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Proveniências:
Introdução
Esse primeiro período, até 2010, pode ser relacionado à total falta de iniciativa
governamental no sentido da reparação dos danos causados pela violência
praticada pelos agentes do Estado para além de uma modestíssima, na maioria dos
casos, indenização pecuniária. A responsabilidade pelas sequelas físicas, pelos
danos psicológicos dos sobreviventes e familiares diretos, e pelos danos
transgeracionais (sobretudo nos filhos e netos) não eram assumidas, até então,
como dever do Estado. Nesse cenário, o Projeto Clínico Grupal TNM RJ,
oferecendo assistência médico-psicológica e de reabilitação social, além de
assistência jurídica, preenchia um enorme hiato deixado por sucessivos governos
mesmo do período de redemocratização, prestando assistência solidária aos
atingidos, o que tornava visível o impacto do silenciamento e da impunidade em
suas subjetividades.
Percebendo então que, receber tais pessoas no âmbito terapêutico, NÃO poderia ir
na direção de contribuir para o confinamento/enclausuramento dessas
problemáticas apenas nos espaços restritos dos consultórios, esses profissionais
do Projeto Clínico Grupal TNM-RJ passaram a experimentaram estratégias
ampliadas de intervenção, que pudessem coletivizar o que havia sido
individualizado/interiorizado. Se o Estado e a sociedade silenciavam E a existência
da violência e do dano continuavam a ser negados, não era suficiente garantir
apenas a atenção psicológica para os afetados. Para romper com o silenciamento
sobre os danos causados era preciso intervir na experiência privada da violência e
envolver coletivos mais amplos, visando à inscrição social do dano e à irradiação e
politização do debate. Tentando evitar o risco de reforçar a interiorização e criar
novas “bolhas”, os integrantes da Equipe Clínico-Grupal TNM RJ construíram
dispositivos clínicos-grupais para favorecer a desprivatização do dano para que
essas pessoas pudessem “habitar” o passado de outras maneiras mais potentes.
Dispositivos, construídos junto e com as pessoas atendidas - muitas delas
trazendo experiências retraumatizantes de atendimentos psi anteriores nos quais
suas histórias de luta e resistência não eram reconhecidas e tendiam a ser
interiorizadas. Assim foi possível trabalhar sobre os efeitos subjetivos de tantas
décadas de silenciamento, como lidar com o impacto de tais intervenções
supostamente terapêuticas - que, além de despolitizar e remeter os sofrimentos à
esfera ítima ou familiar, acabavam reforçando as políticas de negação e
desmentido social.
Apesar de a reparação por crimes de lesa humanidade exigir dos Estados a adoção
de medidas de cunho jurídico, institucional e simbólico – não apenas para garantir o
direito à indenização e reabilitação de todas vítimas do passado, mas também para
restabelecer a Justiça, fazer cessar o silenciamento e a impunidade e prevenir a
repetição das violações no presente (Justiça de Transição) – o modelo reparatório
até então introduzido no Brasil, limitando-se um rito administrativo entre o Estado e
os ex-perseguidos políticos/familiares, adotava uma perspectiva individualizante
que aprofundava o isolamento dos anistiados em relação ao restante da sociedade
e deixava de fora, ou tratava de forma desigual, uma imensa parcela de atingidos
dos setores mais invisibilizados e historicamente massacrados do país.
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Submetida aos parâmetros legais da Lei 10.559/2002, a Comissão de Anistia só pôde incluir
entre os beneficiários do Projeto Clínicas do Testemunho, os ex-perseguidos políticos e seus
familiares e os militares de baixa patente, torturados durante a ditadura. A este respeito, ver
KOLKER, 2018, no prelo.
Já nesse momento, entendendo que “é a destituição subjetiva a que são
submetidos por terem vivido o ‘inferno sem testemunhas’ que provoca o dano
maior4”, a Equipe se propôs a construir dispositivos para tornar possíveis os
testemunhos e a desprivatização dos danos. Considerando a experiência de “devir
testemunha” como um processo e entendendo que era possível testemunhar
utilizando diferentes linguagens, inclusive as não verbais, o Projeto ofereceu a
possibilidade de diferentes tipos de encontros e composições para que as
narrativas pudessem ir se compondo, inclusive por meio de uma espécie de
assembleias, com a participação de todos os envolvidos, que ganhou o nome de
Encontrões. Como agora o Estado e a sociedade se dispunham a escutar as
pessoas atingidas pela violência de Estado na época da ditadura, além dos grupos
terapêuticos, atendimentos de família, de casal e demais dispositivos clínicos, a
proposta era oferecer a participação em grupos para escuta e elaboração da
experiência do testemunho. A ideia era que cada inscrito ingressasse pelo Grupo
de Recepção e Acolhimento, podendo participar ativamente da constução da
modalidade terapêutica a participar nas etapas seguintes. No entanto, o dispositivo
de escuta de testemunhos foi se afirmando cada vez mais, de maneira que foi
possível experimentar diferentes tipos de encontros, ora em grupos intergeracionais
e sem recorte de gênero (misturando pessoas diretamente afetadas com
familiares), ora em grupos com recortes geracionais (como o grupo de filhos e
netos), ou com recorte de gênero (grupos de mulheres).
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KOLKER, 2017
coeficiente de transversalidade; criar condições de visibilidade e dizibilidade às
marcas dolorosas; viabilizar o descongelamento das marcas da tortura e tornar
possível a criação de novos modos de subjetivação.
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FELIPPE, 2015:121-124
do Fundo Newton/British Council, e em convênio com a Secretaria Municipal de
Saude RJ – para a promoção de capacitação de profissionais de saúde e agentes
de saúde, na região de Acari e adjacências (2017 – 2018), com a publicação de um
livro (físico) sobre o trabalho desenvolvido (Clínica Política – Lá em Acari,
organizado por Olívia Françozo).