalho igualmente são também interpretações que orientam os fatos e
fazem história. A realidade são fatos e, também, opiniões preconcebidas. O esforço
de desaderência nos permite dominar melhor essa realidade, de nela intervir mais
Parte 3: Modelizar o agir em competência 187
De acordo com nosso ponto de vista, o chefe hoje parece querer raciocinar sobre
a situação de trabalho com “toda objetividade”. Ele observa uma configuração
de situações diversas que se apresentam e espera respostas idôneas. É, portanto,
competente aquele que demonstra um bom raciocínio lógico (e, aliás, este será um
critério de avaliação). Isso é apenas parcialmente exato, uma vez que, se olharmos
de perto, percebemos que uma resposta adequada passa primeiramente por uma
avaliação pertinente. A lógica seria suficiente se as premissas do raciocínio fossem
inamovíveis, sempre intactas. Ora, é difícil imaginar isso, uma vez que a situação
se inscreve em uma história, as coisas evoluem. A impossível estandardização de
respostas está bem ali. O que é preciso apreender para além de uma ação racionali-
zada no trabalho são dados que mudam muito, que devem ser apreciados, pesados,
comparados em relação a custos e vantagens. Mas isso não é tudo: vamos fazer um
apelo ao ser humano que é capaz de avaliação, mas ele deve avaliar a situação para
ele mesmo antes de se engajar. Isso significa que, em nenhum caso, não podemos
conceber o homem como uma simples solução, como uma peça em uma engrena-
gem que vai se mover porque as outras se movem: ele deve, primeiramente, aderir
à coisa empreendida. Aderir significa duas coisas: em primeiro lugar, que ele tenha
um projeto de uso de si mesmo que vá no sentido do uso que os outros querem fazer
dele; em seguida, que ele encare como um problema (um obstáculo ao seu projeto)
188 Competência e atividade de trabalho
aquilo que levanta problema para os outros. Essa é a condição para agir como ser
autônomo no seu trabalho. E é isso que expressa a invivível estandardização: o ser
humano é insubstituível porque é capaz de avaliar, ou seja, de afrontar não só os
problemas lógicos, mas também o vazio lógico, em nome de sua percepção do que
é importante, o que vale para ele e para os outros num dado momento. No entanto,
a condição de sua participação é que ele viva a si mesmo no trabalho não como
uma pequena roda que se articula com uma grande, mas como um ser de iniciativa
“sujeito de suas normas” (Canguilhem, 1947).
Esses são nossos dois eixos de pesquisa hoje. Primeiramente, trabalhar com os
protagonistas das situações de trabalho, compreendendo a situação não apenas
como um campo de obrigações que vão condicionar a atividade, mas também
como o ponto de vista de alguém sobre esse campo de obrigações, a perspectiva
dada por um ser de iniciativa, que busca se colocar no centro de seu próprio meio,
a fim de nele intervir em conformidade com um projeto de uso de si. Em segundo
lugar, trabalhar a partir dessas situações segundo a abordagem de um dispositivo
dinâmico a três polos. Isso quer dizer que não encaramos as normas sem a nor-
matividade: colocam-se, face a face, as normas antecedentes e renormalizações,
a fim de fazer aparecer o que caracteriza a atividade: o debate de normas. É
ele que vai ocupar o terceiro polo. A noção da realidade que o protagonista de
uma situação de trabalho pode ter é, inicialmente, muito parcial. No entanto, o
ponto de vista vai se tornar cada vez mais sólido e pertinente à medida que ele
se confronta, no dispositivo, com o ponto de vista dos outros. O protagonista vai
progredir duplamente, fazendo de seu ponto de vista um verdadeiro “saber da
experiência”: de uma parte, ele vai se mostrar cada vez mais aberto e compreen-
sivo em relação às outras maneiras de ver – e, de outra parte , ele vai reforçar sua
própria singularidade à medida que ele critica suas próprias interpretações, que
existem doravante no debate com uma opinião fundamentada e uma consciência
aguçada dos desafios. Portanto, bem longe de uma simples opinião.
4. A função “organizar”
O problema, entretanto, é que não existem saberes – no senso estrito – que se-
jam espontâneos. Um saber é certamente uma captura única sobre a realidade:
alguém “sabe”, isso quer dizer que ele tem o privilégio de uma visão sobre a
realidade que outros não têm de modo idêntico, porque essa percepção é, ao
mesmo tempo, conceitual e axiológica. No entanto, o saber está lá a não ser em
estado bruto, de alguma maneira, como promessa de um verdadeiro saber (o agir
concreto em uma situação dada que permite a formação de conceitos incoativos,
em formação, à espera de serem trabalhados, de serem circunscritos: Schwartz,
1992: 69). Um saber é, de fato, sempre o fruto de um trabalho crítico, no sentido
de que é preciso separar o essencial do secundário – é preciso modelar, fabricar
o saber bruto que gera a ação.
O GRT, que não se confunde com um grupo de apoio, tem a necessidade de refletir
sobre a dupla “normas/renormalizações”: o primeiro polo (os saberes que tendem
à neutralidade) e o segundo polo (os saberes tomados através dos valores). Isso vai
fazer existir tanto as renormalizações quanto os saberes – o que lhes vai permitir se
colocar em comensurabilidade com as outras formas de saberes na organização e,
se as condições o permitirem, de dialogar com eles.
um deve tentar compreender aquilo que, em seu relato, mereça ser retido como
uma perspectiva singular e essencial, uma maneira original de ver as coisas – e que
nos ensina ainda mais sobre o que se vive nessa situação, especialmente sobre os
desafios que ela contém. Em resumo, as diferentes interpretações de uma situação
se tornam “saber da experiência” na medida em que elas nos informam sobre o
espírito dessa situação – pelo contraste com a anotação da situação (aquilo que
objetivamente seria possível dizer dela, simplesmente descrevendo os fatos, as
constatações sobre as quais todos já estão de acordo).
O GRT, um lugar
3o polo – que permite às duas
ética/crítica formas de saber de se
Saberes novos nutrir reciprocamente.
O objetivo = progredir
juntos sobre uma
questão dada.
1. Saberes
das
organizações
Trocas
recíprocas 2. Saberes da
atividade
196 Competência e atividade de trabalho
“As coisas se fazem graças às nossas arbitragens cotidianas. Mas temos um pro-
blema a comunicar sobre essas arbitragens. Por falta de palavras, generaliza-se
deixando à direção dizer frases do tipo “vamos fazer mais com menos”, porque
nós, não chegamos a colocar em palavras esses momentos cruciais, que são
nossos debates de normas. Nós é que sozinhos tomamos decisões em situação
– mas são os gestores que decidem sozinhos em nome da racionalidade lógica.
de cada uma das pessoas que trabalha, mas isso a todo momento e não somente
quando isso não funciona. Já que é “todo o trabalho” que nos pertence – e não
unicamente o que não deu certo ou o que vai mal.
Nós tentamos responder à questão: “O que fazer isso significa?” Será mostrado,
às vezes, que existe uma excessiva solicitação da normatividade em uma situação
de trabalho. Existe, então, um problema com as normas. Isso não quer dizer que
se pede às normas ocuparem toda a prática. Quer-se encontrar um melhor equi-
líbrio, que permita à normatividade do operador de ser exercida nas melhores
condições. Hoje, em face de um déficit de normas (em qualidade), o chefe de saúde
é obrigado a inventar o que não existe. É isso que conduz ao burn-out. Tivemos,
por exemplo, um problema com a administração penitenciária que não equipa seu
pessoal com os mesmos aparelhos que aqueles dos cuidadores. A telecomunicação
interna torna-se, então, impossível, e é o chefe de saúde que deve correr pelos
corredores para coordenar as equipes quando os detentos estão hospitalizados.
O que falta do ponto de vista de gestão na ocorrência é perceber o desafio da
atividade real: o que significa trabalhar com os aparelhos não coordenados? O
GRT esclarece graças a uma perspectiva original. O ponto de vista do chefe de
saúde sobre esse tema não interessa somente a ele, trata-se de um saber útil a
todos, uma perspectiva sobre uma realidade, principalmente sobre os desafios”
(Marie-Hélène Dassa - documento não publicado).
5. A função “chefiar”
Se nós atrairmos sua atenção sobre o que o preocupa, mostrando-lhe que ele não
cessa de gerir a defasagem entre o plano e a realidade encontrada, nós o teremos
rapidamente convencido. Existe certamente uma distância ente o prescrito e o real.
Provavelmente, nós o faremos provavelmente admitir um outro ponto importante:
essa distância não se dá devido a uma deficiência, mas em razão de uma impossi-
bilidade. Não há, pelo menos de maneira significativa, que procurar a causa dos
seus problemas nas carências de organização – mesmo que seja sempre possível
fazer melhor. Se o chefe imediato está sempre a correr, a vigiar o calor da ação, é
porque ele está colocado em um plano diferente do plano do chefe dirigente. Ele
opera no concreto da vida, e é bem por isso que é reconhecido em meio aos ope-
radores. Por seu lado, o organizador está posicionado em desaderência, à distância
das situações reais de trabalho, e é esse posicionamento que lhe oferece outra
perspectiva, um outro horizonte para a negociação com os parceiros da empresa.
Entretanto, além dessas duas observações (existe uma distância e esta é irredutível),
vai se esperar um tropeço no raciocínio com nosso interlocutor supervisor. Admite-
-se o fato, sim, mas e depois? Essa é bem a questão que persegue o pensamento
gerencial há meio século. O que fazer com essa distância prescrito/real? Vê-se
bem que é preciso ir além do prescrito – isso é tudo. É nesse ponto da reflexão que
Parte 3: Modelizar o agir em competência 199
Mas isso não é tudo, falta um terceiro termo. Se se aceita a definição seguinte – o
trabalhador é aquele que, em sinergia com os outros protagonistas da situação,
gere, à sua maneira, as variabilidades do momento, a fim de responder, da melhor
forma possível, às instruções iniciais, então serão reconhecidos três níveis de
aprofundamento na análise. Existem inicialmente as instruções relativas à tarefa
a cumprir, portanto, formuladas anteriormente; há, em seguida, a ancoragem
dessa tarefa no contexto presente, sempre em mudança e que vai redesenhá-la
parcialmente, provocando a famosa distância entre o prescrito e o real; há, enfim,
uma segunda ancoragem na medida em que a pessoa que vai tratar dessa distância
vai trazer sua marca e vai dar à tarefa realizada um caráter inteiramente singular.
Parte 3: Modelizar o agir em competência 201
O relativo
domínio das
tarefas
O projeto
de uso de si
A mobiliza- O serviço a
ção dos seus ser realizado
recursos para os outros
É a mesma discrição que Matthias mostra quando ele deve compartilhar com
uma colega uma mesa de trabalho prevista para um só operador. Ele espera que
ela saia para deslocar sua pilha de pães para a balança e não ousa, mesmo nessas
condições, deslocar caixas vazias que ela deixou no local, reduzindo enormemente
seu espaço de trabalho, o que o torna ainda mais lento porque ele é obrigado a co-
locar no chão a sua caixa e se abaixar constantemente para efetuar suas operações.
“Ele tem uma inquietude em seu olhar que lhe tiram certos recursos” diz o chefe
a respeito desse jovem. “Ele tem um ar de quem diz: eu vou ser criticado, porque
eu não consigo fazer o que eles me pediram?” Nós lhe perguntamos por que
ele solicita constantemente a padeira a respeito do código dos artigos: “Eu lhe
pergunto para estar certo...Eu sei, mas eu tinha ainda uma dúvida”. O medo de
fazer malfeito? “Sim, é sempre isso”. Matthias está efetivamente dividido entre
duas exigências, que ele traduz assim: “Desde que eu não compreenda, eu devo
perguntar a ela. Caso contrário, isso lhe fará perder tempo também, se eu erro
depois. Ela deve refazer tudo e corrigir tudo.” Ele chega ao cúmulo de interromper
continuamente a padeira em seu trabalho, porque ele quer evitar o erro... que vai
fazer essa profissional perder tempo.
6. A função “avaliar”
Mas o fato, que terá sido reconhecido graças ao referencial, não fala sozinho. Essa
etapa é aquela do controle, mas a avaliação também deve se apoiar sobre um ponto
de vista de um ator, que não se contenta em ser apenas ator. A desneutralização
significa que o avaliado tomou a iniciativa sob coação: ele se coloca, mesmo
modestamente, como autor de suas formas de agir, inclusive de acordo com as
regras da arte. A norma é reinvestida por aquele que trabalha, ele a habita, ele a
orienta, ele lhe dá todo o seu significado. Avaliar será, então, cruzar os pontos de
208 Competência e atividade de trabalho
vista, e nossa ferramenta busca provocar este debate: em que condições a tarefa se
tornou “minha” tarefa? É essa reflexão que vai dar conta da subjetividade como
uma atividade – um uso de si, por si e pelos outros.
Flecha da tomada de
distância crescente
VERTICAL:
DESADERÊNCIA
Ruptura epistemológica
“Saberes científicos”
CONCEITUALIZAÇÃO
CONCEITOS OBJETIVOS
“Saberes experienciais”
CONCEITOS ORGANIZACIONAIS
HORIZONTAL:
ADERÊNCIA “Saberes experienciais”
CONCEITOS ORDINÁRIOS & OPERATÓRIOS Flecha do
tempo
RENORMALIZAÇÃO
Esforço de viver
Zona do não formulado
“Saberes incorporados”
ESQUEMAS
Ati
vid
ade
Esforço de conhecer
Parte 3: Modelizar o agir em competência 209
dupla ancoragem das tarefas (ou “aderência”) enriquece, a seus olhos, todas as
situações, inclusive aquelas que, à primeira vista, parecem repetitivas, aponta-
das antecipadamente. O uso das palavras e até mesmo o debate se justificam,
ao passo que, anteriormente, falar sobre um trabalho que se confundia com as
tarefas parecia enfadonho, até absurdo, na medida em que tudo parecia já dito
na descrição do trabalho. Eles percebem, daqui em diante, que as inumeráveis
bifurcações contidas na atividade de trabalho não têm, jamais, uma solução única e
indiscutível. E, sobretudo, a colocação da experiência em palavras vai transformar
profundamente a relação do aluno com o trabalho e, mais amplamente, com seu
universo de normas: uma melhor conceitualização, um aumento na autonomia,
um distanciamento nas escolhas profissionais.
7. A função “formar”
focada, mais curta, mais formal e menos centrada na pessoa que a educação – sem
estar dela, no entanto, muito distante. Certamente, a formação no trabalho responde
a preocupações técnicas e profissionais, mas, em nenhum caso, ela não se resume
à transmissão de um corpus de saberes e saber-fazer. A formação profissional,
porque ela visa diretamente à ação, está também preocupada com a postura do
aprendiz, com sua relação com a norma, sua relação com o saber. Mais do que o
professor pode fazer na sala de aula, o formador verifica o grau de apropriação
dos conteúdos pela pessoa formada. No entanto, ele se choca com um paradoxo:
a situação é, ao mesmo tempo, para ele um suporte e uma eventual armadilha. O
objetivo a seus olhos é observar se o aprendiz domina as tarefas no serviço que
ele está fazendo, assegurando que esse novato não se agarre ao molde, a ponto
de ser dependente das circunstâncias profissionais. Nós diríamos, no vocabulário
ergológico, que o formador deve apreender a competência como a maneira própria
de alguém gerir a tensão entre aderência e desaderência.
O formador, com efeito, pede ao aprendiz que reconheça, na situação que ele vive,
um caso particular entre as configurações possíveis da profissão. O iniciante deve
se apropriar dos saberes profissionais para mobilizá-los com conhecimento de
causa e também tirar ensinamentos de sua experiência, fazendo dele, então, um
saber útil para ser reinvestido em outros lugares. Ora, se os saberes são imagi-
nados como uma bagagem autônoma que a pessoa iria trazer com ela com mais
212 Competência e atividade de trabalho
Há duas maneiras de interpretar uma situação: pelo seu comportamento e por suas
representações. Quanto mais a pessoa em formação terá podido retornar aos seus
comportamentos e às suas representações em diferentes momentos de arbitragem
no trabalho, mais ela será conscientizada, isto é, terá consciência do que a situação
lhe pediu. E quanto mais ela for conscientizada, mais ela terá ganhado margens de
liberdade e de singularidade, de controle da situação e de poderio no agir em novos
contextos. A reflexão sobre a aderência vai, simultaneamente, consolidar o que pode
fazer “saber” na situação considerada e o que do ponto de vista do ator é relevante.
É claro que esse esquema não representa nada senão um artifício para se exercitar
em extrair de sua experiência, ao mesmo tempo, seu ponto de vista e o que se
estrutura em torno, no esforço da coerência do mundo, que nós realizamos neces-
sariamente em nossos diferentes atos. À medida que se é consciente dos desafios,
por vezes microdesafios, tais quais eles nos aparecem na situação, ganhamos
em latitude intersticial, para tomar iniciativas a tempo, fazendo dos obstáculos
oportunidades: é isso que conduz à transferência tão procurada pelo formador.
FINS
Objetivos
Triângulo exterior
- racionalidade
axiológica
Triângulo
interior - neutro
racionalidade
lógica
Desneutralização
Uso de si
Parte 3: Modelizar o agir em competência 215
Além disso, percebendo os desafios do ponto de vista dos outros, a pessoa se en-
riquece com o debate, com a polêmica com outras formas de ver. Compreende-se
melhor as contradições internas da situação, a qual nos aparece mais tridimensional
(entre si, os outros e o mundo). Nossa própria vida se torna menos unidimensional,
mais rica, mais variada, poderosa e florescente, mais pessoal também. Porque, bem
longe de se fechar na mesmice, não se realiza verdadeiramente uma identidade
pessoal a não ser na ipseidade, no seio do debate: ser “de qualquer parte” em um
debate, colocando no debate esse lugar de onde se fala.
no terraço onde ele precisa preparar ou retirar as mesas, na câmara fria no momento
das entregas. Na gestão cotidiana de seu posto, ele também consegue administrar
as prioridades graças à sua visão geral: ocupado na lavação, ele sabe como mudar
suas prioridades se os pratos quentes forem anunciados, se o chefe não puder mais
se ocupar das entradas frias, ou, se for urgente, fazer tortas flambadas. No final da
jornada, Adile ainda está muito ativo para o armazenamento e a limpeza das insta-
lações, com o risco de chegar tarde à sua casa.
Adile obteve o sinal verde do chefe, que inicialmente recusou e depois se rendeu
com a condição de que o aprendiz assumisse a carga o tempo todo – e ele cumpriu
o acordo por vários meses.
ganização e suas próprias razões para estar lá: em que direção ele deveria ir? Em
relação aos desafios, ele vai reconhecer o que é importante para ele por um lado,
e, por outro lado, o que é uma prioridade para os outros na empresa, para evitar
possíveis mal-entendidos sobre a hierarquia das restrições, mas de modo a não
confundir suas próprias escolhas com as da empresa. Por fim, do lado dos riscos,
o iniciante vai permanecer atento à mobilização razoável dos meios, embora seja
claro que o prescrito está sempre para além porque ele se coloca aí nesse contexto.
Precisamente, o interesse em debater essas microarbitragens com um iniciante
é ajudá-lo a reconhecer a norma para melhor reconhecer suas renormalizações.
A transferência, que é feita sempre graças a um ponto de vista forte, poderá, em
seguida, se efetuar tanto mais facilmente quando se colocam, de um lado as exi-
gências da empresa e, do outro lado, o que faz norma para o indivíduo.
8. A função “recrutar”
Mas isto não é tudo. De fato, o uso de si, que está no centro do esquema, no
coração da atividade, não é decidido mecanicamente... Existe uma polêmica
interna quanto ao uso de si, é o projeto de agir. Em seu foro íntimo, ninguém
deixa o projeto do outro substituir o seu.. Dizendo de outra forma, para que o
Parte 3: Modelizar o agir em competência 219
problema a resolver seja problema para mim, é necessário que ele corresponda
ao meu projeto. Pode-se certamente extorquir de alguém sua concordância, mas
não podemos esperar de um ser humano que ele seja a tal ponto transparente
que um outro senão ele poderia agir nele: “uma reação forçada é uma reação
patológica”, lembra Canguilhem (1947: 128). O uso de si é polêmico porque,
se a solicitação dos seres humanos for fundamental enquanto oportunidade de
existir, há uma posição prévia de contestação que deve permitir ao interessado
encarar a possibilidade de recusar, o que abre para ele a possibilidade de preferir
fazê-lo – e, portanto, de se engajar. O projeto de uso de si por si faz, então, existir
o problema do outro enquanto “problema para mim mesmo”. E é somente nesse
momento que a pessoa no trabalho vai procurar, com seus próprios recursos, o
que poderia satisfazer a demanda e trazer uma solução. Esse terceiro eixo não
representa o trabalhador: porque esse se encontra no centro do esquema. Esse
é o eixo dos “recursos a mobilizar”: e, de fato, o trabalhador “tem” recursos, e
ele “não é” ele mesmo um recurso.
cia nas arbitragens impostas por outrem, hit et nunc; sobre o eixo “trabalho”,
manifestar uma real implicação, ter gosto pelo trabalho e soluções pessoais a
fornecer. Mas não esqueçamos que se mostrar competente é globalmente “estar
em atividade” de tal maneira que ocasione a aprovação e o reconhecimento dos
outros. A competência enquanto tal é uma convenção, uma maneira de falar da
atividade: é por isso que o esquema é ligado ao julgamento que os outros vão
fazer sobre si. Esse será um julgamento de beleza (Dejours, 1993) ou de con-
formidade para o ofício, aquele de utilidade para o emprego e, enfim, aquele
de fiabilidade para o trabalho.
candidato à inserção vai medir pessoalmente tudo “o que isso lhe demanda”,
segundo a expressão dos ergonomistas.
Tende ao ofício:
CONFORME
nas tarefas
Polos atrativos:
trabalho, ofício,
emprego
Atividade
=
tensões
Ele deverá mobilizar muitos recursos pessoais, sem dúvida, bem mais do
que ele imaginava – sobretudo se ele esteve muito tempo distanciado do em-
prego. Vê-se que o debate de normas pode deslocar seu centro de gravidade
nesse esquema: uma instabilidade do novo assalariado poderá, parcialmente,
vir da relação com os outros (que, muito rapidamente, se tornem, talvez,
muito exigentes), ou ainda ter sua origem no sentimento de ser ultrapassado
pela complexidade das tarefas, ou enfim, de ser provocado por uma imagem
degradada de si mesmo, a qual o impede de mobilizar recursos próprios, o
impede de encontrar a energia para lutar e guardar a iniciativa frente a todas
as coações. Entretanto, os três eixos interagem, fazem retorno uns sobre os
outros – e não é, então, uma única explicação que prevalece.
222 Competência e atividade de trabalho
“Certas dificuldades não podem ser resolvidas sem apelar para organismos es-
pecialistas em seus domínios (Ex: adequação do nível em francês). Assim, atrás
de cada distanciamento, uma ação específica pode ser realizada para reduzi-lo.
As soluções podem tomar diversas direções: mediação, regulação, acompanha-
mento ou formação.”
Conclusão
Nosso objetivo era mostrar como nossas atuais pesquisas, no campo aberto pela
análise da atividade e mais particularmente pela abordagem ergológica, podiam
contribuir para o aprofundamento do conteúdo do conceito de competência, muito
solicitado hoje em dia, em todas as funções do manejo e da formação de adultos.
224 Competência e atividade de trabalho
Propusemos ver por onde acontece a mudança nas práticas. Parece-nos que acon-
tece por uma abordagem multilateral das situações de trabalho, mais do que por
uma abordagem unilateral, como é ainda, majoritariamente, o caso. De fato, os
modelos atuais de avaliação, de desenvolvimento e de gestão das competências
encaram as situações somente pelo lado das normas antecedentes. Ora, o julga-
mento de competência não pode ser justificado por um raciocínio lógico (esse
não é o resultado de uma abordagem hipotético-dedutiva), nem ser justificado
de maneira simplesmente pragmática (se a verdade da competência era somente
a eficácia, seria possível falar de performance). Conclui-se, então, que a única
modalidade de julgamento de competência é uma avaliação que passa pelo debate
(debate de interpretação) e se esforça por chegar a um consenso – sobre a base
de fatos objetivos, mas que são eles mesmos sempre, em parte, reconstruídos
226 Competência e atividade de trabalho
Conclusão geral
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Fabrefactum
Linha Editorial
Sobre o livro
Formato: 16x23 cm
Mancha: 12,4x19 cm
Tipologia: Texto – Minion Regular (corpo 11 pt)
Títulos – Minion Regular (corpo 30 pt)
Subtítulo 1 – Minion Regular (corpo 14 pt)
Subtítulo 2 – Minion Regular (corpo 12 pt)
1ª Edição: 2021