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ARTIGO ARTICLE 577

Práticas de atendimento a DST nas farmácias


do Distrito Federal, Brasil: um estudo de
intervenção

Assistance for customers with sexually transmitted


diseases at pharmacies in the Federal District,
Brazil: an intervention study

Janeth de Oliveira Silva Naves 1


Lia Lusitana Cardozo de Castro 1
Gislane Ferreira de Melo 2
Adriana Giavoni 2
Edgar Merchán-Hamann 1

Abstract Introdução

1 Faculdade de Ciências
A quantitative survey was conducted to analyze A atenção à saúde envolve práticas abrangen-
da Saúde, Universidade de
Brasília, Brasília, Brasil.
the type of assistance provided by pharmacy em- tes, visto que o conceito de saúde vai além da
2 Departamento de ployees for cases of STDs. Simulated customer ausência de doença. Nessas práticas insere-se
Bioestatística, Universidade visits and interviews were conducted in 70 phar- a assistência farmacêutica, incluindo os medi-
Católica de Brasília,
Taguatinga, Brasil.
macies in Brasilia and Taguatinga, Brazil, ran- camentos e seus serviços que são elementos in-
domly assigned to two groups, one of which par- dispensáveis aos programas de saúde. Mesmo
Correspondência ticipated in educational activities on STDs. There aceitando-se a função limitada dos medicamen-
J. O. S. Naves
Faculdade de Ciências were 411 simulated client visits to the pharma- tos, reconhece-se que a sua disponibilidade e
da Saúde, Universidade cies, with the following results: recommendation uso racional são elementos críticos para a saú-
de Brasília.
to seek medical care in 30% of cases, while in 70% de. Além da importância para a efetividade das
Campus Darcy Ribeiro,
Asa Norte, Brasília, DF of cases the pharmacy employees themselves rec- ações de saúde, nos países em desenvolvimento,
70910-900, Brasil. ommended some drug treatment (although only os medicamentos representam o segundo maior
janethnaves@unb.br
16.4% admitted to such practice). None of these gasto do governo com saúde, depois das despe-
suggested treatments was appropriate, based on sas com pessoal 1.
the syndromic approach. Recommendations for Desde a década de 70, a Organização Mundial
prevention and treatment of partners were rare. da Saúde (OMS) tem recomendado aos países
Pharmacists recommended consulting a physi- membros a formulação de políticas de saúde que
cian more frequently than attendants, and the racionalizem e estendam os serviços de atenção à
latter recommended medicines more frequently saúde e de políticas de medicamentos que orien-
than the former. Pharmacy workers had only su- tem para: a garantia de acesso a medicamentos
perficial knowledge of STDs. After an education- essenciais, seguros e eficazes; a implementação
al intervention, none of the indicators showed de medidas de regulamentação da produção,
a significant improvement in either group. The comercialização e utilização dos medicamentos;
observations point to the need for regulation and e a orientação das práticas profissionais visan-
intervention to publicize educational practices do ao uso racional de medicamentos. Entre as
for the control of diseases like STDs and for the estratégias para a promoção do uso racional de
rational use of medicines in pharmacies. medicamentos a OMS aponta a educação formal
e permanente em farmacoterapia da equipe de
Pharmacy; Sexually Transmitted Diseases; Inter- saúde; o controle da promoção e publicidade de
vention Studies medicamentos; o controle e orientação da pres-

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crição, principalmente, dos medicamentos que O afastamento do farmacêutico da prática de


apresentam maior risco; e o controle do registro, orientação e seguimento dos usuários de medi-
comercialização e dispensação de medicamen- camentos nas farmácias, aliado ao excessivo in-
tos 2. Muitos países, seguindo essa recomenda- vestimento em publicidade pela indústria farma-
ção, têm elaborado políticas de medicamentos e cêutica direcionada aos prescritores e consumi-
alcançado progressos com relação à ampliação dores, bem como o incentivo por meio de brin-
do acesso a medicamentos essenciais e regula- des e prêmios aos responsáveis pelas vendas no
mentação do setor farmacêutico. varejo e a falta de controle legal sobre as vendas
No entanto, áreas como a qualidade da pres- criaram um terreno fértil para o uso desneces-
crição, vendas no varejo e uso irracional de medi- sário de medicamentos no Brasil. A publicidade
camentos pelos consumidores nem sempre são influencia cada vez mais os hábitos de prescrição
enfatizados. Existem sempre razões racionais e consumo e criam demandas definindo as con-
para o uso irracional de medicamentos e estas dições e doenças que precisam de tratamento,
razões precisam ser conhecidas para melhor promovendo a idéia de que os medicamentos
definição das estratégias de controle 1. Entre as representam a melhor opção em oposição a te-
causas do uso irracional estão a falta de conheci- rapias não medicamentosas, e enfatizando a sua
mento e de informação independente dos profis- eficácia e minimizando os seus riscos 5.
sionais de saúde; regulamentação permissiva da Segundo dados do Conselho Federal de Far-
promoção e publicidade de medicamentos; dis- mácia (http://www.cff.org.br), existem no Brasil
ponibilidade sem restrição dos medicamentos cerca de 52.599 farmácias privadas, sendo 16,4%
no mercado e vendas de medicamentos baseadas de propriedade de farmacêuticos. O setor privado
no lucro 3. Além dos interesses econômicos, po- é o principal responsável pelo fornecimento de
líticos e fatores estruturais, os padrões de uso de medicamentos à população brasileira (76%), sem
medicamentos numa sociedade são influencia- reembolso 6. A comercialização de medicamen-
dos, também, pelos aspectos interpessoais pre- tos no varejo possui algumas características que
sentes nas relações entre profissionais e usuários a diferenciam da maioria dos países desenvolvi-
do sistema de saúde e pelas percepções, valores dos, como: a possibilidade de abertura de farmá-
culturais e crenças que determinam as atitudes cias por leigos, independente de sua formação e
individuais com relação à busca de solução para da quantidade de estabelecimentos que já pos-
os problemas de saúde 4. suam; ausência de critérios demográficos e de
As conseqüências sanitárias e econômicas do distância para a abertura de estabelecimentos, o
uso irracional de medicamentos são relevantes, que gera concorrência acirrada nos grandes cen-
e entre elas cita-se a perpetuação e complica- tros; e ausência de exigência de qualificação para
ções das doenças, o sofrimento desnecessário e exercer a função de atendente em farmácias.
mortes, a manutenção da cadeia de transmissão Nesse cenário, a automedicação e a indicação
das doenças, o aumento da incidência de rea- de medicamentos que envolvem risco à saúde,
ções adversas a medicamentos e admissões hos- cuja venda pressupõe a apresentação de uma re-
pitalares. Esses fatores conduzem a um aumento ceita, tornou-se uma prática comum, mesmo em
dos gastos com saúde, individuais e coletivos, e a caso de doenças que necessitam de exames clíni-
uma diminuição da credibilidade dos serviços e cos e laboratoriais para o seu diagnóstico, como
dos profissionais de saúde. é o caso das doenças sexualmente transmissíveis
A valorização da farmacoterapia como prin- (DST) 7,8,9.
cipal alternativa para a recuperação da saúde Diante do exposto, o presente trabalho teve
também é considerada fator estimulador do uso como objetivo investigar e discutir as práticas de
irracional de medicamentos. Esse fenômeno é comercialização de medicamentos dos trabalha-
decorrente da modificação dos hábitos de con- dores de farmácias da rede privada do Distrito Fe-
sumo e das práticas dos profissionais, das ins- deral e avaliar a efetividade de uma intervenção
tituições de saúde, bem como, das farmácias, educativa enfocando as DST sobre este grupo.
resultante da expansão do mercado farmacêu-
tico que promoveu uma estratégia de criação de
novas necessidades de consumo 5. A promoção Métodos
de medicamentos para consumidores e vende-
dores no varejo tem-se tornado um importante Desenvolveu-se estudo de intervenção, tendo
componente das estratégias de mercado dos fa- como unidade de pesquisa farmácias privadas
bricantes, e é estimado que um terço dos rendi- de duas cidades do Distrito Federal: Brasília e Ta-
mentos da indústria farmacêutica é aplicado em guatinga. Em 2004 existiam nessas cidades 283
promoção e publicidade, representando cerca do farmácias privadas, conforme registros do Con-
dobro do que é empregado em pesquisa 1. selho Regional de Farmácia. Foram selecionadas

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PRÁTICAS DE ATENDIMENTO A DST EM FARMÁCIAS 579

de forma aleatória sistemática setenta farmácias e preventivas. Participaram da elaboração pro-


para participação no estudo e alocadas aleatoria- fessores da Universidade de Brasília da área de
mente em grupo intervenção e grupo controle. A farmácia comunitária, profissionais da saúde da
amostra foi definida por cálculo estatístico 10,11, Gerência de Doenças Sexualmente Transmissí-
considerando-se os valores para alfa de 0,05 e veis da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito
com poder igual a 80%, chegou-se ao número de Federal, farmacêuticos dos Conselhos Federal e
35 farmácias por grupo para se detectar diferença Regional de Farmácia do Distrito Federal e far-
de proporção dos indicadores antes e depois de macêuticos de drogarias. O material foi submeti-
uma intervenção educativa de, pelo menos, 20%. do à apreciação de trabalhadores da rede comer-
Farmácias pertencentes à mesma rede foram alo- cial que apresentaram suas sugestões e críticas.
cadas no mesmo grupo para evitar contamina- Houve a preocupação com os aspectos didáticos
ção, e farmácias magistrais e da rede pública não do material de forma a ser atrativo, de fácil leitura
participaram deste estudo. e com conteúdo completo e atualizado.
A proposta de intervenção educativa deste Para avaliação da efetividade da intervenção
trabalho partiu da premissa de que pessoas com educativa utilizou-se visitas de clientes simula-
queixas de DST, muitas vezes, buscam orienta- dos (Simulated Client Method) conforme Hardon
ção e tratamento nas farmácias e não em ser- et al. 1 e Madden et al. 14 para avaliação das prá-
viços de saúde, inferida de estimativas da OMS ticas dos trabalhadores das farmácias diante de
e de estudos realizados por pesquisadores bra- um pesquisador simulando sintomas de DST. Os
sileiros 7,8,12. clientes simulados foram vinte estudantes de far-
As farmácias do grupo de intervenção foram mácia de Brasília, do sexo masculino, com idades
convidadas a participar de uma atividade edu- entre 18 e 26 anos, após treinamento e aplicação
cativa com duração de três dias. Essa atividade de um pré-teste. O sintoma padronizado, simula-
constava de palestras interativas e participa- do pelos pesquisadores nas visitas as farmácias,
tivas, seguidas de debates enfocando aspectos era de secreção uretral com sensação de ardência
epidemiológicos, clínicos e preventivos das DST, ao urinar, para verificar as possíveis orientações.
antibioticoterapia, conseqüência de tratamen- As recomendações recebidas eram registradas,
tos inadequados, bem como os aspectos legais imediatamente, em formulário próprio. Cada
e éticos relacionados às atividades de dispen- farmácia foi visitada por três pesquisadores di-
sação e venda de medicamentos nas farmácias. ferentes, três meses antes da atividade educativa
Foram também realizadas oficinas interativas e e por três pesquisadores três meses depois. Esses
lúdicas sobre sexo seguro, comportamentos de pesquisadores não sabiam se a farmácia perten-
risco, como orientar a prevenção de DST e pro- cia ao grupo intervenção ou ao grupo controle.
blematização da dispensação de medicamentos As visitas dos clientes simulados buscavam
e do papel dos profissionais das farmácias. Os conhecer os seguintes indicadores-chave: por-
objetivos principais eram melhorar os conheci- centagem dos atendimentos que resultavam em
mentos dos trabalhadores das farmácias sobre encaminhamento do possível portador de DST
as DST e a qualidade das orientações preventivas para tratamento em um serviço de saúde; por-
oferecidas a possíveis portadores destas doenças centagem dos atendimentos com indicação de
e despertar a atenção para a necessidade de en- medicamentos; indicação de medicamentos por
caminhamento dos portadores para atendimen- categoria profissional; porcentagem dos atendi-
to em unidades de saúde. mentos com orientação referente ao tratamento
As DST foram escolhidas como tema da in- dos(as) parceiros(as) sexuais e orientação quan-
vestigação e da intervenção educativa por se to ao uso de preservativos. Foram também ava-
destacarem como doenças infectocontagiosas liadas as perguntas e recomendações feitas ao
de grande incidência e transmissibilidade na po- cliente simulado, os medicamentos mais indi-
pulação brasileira e no Distrito Federal 13. Foram cados e se o tratamento indicado era adequado
também escolhidas por possibilitarem uma fácil conforme o fluxograma de tratamento pela abor-
simulação padronizada de sintomas para a cole- dagem sindrômica. Segundo essa recomendação,
ta de dados pelo método do cliente simulado e em situações em que não se realiza diagnóstico
avaliação de mudança nas práticas dos atenden- diferencial, deve-se tratar, simultaneamente, as
tes das farmácias. infecções causadas por Neisseria e Chlamydia 13.
Foi elaborado material educativo sobre o te- Para se conhecer as variáveis relativas às ca-
ma para ser distribuído aos participantes da in- racterísticas dos trabalhadores das farmácias,
tervenção educativa, composto de um cartilha avaliar e comparar o seu grau de conhecimento
para farmacêuticos e outra para proprietários a respeito de DST, bem como, a composição de
e balconistas, sistematizando o conhecimento seus salários e o tipo de treinamentos mais fre-
sobre DST e enfocando orientações educativas qüentes que recebiam, foram feitas entrevistas

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semi-estruturadas, quatro meses antes e quatro ram o desempenho dos instrutores, a organiza-
meses depois da intervenção. Eram convidados a ção do curso e o material didático como ótimos;
participar livremente da entrevista todos os tra- 15 (79%) avaliaram o conteúdo apresentado co-
balhadores que efetuavam vendas e atendimen- mo ótimo; e 18 (94,7%) responderam que, após o
to aos usuários nas farmácias visitadas. treinamento, sentem-se capazes de orientar cor-
Os dados obtidos no trabalho de campo fo- retamente o uso de preservativos. Foi verificada
ram transferidos para o programa SPSS versão uma baixa taxa de participação na avaliação por
10.0 (SPSS Inc., Chicago, Estados Unidos). Foram falta de divulgação da necessidade de devolução
comparados os resultados entre os dois grupos de dos questionários inseridos nas pastas entregues
farmácias e as possíveis modificações que ocor- no primeiro dia do evento.
reram após a intervenção educativa, avaliando- Para se conhecer as práticas das farmácias e
se a freqüência das recomendações e o grau de avaliar o impacto da intervenção educativa, fo-
conhecimento em relação às DST por meio do ram realizadas 411 visitas de clientes simulados
teste estatístico do χ2. Para a comparação entre as 70 farmácias, 205 no pré-teste e 206 no pós-
as recomendações por diferentes categorias pro- teste, assim distribuídas: 54 e 52 visitas ao grupo
fissionais usou-se a razão de prevalência (RP). intervenção e 151 e 154 ao grupo controle. Nos
Utilizou-se como nível de significância p < 0,05. dois grupos, considerando-se as duas etapas de
A pesquisa se desenvolveu em parceria com coleta de dados, 221 (53,8%) atendimentos foram
a Gerência de Doenças Sexualmente Transmissí- feitos por balconistas; 73 (17,8%) foram feitos
veis da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito por farmacêuticos; os 117 (28,5%) atendimen-
Federal e recebeu recursos da Organização das tos restantes foram feitos por trabalhadores não
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a identificados.
Cultura (UNESCO) por meio do Programa Na- Os resultados obtidos nas visitas de clientes si-
cional de DST e AIDS (PNDST/AIDS) do Ministé- mulados encontram-se sumarizados na Tabela 1.
rio da Saúde. Teve, também, o apoio dos Conse- Observa-se que a proporção de atendimentos
lhos Federal e Regional de Farmácia do Distrito que resultaram em orientação para procurar um
Federal. serviço de saúde, para o tratamento de parceiros
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética sexuais e para o uso de preservativos, foi baixa
em Pesquisa da Secretaria de Estado da Saúde nos dois grupos de farmácias e não apresentou
do Distrito Federal pelo parecer nº. 074/2003, e diferença significativa depois da intervenção
todos os sujeitos envolvidos na pesquisa partici- educativa. A recomendação predominante foi a
param livremente e assinaram um Termo de Con- indicação de medicamentos, também não apre-
sentimento Livre e Esclarecido. sentando melhora ou mudança significativa nos
dois grupos de farmácias.
Para comparar as recomendações por dife-
Resultados rentes categorias profissionais utilizou-se o cál-
culo da RP. Observou-se que antes da interven-
A intervenção, que constou de um conjunto de ção, nas farmácias do grupo intervenção, os far-
atividades educativas, palestras, debates e ofici- macêuticos recomendavam a busca de serviços
nas, contou com a participação de 78 trabalha- de saúde 4,2 vezes mais do que os balconistas,
dores de farmácias. Todos os funcionários que com RPpré-teste = 4,2 (2,54-7,03; p = 0,00001).
efetuavam vendas de medicamentos nas 35 far- Após a intervenção, eles recomendaram 2 vezes
mácias do grupo intervenção foram convidados, mais, ainda com diferença estatística significan-
22 farmácias se inscreveram e 18 participaram do te. Encontrou-se RPpós-teste = 2 (1,05-3,32; p =
ciclo completo, com uma média de 2,8 funcioná- 0,043). A mesma tendência foi observada no gru-
rios por estabelecimento, incluindo farmacêuti- po controle com RPpré-teste = 3,7 (2,03-6,85; p =
cos, gerentes e balconistas. Ao final, as 18 farmá- 0,000031) e RPpós-teste = 1,8 (0,80-3,94; p = 0,2).
cias que participaram da intervenção educativa No pré-teste os balconistas recomendavam
compuseram o grupo intervenção. As 17 farmá- o uso de medicamentos com freqüência signi-
cias do grupo intervenção que não participaram ficativamente maior do que farmacêuticos, po-
do curso foram incorporadas ao grupo controle, rém a intervenção educativa realizada não se
totalizando 52 farmácias neste grupo. mostrou capaz de melhorar significativamente
Ao final da atividade foi feita uma avaliação do este indicador em ambas as categorias. No grupo
evento por meio de um questionário, padroniza- intervenção foram encontradas as seguintes RP:
do pela Secretaria de Estado da Saúde do Distrito RPpré-teste = 2,1 (1,46-2,95; p = 00001) e RPpós-
Federal. Dos 78 participantes, 19 devolveram o teste = 1,3 (0,93-1,70; p = 0,07). No grupo con-
questionário de avaliação, sendo que, 17 (89,5%) trole encontrou-se RPpré-teste = 2 (1,30-2,95;
avaliaram o local como ótimo; 16 (84,2%) avalia- p = 0,00012) e RP = 1,31 (0,89-1,92; p = 0,08).

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PRÁTICAS DE ATENDIMENTO A DST EM FARMÁCIAS 581

Tabela 1

Recomendações feitas aos clientes simulados nas farmácias do grupo intervenção e do grupo controle. Distrito Federal, Brasil, 2004 e 2005.

Recomendação Farmácias do grupo intervenção Farmácias do grupo controle


Pré-teste (%) Pós-teste (%) p Pré-teste (%) Pós-teste (%) p

Procurar serviço de saúde 31,5 36,5 0,49 33,1 30,1 0,79


Indicação de medicamentos 74,1 73,1 0,38 70,2 75,3 0,35
Tratamento de parceiros 7,4 3,8 0,17 5,3 3,9 0,56
Uso de preservativos 5,5 15,4 0,57 8,6 10,4 0,27

Nota: intervalo de confiança de 95% e p < 0,05.

Nos dois grupos de farmácias, considerando- tários; 47,6% dos farmacêuticos e 78,8% dos bal-
se o pré e o pós-teste, foram feitas 411 visitas de conistas e proprietários eram do sexo masculino.
clientes simulados, das quais 300 (72,9%) resul- A média de idade dos entrevistados foi de 33,4
taram em indicação de 455 medicamentos, com anos (±10,4) no pré-teste e de 32,1 anos (±9,5) no
uma média de 1,5 medicamento por indicação. pós-teste; o tempo médio de trabalho naquela
Foram indicados 66 tratamentos corretos para função era de 9,6 anos (±8,2) e de 9,2 (±8,1), res-
gonorréia e 22 tratamentos corretos para infec- pectivamente.
ção por Chlamydia, porém nenhum tratamento Quanto ao tipo de remuneração, todos os far-
indicado tratava as duas infecções simultanea- macêuticos afirmaram receber salário fixo; entre
mente como é recomendado pelo fluxograma da os outros trabalhadores, 20,3% afirmaram rece-
abordagem sindrômica. ber salário fixo, 48% recebiam comissões sobre as
Considerando-se apenas as farmácias do vendas e 31,7% não quiseram responder. A esco-
grupo intervenção, foram indicados 1,05 medi- laridade dos entrevistados, exceto farmacêuticos,
camento por visita no pré-teste e 1,09 medica- apresentou os resultados descritos na Figura 1.
mento por visita no pós-teste, não se observan- No universo de 238 entrevistados, buscou-se
do, portanto, diminuição da indicação após a verificar a freqüência de realização de treina-
intervenção educativa. Os medicamentos mais mentos. Os cursos mais citados pelos entrevista-
indicados foram: ampicilina + probenecida (n = dos foram o de aplicação de injetáveis (n = 30) e
96), azitromicina (n = 59), norfloxacino (n = 87), sobre técnicas de vendas (n = 31). Os laboratórios
cloridrato de fenazopiridina (n = 25), ciprofloxa- farmacêuticos encontram-se como principais
cino (n = 21) e fluconazol (n = 13), diuréticos (n = ministrantes desses cursos (n = 39), seguidos do
2), entre outros. Serviço Social do Comércio (SESC), do Serviço
Nos dois grupos de farmácias, as recomen- Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empre-
dações mais freqüentes foram para não tomar sas (SEBRAE) e da própria empresa. Alguns par-
bebida alcoólica durante o tratamento (n = 19); ticipantes (n = 65) relataram já ter participado de
não comer carne de porco (n = 10); não comer cursos sobre DST ministrados, principalmente,
pimenta (n = 6) e ir ao médico se os sintomas pela rede regular de ensino nos conteúdos de
não desaparecessem (n = 6). As perguntas mais cursos de segundo grau e por laboratórios far-
freqüentes foram sobre quando ocorreu a última macêuticos (n = 8).
relação sexual; sobre a utilização de preservati- No que se refere à pergunta sobre se os an-
vos; quando apareceram os sintomas e sobre o tibióticos fossem vendidos apenas com receita
aspecto da secreção. médica, 15 (12,2%) disseram que afetaria mui-
Após as visitas dos clientes simulados, as far- to seu salário. Quando perguntados sobre quais
mácias foram novamente visitadas por pesqui- medicamentos rendem maiores comissões sobre
sadores, que entrevistaram 123 trabalhadores no as vendas, as respostas foram: antibióticos (n =
pré-teste e 115 no pós-teste. Apenas 9 farmácias 37), analgésicos (n = 29), medicamentos utiliza-
(12,8%) eram de propriedade de farmacêuticos e dos para tratar os sintomas de gripe (n = 22), an-
no momento da entrevista apenas 44,8% das far- tiinflamatórios (n = 21), anti-hipertensivos (n =
mácias contavam com a presença do farmacêuti- 17), entre outros.
co-responsável. Os farmacêuticos representavam No pré-teste, 85 (70,2%) entrevistados afir-
20,3% dos entrevistados no pré-teste e 15,7% no maram existir em sua farmácia um local priva-
pós-teste, o restante eram balconistas e proprie- tivo para conversar de forma reservada com os

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Figura 1

Escolaridade dos entrevistados, exceto farmacêuticos, nos dois grupos de farmácias, no pré e pós-teste. Distrito Federal, Brasil, 2004 e 2005.

70
Pré-teste

Pós-teste
60

50

40

30

20

10
%

0
1o grau 2o grau incompleto 2o grau completo Superior Escolaridade
completo/incompleto

pacientes; no entanto, todas as entrevistas foram as conseqüências de um tratamento inadequa-


realizadas no balcão, mesmo com a solicitação do para DST, também se mostrou pouco diver-
dos pesquisadores de fazê-las em ambiente pri- sificado, apontando principalmente a volta dos
vativo. sintomas.
No pré e pós-teste, o roteiro de entrevista Nos dois grupos de farmácias, nas duas etapas
continha perguntas abertas para avaliar o grau de da coleta de dados, nas 238 entrevistas, 157 res-
conhecimento dos trabalhadores das farmácias pondentes (65,9%) afirmaram que recomendam
sobre DST e apresentavam múltiplas possibilida- a um possível portador de DST a procura de um
des de respostas; por este motivo foram agrupa- serviço de saúde, não tendo sido verificada mo-
das de acordo com a idéia expressa e classifica- dificação significativa no pós-teste em nenhum
das como satisfatórias ou insatisfatórias e foram dos grupos; 39 (16,4%) afirmaram recomendar
comparadas conforme expresso na Tabela 2. um tratamento farmacológico e 19 (7,9%) disse-
Na análise das respostas, verificou-se que ram que recomendam medicamentos e se não
muitas delas, embora corretas, revelaram no melhorar, procurar um médico.
conjunto um conhecimento superficial sobre
o tema. Os mais baixos níveis de conhecimen-
to apareceram nas respostas sobre alternativas Discussão
para prevenção de DST, com menos da metade
das respostas satisfatórias nos dois grupos de Os resultados obtidos nesta pesquisa tornaram
farmácias, não tendo sido verificada diferença possível uma avaliação da qualidade da assis-
significativa após a intervenção educativa. Du- tência prestada em uma amostra de farmácias
rante a entrevista, quando perguntados sobre da rede privada de duas importantes cidades do
como as DST podem ser prevenidas, a maioria Distrito Federal, e a utilização de clientes simu-
dos entrevistados citou apenas o uso de preser- lados pôde evidenciar as práticas dos trabalha-
vativos como possível medida preventiva. Isso dores das farmácias do ponto de vista do usuário
pode indicar um desconhecimento sobre outras quanto ao atendimento de uma queixa de DST.
formas de transmissão das DST (transfusional e Os indicadores utilizados para avaliar a quali-
vertical, de mãe para filho) e sobre a necessida- dade do atendimento a um possível portador de
de de outras recomendações preventivas, como DST mostraram: resultados insatisfatórios, alta
tratamento de parceiros e evitar novos contatos porcentagem de indicação de medicamentos,
antes da cura completa. O conhecimento sobre baixa freqüência de encaminhamento a um ser-

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PRÁTICAS DE ATENDIMENTO A DST EM FARMÁCIAS 583

Tabela 2

Respostas satisfatórias dos trabalhadores das farmácias do grupo intervenção e do grupo controle. Distrito Federal, Brasil, 2004 e 2005.

Perguntas Farmácias do grupo intervenção Farmácias do grupo controle


Pré-teste (%) Pós-teste (%) p Pré-teste (%) Pós-teste (%) p

O que entendem ser uma DST 70,7 72,4 0,44 63,4 54,6 0,84
Exemplos de DST 87,8 89,6 0,41 81,7 84,8 0,30
Sintomas/Queixas associados
a DST 80,5 82,8 0,41 59,8 62,8 0,36
Alternativas para prevenção
de DST 46,3 37,9 0,28 29,3 40,7 0,15
Conseqüências de um tratamento
incorreto/incompleto 26,8 34,5 0,32 29,3 40,7 0,15
Que recomendações fazem a um
possível portador de DST 65,8 72,4 0,29 63,4 66,3 0,37

Nota: intervalo de confiança de 95% e p < 0,05.

viço de saúde e de orientações preventivas, bem tudes dos trabalhadores são muito semelhantes
como melhora insignificante nos conhecimentos em outras regiões brasileiras 7,8,9,15,16.
dos trabalhadores. No presente estudo, a avalia- Uma outra questão que teria implicação ana-
ção de uma experiência de intervenção educati- lítica importante é o fato de o grupo de 17 farmá-
va específica para atendimento a DST, apesar dos cias inicialmente selecionadas para o grupo in-
cuidados para que o conteúdo fosse adequado e tervenção terem sido alocadas no grupo controle
abrangente, não demonstrou haver modificação por não terem participado da atividade educati-
das práticas dos trabalhadores. va. Essa auto-exclusão poderia ter introduzido no
Diferentemente do que os trabalhadores afir- grupo controle um subgrupo com características
maram fazer diante de um possível portador de diferentes das farmácias selecionadas aleatoria-
DST, a constatação foi de que a prática mais co- mente, com conseqüente possibilidade de vieses
mum era a indicação de antibióticos. Nas entre- sistemáticos. No entanto, as semelhanças nos
vistas, apenas 16,4% dos entrevistados confirma- resultados dos indicadores entre os grupos in-
ram essa conduta, porém, na prática a indicação tervenção e controle e entre a situação pré e pós-
de medicamentos foi recomendada em mais de teste sugerem que as mudanças foram modestas,
70% das visitas dos clientes simulados. contribuindo apenas para a perda de poder para
Outra constatação negativa foi a inadequa- detecção de mudanças no grupo intervenção.
ção dos tratamentos sugeridos e o despreparo A indicação de medicamentos se mostrou
dos trabalhadores para o acolhimento e orien- mais freqüente entre balconistas do que entre
tações preventivas para possíveis portadores de farmacêuticos; a recomendação de procura a
DST, como o uso de preservativos e o tratamento um serviço de saúde também foi mais freqüente
dos parceiros. Esses resultados mostram-se de nos atendimentos feitos por farmacêuticos. Fato
acordo com as estimativas da OMS e com estu- semelhante foi observado por outros pesquisa-
dos semelhantes conduzidos em outras regiões dores brasileiros com relação a outras enfermi-
do Brasil, como Campo Grande (Estado do Mato dades, em que a presença do farmacêutico é um
Grosso do Sul) com 67,6% dos atendimentos re- fator determinante para o adequado encaminha-
sultando em indicação de medicamentos 7, e Ri- mento de pacientes que procuram orientação te-
beirão Preto (Estado de São Paulo) com 70,8% 8. rapêutica 7,15.
Os cuidados com a amostragem e a seleção Pesquisas utilizando clientes para avaliar a
aleatória das farmácias buscaram proporcionar efetividade de intervenções educativas em que
validade aos resultados, porém, não permitem os trabalhadores das farmácias foram orientados
afirmar que essa representatividade vá além das sobre alternativas que envolviam a orientação
duas cidades. No entanto, estudos que investigam para venda de medicamentos de livre comer-
o cenário da comercialização de medicamentos cialização, como o soro para reidratação oral,
no Brasil sugerem que as motivações para busca mostraram maior impacto e melhor assimila-
de tratamento nas farmácias, as práticas e as ati- ção pelos participantes do que intervenções que

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apontam para a não-indicação de medicamen- respostas; muitas dessas respostas, embora cor-
tos. Mostraram, também, que os conhecimentos retas, revelaram no conjunto um conhecimento
mudam mais facilmente que as práticas. Estudos superficial sobre o assunto. Os mais baixos ní-
dessa natureza são relatados por pesquisadores veis de conhecimento apareceram nas respostas
nacionais e internacionais, sugerem que é mais sobre alternativas para prevenção de DST, com
difícil modificar práticas sem apoio institucio- menos da metade das respostas satisfatórias nos
nal ou legal ou quando se contrariam interesses dois grupos de farmácias, não tendo sido verifi-
econômicos dos proprietários e dos próprios cada diferença significativa após a intervenção
trabalhadores das farmácias 1,16,17,18. Em seme- educativa. O tempo médio de permanência na
lhança ao observado na presente pesquisa, um função de balconista foi superior a nove anos,
fenômeno verificado em vários países do mundo demonstrando que o desempenho desta ativi-
é que na ausência de regulamentação efetiva da dade não é passageiro; no entanto, apesar da ex-
publicidade e do consumo de medicamentos, as periência, pelas práticas e pelas recomendações
intervenções de promoção do uso racional têm verificadas, observa-se um despreparo para o de-
sempre impacto limitado 1. sempenho da função.
Diversas pesquisas têm demonstrado a li- Após a intervenção educativa, apesar de te-
mitação das intervenções no campo da saúde rem sido verificadas pequenas melhoras nas res-
no sentido de promover mudanças efetivas no postas sobre o conhecimento dos trabalhadores,
grau de conhecimento e nas atitudes que não essas diferenças não foram significativas, apre-
se traduzem, necessariamente, em mudanças sentando-se, também, no grupo controle. Esse
comportamentais. Esse fenômeno é bastante fenômeno pode ser atribuído à não efetividade
estudado como attitude-behavior gap, princi- da intervenção educativa, como também a ou-
palmente com relação a comportamento se- tros fatores como a rotatividade de funcionários,
xual, hábitos alimentares e tabagismo 19. Não visto que a entrevista ocorreu quatro meses de-
se desconhece que as práticas e atitudes dos pois do ciclo de palestras e, também, a cursos e
trabalhadores das farmácias são resultantes de treinamentos paralelos, possivelmente, ofereci-
múltiplos fatores e que as atitudes e comporta- dos por laboratórios farmacêuticos.
mentos nem sempre são determinados apenas Segundo Merchán-Hamann, 20, entre os fa-
pelos conhecimentos. tores que podem determinar o insucesso nos
Porém, a realização de uma intervenção edu- processos de educação em saúde estão a ênfa-
cativa, mesmo que limitada e não efetiva, se jus- se nos comportamentos observáveis e a falta de
tifica para excluir a falta de conhecimentos como preocupação com o ambiente macrossocial, que
explicação para as práticas inadequadas. Pode-se compreende tanto as estruturas objetivas e as re-
daí inferir que as motivações possam ter outras lações materiais derivadas dos processos econô-
motivações, como por exemplo, as pressões de micos e sociais, quanto às estruturas simbólicas
mercado e ser influenciada por valores culturais construídas pela cultura. Para o pesquisador, os
associados à visão da farmácia no Brasil como comportamentos não são fenômenos objetivos,
estabelecimento comercial. Os achados podem e sim portadores de importantes relações de po-
apontar para a necessidade de intervenções der decorrentes de fatores como a estrutura só-
mais abrangentes, envolvendo regulamentação cio-econômica e a construção cultural.
e maior fiscalização do setor, mudanças na vi- Ao analisar práticas de educação em saúde,
são do medicamento como bem de consumo, Stotz 21 ressalta, ainda, a importância de não se
exigência de qualificação dos trabalhadores que atribuir apenas aos indivíduos a responsabili-
lidam com fornecimento de medicamentos no dade sobre a geração dos problemas de saúde,
Brasil e o estabelecimento de formas mais éticas negligenciando a origem social, cultural e eco-
de remuneração. nômica deste problema. O âmbito de ação das
Analisando-se as entrevistas, pode-se verifi- intervenções de educação em saúde envolveria,
car a falta de exigência sistemática para qualifica- também, o Estado e a intervenção deste, por
ção dos balconistas de farmácias, a baixa qualifi- meio de medidas legais, normativas e outras, pa-
cação dos trabalhadores e a baixa freqüência de ra obter modificação efetiva de práticas dos pro-
realização de treinamentos. Outra constatação fissionais de saúde, da comunidade e das condi-
foi a presença dos laboratórios farmacêuticos co- ções de saúde. Esse processo envolveria, ainda, a
mo formadores desses trabalhadores, não apenas necessidade do desvendamento da rede de de-
na área de vendas, como também em assuntos terminação social do problema, como uma das
específicos como as DST. formas de direcionamento das transformações
As perguntas para avaliar o grau de conheci- no campo da saúde, bem como de persuasão dos
mento dos trabalhadores sobre DST eram aber- grupos sociais a respeito da intervenção e dos
tas e apresentavam múltiplas possibilidades de rumos da atenção à saúde.

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PRÁTICAS DE ATENDIMENTO A DST EM FARMÁCIAS 585

A baixa qualidade da orientação prestada a tos culturais de consumo de medicamentos dos


possíveis portadores de DST nas farmácias e a usuários.
indicação de medicamentos não devem ser vis- O não alcance de efetividade da intervenção
tas, portanto, como resultantes apenas de um educativa na presente pesquisa não deve dimi-
conhecimento superficial sobre as DST. Essas nuir a sua importância, visto o seu potencial de
práticas tendem a reproduzir os conceitos e ob- iniciar uma ampla discussão entre órgãos regu-
jetivos do mercado farmacêutico com relação ao ladores, setor de comercialização, universidades
valor central dos medicamentos no processo de formadoras de farmacêuticos, entidades de clas-
recuperação da saúde e na falta de critérios para se e representantes de usuários. Dessa discussão
sua utilização. Conforme Bourdieu & Passeron 22, devem surgir propostas ou estratégias para que
de um modo geral, as práticas dos trabalhadores se encontrem formas de melhorar as práticas
são portadoras dos sinais característicos da so- dos trabalhadores das farmácias com repercus-
ciedade onde são realizadas, carregando em si, são positiva sobre a saúde e sobre o uso abusivo
o sistema de idéias dominantes nesta sociedade, e indiscriminado de medicamentos que envol-
o qual se apresenta como aceito pela totalida- vem riscos para saúde. Essas práticas devem ser
de dos grupos sociais, ainda que em situação de orientadas pelo valor maior da saúde do usuário
conflito ou de oposição. e não simplesmente do lucro.
Em analogia, as práticas dos trabalhadores A pesquisa sugere que, no atual contexto bra-
das farmácias parecem refletir as estratégias de sileiro, em que as demandas por atenção à saúde
marketing da indústria farmacêutica, a visão não são plenamente atendidas, deve-se conside-
da farmácia como estabelecimento meramen- rar a importância e a extensão da rede de servi-
te comercial, os interesses comerciais dos pro- ços representada pelas farmácias comunitárias
prietários e a falta de qualificação exigida para como porta de entrada das demandas de saúde
os atendentes de farmácia no Brasil. Pode-se da população e como local de intervenção pa-
acrescentar os hábitos culturais e as expectativas ra divulgação de práticas educativas em saúde e
dos usuários das farmácias com relação à bus- de campanhas para promover o uso racional de
ca de uma solução rápida para seus problemas medicamentos. Deve-se reconhecer, ainda, que o
de saúde, que geralmente não é encontrada nos farmacêutico é, em todo o mundo, o profissional
serviços de saúde. Portanto, alterar essas práticas de saúde mais acessível à população em geral e
envolveria mudanças profundas nas estratégias pode assumir grande importância como educa-
de mercado, nas normas de regulação do setor, dor em saúde e como elo entre os usuários e os
na qualidade dos serviços de saúde e nos hábi- serviços de saúde.

Resumo

Pesquisa para investigar práticas, características dos ida ao médico mais do que balconistas e estes indica-
trabalhadores e avaliar efetividade de intervenção ram medicamentos mais do que farmacêuticos. O co-
educativa foi desenvolvida em setenta farmácias de nhecimento dos trabalhadores sobre DST foi conside-
Brasília e Taguatinga, Brasil, distribuídas em dois gru- rado superficial. Após intervenção educativa nenhum
pos; metade das farmácias participou de treinamento dos indicadores apresentou melhora significativa em
sobre DST. Realizou-se 411 visitas de pesquisadores ambos os grupos. As constatações apontam a necessi-
simulando sintomas de DST, que resultaram em: en- dade de regulamentação e de intervenção para divul-
caminhamento ao médico em cerca de 30% dos aten- gação de práticas educativas para controle de doenças
dimentos; indicação de medicamentos em mais de como as DST e para o uso racional de medicamentos
70% dos atendimentos, embora nas entrevistas apenas nas farmácias.
16,4% afirmaram fazê-lo; nenhum tratamento indi-
cado era adequado segundo abordagem sindrômica; Farmácia; Doenças Sexualmente Transmissíveis; Estu-
recomendações preventivas e tratamento de parceiros dos de Intervenção
foram pouco freqüentes; farmacêuticos recomendaram

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Colaboradores

J. O. S. Naves foi responsável pela concepção e execução


da pesquisa, condução da análise dos resultados e reda-
ção do artigo. L. L. C. Castro colaborou na condução da
pesquisa, na análise dos resultados e na revisão crítica
do artigo. G. F. Melo e A. Giavoni contribuíram na análi-
se estatística e interpretação dos achados. E. Merchán-
Hamann colaborou na condução da pesquisa, na análi-
se dos resultados, na redação e revisão crítica do artigo.

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