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Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2023/2024

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Diana Godinho e Diana Reis
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2023/2024

Nota Introdutória
Esta sebenta de Direito Comercial, disponibilizada pela Comissão de Curso do 4.º Ano da
Licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Porto no ano letivo
2023/2024, foi elaborada pelas estudantes Diana Godinho e Diana Reis, através do conteúdo
lecionado pelo Professor Doutor Miguel Pestana de Vasconcelos e pela Professora Doutora
Mariana Fontes da Costa, bem como a análise da bibliografia obrigatória publicada no Sigarra,
particularmente, a obra Curso de Direito Comercial do Dr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu,
a obra Direito Bancário do Sr. Professor Miguel Pestana de Vasconcelos, a obra Direito das
Garantias do Sr. Professor Miguel Pestana de Vasconcelos, a obra Um curso de direito da
insolvência do Dr. Alexandre de Soveral Martins, a obra Direito Comercial do Dr. Cassiano
dos Santos, e os artigos “O regime da resolução do contrato na CISG e no Direito comercial
português” e “Novamente os limites das taxas de juros das instituições de crédito” do Sr.
Professor Pestana de Vasconcelos.
Esta sebenta constitui apenas um complemento de estudo, não dispensando a presença nas aulas
nem a leitura da bibliografia obrigatória.
Bom estudo!

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Diana Godinho e Diana Reis
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ÍNDICE
MATÉRIA ABORDADA PELO SR. PROFESSOR PESTANA VASCONCELOS ------ 9
I – Introdução --------------------------------------------------------------------------------------------- 9
1. Conceções do Direito Comercial --------------------------------------------------------------------- 9
1.1. Evolução histórica do Direito Mercantil ------------------------------------------------------- 9
1.2. Noção de Direito Comercial Português -------------------------------------------------------12
1.3. O problema da autonomia do Direito Comercial (ou da unificação do Direito Privado)
15
1.4. Fontes do Direito Comercial português -------------------------------------------------------16
1.5. Relação entre o Direito civil e Direito comercial--------------------------------------------17
II – Atos de Comércio ----------------------------------------------------------------------------------18
1. Dos Atos de Comércio em Geral --------------------------------------------------------------18
1.1. Noção de ato de comércio ----------------------------------------------------------------------18
1.2. Atos de comércio objetivos e subjetivos ------------------------------------------------------18
1.3. Atos de comércio autónomos e atos de comércio acessórios ------------------------------23
1.4. Atos formalmente comerciais e atos substancialmente comerciais -----------------------24
1.5. Atos unilateralmente comerciais e atos bilateralmente comerciais -----------------------24
III - Compra e Venda Comercial (B2B) ------------------------------------------------------------26
1. Delimitação da Compra e Venda --------------------------------------------------------------26
2. Determinação do preço --------------------------------------------------------------------------27
3. Venda de coisas futuras -------------------------------------------------------------------------28
4. Vendas sobre amostra ou por designação de padrão ----------------------------------------28
5. Compras que não estejam à vista, nem possam determinar-se por um padrão ----------29
6. Regime Especial de resolução do Contrato de compra e venda comercial por
incumprimento da obrigação de pagar o preço de mercadorias ocorrido antes da entrega ou no
momento desta --------------------------------------------------------------------------------------------30
7. Juros de mora comerciais -----------------------------------------------------------------------30
7.1. Pressupostos para que se apliquem os juros de mora no âmbito comercial -------------31
8. Regime relativo ao atraso no pagamento das transações comerciais ---------------------31
9. Reserva de Propriedade -------------------------------------------------------------------------32
10. Coisa comprada a comerciante -----------------------------------------------------------------33
11. Incoterms ------------------------------------------------------------------------------------------33
IV - Dos Comerciantes ---------------------------------------------------------------------------------35
1. Introdução -----------------------------------------------------------------------------------------35
2. Sujeitos qualificáveis como comerciantes ----------------------------------------------------35
2.1. Pessoas singulares--------------------------------------------------------------------------------35

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2.2. Pessoas coletivas ---------------------------------------------------------------------------------37


3. Sujeitos não qualificáveis como comerciantes -----------------------------------------------38
V - Direito Bancário ------------------------------------------------------------------------------------40
1. Autonomia e objeto do Direito Bancário -----------------------------------------------------40
1.1. O núcleo do Direito Bancário ------------------------------------------------------------------40
2. Sistema Financeiro -------------------------------------------------------------------------------43
3. A Constituição da relação bancária ------------------------------------------------------------44
3.1. O Contrato bancário geral ou Contrato Abertura de conta ---------------------------------44
4. Os Contratos de Crédito -------------------------------------------------------------------------47
4.1. Mútuo em geral e o Mútuo Pecuniário Oneroso ---------------------------------------------47
4.2. Mútuo Comercial---------------------------------------------------------------------------------50
4.3. Mútuo Bancário ----------------------------------------------------------------------------------51
4.4. Contrato De Abertura De Crédito -------------------------------------------------------------53
4.5. Antecipação Bancária ---------------------------------------------------------------------------55
4.6. Locação Financeira ------------------------------------------------------------------------------56
4.7. Contrato de Cessão Financeira (Factoring)---------------------------------------------------72
VI- Direito da Insolvência -----------------------------------------------------------------------------82
1. Considerações gerais introdutórias ------------------------------------------------------------82
2. Quem (e o que) pode ser declarado insolvente ----------------------------------------------83
3. A situação de insolvência -----------------------------------------------------------------------84
3.1. Pressupostos objetivos da declaração de insolvência ---------------------------------------85
4. A Tramitação do processo de insolvência antes da sentença de declaração de insolvência
ou de indeferimento do pedido de declaração de insolvência --------------------------------------88
4.1. Requerimento de Insolvência ------------------------------------------------------------------88
4.2. O dever de apresentação à insolvência --------------------------------------------------------89
4.3. Incumprimento do dever de apresentação à insolvência -----------------------------------90
5. Efeitos da declaração de Insolvência ----------------------------------------------------------90
5.1. Efeitos sobre o devedor -------------------------------------------------------------------------90
5.2. Efeitos processuais -------------------------------------------------------------------------------91
6. A sentença de declaração de insolvência -----------------------------------------------------91
6.1. Aspetos gerais (artigo 36.º do CIRE) ---------------------------------------------------------91
7. A sentença de verificação e graduação de créditos------------------------------------------94
7.1. Classificação dos créditos-----------------------------------------------------------------------95
7.2. Efeitos sobre os créditos ------------------------------------------------------------------------98
7.3. Regime dos negócios em curso ----------------------------------------------------------------99

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8. Processo Especial de Revitalização da Empresa ------------------------------------------ 102


MATÉRIA ABORDADA PELA SRA. PROFESSORA MARIANA COSTA ---------- 103
I - Estatuto dos Comerciantes ---------------------------------------------------------------------- 103
1. Obrigações Dos Comerciantes --------------------------------------------------------------- 103
1.1. Obrigação de adotar uma firma -------------------------------------------------------------- 103
1.2. Obrigação de ter escrituração mercantil ---------------------------------------------------- 110
1.3. Obrigação de prestação de contas ----------------------------------------------------------- 110
1.4. Obrigações de inscrição no registo comercial --------------------------------------------- 111
2. Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por cônjuge comerciante------- 112
II - Empresas ------------------------------------------------------------------------------------------- 114
1. Noção de Empresa ----------------------------------------------------------------------------- 114
2. Empresa Comercial e Estabelecimento Comercial ---------------------------------------- 114
3. Empresa em sentido subjetivo---------------------------------------------------------------- 114
4. Empresa em sentido objetivo ----------------------------------------------------------------- 116
4.1. Elementos da empresa em sentido objetivo ------------------------------------------------ 116
5. Direito Comercial e Direito Empresarial --------------------------------------------------- 116
6. Empresa comercial ou empresa meramente civil? ---------------------------------------- 117
6.1. Empresas da indústria extrativa, designadamente, as que fazem exploração de recursos
geológicos. ---------------------------------------------------------------------------------------------- 117
6.2. Empresas agrícolas, silvícolas, florestais e as pecuárias. --------------------------------- 118
6.3. Empresas de transformação exploradas por artesãos ------------------------------------- 119
7. Natureza lucrativa da Empresa --------------------------------------------------------------- 119
8. Tipos de empresas consoante o setor de propriedade dos meios de produção -------- 119
8.1. Empresas do setor privado -------------------------------------------------------------------- 119
8.2. Empresas do setor cooperativo e social ----------------------------------------------------- 120
8.3. Empresas do setor público -------------------------------------------------------------------- 120
III – E.I.R.L -------------------------------------------------------------------------------------------- 121
IV - Estabelecimento comercial -------------------------------------------------------------------- 122
1. Noção de Estabelecimento Comercial ------------------------------------------------------ 122
2. Elementos que compõem o estabelecimento comercial ---------------------------------- 122
2.1. Conceção restrita dos elementos que compõe o estabelecimento ----------------------- 122
2.2. Conceção ampla do conceito de Empresa -------------------------------------------------- 123
2.3. Análise dos elementos que integram o estabelecimento comercial --------------------- 124
3. Situações de fronteira entre a existência e inexistência de estabelecimento comercial
125

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3.1. Existindo a organização produtiva apta a funcionar, mas que ainda não entrou em
funcionamento. ----------------------------------------------------------------------------------------- 125
3.2. Uma organização produtiva que para entrar em funcionamento ainda precisa de um ou
mais elementos------------------------------------------------------------------------------------------ 126
3.3. Transmissão de um estabelecimento comercial com exclusão de alguns dos seus
elementos ------------------------------------------------------------------------------------------------ 126
3.4. Destruição dos elementos materiais do estabelecimento --------------------------------- 127
3.5. Secções e sucursais da empresa -------------------------------------------------------------- 127
4. Noção jurídica de estabelecimento comercial --------------------------------------------- 127
V - Trespasse ------------------------------------------------------------------------------------------- 129
1. Noção de Trespasse ---------------------------------------------------------------------------- 129
2. Normas aplicáveis ao trespasse -------------------------------------------------------------- 130
3. Forma -------------------------------------------------------------------------------------------- 130
3.1. Contrato de trespasse que implica a transferência da posição do arrendatário -------- 130
3.2. Forma geral do contrato de trespasse (não implica a transmissão da posição de
arrendatário, nem da propriedade de um imóvel) -------------------------------------------------- 130
3.3. Forma do trespasse quando implica a transmissão da propriedade de um imóvel ---- 131
4. Âmbito do trespasse --------------------------------------------------------------------------- 131
4.1. Âmbito mínimo--------------------------------------------------------------------------------- 131
4.2. Âmbito natural---------------------------------------------------------------------------------- 131
4.3. Âmbito convencional -------------------------------------------------------------------------- 133
5. Obrigação de não concorrência -------------------------------------------------------------- 134
6. Trespasse de estabelecimento em prédio arrendado -------------------------------------- 136
VI - Locação do estabelecimento comercial ----------------------------------------------------- 138
1. Diferença entre o trespasse e a locação do estabelecimento comercial ---------------- 138
2. Normas legais aplicadas à locação ---------------------------------------------------------- 138
3. Âmbitos de transmissão na Locação -------------------------------------------------------- 138
4. Obrigação de não concorrência -------------------------------------------------------------- 139
5. Locação de estabelecimento em prédio arrendado ---------------------------------------- 139
VII - Títulos de Crédito ------------------------------------------------------------------------------ 140
1. Noção de títulos de crédito ------------------------------------------------------------------- 140
2. Funções económicas dos títulos de crédito ------------------------------------------------- 140
2.1. Meio de pagamento ---------------------------------------------------------------------------- 140
2.2. Compensação de créditos --------------------------------------------------------------------- 141
2.3. Garantia de créditos ---------------------------------------------------------------------------- 141
3. A relação extra cartular subjacente aos títulos de crédito -------------------------------- 141

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4. Classificação de títulos de crédito ----------------------------------------------------------- 142


4.1. Públicos e Privados ---------------------------------------------------------------------------- 142
4.2. Títulos de crédito propriamente ditos, títulos representativos e títulos de participação
142
4.3. Títulos causais e abstratos -------------------------------------------------------------------- 142
4.4. Títulos de crédito nominativos e Títulos de crédito à ordem e ao portador ----------- 142
4.5. Títulos impróprios ----------------------------------------------------------------------------- 143
4.6. Títulos de créditos individuais e títulos de créditos em série ---------------------------- 143
5. Letras de câmbio ------------------------------------------------------------------------------- 143
5.1. Noção de Letras de câmbio ------------------------------------------------------------------- 143
5.2. Principais negócios relacionados com a letra de câmbio --------------------------------- 143
6. Cheque ------------------------------------------------------------------------------------------- 145
7. Livrança ----------------------------------------------------------------------------------------- 145
8. Características dos títulos de crédito -------------------------------------------------------- 146
8.1. Literalidade ------------------------------------------------------------------------------------- 146
8.2. Autonomia -------------------------------------------------------------------------------------- 148
8.3. Incorporação ------------------------------------------------------------------------------------ 151
8.4. Legitimação ------------------------------------------------------------------------------------- 151
9. Convenção executiva -------------------------------------------------------------------------- 152
10. Extinção dos títulos de crédito --------------------------------------------------------------- 152
10.1. Causas atinentes ao título como documento ----------------------------------------------- 153
10.2. Causas atinentes ao direito incorporado ---------------------------------------------------- 153
11. Requisitos formais da letra ------------------------------------------------------------------- 153
12. Letra em branco -------------------------------------------------------------------------------- 154
12.1. Preenchimento abusivo da letra -------------------------------------------------------------- 155
13. Negócios jurídicos unilaterais cambiários -------------------------------------------------- 157
13.1. Saque--------------------------------------------------------------------------------------------- 157
13.2. Aceite -------------------------------------------------------------------------------------------- 158
13.3. Endosso ------------------------------------------------------------------------------------------ 159
13.4. Aval ---------------------------------------------------------------------------------------------- 160
14. Modalidades de vencimento e pagamento da letra ---------------------------------------- 161
14.1. Pagamento à vista ------------------------------------------------------------------------------ 161
14.2. Pagamento a um certo termo de vista ------------------------------------------------------- 161
14.3. Pagamento a um certo termo de data e Pagamento em dia fixado ---------------------- 161
15. Protesto ------------------------------------------------------------------------------------------ 162

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16. Prescrição --------------------------------------------------------------------------------------- 163


VIII - Sinais distintivos de Empresas e de Produtos ------------------------------------------ 164
1. Sinais distintivos das Empresas -------------------------------------------------------------- 164
1.1. Logótipos ---------------------------------------------------------------------------------------- 164
1.2. Recompensas ----------------------------------------------------------------------------------- 164
2. Sinais distintivos dos produtos --------------------------------------------------------------- 164
2.1. Marcas ------------------------------------------------------------------------------------------- 164
2.2. Denominações de origem --------------------------------------------------------------------- 164
2.3. Indicação geográfica --------------------------------------------------------------------------- 165

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MATÉRIA ABORDADA PELO SR. PROFESSOR PESTANA


VASCONCELOS
I – Introdução
1. Conceções do Direito Comercial
1.1. Evolução histórica do Direito Mercantil
O Direito Comercial em sentido próprio, enquanto corpo ou sistema normativo autónomo que
tem por função regular a atividade mercantil, terá surgido somente na época medieval1.
Nesta época, a economia deixou de ser essencialmente agrícola, para passar a centrar-se nas
cidades, onde as trocas eram especialmente relevantes. Era uma época de fraco poder político
central e de forte ressurgimento do comércio. Os grandes comerciantes, organizados em
corporações, passaram a constituir a classe económica e política dominante. Assim, criou-se
condições para os mercadores gerarem um direito “especial” do comércio, contraposto ao
direito “comum” e aos vários direitos próprios, desajustados às novas realidades da vida
económica mercantil.
Fontes desse direito “especial” do comércio:
✓ os costumes mercantis - originados nas práticas contratuais dos comerciantes, que foram
codificados, e depois retomados e desenvolvidos nos Estatutos Corporativos;
✓ os Estatutos das Corporações de Mercadores2 – continham não apenas costumes e
princípios jurisprudenciais consolidados, mas, também, o programa do mandato dos
comerciantes eleitos como cônsules das corporações, as deliberações do conselho dos
comerciantes mais antigos e das assembleias gerais;
✓ Jurisprudência dos tribunais “consulares” - compostos por comerciantes designados
pelas corporações;
Foram desenvolvidos princípios ligados à necessária celeridade da vida comercial, como a
liberdade de forma na conclusão dos contratos, o reforço do crédito mercantil e a escrituração
mercantil. Nesta altura, houve o desenvolvimento de figuras que esteve muito ligado ao tráfego
comercial entre as zonas mais desenvolvidas comercialmente da Europa (Norte e Centro de
Itália e Flandres). Tais como:
(i) estabelecimento comercial ou estabelecimento próprio dos Mercadores;
(ii) as marcas (sinais distintivos do comércio, dos mercadores e das mercadorias); Exemplo:
os mercadores de vidro de Veneza (Murano);

1
Mais especificamente, no século XII, nas cidades italianas.
2 As Corporações de Mercadores funcionavam como uma espécie de guildas, ou seja, tinham carácter fechado. Não havia

concorrência. Em geral, estavam até situadas em determinadas zonas da cidade, sendo difícil entrar para essas corporações.
Devido a este caráter fechado, foram-se desenvolvendo regras, institutos e princípios específicos/próprios, que estavam
previstos nos Estatutos.

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(iii) as letras de câmbio3;


(iv) os seguros4;
(v) o regime da falência5;
(vi) o comércio bancário6.
No séc. XVII desenvolveram-se as primeiras Companhias7, que assumiram, inicialmente, o
papel do Estado.
Todo o comércio era financiado pelo Estado (Coroa), porém os holandeses não tinham
capacidade para isso, e por isso desenvolveu-se uma Companhia, uma atividade privada que
desenvolvia todo o comércio holandês: tinham dinheiro para armar navios e contratar exércitos.
Instalaram-se nas Índias Orientais, principalmente, na Indonésia e no Brasil.
Nestas Companhias, havia separação da responsabilidade dos administradores (mercadores) da
responsabilidade da sociedade, bem como limitação do risco que cada sócio tinha à sua parte.
Os sócios recebiam dividendos, os quais a Companhia distribuía todos os anos.
As pessoas ficavam com investimento limitado. Nada impedia que as pessoas pedissem a
restituição da quantia investida e por isso criou-se na Holanda, o Sistema de Partilhas
Dobradas, que viria a dar origem ao Mercado da Bolsa, para transmitir e negociar as suas
ações. Assim não podiam exigir o dinheiro, mas podiam negociar as suas ações.
Foi, nesta época, que nasceu o mercado de futuros à volta dos bolbos de tulipas que eram
negociados como futuros (coisas futuras), o que gerou grande especulação e levou ao primeiro
crash da Bolsa holandesa.

3 Especial destaque merecem as feiras, especialmente as da região de Champagne e as de Lyon. Eram centros de transação
de mercadorias e de dinheiro de toda a Europa Ocidental, onde se forjaram alguns institutos e se desenvolveram outros para
a troca de produtos, nomeadamente, as letras de câmbio.
4O Regime dos Seguros surgiu ligado, essencialmente, ao comércio marítimo. Em Portugal, foi escrito o primeiro Tratado de
Direito de Seguros, por Pedro de Santarém, no séc. XIV.
5 A falência era algo difamante. O comércio tem por base a manutenção da cadeia de pagamentos. Um sujeito que não pudesse

manter a cadeia de pagamento era excluído da cadeia comercial e altamente sancionado, podia ser preso (na maior parte das
vezes fugia). Foi adotada a regra par conditio creditorum (igualdade entre credores), isto é, todos recebiam a par do seu
crédito.
6Em Florença criou-se o comércio bancário, muito dependente do desenvolvimento dos documentos contabilísticos (a cada
entrada tinha de corresponder uma saída). Os Baldi e os Médici foram criando delegações, nomeadamente, na Inglaterra e na
Alemanha. Desenvolveram a conceção de crédito por via de empréstimo. A usura, que era entendida como sendo a cobrança
de juros, era proibida, porque a Igreja Católica adotou a conceção aristotélica do dinheiro e da frutificação do dinheiro.
Entendiam que o dinheiro como tal, não podia dar frutos. Não havia a ideia de que o juro era a contrapartida da dilação do
pagamento. Entendia-se que o dinheiro era infértil. Os Médici recorreram a uma série de instrumentos que lhes permitiam,
de forma indireta, conceder crédito com juros: (i) utilizavam letras de câmbio para serem pagos numa determinada moeda e
sobrevalorizavam as letras para poderem receber juros; (ii) compravam e vendiam rendas. Os Médici acabaram por falir,
porque uma das delegações, contra as ordens centrais, financiou Carlos V e emprestaram dinheiro ao rei de Espanha.
7 Companhia das Índias Orientais Holandesa (VOC) e a Companhia das Índias Inglesa;

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No séc. XIV, em Portugal, nasceu o Tribunal de Contas para controlar o gasto público, é o
tribunal mais antigo do país. Nessa época não era, exatamente, um tribunal, eram contadores
que trabalhavam em conjunto com o monarca.
Assim, inicialmente, o Direito Comercial era um “Direito de classe”, um ius mercatorum, um
direito criado pelos mercadores para regular as suas atividades profissionais e por eles aplicado.
Dizendo de outro modo, era um direito de cariz “subjetivo”, disciplinava os comerciantes e
os atos destes relativos ao seu comércio.
O Code de Commerce de 18078 marca o início da etapa contemporânea na evolução do direito
comercial. O Direito Comercial deixou de ter um carácter subjetivo, ligado ao comerciante,
passando a ter um caráter objetivo, ligado aos próprios atos de comércio, uma vez que os
princípios da liberdade e da igualdade, inspiradores da Revolução francesa (1789), eram
incompatíveis com a manutenção de um direito dos comerciantes, enquanto classe corporativa.
Deste modo, o Direito Comercial deixou de ter caráter corporativo e passou a assentar em cada
ato em si, atos esses classificados pelo Código como atos comerciais. Quem praticasse,
profissionalmente, esses atos comerciais, então sim, era um comerciante.
Todavia, este enfoco foi alterado com o Código Comercial Alemão de 1897, que adotou
novamente a conceção subjetiva do Direito Comercial. O Código Alemão disciplina o estatuto
dos comerciantes e os atos de comércio como “atos de um comerciante que pertencem à
exploração da sua empresa comercial”.
No que diz respeito ao Direito Nacional, e focando-nos agora no Código Veiga Beirão de
1888, que ainda está em vigor (embora numa versão muito reduzida), o Código filia-se a uma
perspetiva objetiva. O Código começa sintomaticamente por declarar que “a lei comercial rege
os atos de comércio sejam ou não comerciantes as pessoas que neles intervém”.9
Atualmente, temos um Direito Comercial que percorre diversos Códigos, mas temos também
uma extensa internacionalização do Direito Comercial. Diversas convenções internacionais
de âmbito potencialmente universal têm unificado os sistemas jurídico-mercantis nacionais em
setores específicos10. Os Tratados constitutivos das organizações internacionais de integração
e as normas emanadas dos respetivos órgãos vão unificando ou harmonizando o direito
comercial dos Estados-Membros em vastos domínios.
Por outro lado, tem-se desenvolvido um direito uniforme de origem não-(inter)estadual. Um
direito feito de:
✓ Costumes do comércio internacional, de usos e práticas negociais, por vezes reduzidos
a escrito e compilados. Exemplo: incoterms, publicados pela Câmara do Comércio

8O Código francês influiu bastante nas codificações mercantis oitocentistas – por exemplo, nos Códigos Espanhóis de 1829 e
de 1885, no Código Alemão de 1861, nos Códigos Italianos de 1865 e 1882.
9 Exemplo: um civil compra uma coleção de livros a um outro sujeito também não comerciante, com a intenção de a revender.
Este ato em si é um ato comercial, porque a compra para revenda é uma compra comercial, isto é assim, independentemente
dos sujeitos. Claro está que, em regra, são comerciantes, mas não tem de ser.
10
Assim como as Convenções de Genebra de 1930 e 1931 que estabelecem leis uniformes em matéria de letras de câmbio e
livranças e em matéria de cheques, as Convenções Internacionais como a Convenção de Viena (a que Portugal aderiu muito
recentemente) que regula a Compra e Venda internacional.

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Internacional. Os incoterms são siglas que se referem a expressões com carácter


uniforme, e cujo conteúdo pode ser facilmente identificado em qualquer contrato
comercial.
✓ Cláusulas contratuais gerais (estabelecidas sobretudo por empresários e respetivas
associações internacionais). Muitas vezes, mais do que em qualquer outro ramo
científico, os tipos contratuais comerciais, muitas vezes atípicos, decorrem da
uniformidade das cláusulas contratuais gerais a que os comerciantes recorrem.
Exemplo: o contrato bancário geral que decorre da abertura de conta tem um forte grau
de uniformidade nas cláusulas contratuais gerais que vão sendo adotadas pelo conjunto
dos Bancos.
✓ Recurso a tribunais arbitrais constituídos pelos sujeitos do comércio internacional.
Neste âmbito, voltamos, portanto, a deparar com um direito feito por comerciantes e por eles
aplicado, por isso se fala da moderna lex mercatoria, que são um conjunto de práticas e usos,
de contratos específicos de Direito Comercial, em particular do Direito Comercial
Internacional.

1.2. Noção de Direito Comercial Português


1.2.1. Direito Comercial como disciplina dos atos de comércio e comerciantes
Resulta do já exposto que não existe um conceito unitário de direito mercantil com valia
universal. Ora, circunscrevendo-nos ao quadro jurídico-positivo nacional, podemos definir o
direito comercial como o sistema jurídico normativo que disciplina de modo especial os atos
de comércio e os comerciantes.
Nas noções de direito comercial aparece habitualmente a nota de ser um ramo do Direito
Privado. Regulando este a organização dos sujeitos (singulares e coletivos) privados e as
relações estabelecidas entre eles ou entre eles e entidades públicas atuando como particulares,
é inquestionável que o direito mercantil é fundamentalmente Direito Privado. Não obstante,
as leis comerciais contêm também disposições de Direito Público. Basta pensar nas que
consagram deveres jurídico-públicos dos comerciantes – relativos, por exemplo, às firmas,
escrituração mercantil e inscrições no registo comercial.
Dentro do Direito Privado, e em face do Direito civil (direito privado comum), o direito
comercial é globalmente considerado especial (e não excecional, embora contenha normas
excecionais, tal como as contém o direito civil). Assim, é um direito especial, mas não é
autossuficiente, ele pressupõe o Direito Civil como Direito Privado Comum ou Direito Base.
O Direito Comercial é fragmentário porque regula apenas alguns aspetos e o pano de fundo,
mas sem excluir a aplicabilidade do direito civil enquanto direito comum e subsidiário.
O Direito comercial disciplina atos de comércio e comerciantes. Mas os conceitos de comércio
em sentido jurídico e de atos jurídico-comerciais não coincidem com os correspondentes
conceitos económicos.

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✓ Comércio em sentido económico assenta nos três setores da atividade económica: (i)
o setor primário (agricultura, silvicultura, pecuária, pesca e a caça); (ii) o setor
secundário (indústria) e o (iii) terciário (serviços – correspondendo estes,
residualmente, tudo quanto não cabe nos dois primeiros setores: comércio, transportes,
fornecimento de água, gás, eletricidade, atividade seguradora, bancária, liberais, etc.);
✓ Comércio em sentido jurídico abarca não apenas o comércio em sentido económico
(usualmente definido como atividade de interposição de trocas), mas também (outras)
indústrias e serviços. Mas, por outro lado, não pode dizer-se que o direito comercial
disciplina todas as atividades económicas. Ele quase não entra, por exemplo, nas
indústrias extrativas, na agricultura, nas indústrias e serviços artesanais, nos serviços
dos profissionais liberais.

1.2.2. Direito Comercial como Direito das empresas


Em vez de Direito dos atos de comércio e dos comerciantes, não será preferível definir o
direito comercial como o Direito das empresas (comerciais), ou à volta das empresas
(comerciais)?
Heck e seus continuadores (Radbruch, Locher) defenderam a conceção empresarialista do
direito mercantil, basicamente cunhada por Wieland e Mossa, e que teve grande repercussão
nalgumas legislações e na doutrina europeia a partir dos anos vinte do século. XX.
Porém, esta conceção foi perdendo força a partir dos anos cinquenta, porque tendeu a restringir
em demasia o espaço do direito mercantil, ao excluir os atos isolados de comércio, o direito
cambiário e das falências, o direito dos seguros e do tráfico marítimo e aéreo.
Contudo, na Alemanha reputados autores continuam a defender esta conceção. Para P.Raisch,
Von Gierke, Karsten Schmidt e Larenz, no centro do direito comercial está, não o comerciante,
mas a empresa (e respetivo titular) – regulando esse direito o estatuto dos sujeitos das empresas,
o lado objetivo destas (os negócios sobre elas) e as relações inter-empresariais. Ou seja, seria
direito comercial não só os estatutos e os sujeitos (comerciantes, sejam pessoas singulares ou
coletivas), mas também todos os negócios sobre e relativos às empresas.
O Dr. Coutinho Abreu refere “Pode dizer-se, na verdade, que o núcleo do direito mercantil
está na empresa comercial, constituindo ela o “princípio energético” a que todas as
legislações prestam homenagem, ainda que em graus diferenciados”. É igualmente defensável
que o nosso direito comercial deve ser um direito à volta das empresas (um direito do estatuto
dos empresários singulares e coletivos, dos direitos e negócios sobre as empresas e da tutela
destas dos negócios jurídicos de organização das empresas). Portanto, muito ou quase todo o
Direito Comercial anda à volta quer do Estatuto das pessoas singulares e das pessoas coletivas,
quer dos negócios entre empresas (ex.: contratos comerciais), dos negócios sobre empresas
(ex.: transmissões das empresas; a criação de direitos reais de garantia sobre empresas) e de
organização de empresas (recurso ao societário).

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Diana Godinho e Diana Reis
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2023/2024

Todavia, o direito comercial português atual, além de admitir comerciantes não empresários,
regula atos de comércio esporádicos ou ocasionais que nada têm que ver com empresas
mercantis e cuja disciplina não poderá dizer-se, globalmente, determinada por interesses
ligados à empresarialidade. Ex.: compra e venda comercial (compra para revenda). A compra
um automóvel a B, para o vender a C. Nenhum deles é comerciante, não o fazem a nível
profissional. É um ato ocasional de comércio, mas não deixa de ser um ato de comércio.
Além disso, há um conjunto de empresas que não são comerciais, por exemplo, as empresas
agrícolas.
Portanto, por um lado, não se pode dizer que todo o Direito Comercial se reconduz a empresas,
porque há atos comerciais que não são desenvolvidos no âmbito empresarial. Por outro lado,
há um conjunto de empresas muito significativas no âmbito económico, ligadas ao setor
primário, que não são empresas comerciais.
Em termos puros e simplesmente conceptuais este raciocínio está correto. O conceito tem de
ser amplo para que possa abranger o conjunto de elementos a regular.
Agora, a essência/núcleo central do Direito Comercial, e quase toda a atividade mercantil é
desenvolvida empresarialmente:
✓ Temos os sujeitos - na generalidade dos casos são comerciantes em nome de individual
ou sociedades comerciais;
✓ Temos um conjunto de negócios que são sobre empresas em si ou sobre participações
das sociedades comerciais (ações, quotas, etc.);
✓ Temos um conjunto de figuras que estão ligadas à própria atividade mercantil, como é
o caso do regime da propriedade industrial;
✓ Finalmente, temos um grande conjunto de contratos, de grande significado, que são
contratos mercantis, que são desenvolvidos subjetivamente por empresas, embora essas
empresas tenham titulares, que são titulares distintos, normalmente são sociedades
comerciais quer de um lado, quer do outro.
A generalidade do comércio assenta sobre empresas, e, assim, a noção de empresa11 é
absolutamente essencial no âmbito comercial.
Porém, não podemos dizer que o Direito Comercial é equivalente a Direito das Empresas, pois
há um conjunto de empresas que efetivamente não são empresas comerciais, e que têm um
significado económico diferente. Essas empresas, em regra, têm como titulares sociedades
civis. Estas sociedades civis podem adotar forma comercial, e, a partir desse momento, são
regidas pelo Código das Sociedades Comerciais (CSC). Ou seja, há uma absorção de todo
esse conjunto de sujeitos pelo Direito Comercial, neste caso pelo CSC. Por isso é que os
argumentos anteriormente expostos, do ponto de vista da pureza dos princípios e da
necessidade de amplitude na delimitação dos conceitos, não podem obscurecer o facto de o
Direito Comercial ser essencialmente um Direito de Empresas e à volta das Empresas.

11Referimo-nos a empresa no sentido objetivo, como organização. Há também a noção de empresa em sentido subjetivo, que
se refere aos titulares das empresas, em regra as sociedades comerciais.

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Diana Godinho e Diana Reis
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2023/2024

Assim, Dr. Coutinho Abreu escreve “Por isso prefiro defini-lo como direito dos atos de
comércio e dos comerciantes – embora atos e sujeitos em regra ligados às empresas
comerciais”.

1.3. O problema da autonomia do Direito Comercial (ou da unificação do


Direito Privado)
Desde o século XIX vem-se manifestando um forte movimento doutrinal em prol da unificação
do Direito privado12 (i.e., a fusão de todo o Direito Civil Patrimonial, em particular, no âmbito
das obrigações com as regras do Direito Comercial), criando uma disciplina unitária para os
contratos e, também, para o Direito Comercial.
É visível nesta tendência jurídico-positiva para a unificação uma “comercialização” do direito
privado. Vão-se incorporando no Direito civil regras e características ou princípios tradicionais
do direito mercantil – princípios como o do reforço do crédito, o da maior proteção da
confiança, o da celeridade nas operações negociais, o da certeza nas transações, o da presunção
da onerosidade.
Por um lado, há um conjunto de institutos que nasceram do Direito Comercial, mas que são
neste momento comuns ao Direito Civil. Exemplo: a letra de câmbio.
Por outro lado, o regime das Sociedades Comerciais pode ser utilizado também para
regular as atividades não comerciais (como a agricultura e a pesca) se os titulares adotarem
a forma de sociedade civil sob forma comercial, ou seja, regida pelas regras do Direito
Comercial.
Por conseguinte, há um conjunto de figuras que nasceram no âmbito do Direito Comercial e
que são amplamente usadas no âmbito do Direito civil. Exemplo: seguros de saúde, de
condomínio, de responsabilidade automóvel.
Mais, o instituto da falência é típico do Direito Comercial, mas o seu atual sucedâneo (o regime
da insolvência) aplica-se também a não comerciantes, sendo comum a insolvência de pessoas
singulares.
Finalmente, as regras da concorrência, também desenvolvidas no âmbito do Direito Comercial,
passaram a aplicar-se aos não comerciantes, uma vez que há um conjunto de atividades (os
profissionais liberais, artesãos, etc.) que não são atividades comerciais, mas que estão sujeitas
ao regime da concorrência.
Um outro aspeto, que é menos sublinhado, é que a contratação comercial, quando não diga
respeito a alguns contratos típicos de Direito Comercial13 assenta no Direito das Obrigações14.

12Esta perspetiva de unificação da disciplina do Direito Civil Patrimonial, especialmente do Direito das Obrigações com as
Disciplinas do Direito Comercial veio a ser consagrada em alguns Códigos Civis, como por exemplo, o Código Civil Italiano
(1943) e o Código Brasileiro (2003). Isto não significa que não haja depois um conjunto de leis extravagantes.
13 Contratos típicos de Direito Comercial – a agência, a concessão e a franquia.
14 Na constituição de obrigações por via contratual ou por via da responsabilidade civil.

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Porém, estes contratos, como é exemplo o contrato de compra venda15, são contratos tronco
onde se inserem depois, por regra, algumas regras/princípios específicas no âmbito comercial.

1.4. Fontes do Direito Comercial português


1.4.1. Fontes internas
Entre as fontes internas, temos consagrada a Disciplina económica na/em:
✓ CRP, que contém algumas regras atinentes ao direito comercial, nomeadamente o artigo
61.º da CRP que consagra o princípio da iniciativa económica privada, cooperativa e
autogestionária, o artigo 85.º da CRP que consagra as empresas privadas, o artigo 99.º da
CRP que consagra os objetivos da política comercial, etc.
✓ Leis comerciais, amplamente entendidas de modo a abarcar todos os atos legislativos.
Note-se que as principais fontes do direito comercial são as leis ordinárias, à cabeça das
quais havemos de situar o Código Comercial (aprovado por Carta de Lei de 28/6/1888),
e os Códigos das disciplinas filhas, como o CSC, o CI e a Lei do Seguro.
✓ Regulamentos do Governo, das regiões autónomas, das autarquias locais, e em particular,
os Regulamentos das Autoridades Administrativas Independentes (artigo 267.º/3 CRP),
como seja, o Banco de Portugal, a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e a
Autoridade de Seguros e Pensões (ASP).
✓ Jurisprudência e Doutrina. Com efeito, as decisões judiciais participam na criação ou
constituição do direito – (i) interpretam e concretizam valorizações e critérios ínsitos nas
normas; (ii) integram lacunas. A aplicação de uma determinada norma faz-se no quadro
de todo o sistema, tendo de se ter em conta quer os casos paralelos, como o conjunto de
princípios que estruturam o ordenamento jurídico em geral. Essa aplicação e
concretização tem necessariamente um carácter constitutivo e leva à criação de um
conjunto de correntes jurisprudenciais que definem a interpretação e o alcance da norma,
desde que seja corretamente observado o método jurídico na interpretação e aplicação da
lei. Por sua vez, a doutrina releva principalmente enquanto “dogmaticamente
complementar” e “heurístico-normativamente antecipante” do “direito jurisprudencial”.
✓ Costumes (práticas sociais estabilizadas seguidas com a convicção de serem
juridicamente obrigatórias) e Usos (práticas sociais estabilizadas). Apesar de não
constarem do artigo 3.º do Código Comercial, eles podem manifestar regras jurídicas,
quer se trate de usos invocados pela lei, quer de usos solicitados para a interpretação e
integração dos negócios jurídico-mercantis. Exemplo: no que diz respeito ao anatocismo
(artigo 560.º/3 do Código Civil) que remete para os usos do comércio. Atualmente, a sua
aplicação é restrita, porque o regime do anatocismo, especialmente do anatocismo
bancário, está previsto em legislação própria. Mas os usos do comércio são especialmente
relevantes no âmbito do comércio internacional.

15O Direito Comercial tem contratos típicos estabelecidos em que não é preciso o auxilio do Direito Civil. Porém, existem
contratos de como é exemplo a compra e venda em que seguimos o regime previsto no Direito das Obrigações, com a ressalva
de se aplicarem sempre princípios gerais do Direito Comercial, que mudam aspetos desse regime. Ex.: devido à exigência de
celeridade, não exigem forma para a validade do contrato;

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1.4.2. Fontes externas


Entre as fontes externas, cuja importância se tem vindo a acentuar, destaca-se as/os:
✓ Convenções Internacionais (“As normas constantes de convenções regularmente
ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e
enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português” – artigo 8.º/2 da CRP)
✓ Regulamentos e diretivas da União Europeia (artigo 288.º TFUE e artigo 8.º/3 CRP).
Exemplo: Lei Uniforme para Letras e Livranças; Lei Uniforme dos Cheques; A Convenção
de Viena relativamente à Compra e Venda Internacional de mercadorias.
Embora de valor infraconstitucional, as normas da generalidade das convenções internacionais
e as citadas normas de direito supranacional prevalecem sobre a lei ordinária interna (anterior
ou posterior).

1.5. Relação entre o Direito civil e Direito comercial


Tendo o Direito Comercial um carácter fragmentário, o recurso ao Direito Civil não reveste
um caráter excecional, sendo antes um pressuposto do Direito Comercial.
Di-lo logo o artigo 3.º do Código Comercial – “Se as questões sobre direitos e obrigações
comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito,
nem pelos casos análogos nela prevenidos, serão decididas pelo direito civil”. Nesta medida,
poder-se-ia dizer que o Direito Comercial seria um ramo de direito concluso (as questões teriam
de ser sempre resolvidas no seu âmbito, e só a título excecional é que se poderia recorrer ao
Direito Civil).
Ora, mas não é correta essa conclusão. Sendo o direito comercial direito privado especial,
lógico é que o direito civil, enquanto direito privado comum, intervenha na disciplina de
matérias mercantis quando o normativo especial se revele insuficiente.
Devemos interpretar a lei atendendo ao contexto histórico em que foi desenvolvida. Veja-se:
em 1888 o Direito Comercial incidia sobre uma atividade económica incipiente, que em pouco
ou nada tem a ver com a atividade económica atual. Temos de estabelecer uma relação entre o
Código de Veiga Beirão com o Código que existia na altura (i.e., o Código de Seabra de 1967).
O Código de Seabra é especialmente preciso e bem elaborado, tendo como inspiração as
soluções do Código Alemão, mas, principalmente, o Código Civil Italiano que contém uma
disciplina uniforme para o Direito civil e para o Direito Comercial. Assim, a regulação mais
avançada das relações comerciais está no Código Civil. Para além disso, há diversas normas
do Código Civil que no entendimento do Sr. Professor são materialmente comerciais. Exemplo:
compra e venda com reserva de propriedade. Mais, estão regulados no Código Civil um
conjunto de contratos comerciais. Exemplo: a empreitada é um contrato comercial.
Neste quadro, é evidente que o artigo 3.º do Código Comercial tem de ser interpretado tendo
em conta estes elementos. À primeira vista parece defluir do citado artigo 3.º que as normas do
direito civil nunca são aplicáveis diretamente às matérias comerciais, intervindo somente para
integrar lacunas da lei comercial não integráveis por normas mercantis regulamentadoras de
casos análogos. Todavia, o Direito Comercial apresenta-se como um ordenamento especial e

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fragmentário, aberto, com recurso direto ao Direito comum na disciplina das situações e
relações mercantis. O Direito Civil é, assim, o pressuposto do Direito Comercial, por ser
mais moderno e por as suas normas de incumprimento e cumprimento das obrigações serem
adaptadas à vida mercantil.

II – Atos de Comércio
1. Dos Atos de Comércio em Geral
1.1. Noção de ato de comércio
Os atos de comércio são parte essencial da matéria mercantil. Todavia, já foi maior o interesse
“prático” desta qualificação. Hoje, o regime especial comum aos atos de comércio em geral
releva, sobretudo, nos pontos seguintes:
✓ Sempre que uma sociedade tenha por objeto a prática de atos comerciais é uma
Sociedade Comercial;
✓ Importa para qualificar de mercantis outros atos que daqueles sejam acessórios, bem
como para qualificar sujeitos como comerciantes (artigo 13.º do Código Comercial);
✓ Em regra, nas obrigações comerciais, os co-obrigados são solidários (artigo 100.º do
Código Comercial);
✓ Segundo o artigo 15.º do Código Comercial, as dívidas dos comerciantes casados
derivadas de atos mercantis presumem-se contraídas no exercício dos respetivos
comércios;
✓ O artigo 102.º do Código Comercial estabelece um regime com uma ou outra
particularidade para os juros relacionados com atos comerciais.
A norma delimitadora básica dos atos de comércio é o artigo 2.º do Código Comercial, de onde
resulta, desde logo, a impossibilidade de um conceito homogéneo ou genérico de ato de
comércio. Há atos considerados mercantis por:
✓ Estarem previstos, segundo critérios heterógenos, na lei comercial, e que em regra
podem ser praticados por comerciantes ou não comerciantes;
✓ Serem praticados por comerciantes e, além disso, serem conexionáveis com o comércio
e estarem conexionados com a atividade mercantil dos seus autores.

1.2. Atos de comércio objetivos e subjetivos


Na classificação básica dos atos de comércio, estes aparecem-nos ou como objetivos ou como
subjetivos. Utilizando por ora os dizeres do artigo 2.º do Código Comercial, os primeiros são
“todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste código”; os segundos “todos os
contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se
o contrário do próprio ato não resultar”.
1.2.1. Atos de comércio objetivos

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1.2.1.1. Interpretação da 1.ª parte do artigo 2.º do Código Comercial


Trata-se de uma definição de atos de comércio objetivos por enumeração ou catálogo.
O Código Comercial atual prevê vários atos comerciais objetivos: fiança (artigo 101.º do
Código Comercial); empresas (artigo 230.º do Código Comercial); mandato (artigos 231.º e
seguintes do Código Comercial); operações de banco (artigos 362.º e seguintes do Código
Comercial); transporte (artigos 366.º e seguintes do Código Comercial); compra e venda
(artigos 463.º e seguintes do Código Comercial); aluguer (artigos 481.º e 482.º do Código
Comercial), etc.
Relativamente à maioria destes atos, o Código estabelece disciplina específica. Mas os atos
comerciais para os quais o Código não estabelece disciplina específica ficam sujeitos às regras
(especiais) comuns aos atos de comércio em geral.

São atos de comércio objetivos apenas os “especialmente regulados neste código”?


A formulação da primeira parte do artigo 2.º do Código Comercial faria algum sentido em
1888. Porém, atualmente, entende-se pacificamente que a expressão “neste código” deve ser
interpretada extensivamente de modo a abarcar outras leis comerciais. O próprio Código
Comercial fala em lei comercial nos artigos 1.º e 3.º.

Mas quando pode uma lei ser qualificada, para estes efeitos, de comercial?
Há que atender a três hipóteses:
(i) Quando a lei substitui normas do Código Comercial;
(ii) Quando a lei se auto qualifica como lei comercial;
(iii)Quando se encaixem numa categoria residual de atos que podem ser qualificados como
atos comerciais, não obstante não preencherem quer os requisitos do número um, quer
os requisitos do número dois.

(i) A lei substituta será em princípio comercial, i.e., os atos nela regulados serão mercantis.
Seria estranho considerar comerciais os atos previstos no Código Comercial e considerá-los
não comerciais quando previstos de modo mais desenvolvido e atualizado fora do Código. Por
conseguinte, são objetivamente comerciais:
✓ os atos constituintes das sociedades comerciais previstos no CSC, que substituiu os
artigos 104.º e seguintes do Código Comercial;
✓ os negócios respeitantes às letras, livranças e cheques, basicamente regulados hoje nas
LULL e LUCh, mas previstos anteriormente nos artigos 278.º e seguintes do Código
Comercial;
✓ as operações de bolsa, antes previstas nos artigos 351.º e seguintes do Código
Comercial, e agora no CVM;

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✓ os contratos de seguro disciplinados pelo RJCS, que revogou os artigos 425.º a 462.º
do Código Comercial, etc.
Todos estes atos previstos em Leis comerciais são atos comerciais objetivos porque substituem
regimes que inicialmente estavam previstos no Código Comercial.

(ii) Temos, por exemplo, no âmbito do Código Civil, inúmeras normas que se auto qualificam
como lei comercial. Exemplo: no capítulo da locação há disposições especiais do arrendamento
para fins não habitacionais”. Entre estes fins conta-se também o comércio. A locação de
estabelecimento “comercial ou industrial” e o trespasse de estabelecimento “comercial ou
industrial” merecem aí algumas regras específicas (artigos 1109.º e 1112.º/1 alínea a) e 4 do
Código Civil).

(iii) Na maioria dos casos, as leis não se auto qualificam explicitamente como comerciais, civis,
etc. Ora, como saber então se estamos perante uma lei mercantil, prevendo de algum modo
atos objetivos de comércio?
O Dr. Ferrer Correia defende que a lei mercantil seria a que disciplina atos tendo em vista a
satisfação de necessidades/ interesses do comércio. O Sr. Professor Pestana Vasconcelos
considera que esta classificação não está completamente ultrapassada. O Dr. Coutinho de
Abreu, por sua vez, defende que não é suficiente. Por um lado, não existe um conceito unitário
de comércio – o comércio em sentido jurídico integra setores e subsetores variados de atividade
económica, com necessidades diferenciadas entre eles e dentro de cada um deles. Por outro
lado, as leis comerciais regulam também atos de comércio ocasionais.
Para saber se as leis em questão são comerciais parece necessário ver se elas disciplinam
matéria análoga à disciplinada no Código Comercial ou em outras leis classificadas como
comerciais.

1.2.1.2. Significado do artigo 230.º do Código Comercial


Dispõe o artigo 230.º do Código Comercial: “Haver-se-ão por comerciais as empresas,
singulares ou coletivas, que se propuserem:
✓ Transformar, por meio de fábricas ou manufaturas, matérias-primas, empregando
para isso, operários e máquinas. Ou seja, as empresas que desenvolvam uma atividade
industrial são empresas comerciais;
✓ Fornecer, em épocas diferentes, géneros, quer a particulares, quer ao Estado,
mediante preço convencionado. Ou seja, aqui estamos perante fornecimento de bens;
✓ Agenciar negócios ou leilões por conta de outrem em escritório aberto ao público, e
mediante salário estipulado;
✓ Explorar quaisquer espetáculos públicos;
✓ Editar, publicar ou vender obras científicas, literárias ou artísticas;
✓ Edificar ou construir casas para outrem com materiais subministrados pelo
empresário;

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✓ Transportar, regular e permanentemente, por água ou por terra, quaisquer pessoas,


animais, alfaias ou mercadorias de outrem.”
Qual o alcance de a lei qualificar estas empresas de comerciais?
Dr. Coutinho de Abreu refere que as empresas do artigo 230.º do Código Comercial são
conjuntos ou séries de atos objetivamente comerciais enquadrados organizativamente16, ou
seja, desempenhados no âmbito de uma empresa.

Mas quais atos objetivos? Tão-só os contratos em que o exercício da empresa tipicamente se
traduz, ou todos os atos praticados na exploração dessas organizações empresariais?
O Sr. Professor Pestana Vasconcelos adota a perspetiva do Dr. Coutinho de Abreu,
considerando atos objetivamente comerciais os atos previstos no artigo 230.º do Código
Comercial, desenvolvidos diretamente por estas empresas, mas também todos os outros atos
praticados no âmbito destas empresas que visem o desenvolvimento da sua atividade. Exemplo:
no âmbito da construção de casas, são atos comerciais não só os atos principais, mas todos os
atos que sejam necessários para esse efeito (ainda que sejam atos secundários ou atos de
suporte), como: a compra de mercadorias para a obra por parte do empreiteiro; a contratação
de funcionários por parte do empreiteiro; o aluguer de uma carrinha; arrendamento de um
armazém.

1.2.1.3. Qualificação de atos de comércio por analogia


A enumeração implícita dos atos de comércio constante da primeira parte do artigo 2.º do
Código Comercial é exemplificativa ou taxativa? Atos não regulados legislativamente, ou
previstos em leis cujo caráter não é declarado podem ser qualificados como comerciais por
analogia com atos previstos em lei mercantil?
O problema não se resolve recorrendo ao artigo 3.º do Código Comercial, pois esta norma
admite o recurso à analogia para regular atos já qualificados como comerciais. A questão aqui
colocada diz respeito a lacunas de qualificação e não imediatamente a lacunas de regulação.
Na perspetiva que o Dr. Coutinho de Abreu adota, a admissibilidade do recurso à analogia
legis não levantará grandes dúvidas.
Exemplo: o artigo 230.º/6 do Código Comercial refere-se à construção de casas. Porém, com o
recurso à analogia legis, também se pode aplicar para a construção de outras obras, como:
pontes, estradas, aquedutos, prédios.
Exemplo: o artigo 230.º/7 do Código Comercial refere-se a empresas que se dedicam à
atividade de transporte marítimo e terrestre. Não há referência ao transporte aéreo. Porém, basta
recorrer a uma interpretação extensiva para a aplicação desta norma a estes casos. Deteta-se
que o espírito da lei não acompanha concretamente a letra da lei. O espírito da lei é mais amplo
e nessa medida deverá estender a norma, de forma a acompanhar a ratio que a determina.

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Atos praticados no quadro de organizações de meios pessoais e/ou reais.

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O Dr. Coutinho de Abreu admite o recurso, também, à analogia iuris17 e concretiza as seguintes
ideias:
✓ Como qualificar as empresas de prestação de serviços, mas que não são análogas às
previstas no artigo 230.º do Código Comercial, nem a outras normas do Código
Comercial, nem consideradas comerciais em diplomas posteriores? Se essas empresas
de serviços não podem ser qualificadas de comerciais pelo recurso à analogia legis,
podem sê-lo pelo recurso à analogia iuris. Há um princípio geral de direito comercial
segundo o qual as empresas de prestação de serviços são, em regra, comerciais.
Todavia, é evidente que não são empresas comerciais aquelas que só podem ter
atividades que tenham caráter civil, como seja, por exemplo, a prestação de serviços no
âmbito de profissões liberais.
✓ O trespasse e a locação de estabelecimento comercial são atos de comércio objetivos,
estão especialmente regulados em lei mercantil. Recorrendo mais uma vez à analogia
iuris, diremos, pois, que os negócios sobre empresas comerciais são atos objetivamente
comerciais. Exemplo: a oneração de uma empresa.
✓ O comércio em sentido jurídico é a atividade de interposição nas trocas ou
intermediação na circulação dos bens. Colhe-se, pois, um princípio geral segundo o
qual as atividades de interposição nas trocas pertencem ao comércio em sentido
jurídico.

1.2.2. Atos de comércio subjetivos


Utilizando os dizeres da segunda parte do artigo 2.º do Código Comercial, os atos de comércio
subjetivos são “todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza
exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar”.
Ora, é possível decompor a norma em três partes:
✓ Os atos subjetivos de comércio começam por ser atos “dos comerciantes”. Segundo o
artigo 13.º do Código Comercial “São comerciantes (i) as pessoas, que, tendo
capacidade para praticar atos de comércio, fazem deste profissão; (ii) as sociedades
comerciais”.
✓ Para serem subjetivamente comerciais, os atos e obrigações dos comerciantes não
podem ser “de natureza exclusivamente civil”. Entendemos serem atos de natureza
exclusivamente civil os que, por sua natureza ou essência, não são conexionáveis com
o exercício do comércio, não se concebendo a auxiliar, promover ou levar a cabo o
exercício do comércio, nem deste dependerem. São, portanto, atos de natureza
exclusivamente civil os atos de caráter extrapatrimonial como o casamento, a
perfilhação, a designação de tutor pelos pais, etc.
• Contudo, há alguns atos, cuja natureza essencialmente civil tem sido discutida.

17A analogia iuris significa tradicionalmente a disciplina dos casos omissos através da aplicação de princípios gerais obtidos
através de induções lógico-generalizadoras de uma série de normas legais.

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Exemplo: uma doação remuneratória atribuída a um funcionário que tenha


atingido um determinado objetivo da empresa é, em si, um ato comercial.
Também aquelas doações que são utilizadas para promover a atividade da
empresa são atos comerciais (exemplos: brindes, entrega de dinheiro). São atos
gratuitos, mas estão conexionados com o comércio e visam promover o carácter
lucrativo da empresa.
✓ Por fim, um ato de natureza não exclusivamente civil de um comerciante é
subjetivamente comercial “se o contrário do próprio ato não resultar”. Isto é, se do
próprio ato não resultar a não ligação ou conexão com o comércio. Assim:
• Se do próprio ato resulta a ligação com o comércio, o ato é comercial. Exemplo:
um merceeiro compra uma furgoneta a um agricultor, declarando destinar-se a
mesma ao transporte de mercadorias de e para a sua mercearia;
• Se do próprio ato não resulta a não ligação com o comércio, o ato é igualmente
comercial; Exemplo: o comerciante compra um automóvel. Se nada for dito
entende-se que esse automóvel será utilizado na sua atividade comercial,
porque nada decorre do ato no sentido de que ele não está conexionado com o
seu comércio.
• Se do próprio ato resulta a não conexão com o comércio, o ato não é mercantil.
Exemplo: o comerciante indica ao vendedor que vai utilizar aquele automóvel
para uso pessoal. Como indicou o projeto de destino do bem, como sendo uma
utilização civil, esse ato não tem natureza de ato comercial.

1.3. Atos de comércio autónomos e atos de comércio acessórios


São atos de comércio autónomos os qualificados de mercantis por si mesmos,
independentemente de ligação a outros atos ou atividades comerciais. Exemplo: a compra para
revenda
São atos de comércio acessórios os que devem a sua comercialidade ao facto de se ligarem ou
conexionarem a atos mercantis.
O Código Comercial prevê alguns atos acessórios: fiança (artigo 101.º do Código Comercial)
será um ato de comércio acessório se a obrigação assegurada for, ela própria, comercial;
mandato (artigo 231.º do Código Comercial); empréstimo (artigo 394.º do Código Comercial);
penhor (artigo 397.º do Código Comercial); depósito (artigo 403.º do Código Comercial);
Exemplo: A constitui uma fiança para garantir um empréstimo comercial, essa fiança é
comercial.
Estes atos tanto podem ser acessórios de:
✓ atos de comércio objetivos e autónomos (exemplo: mandato para a compra de uma
mercadoria destina a revenda);
✓ atos de comércio objetivos, mas acessórios (exemplo: mandato para o depósito de
mercadorias que o mandante comprou para serem revendidas);
✓ atos subjetivamente comerciais (exemplo: mandato para a compra de caixas
registadoras destinadas ao supermercado do mandate).

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1.4. Atos formalmente comerciais e atos substancialmente


comerciais
Apesar de ter hoje pouco relevo prático é de manter, entre nós, esta tradicional classificação.
Atos formalmente comerciais são os esquemas negociais que são utilizados por comerciantes
ou não comerciantes, quer para a realização de operações mercantis, quer para a realização de
operações económicas que não são atos de comércio, nem se inserem na atividade comercial,
estão, contudo, especialmente regulados na lei mercantil, merecendo, portanto, a qualificação
de atos de comércio. Estes atos nasceram no âmbito do comércio, mas expandiram-se também
para as relações civis. Exemplo: negócios cambiários, relativos às letras de câmbio. Suponha-
se que A, não comerciante, vende o seu automóvel a B, também não comerciante, destinando-
se a viatura ao uso do comprador (trata-se de uma compra e venda não comercial, segundo o
artigo 464.º/1 do Código Comercial). Suponha-se ainda que o preço não é logo pago e as partes
convencionam a emissão de uma letra de câmbio – sacada por A e aceite por B. Estes negócios
cambiários, porque previstos em lei mercantil (a LULL), são atos de comércio – apesar da sua
comercialidade ser “formal”, uma vez que a causa deles pode nada ter a ver com o comércio
ou atos de comércio.
Atos substancial ou materialmente comerciais são os esquemas negociais utilizados
unicamente no âmbito das relações mercantis.

1.5. Atos unilateralmente comerciais e atos bilateralmente


comerciais
Atos unilateralmente comerciais são os atos cuja comercialidade se verifica só em relação a
uma das partes. Exemplo: E, professor, compra a B um automóvel para seu uso e da sua família
(a venda é objetivamente comercial, segundo o artigo 463.º/3 do Código Comercial, a compra
é civil, segundo o artigo 464.º/1 do Código Comercial).
Atos bilateralmente comerciais são atos cuja comercialidade se verifica em relação a ambas
as partes. Exemplo: A, produtora de automóveis, vende, no quadro de um contrato de concessão
comercial, x automóveis ao seu concessionário B (a venda é ato de comércio, objetivo ou
subjetivo, consoante a perspetiva que se adote, e a compra é também comercial, segundo o
artigo 463.º do Código Comercial).

Assim, podemos ter:


✓ Atos objetivamente e bilateralmente comerciais; Exemplo: A vende a B mercadoria que
adquiriu de C, sendo que B pretende revender essa mercadoria a D. A comercialidade
verifica-se relativamente a qualquer um deles, pois ambos compram para revender
(artigo 463.º do Código Comercial).
✓ Atos objetivamente e unilateralmente comerciais; Exemplo: A vende a B dois
computadores, que A tinha adquirido a C, com a intenção de os revender. A venda de
uma coisa comprada para revenda, no âmbito do artigo 463.º do Código Comercial é

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um ato comercial objetivo. Neste caso, os requisitos da comercialidade verificam-se


apenas relativamente ao vendedor (A).
✓ Atos objetivamente, subjetivamente e bilateralmente comerciais; Exemplo: A
(sociedade comercial) vende a B (sociedade comercial) mercadoria que adquiriu de C,
sendo que B pretende revender essa mercadoria a D. Trata-se então de um ato
subjetivamente e bilateralmente comercial, mas também de um ato objetivamente
comercial (adquirem os dois para revenda).
✓ Atos objetivamente, subjetivamente e unilateralmente comerciais; Exemplo: A,
supermercado, adquire a B, agricultor, uma produção de laranjas para revender. Por
parte do agricultor, temos um ato civil (não comercial). Por parte do supermercado,
temos um ato subjetivamente comercial (por se tratar de uma empresa) e objetivamente
comercial (visa a revenda das laranjas). Assim, temos um ato unilateralmente
comercial, porque apenas é comercial relativamente a uma das partes (o supermercado).

Qual o regime jurídico dos atos unilateralmente comerciais?


O artigo 99.º do Código Comercial responde que “embora o ato seja mercantil só com relação
a uma das partes, será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os
contratantes, salvo as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o ato é
mercantil, ficando, porém, todos sujeitos à jurisdição comercial”.
Os atos unilateralmente comerciais estão, em regra, sujeitos, portanto, à disciplina mercantil.
Excetuam-se, porém, as disposições que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo
respeito o ato é mercantil, como:
✓ O artigo 100.º do Código Comercial: “Nas obrigações comerciais os co-obrigados são
solidários, salva estipulação em contrário”. Esta disposição não é extensiva aos não
comerciantes quanto aos contratos que, em relação a estes, não constituírem atos
comerciais. Exemplo: suponhamos que dois comerciantes, num único contrato,
compram peças de artesanato a dois artesãos. O ato é unilateralmente comercial, pois a
compra é mercantil (artigo 463.º/1 do Código Comercial) e a venda é civil (artigo
464.º/3 in fine do Código Comercial). O ato fica sujeito à disciplina jurídico-comercial,
mas os artesãos não são devedores solidários quanto à entrega das peças, a disposição
do artigo 100.º do Código Comercial é somente aplicável aos comerciantes, sendo estes
devedores solidários quanto à obrigação de pagamento do preço.
✓ Quando o ato unilateralmente comercial seja contrato de consumo18, aplicam-se a
ambos os contratantes as regras especiais das relações de consumo.

18 Os regimes do consumo são quase todos transposições de Diretivas Comunitárias, que estão constantemente a ser alteradas

no sentido de aumentar a tutela do consumidor. Estes contratos de consumo são também contratos comerciais na medida
em que aqueles que prestam ou vendem os serviços são, quase sempre, empresas comerciais.

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III - Compra e Venda Comercial (B2B)


1. Delimitação da Compra e Venda
O Contrato de compra e venda comercial é o mosteiro, em grande parte, das relações entre
comerciantes. O termo “comércio” divide-se em duas partes “com” e “merces”, o que significa
troca ou venda de mercadorias.
O Direito Comercial tem caráter fragmentário. Assim, pressupõe o Direito Civil no que diz
respeito aos contratos. Os casos que não estiverem especial ou excecionalmente previstos na
lei comercial (exemplo: artigos 463.º e seguintes Código Comercial), a técnica seguida pelo
legislador mercantil é a de pressupor a definição do Direito Civil e acrescentar-lhe notas
específicas de comercialidade. Esta é a doutrina que o Sr. Professor Pestana Vasconcelos
sustenta, embora este entendimento não seja unânime.
Ora, isto ocorre com o Contrato de compra e venda, definido no Código Comercial no seu
artigo 463.º. A Compra e venda comercial é um contrato que preenche os requisitos do artigo
874.º do Código Civil e o requisito adicional de comercialidade (o intuito de revenda que subjaz
ao momento aquisitivo do negócio).
Para o regime da compra e venda comercial ser aplicável exige-se a qualificação do ato como
objetivamente comercial. Não basta, nem é necessário, que o ato seja subjetivamente
comercial.
Da letra do artigo 463.º do Código Comercial resulta claramente que o intuito de revenda
presente no momento da compra é a condição necessária e suficiente da comercialidade. Temos
de atender a quatro critérios de qualificação dos atos como objetivamente comerciais, que
se encontram previstos no artigo 463.º do Código Comercial:
✓ Compra de bens móveis em geral – quanto a estes, o intuito deve ser revendê-los tal
como foram adquiridos, ou “trabalhados”19. Significa isto que, em rigor, o pressuposto
da comercialidade de uma venda não está no próprio ato, mas num contrato que está a
montante relativamente a ele (a compra e venda pelo qual o vendedor adquiriu) e no
intuito que presidiu à atuação do vendedor (na veste de comprador). Deste modo, é o
lado da compra que domina em matéria de qualificação.
✓ Compra de fundos públicos ou outros tipos negociáveis, para revenda;
✓ Compra de bens móveis em bruto ou “trabalhados”, quer se trate de fundos públicos ou
outros tipos negociáveis, quando a aquisição seja feito com o intuito de revender – a
não execução ou concretização do intuito é irrelevante para a qualificação, do mesmo
modo que o intuito formado ulteriormente à compra é também irrelevante. É o intuito
contemporâneo do ato que releva para ser considerado comercial.
✓ As compras de bens imóveis ou de direitos a eles inerentes, quando tiverem sido
realizadas para revender;
✓ A compra e venda de partes ou de ações de sociedades comerciais – por analogia a
compra e venda de empresas deve ser considerada mercantil;

19Objeto de alterações que não tocam a essência do bem e que permitem continuar a identificar o mesmo bem, não
implicando, portanto, a venda de um bem novo.

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Da mesma forma que o artigo 463.º do Código Comercial refere as compras e vendas
comerciais, o artigo 464.º do Código Comercial indica as compras e vendas não comerciais:
✓ Se o sujeito destina o bem móvel ao seu próprio uso ou consumo, não haverá
compra comercial, mesmo que ele o venha a revender ulteriormente. Mesmo que
aquele que adquire seja um comerciante, e este adquira um carro para a família, este
não é um ato comercial;
✓ As vendas que o proprietário ou o explorador rural faça dos produtos de propriedade
sua ou por ele explorada, e dos géneros em que lhes houverem sido pagas quaisquer
rendas. Exemplo: produtos agrícolas, pecuária, floricultura, etc;
✓ As compras que os artistas, industriais, mestres e oficiais de ofícios mecânicos que
exercerem diretamente a sua arte, indústria ou ofício, fizerem de objetos para
transformarem ou aperfeiçoarem nos seus estabelecimentos, e as vendas de tais
objetos que fizerem depois de assim transformados ou aperfeiçoados20;
✓ As compras e vendas de animais feitas pelos criadores ou engordadores;

Deste modo os números 2, 3 e 4 do artigo 464.º do Código Comercial excluem a comercialidade


das compras e vendas realizadas no contexto de atividades agrícolas, artesanais e pecuárias.
Contudo, sendo estas compras e vendas exercidas empresarialmente dão lugar a contratos de
compra e venda mercantis, não pelo artigo 463.º do Código Comercial, mas pelo artigo 230.º
do Código Comercial.
Porém, a esses contratos de compra e venda que cabem no escopo do 230.º do Código
Comercial não se aplica diretamente o regime dos artigos 465.º e seguintes do Código
Comercial. No entanto, pode ser-lhes aplicado por analogia, caso a concreta estatuição não
dependa estritamente do intuito de revenda puro que se deteta no setor comercial e se entenda
que se deve estender às atividades profissionais fora desse âmbito.

2. Determinação do preço
Tal como na lei civil, na compra e venda comercial, o preço não tem de estar determinado no
contrato. Há diferenças importantes na lei mercantil, que resultam do artigo 466.º CCom.
Na compra e venda mercantil, a regra é que o preço seja fixado pelas partes. No entanto, na
compra e venda mercantil, se o preço não estiver concretamente fixado, o contrato tem de
prever logo o modo como será determinado o preço, e, sendo essa determinação com recurso à
intervenção de terceiro, este tem logo de ser indicado (artigo 466.º do Código Comercial).
Não é assim no Código Civil. Se o contrato não previr o modo de determinação, vale
sucessivamente o preço normalmente praticado pelo vendedor, o do mercado ou bolsa do lugar
em que o comprador deva cumprir no momento do contrato e o fixado em Tribunal, segundo
juízos de equidade (artigo 883.º/1 do Código Civil).

20 Refere-se às atividades artesanais. Na altura em que o Código Comercial foi elaborado (1988), o artesanato era uma
atividade económica muito importante, por isso, ao interpretar o Código Comercial tem de se ter em conta a realidade
económica que o mesmo, necessariamente retrata. Assim, temos de fazer uma interpretação atualista a este regime de
Compra e Venda.

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Segundo o artigo 466.º do Código Comercial, se o terceiro que deve fixar o preço, por força do
estipulado contrato, o não fizer, o contrato ficará sem efeito, uma vez que a fixação do preço é
essencial na venda comercial. Igual solução deve valer para os casos em que o contrato não
prevê o modo de determinação ou não indica o terceiro.
A explicação deste regime é simples. A lei mercantil não permite uma intervenção heterónoma
que não se funde na vontade dos contraentes. No comércio, e em especial na compra e venda
para revenda, o preço obedece à lógica do lucro e não à da equidade. Por outro lado, sem preço
não há compra e venda.

3. Venda de coisas futuras


Em geral, no âmbito das relações de Direito privado é permitida a compra e venda de bens
futuros21, quer relativamente futuros, quer absolutamente futuros. A lei comercial admite,
também, a venda de coisas futuras, incertas ou esperanças. Há, no entanto, diferenças entre o
Direito Civil e o Direito Comercial.
Desde logo, tratando-se de ato civil, a venda de bens relativamente futuros (bens alheios) 22 só
é válida se no contrato ficar estabelecido que “as partes os consideraram nessa qualidade de
bens futuros” (artigo 893.º do Código Civil), ao passo que no Código Comercial se prevê a
validade independentemente de tal requisito23.
Por outro lado, tratando-se de bens pertença de outrem, e mesmo que não haja a menção acima
referida, a lei mercantil fixa imperativamente a obrigação central do vendedor: ele fica
obrigado a adquirir a propriedade e a entregá-la ao comprador, sob pena de incorrer em
responsabilidade contratual (artigo 467.º do Código Comercial).
Ora, no Código Civil, para o ato ser válido, ou há uma simples obrigação de meios (artigo
880.º/1 ex vi artigo 893.º), ou ficou estabelecida entre as partes a situação jurídica do bem e a
natureza aleatória do contrato (artigo 880.º/2). Só no caso de o ato ser nulo, por ser uma pura
venda de bens alheios, além de uma obrigação de convalidação, haverá lugar a responsabilidade
nos termos especiais do Código Civil (artigos 897.º e 900.º).

4. Vendas sobre amostra ou por designação de padrão


Segundo o artigo 469.º do Código Comercial “As vendas feitas sobre amostra da fazenda, ou
determinando-se só uma qualidade conhecida ao comércio, consideraram-se sempre como
feitas debaixo da condição de a coisa ser conforme à amostra ou à qualidade convencionada.”.

21As coisas futuras são aquelas que o vendedor não tem, mas conta e se obriga a adquirir e a outra parte sabe disso. Portanto
a coisa é perspetivada como futura.
22
O Sr. Professor Pestana Vasconcelos refere que se dá um relevo excessivo à venda de bens alheios no âmbito comercial. Isto
porque, no comércio, esta venda de coisa alheia não é comum, pois para que tal aconteça: (i) o sujeito tem de apresentar-se
como proprietário de algo que não lhe pertence e (ii) a contraparte não pode saber que ele não é proprietário. No comércio,
o mais comum é que o sujeito sabe que coisa não é do vendedor, pois o vendedor terá de adquirir, uma vez que o stock é
muito limitado. Isto não é uma venda de coisa alheia, é uma venda de uma coisa futura, o que prova que este regime é
fragmentário. Exemplo: vou comprar um automóvel a um stand, não estou à espera de que o tenham em stock.
23 Justamente porque o tráfico mercantil, assente na rápida circulação de bens e vendas de grande risco, impõe a ampla

possibilidade de venda de bens futuros.

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Estas vendas consideram-se sempre como feitas sob condição de as coisas corresponderem à
amostra ou qualidade.
Exemplo 1: um sujeito mostra a outro um modelo de um tecido. Realiza-se uma compra e
venda, que se encontra condicionada a que o tecido corresponda à amostra.
Exemplo 2: um sujeito encomenda 30 kg de café XPO. A venda é feita na condição de a coisa
entregue corresponder à qualidade entendida no comércio.

O professor entende que as “amostras” funcionam como um catálogo. Em 1988 havia


“amostras” em sentido literal. Atualmente, fazendo uma interpretação atualista inclui a venda
por via de catálogo.
Exemplo 3: A encomenda a B 3000 pregos de aço com determinados centímetros. São
qualidades conhecidas no comércio e, portanto, na verificação o material tem de corresponder
à amostra.
Não estamos a falar do comércio eletrónico, mas não impede que as mercadorias estejam
expostas e a pessoa possa ver as mercadorias no site da loja.

5. Compras que não estejam à vista, nem possam determinar-


se por um padrão
“As compras de coisas que se não tenham à vista, nem possam determinar-se por uma
qualidade conhecida em comércio, consideram-se sempre como feitas debaixo da condição de
o comprador poder distratar o contrato, caso, examinando-as, não lhes convenham.”
Isto é, o sujeito não viu a coisa que comprou, não lhe foi apresentada uma amostra e não
corresponde a uma qualidade conhecida no comércio.
Nestes casos há um regime específico previsto no artigo 470.º do Código Comercial. A venda
é feita, mas sob condição de o comprador, examinada a coisa, entender que ela lhe convém.
Atualmente, são casos pouco comuns.

O artigo 471.º do Código Comercial apresenta três hipóteses para os contratos dos artigos 469.º
e 470.º do Código Comercial se tornem perfeitos:
✓ A coisa é entregue ao comprador, que não faz logo a análise da mercadoria. Não o
fazendo tem um prazo de 8 dias para examinar a mercadoria e reclamar. Depois disso,
consolida-se a venda, mesmo havendo desconformidade.
✓ A coisa é entregue e o comprador examina-a no ato da entrega. Se a aceitar e não
reclamar contra a sua qualidade, não poderá reclamar posteriormente, consolida-se a
venda.
✓ O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no ato da
entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como
verificado.
No comércio é muito importante que as vendas se estabilizem, porque estamos face a uma
cadeia comercial. Este é um dos principais efeitos de grande relevância prática da qualificação
de uma compra e venda como uma compra e venda comercial.

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6. Regime Especial de resolução do Contrato de compra e


venda comercial por incumprimento da obrigação de
pagar o preço de mercadorias ocorrido antes da entrega ou
no momento desta
Se o vendedor tiver transmitido a propriedade das mercadorias, mas não tiver havido traditio
da coisa, encontrando-se a outra parte em mora quanto à obrigação de pagar o preço, a lei
(artigo 474.º do Código Comercial) permite-lhe em determinadas circunstâncias vender esses
bens a terceiro e satisfazer-se com a quantia recebida.
✓ Havendo diferença entre o valor que desta forma obtiver e o preço acordado, deverá
restituir a diferença positiva ao comprador inicial (exemplo 1).
✓ Se o valor obtido for inferior ao preço fixado, mantém-se credor do comprador inicial
pela diferença (exemplo 2).

Para além de ter de comunicar esta venda à sua contraparte do contrato inicial de compra e
venda (artigo 474.º, § 2.º do Código Comercial), terá de realizar a revenda em hasta pública,
ou, se as mercadorias tiverem preço cotado na bolsa ou no mercado, por intermédio de corretor,
ao preço corrente (artigo 474.º, §1.º do Código Comercial).

Exemplo 1: O vendedor vendeu por 10€, mas o comprador não pagou. Então o vendedor decide
revender por 12€. O vendedor terá de entregar 2€ (a diferença) à contraparte. Neste caso, ainda
que tenha de entregar a diferença, tem direito a uma indemnização se tiver sofrido um prejuízo
com o atraso. Portanto se ambos têm um crédito, recorre-se ao regime da compensação.
Exemplo 2: O vendedor vendeu por 10€, mas só consegue revender por 8€, face ao
incumprimento do comprador. O vendedor poderá exigir os 2€ em falta, à contraparte
incumpridora, para além do direito a uma indemnização pelo não cumprimento.
Face à mora da outra parte, o credor pode simplesmente exigir o cumprimento por via judicial,
e terá direito a ser indemnizado pelo atraso. Teremos de distinguir os casos em que as
obrigações, tanto de pagar o preço, como da entrega das coisas sejam puras ou a prazo.
Na primeira hipótese, será necessária a interpelação do devedor para cumprir. No segundo caso,
basta, o decurso do prazo para se vencer a obrigação.

7. Juros de mora comerciais


Os juros de mora nos termos do artigo 806.º do Código Civil são calculados à taxa legal, que
varia consoante sejam juros civis ou comerciais. Sendo juros comerciais aplica-se o artigo 102.º
do Código Comercial:
“Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os atos comerciais em que for de
convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código.
§ 1.º A taxa de juros comerciais só pode ser fixada por escrito.
§ 2.º Aplica-se aos juros comerciais o disposto nos artigos 559.º-A e 1146.º do Código Civil.
§ 3.º Os juros moratórios legais e os estabelecidos sem determinação de taxa ou quantitativo,
relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou
coletivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.

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§ 4.º A taxa de juro referida no parágrafo anterior não poderá ser inferior ao valor da taxa
de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de
refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja,
respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de sete pontos percentuais,
sem prejuízo do disposto no parágrafo seguinte.
§ 5.º No caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a
taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro
aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de
refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja,
respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais”.

7.1. Pressupostos para que se apliquem os juros de mora no âmbito


comercial
O credor tem de (i) ser titular de uma empresa comercial (§3 do artigo 102.º do Código
Comercial). Assim acontece, em regra, quando o titular for uma sociedade comercial, mas se
for uma empresa agrícola já não é considerada uma empresa comercial.
Nestes casos a lei criou um esquema móvel para se estabelecer o valor da mora:
✓ Os juros moratórios legais são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das
Finanças e da Justiça. Porém, este não pode ser inferior ao valor da taxa de juro
aplicada pelo BCE à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada
antes do 1.º de janeiro ou de julho. Assim, há uma variação semestral que se processa
da seguinte forma:
• Determina-se essa taxa de juro (deve andar à volta dos 2,5%);
• Acrescenta-se 7 pontos percentuais (o que significa que a taxa é de 9.5%);

8. Regime relativo ao atraso no pagamento das transações


comerciais
No âmbito de transações comerciais para efeitos do Decreto-Lei n.º62/2013, de 10 de maio
(relativo ao atraso no pagamento das transações comerciais24), mesmo que não tenha sido
fixado um prazo para a obrigação de pagar, esta vence-se quando decorra um dos factos
previstos no artigo 4.º/3 do Decreto, ligados à emissão da fatura e a entrega das mercadorias.
O vendedor numa compra e venda comercial fica sempre obrigado a emitir fatura na qual se
descrevem: os bens, os preços parciais, o preço global e, por força da lei fiscal, os impostos,
ou seja, o IVA. Esta fatura tem de ser entregue ao comprador com as mercadorias.
No que diz respeito ao preço, as consequências indemnizatórias consubstanciam-se nos juros
de mora, contados desde o dia do incumprimento. Na falta da estipulação pelas partes, aplicam-
se os juros moratórios legais calculados nos termos decorrentes dos § 4.º e 5.º do artigo 102.º
do Código Comercial.

24 Âmbito de aplicação deste diploma:


tem de se tratar de (i) transações entre empresas, que (ii) visem o fornecimento de bens
ou a prestação de serviços mediante remuneração. Este regime aplica-se também entre empresas e o Estado/entidades
públicas.

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Para além das consequências de caráter indemnizatório da mora, e das que decorrem da
aplicação do artigo 808.º do Código Civil há ainda uma inversão do risco da perda ou
deterioração das mercadorias, nos termos do artigo 807.º/1 do Código Civil, com a exceção
decorrente da aplicação nesta situação específica da relevância negativa da causa virtual (artigo
807.º/2 do Código Civil). Estando o vendedor em mora, passa a correr esse risco quando, não
fosse ela, correria já por conta do comprador.
Estando o devedor em incumprimento definitivo, o credor pode realizar ou manter a sua
prestação, e exigir uma indemnização pelo interesse contratual positivo, isto é, por tudo o que
teria ganho se o devedor tivesse cumprido pontualmente a sua obrigação, ou resolver o contrato
(artigo 801.º/2 do Código Civil).
Se resolver o contrato, fica desvinculado da sua contraprestação ou, se já a tiver realizado, pode
exigir a sua restituição. Mantém o direito a ser indemnizado, havendo uma divergência
doutrinal, sobre se ela se calcula pelo interesse contratual positivo, ou negativo, sendo este
aquilo que o credor teria obtido se tivesse celebrado um negócio alternativo. A primeira solução
é a correta.

9. Reserva de Propriedade
Um instrumento de grande relevo para proteção do comerciante na compra e venda comercial
é a reserva de propriedade.
Feita a entrega da coisa, o vendedor, não pode caso já se tenha transmitido, o que será a regra,
a propriedade das coisas resolver o contrato por falta do pagamento do preço (artigo 886.º do
Código Civil). Nestes casos só se pode socorrer na ação para cumprimento e nos instrumentos
relativos à mora.
O recurso à reserva de propriedade (artigo 409.º do Código Civil) impede justamente a
transmissão da propriedade, que se manterá na esfera do vendedor até ao integral pagamento
do preço.
Exemplo: A vende a B com reserva de propriedade a mercadoria por 10€. B é um comerciante
e quer vender com lucro e precisará até de vender para obter os meios para pagar a A. B vende
por 15€, utilizará 10€ para pagar ao vendedor com reserva de propriedade e ao pagar transmite-
se a propriedade para B e se ele já tiver revendido, por cadeia, transmitisse logo ao comprador
final.

A reserva de propriedade tem um regime específico (artigo 934.º do Código Civil), no âmbito
da compra e venda, se esta for realizada a prestações:
“Vendida a coisa a prestações, com reserva de propriedade, e feita a sua entrega ao
comprador, a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço
não dá lugar à resolução do contrato, nem sequer, haja ou não reserva de propriedade,
importa a perda do benefício do prazo relativamente às prestações seguintes, sem embargo de
convenção em contrário.”

Deste modo, para o vendedor ter direito à resolução do contrato, é exigido o incumprimento de
duas prestações, ou de uma prestação equivale a um oitavo do preço. Seria ainda assim, sempre
necessário ao abrigo do regime geral transformar a mora em incumprimento definitivo, através
da interpelação cominatória.

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Este regime de venda a prestações com reserva de propriedade tem força expansiva, aplica-se
a outros contratos que tenham uma finalidade económica ou que visem um resultado idêntico
à venda a prestações. Exemplo: o aluguer-venda. Esta figura tem um âmbito de aplicação que
abrange certas modalidades da locação financeira.

10. Coisa comprada a comerciante


Cria-se um problema quando o comprador não paga ao vendedor com reserva de propriedade,
uma vez que nesse caso nunca se transfere a propriedade do vendedor para o comprador e,
necessariamente, o comprador final não adquire nada.
Isto significa que o vendedor com reserva pode resolver o contrato. Se o fizer cessar, pode
reivindicar a propriedade do bem ao terceiro.
Exemplo: A vende a mercadoria a B. Ele coloca-a no seu estabelecimento e antes de pagar o
preço, revende a C. C não sabe que o vendedor lhe está a vender uma coisa que não lhe pertence.
A verdade é que B lhe está a vender uma coisa alheia, ainda que seja válida no comércio, o
consumidor arrisca-se a que o vendedor com reserva de propriedade lhe a oponha e exija a
restituição do bem.

Perante estes casos, a lei criou no artigo 1301.º do Código Civil um instrumento de tutela do
adquirente25.
Deste modo, para que este artigo se aplique, o comprador final tem:
✓ De estar de boa-fé;
✓ De ter adquirido a coisa a um comerciante que negoceie nesse tipo de bens ou bens
semelhantes;

Exemplo: A dirige-se a um estabelecimento de eletrodomésticos. Não sabe se o que lá está


pertence a terceiro, ou seja, se foi vendido ao vendedor com reserva de propriedade. A adquire
um frigorifico e leva-o para sua casa. Entretanto o comerciante (B) que lho vendeu não pagou
ao vendedor com reserva (C). O C decide resolver o contrato e como se mantém proprietário
da coisa vai reivindicá-la ao A que comprou a coisa a B. Se A estiver de boa-fé, como adquiriu
a comerciante que negoceia esse tipo de bens (eletrodomésticos), encontra-se tutelado pelo
artigo 1301.º do Código Civil.

11. Incoterms
Os contratos de compra e venda, especialmente os internacionais, mas, também, nacionais
obedecem grande parte das vezes a um conjunto de regras que visam determinar: o risco do
perecimento das mercadorias, a realização do seguro e o pagamento dos transportes.

25 NOTA: Este mecanismo de tutela não é a aquisição por terceiro, não é uma espécie de aquisição a non domino, ele não

adquire o bem. Simplesmente, o comprador final pode não entregar o bem ao vendedor com reserva de propriedade
enquanto ele não lhe pague aquilo que o comprador final pagou ao comerciante que lhe vendeu o bem e incumpriu o contrato
com o vendedor com reserva de propriedade.

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A disciplina dos contratos internacionais assenta principalmente na Lex Mercatoria,


composta por um conjunto de cláusulas, muitas vezes emergentes de verdadeiros usos, que
formam parte do conteúdo típico – socialmente – destes contratos.
Neste domínio, recorre-se com frequência no âmbito da contratação comercial aos
“incoterms”, cláusulas padronizadas elaboradas pela Câmara de Comércio Internacional (CCI)
incluídas nos contratos de compra e venda que visam regular aspetos como o lugar do
cumprimento, transferência do risco e custo de transporte.
A CCI tem listas extensas que atualiza periodicamente, alguns dos mais comuns incoterms
são:
✓ EXW (“ExWorks”) - o lugar de cumprimento é o estabelecimento do vendedor
(por exemplo, a fábrica ou o armazém), cabendo ao comprador realizar o seu
transporte e corre o risco de perecimento da mercadoria desde a data da
concentração.
✓ FOB (“free on board”) – é uma cláusula de transporte marítimo e significa que o
devedor cumpre, transmitindo-se o risco, quando a mercadoria for colocada dentro
do navio. A despesa do transporte marítimo e seguro da mercadoria, correm por
conta do credor.
✓ FAS (“free alongsideship”) – é similar com a FOB, com a diferença de o lugar do
cumprimento ser a colocação da mercadoria ao lado do navio (e não dentro, como
a FOB).
✓ FOR (“free on railway”) – cláusula paralela para o transporte ferroviário. O
devedor cumpre, transmitindo-se a propriedade e o risco, com a entrega na estação
ferroviária do despacho da mercadoria. O custo do transporte ferroviário corre
também por conta do credor.
✓ CIF (“coste, insurance and freight”) – o devedor assume as despesas do
transporte e obriga-se a realizar, e pagar, o seguro das mercadorias (mas o risco
desde a entrega ao transportador corre por conta do comprador, sendo, por isso,
“Schickschulden”).
✓ DDT (“delivered duty paid”) – significa o máximo de obrigações por parte do
devedor: ele corre o risco até à entrega no lugar de destino designado (constituem
Bringschulden, de cumprimento junto do credor), bem como o custo do transporte
e as despesas do desalfandegamento.

Estas cláusulas são do comércio internacional, mas também se utilizam no comércio interno,
porque simplificam a elaboração dos contratos na medida em que são conhecidas e permitem
uma estandardização.

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IV - Dos Comerciantes
1. Introdução
Os sujeitos de atos de comércio podem ser comerciantes ou não comerciantes.
Os sujeitos (singulares ou coletivos) com capacidade civil de exercício possuem igualmente
capacidade comercial de exercício, i.e., podem praticar atos de comércio nos termos do artigo
7.º do Código Comercial.
Os não comerciantes (ou civis) têm um relevo muito limitado. Exemplo: A comprou um livro
para revender a B.
Um comerciante é uma pessoa singular ou coletiva, com capacidade de exercício, que pratica
atos de comércio, nos termos do artigo 7.º Código Comercial.
O comerciante:
1. Tem estatuto próprio que se traduz, principalmente, no seguinte:
✓ Os atos dos comerciantes são considerados subjetivamente comerciais, nos
termos da 2ª parte do artigo 2.º do Código Comercial;
✓ As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no
exercício dos respetivos comércios (artigo 15.º do Código Comercial; e tais
dívidas são, em princípio, da responsabilidade dos comerciantes e dos seus
cônjuges – artigo 1691.º/1 alínea d) do Código Civil);
✓ A prova de certos factos em que intervêm comerciantes é facilitada nos termos
do artigo 396.º do Código Comercial;
✓ Há prescrição dos créditos no prazo de dois anos nos termos do artigo 317.º
alínea b) do Código Civil;

Nos termos do artigo 18.º do Código Comercial, os comerciantes estão obrigados a:


2. Adotar uma firma (nome do comerciante);
3. Ter escrituração mercantil;
4. Inscrever no registo comercial dos atos por ele abrangidos;
5. Dar balanço e prestar contas;

2. Sujeitos qualificáveis como comerciantes


2.1. Pessoas singulares
As pessoas singulares têm de ter, nos termos do artigo 13.º Código Comercial:
1. Capacidade para praticar atos de comércio:
✓ A doutrina discute se a capacidade exigida é a capacidade jurídica
(capacidade de gozo) ou a capacidade de exercício de direitos.
A posição tradicional e maioritária, na qual se inclui o Dr. Coutinho de
Abreu, entende que a norma se refere à capacidade de exercício, sendo os
seus argumentos:
• A “prática” de atos de comércio e a “profissão” mercantil hão de
referir-se à capacidade de agir, não à mera idoneidade para se ser
titular de direitos e obrigações;

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O artigo 13.º do Código Comercial dispõe no mesmo sentido do
artigo 7.º do Código Comercial relativo à capacidade de exercício
para a prática de atos do comércio;
• Por outro lado, segundo tal interpretação do artigo 13.º do Código
Comercial, os menores (não emancipados) e maiores acompanhados
não poderiam nunca ser comerciantes. Mas não é assim. A doutrina
defende, tendo em conta algumas normas legais, uma compreensão
do artigo 13.º do Código Comercial com algumas restrições:
o Nos termos do artigo 1889.º/1 alínea c) do Código Civil e do
artigo 2.º alínea b) do Decreto-Lei 272/2001, de 13 de
outubro, os pais, autorizados pelo Ministério Público, podem
representar os filhos na prática atos de comércio. Tal tutela
também se estende ao tutor ou administrador de bens do
menor (artigos 1938.º/1 alíneas a) e f) e 1971.º/1 e 2 do
Código Civil), bem como ao acompanhante com poderes de
representação legal ou de administração dos bens do maior
(artigo 145.º/4 e 5 do Código Civil). Assim, os menores e
maiores acompanhados que exerçam comércio por
intermédio de representantes autorizados, devem ser
considerados comerciantes.
2. Fazer do comércio profissão:
✓ O “exercício profissional de determinada atividade”26 trata-se de um conceito
preciso: o exercício habitual de uma atividade económica como meio de vida
para gerar lucro. Isto é, de modo habitual ou sistemático (prática de atos em
série). Não se exige que seja a única profissão nem a principal.
✓ Fora deste âmbito está a prática de:
• Atos subjetivamente comerciais - não atribui a qualidade de
comerciante, pressupõe-na;
• Atos formalmente comerciais - a sua prática, mesmo que habitual, não
pode denotar o exercício da profissão. Exemplo: um agricultor que
recorre sistematicamente ao crédito, aceitando por isso letras de câmbio,
não exerce qualquer profissão comercial pelo facto de habitualmente
praticar atos de comércio cambiários);
• Atos de comércio acessórios – neste ponto a doutrina diverge;

3. Além disso, só são comerciantes quando exerçam atividade comercial em nome


próprio
✓ Segundo o Dr. Coutinho de Abreu, é comerciante a pessoa que exerce
pessoalmente e a título profissional o comércio ou em cujo nome ele é
exercido.

26 Esta definição terá impacto, por exemplo, no âmbito do Direito Bancário, porque tendo em conta esta definição só

determinadas empresas é que poderão praticar, profissionalmente, a locação financeira.

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2.1.1. Empresas mercantis


Os comerciantes, em regra, têm empresas mercantis, isto é, uma organização de meios
materiais (exemplo: computadores, máquinas), imateriais (exemplo: uma marca, uma patente)
que têm uma determinada posição no mercado.
Praticamente, todos os comerciantes têm de ter uma organização mínima deste conjunto de
fatores que visa a prática de atos mercantis.

Como vimos, um comerciante em nome individual, responde com todos os seus bens perante
as dívidas contraídas no decurso da sua atividade e, eventualmente, até os bens do cônjuge. Daí
que não muito vulgar a existência de comerciante em nome individual o mais comum é que
sejam pessoas coletivas.

2.2. Pessoas coletivas


2.2.1. Sociedades comerciais
As sociedades comerciais são classificadas como comerciantes nos termos do artigo 13.º/2 do
Código Comercial e do artigo 1.º/2 do Código das Sociedades Comerciais (CSC). Adquirem a
qualidade de comerciantes, pelo menos, a partir do momento em que adquirem personalidade
jurídica, isto é, com o registo, nos termos do artigo 5.º CSC (o registo tem caráter constitutivo),
ou seja, para tal não é necessário que pratiquem atos de comércio.
São sociedades cujo objeto é a prática de atos do comércio e que adotam uma das quatro formas
previstas no artigo 1.ºCSC:
• Sociedade em Nome Coletivo;
• Sociedade em Comandita;
• Sociedade por Quotas;
• Sociedade por Ações.

Uma sociedade pode ter um único sócio, nesse caso é unipessoal, ou mais do que um sócio e é
pluripessoal.
É comum a existência de sociedades unipessoais porque, muitas vezes, um sujeito constitui
uma sociedade e atua através dela, sendo que, assim, quem é responsável pelas dívidas é a
sociedade.

2.2.2. Sociedades civis sob forma comercial


O artigo 1.º/4 CSC permite que estas sociedades que tenham um objeto não comercial possam
adotar uma das formas previstas para as sociedades comerciais e a partir daí aplicam-se todas
as regras do Código das Sociedades Comerciais, mesmo que não sejam comerciantes, o regime
tem força expansiva.
Por isso é que a distinção entre o comércio em sentido jurídico e o setor primário não tem
grande relevância, porque numa exploração agrícola vai-se constituir uma sociedade civil, mas
que depois adota uma forma comercial do artigo 1.º CSC e a partir daí aplica-se o Código das
Sociedades Comerciais.

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Ainda assim, as sociedades civis de tipo ou forma comercial, não têm objeto comercial e não
exercem atividade mercantil, logo não são sociedades comerciais e, consequentemente, não são
comerciantes, nos termos do artigo 13.º/2 do Código Comercial27.

2.2.3. Outras pessoas coletivas


Há um conjunto de outras pessoas coletivas que também são comerciantes, além das sociedades
comerciais, são elas:
✓ Cooperativas - antes do Código Cooperativo de 1980, as cooperativas eram reguladas
pelo Código Comercial, enquanto sociedades. Embora, não qualificáveis como
sociedades já que não têm escopo lucrativo (podem gerar excedentes que depois terão
de ser distribuídos aos cooperantes), nada impede que cooperativas com objeto
comercial sejam consideradas comerciantes nos termos do artigo 13.º/1 do Código
Comercial e do artigo 5.º CSC.
✓ Entidades públicas empresariais - aquelas que têm por objeto a prática de atos de
comércio serão comerciantes nos termos do artigo 13.º/1 do CSC e do artigo 5.º do
CSC. Exemplo: um hospital é uma EPE, mas não pratica atos de comércio;

3. Sujeitos não qualificáveis como comerciantes


✓ Pessoas singulares ou coletivas que tenham por objeto atividades agrícolas (e
atividades acessórias), isto é, cultura de plantas, a criação de animais sem terra ou em
que esta apresenta um caráter acessório, silvicultura e pecuária;
✓ Os artesãos - produtores qualificados que, podendo servir-se de máquinas, utilizam
predominantemente o seu trabalho manual. O artigo 464.º/3 do Código Comercial
exclui do comércio a atividade artesanal industrial-transformadora exercida,
diretamente, pelos artesãos (oleiros, ferreiros, alfaiates, sapateiros). As atividades
artesanais situadas sobretudo no domínio dos serviços, quando exercidas, diretamente,
pelos artesãos (estucadores, eletromecânicos, cabeleireiros, esteticistas) também não
são comerciantes.
✓ Os profissionais liberais - pessoas singulares que exercem de forma habitual e
autónoma atividades que são, essencialmente, intelectuais suscetíveis de
regulamentação e controlo próprio, exercido, em grande parte, pelas Ordens (médicos,
advogados, arquitetos, etc.). Quando se trata de sociedades com mais do que um
profissional liberal são sociedades civis, embora possam adotar a forma comercial;
✓ Trabalhadores autónomos como escultores, pintores, artistas, músicos. A arte está
afastada do comércio, ainda que possa ser uma atividade lucrativa, mas não são
comerciantes;
✓ O Estado, enquanto administração central, (artigo 17.º do CSC) e as pessoas coletivas
territoriais (Autarquias Locais e Regiões Autónomas). É possível que estas entidades
explorem empresas comerciais, mas não adquirem a qualidade de comerciante.

27Ver, neste sentido, o n.º 4 do preâmbulo do Decreto-Lei 262/86 de 2 de setembro que aprovou o Código das Sociedades
Comerciais

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Não existe, nas palavras do Dr. Coutinho Abreu, incompatibilidade entre o exercício
profissional do comércio e o exercício de funções públicas, porém a lei veda a
classificação de comerciante ao Estado (em sentido amplo), a entidades públicas de
tipo institucional (exceto as EPEs), associações e fundações de direito privado com
fim desinteressado ou altruístico. Exemplo: A Universidade do Porto é uma fundação
de direito privado, é uma entidade pública. Tem uma loja, essa loja é uma empresa,
visa o lucro. Trata-se de uma entidade pública que explora uma empresa que visa o
lucro, mas não é por isso que se torna comerciante;
✓ Pessoas coletivas de tipo institucional28 - empresas públicas e institutos públicos ou
de carácter associativo. O Estado, em regra, sempre que visa exercer uma atividade
económica de carácter potencialmente lucrativo recorre a sociedades comerciais de
capitais públicos ou sociedades de economia mista ou entidades públicas empresariais.
✓ Sociedades sem personalidade jurídica: as sociedades civis sob forma comercial têm
personalidade jurídica, constituem-se com o registo. Mas podemos ter, também,
sociedades civis sem personalidade jurídica, que são sociedades relativamente às quais
já foi celebrado um contrato que tem por objeto a prática de atos de carácter não
comercial, e às quais não se atribui personalidade jurídica;
✓ Sociedades que mesmo sendo sociedades comerciais ainda não foram objeto de
registo - não o sendo não são ainda pessoas coletivas. O Dr. Coutinho de Abreu
entende que não têm personalidade jurídica plena, mas têm alguma subjetividade
jurídica (são um centro de imputações), tendo capacidade de gozo e de exercício
suficiente para praticarem atos de comércio ainda antes de se proceder ao registo (estes
tipos de sociedades e as sociedades civis que não têm personalidade jurídica estão
sujeitas à insolvência).

28 Para mais esclarecimentos ver pág. 153 a 157 da sebenta.

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V - Direito Bancário
1. Autonomia e objeto do Direito Bancário
Ninguém pode participar na vida económica se não tiver uma conta bancária. O cerne do
Direito Bancário consiste na intermediação financeira (atividade que só pode ser desenvolvida
pelos Bancos). Deste modo, o Direito Bancário assume um carácter essencial para as empresas
e para os particulares, pois não conseguem inserir-se economicamente na vida moderna sem
ter acesso a um conjunto de serviços bancários.
Os Bancos constituem uma modalidade das instituições de crédito que são “as empresas que
recebem do público depósitos ou outros fundos reembolsáveis e concedem crédito por conta
própria” (artigo 1.º-A/1 RGICSF).
O Banco desempenha essencialmente três tipos de funções:
i) De guarda de bens;
ii) Concessão de crédito;
iii) Serviços de pagamento, que estão regulados atualmente no RSP (Regime de
Serviços de Pagamento);

1.1. O núcleo do Direito Bancário


1.1.1. A receção de depósitos e a concessão de crédito
O Banco recolhe poupanças através de depósitos29, de que fica devedor, e concede crédito, por
via de diversos contratos, dos quais resulta sempre um crédito pecuniário sobre o creditado.
O Banco concede crédito às empresas, e aos particulares, muitas vezes sob forma de crédito
hipotecário ou de crédito ao consumo. O crédito empresarial passa praticamente todo pela
Banca, na Europa. Nos EUA, as empresas financiam-se muito através do mercado de capitais,
emitem ações e abrem o capital social no Mercado de Valores Mobiliários.
Na Europa, o financiamento é quase todo bancário. A Banca fá-lo através de um conjunto de
contratos, como o mútuo, a antecipação bancária, a abertura de crédito, a locação financeira
(leasing) e a cessão financeira (factoring).
Uma das razões das fragilidades do Banco é, assim, estrutural:
• Em regra, as pessoas singulares ou coletivas têm créditos sobre o Banco, mas que são
exigíveis a pronto.
• Mas o Banco, por sua vez, utiliza essas quantias para produzir moeda através da
concessão de crédito;
Porém, a concessão de crédito é sempre a prazo, ou seja, o Banco não pode exigir que
as pessoas paguem antes.

29
Ora, os depósitos, sendo à ordem, ou a prazo (mas permitindo a sua mobilização antecipada), estão imediatamente
disponíveis para os credores/depositantes.
Contudo, o mesmo não se passa com os créditos decorrentes dos contratos através dos quais se aplicam estes recursos. A
restituição do capital é realizada a prazo.

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A instituição é: devedora a pronto e credora a prazo (o chamado maturity mismatch).


Nesta medida, o Banco nunca tem liquidez suficiente para satisfazer todos os créditos dos seus
depositantes se eles os solicitarem ao mesmo tempo. Por essa razão, o Banco é extremamente
vulnerável à chamada “corrida” aos bancos (run to the banks), que consiste, essencialmente,
em todos os depositantes, ou pelo menos um número inusual deles exigirem ao mesmo tempo
a restituição das quantias aí depositadas (como sucedeu recentemente com o Northern Rock).
Mais do que isto, tem efeitos sistémicos, dadas as relações interbancárias e provoca a
desconfiança generalizada no sistema bancário como um todo, gerando uma “corrida geral” a
todos os bancos.
Da articulação entre estes aspetos, decorre que a estrutura bancária é, em si mesma, instável.
Sendo esta a estrutura típica da atividade bancária, que o artigo 1.º-A/1 do RGICSF retrata, e
tão gravosas as consequências da sua perturbação, tornou-se necessária, num desenvolvimento
histórico em que a crise de 1929 teve um papel preponderante, a criação de instrumentos de
regulação e supervisão da atividade em si, e dos sujeitos que a ela se dedicam.
Essa regulação e supervisão está, em regra, entregue a uma entidade independente. Ela visa,
por via de regras prudenciais, a sua fiscalização e garantir a boa gestão da banca, em especial
quanto à sua solvabilidade e liquidez.
Anteriormente, a supervisão cabia ao Banco de Portugal, mas, por força da união bancária, a
supervisão das instituições de crédito significativas (em função de determinados índices) cabe
diretamente ao BCE.
Se as regras e a supervisão não forem suficientes gera-se uma crise bancária. Mesmo um banco
pequeno tem de ser supervisionado de uma forma muito apertada, porque tem consequências
sobre os outros bancos.

1.2. A moeda bancária – a sua criação


Historicamente, o Banco foi criado para que quem tivesse determinados valores os pudesse
guardar em segurança (inicialmente, o ouro). A determinada altura, o Banco emitia títulos que
permitiam ao seu titular exigir a entrega dessas quantias. Esses títulos passaram depois a
circular entre os particulares, e foi assim que nasceram as notas de Banco (emitidas por cada
Banco, e o Banco obrigava-se a pagar determinada quantia em ouro).
Mais tarde, as notas de Banco, passaram, por força da lei, a ter de ser aceites como meio de
pagamento. Assim, a emissão de notas e moedas deixou de ser feita por cada um dos Bancos e
passou a ser feita pelo próprio Estado, ou seja, pelo Banco Central (criado para esse efeito).
Em Portugal temos o Banco de Portugal, mas por força da união bancária europeia quem tem
a emissão monetária de notas e moedas é o Banco Central Europeu (BCE).
Atualmente, as notas de banco são muito pouco utilizadas, porque aquilo que circula
essencialmente é a moeda escritural. Os Bancos, entes privados, criam moeda escritural, que
consiste em saldos de contas bancárias. Portanto, as pessoas necessitam de um Banco para

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terem aí “depositadas” determinadas quantias monetárias que lhes pertencem, mas que
constituem efetivamente em créditos sobre o Banco.

1.3. Os sistemas de pagamento


O desenvolvimento tecnológico, em especial da informática, ao permitir o tratamento de
volumes enormes de dados em massa, conduziu à criação de sistemas de pagamento que
passam pelo sistema bancário sem que se manuseie moeda legal30.
Assim, os serviços de pagamento são toda a circulação de moeda na vida económica que se
faz através do sistema bancário, recorrendo-se sempre à necessidade de existência de uma conta
bancária e, depois, de instrumentos que permitem a circulação da moeda escritural de conta em
conta, imediatamente. Exemplo: cheques, cartões de débito, cartões de crédito, MbWay;
Deste forma, os Bancos passaram também a assumir a função de intermediários dos
pagamentos.
Importa aqui fazer menção ao Banco de Portugal:
Uma das principais missões do Banco de Portugal, segundo o artigo 14.º da LOBP é a de
“regular, fiscalizar e promover o bom funcionamento dos sistemas de pagamentos,
designadamente no âmbito da sua participação no Sistema Europeu de Bancos Centrais
(SEBC)”.
Porém, as suas funções não se limitam à regulação e fiscalização - os Bancos Centrais31
intervêm diretamente no funcionamento dos próprios sistemas. Com efeito, eles são
proprietários e/ou operam diversos sistemas de pagamento.
No caso dos serviços de pagamento estamos perante uma complexa e pormenorizada disciplina
legal - o regime jurídico dos serviços de pagamento (RSP) – regula o acesso à atividade das
instituições de pagamento e a prestação de serviços de pagamento, bem como o acesso à
atividade das instituições de moeda eletrónica e a prestação de serviços de emissão de moeda
eletrónica (artigo 1.º/1 RSP). Isto confere uma importância crucial ao Banco, porque se um
Banco for declarado insolvente isso atinge as próprias cadeias de pagamento. Por isso, o Banco
é nuclear na vida económico-social.

30 A moeda legal é a moeda emitida pelas autoridades estaduais de um país e que por força da lei é aceite como meio de
pagamento. Já a moeda escritural é a moeda bancária, sendo necessário para a sua circulação a criação de conta bancária.
31 Há um Regulamento Euro-Digital que regula que vai ser o próprio BCE a emitir moeda escritural, invés dos Bancos centrais

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2. Sistema Financeiro
Juridicamente, nos termos do artigo 101.º CRP “O sistema financeiro é estruturado por lei, de
modo a garantir a formação, captação e a segurança das poupanças, bem como a aplicação
dos meios financeiros necessários ao desenvolvimento económico e social”.
No que diz respeito ao sistema financeiro, podemos fazer a seguinte distinção:
• Setor Bancário – assente no binómio de recolha de poupanças através de depósitos/
concessão de crédito. Os respetivos órgãos de supervisão e regulação consistem no BCE
e no Banco de Portugal.
• Setor do mercado de capitais ou financeiro em sentido estrito – engloba no seu seio
os valores mobiliários, os instrumentos monetários e os derivados. O respetivo órgão
de supervisão e regulação consiste na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários
(CMVM).
• Setor dos seguros – os seguradores podem captar recursos diretamente do público
(como sucede com as operações de capitalização), como faz parte da sua atividade
assegurar créditos da Banca, e face à Banca, o que é instrumental à concessão de crédito.
O respetivo órgão de supervisão e regulação consiste na autoridade de supervisão de
seguros e fundos de pensões (ASF).
Um dos aspetos mais marcantes do atual sistema financeiro é a crescente interpenetração entre
os seus diferentes subsectores. Em rigor, este aspeto é particularmente relevante no que diz
respeito à atividade dos bancos.
(i) As instituições de crédito são também os principais intermediários financeiros,
atuando mesmo por conta própria nos mercados de valores mobiliários (artigo 4.º/1/
alínea e) do RGICSF). Contudo, quando assim é atuam em vestes diferentes e estão
sujeitas também ao regime do CVM e ao órgão de supervisão e regulação (a
CMVM).
(ii) De forma paralela, os bancos são veículos de colocação de seguros junto do público,
podendo ser mediadores de seguros (artigo 4.º/1/ alínea m) do RGICSF). É muito
comum fazerem-no relativamente a seguradores que com eles fazem parte do
mesmo grupo. De facto, diversos produtos bancários, como sejam empréstimos,
cartões de crédito e débito, são propostos com um conjunto de seguros associados,
alguns deles de caráter complementar, como o seguro de vida ligado ao crédito de
longo prazo. A ligação próxima entre os seguros e a Banca é usualmente designada
de banqueassurance.
(iii) Para além dos Bancos serem veículos de colocação de seguros, eles próprios
oferecem produtos que visam a cobertura do risco de incumprimento
desempenhando o papel de seguros, como sucede com os credit default swaps, ou
os derivados climáticos (weather derivatives).
(iv) Os fundos de que a Banca carece para desenvolver a sua atividade não são só
obtidos por via de depósitos, mas também no mercado interbancário, o que pode
provocar problemas graves de liquidez, se este deixar de funcionar, como a crise
financeira de 2007 abundantemente documenta.

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(v) Os Bancos recorrem aos mercados financeiros não só como forma de obter
financiamento (proprietary trading), mas também para efeitos de proteção do risco
(hedging).
(vi) Os clientes dos bancos confundem muitas vezes produtos típicos bancários, com
produtos de mercado de capitais, por serem comercializados pelos Bancos ao
“balcão”, pese embora o forte reforço dos deveres de informação sobre estes
produtos. Ou seja, uma pessoa que tenha uma conta de moeda escritural (depósitos)
pode também ter uma conta de valores mobiliários (ações, obrigações, etc.). Como
o Banco também atua no âmbito dos Valores Mobiliários, será o Banco que vai
fazer estas mobilizações.

3. A Constituição da relação bancária


A relação de um sujeito com o Banco não se esgota num único contrato de abertura de conta.
Ela passa pela celebração de múltiplos contratos, de conta corrente, de cheque, de cartões, de
transferências, de crédito, etc.
3.1. O Contrato bancário geral ou Contrato Abertura de conta
Pode definir-se conta bancária, em sentido técnico, segundo a Dra. Conceição Nunes como
“um registo, organizado numa base pessoal, cronológico e sintético das operações de entrega
e reembolso de fundos, constitutivas, modificativas ou extintivas do crédito unitário ao
reembolso”. É aí que o Banco regista os créditos e os débitos e apresenta-nos um saldo final,
sendo que os créditos não têm de ser por ação do próprio titular, podendo ser por ação de
terceiros (exemplo: uma transferência).
É a conta que permite aos sujeitos participar no moderno tráfego económico em que a grande
generalidade das transações se realizam através do sistema bancário, recorrendo a moeda
escritural.
3.1.1. Conteúdo
O contrato de abertura de conta tem um conteúdo muito mais extenso do que a constituição de
uma conta no banco. É um negócio extremamente amplo e complexo, decorrendo daqui a
relação bancária geral. A abertura de conta, mesmo em si, isoladamente considerada, tem um
significado constitutivo, porque estabelece a base, o suporte, de todas as outras operações entre
o banco e o cliente.
O contrato pode ser analiticamente decomposto em dois elementos:
(i) O seu conteúdo mínimo, donde decorre um conjunto de direitos e deveres para as partes;
(ii) E os conteúdos dos restantes contratos que as partes poderão vir a celebrar: cheque,
cartão de crédito, depósitos a prazo, conta de valores mobiliários, etc.
(i) Quanto ao primeiro aspeto, o contrato tem como conteúdo a conta corrente e alguns dos
elementos de mobilização a crédito e a débito da conta: depósitos num sentido amplo, débito
direto, cartão de débito e transferências bancárias. Integram-se aí contratos de conta corrente,
de depósito e alguns serviços de pagamento.

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Este é o núcleo central, que pode ter um conteúdo mais restrito ou mais extenso, mas estes são
os aspetos que integrarão o seu mínimo socialmente típico. Estes elementos podem ser isolados
em contratos per se, mas aqui compõem o conteúdo de um único contrato. Todos são contratos
de prestação de serviços, por isso este contrato inicial tem um fortíssimo elemento dessa
categoria contratual.

(ii) O segundo elemento é composto pela previsão das condições dos diversos contratos que o
banco pode vir, mas não tem de o fazer, a celebrar com os clientes: cartão de crédito, cheque,
transferências, depósitos a prazo, muito frequentemente a abertura de crédito.
O contrato de abertura de conta tem uma importância muito grande porque é ele que funda a
relação bancária entre as partes, sendo denominado, por isso, contrato bancário geral. Este
(i) produz de imediato efeitos entre as partes no que toca aos negócios, desde logo, celebrados
e (ii) prevê o conteúdo de outros a celebrar. Não decorre daqui, no entanto, em regra, a
obrigação de celebrar contratos futuros.
Este contrato embora não sendo legalmente típico, é, de forma clara, socialmente típico, tendo
em conta a uniformidade das cláusulas contratuais gerais a que os diversos bancos recorrem.
O Banco, a não ser em casos pouco vulgares, não negoceia o conteúdo deste contrato nuclear
com os seus clientes, daí ser um contrato composto por cláusulas contratuais gerais. É um
contrato celebrado por adesão, sendo um contrato muito extenso.
Deve ser qualificado como um contrato quadro, isto é, há um contrato inicial que regula as
relações entre as partes. Deste modo, as partes quando contratam, naquilo que são os contratos
de segundo grau, vão absorver o regime/ conteúdo previsto no contrato quadro.

3.1.2. Deveres de informação e aconselhamento por parte do Banco


integrados na relação bancária
Atendendo à relação de confiança que se cria entre as partes decorre dela um conjunto de
deveres decorrentes da boa-fé (artigo 762.º/2 Código Civil). É nesse âmbito que se discute se
e em que medida os bancos têm o dever de informação, proteção do património e de
aconselhamento dos seus clientes.
Alguns destes deveres decorrem logo da lei em termos gerais, como o dever de informação
(artigo 77.º do RGICSF), ou em âmbitos mais restritos, como no crédito ao consumo (artigo
6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2/6 – dever de assistência ao consumidor).
Por outro lado, o artigo 74.º do RGICSF estabelece que, na relação entre Banco e Cliente, o
Banco tem de atuar com “respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados”.
Este é o quadro, mas como se resolve a questão?
O Sr. Professor faz uma separação:
✓ Sempre que o Banco atuar no âmbito dos Valores Mobiliários e, por isso, como
intermediário financeiro - a essa atuação do Banco aplica-se o Código dos Valores

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Mobiliários. Exemplo: um Banco que vende um produto financeiro (ações,


obrigações).
✓ Quando os Bancos atuam sem ser no âmbito do setor dos Valores Mobiliários -
nesta sede é importante saber efetivamente que deveres existem. Temos de ter em conta,
para determinar a existência e a intensidade desses deveres,
(i) a duração da relação contratual;
(ii) o tipo de negócio em si e
(iii) a qualidade da contraparte do Banco.
• É diferente ser um consumidor, um pequeno comerciante ou uma sociedade
anónima.
• Se a contraparte não tiver capacidade (i) para fazer as perguntas adequadas e
(ii) para perceber bem o alcance da informação que o Banco lhe está a prestar,
o Banco deve (i) de modo próprio fornecer essa informação e (ii) fornecê-la de
modo claro.
• Não basta um défice de informação por parte do cliente, para que a iniciativa
de esclarecimento seja da instituição de crédito. Sabendo da sua existência, das
suas insuficiências é ao cliente que por regra cabe a procura de informações, de
aconselhamento, adequados para formular o seu juízo.
• Mas se para além desse “desnível de informação”, se verificar igualmente uma
“particular necessidade de proteção” que o impeça de colocar as perguntas
adequadas, ou que tal não lhe seja “exigível” é então necessária a iniciativa do
Banco.

Isto é assim se nós estivermos aqui unicamente no âmbito do sistema bancário. Agora, se o
Banco estiver a atuar como intermediário financeiro aí aplicam-se-lhes, como vimos as regras
do Código dos Valores Mobiliários, e nesse âmbito há efetivamente um conjunto de deveres
mais extensos:
(i) dever de conhecer o cliente e
(ii) verificação do caráter adequado dessa operação;
Há uma ampla jurisprudência do STJ32 sobre esta matéria, que está muito relacionada com a
venda de determinados produtos financeiros (no âmbito do BPN e do Banco Espírito Santo) e

32 Há um Acórdão do STJ de 28/02/2019 que diz o seguinte: “a densidade do dever de informação resulta tanto das
características do produto financeiro, que o intermediário financeiro tem, obrigatoriamente, de fornecer ao cliente, como da
necessidade de suprimento da insuficiência de conhecimento ou experiência revelada pelo cliente”.
O Acórdão do STJ de 28/03/2019 refere: “o dever de prestação de informação que recai sobre o intermediário financeiro não
dispensa em absoluto o investidor de adotar um comportamento diligente, visando-se o total esclarecimento”. No caso
concreto, tratava-se de uma pessoa com formação superior e administrador de empresas habituado a subscrever produtos
financeiros. Entendeu-se que o Banco não tinha qualquer dever de informação.
Um dos casos que foi ao STJ tinha a ver com a comercialização de um conjunto de produtos financeiros que foram sendo
vendidos como produto de capital de garantia. Aqui há uma diferença porque se forem depósitos estão garantidos pelo Fundo
de Garantia de Depósitos, não sendo depósitos estão garantidos pelo próprio Banco. Aqui a questão que se colocava era se
teria sido exigível ao Banco dar essa informação ou não. O entendimento genérico foi de que dependia da pessoa: se se

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a linha decisória diz que cabe ao cliente um dever de atuar diligentemente e de pedir as
informações adequadas.

4. Os Contratos de Crédito
4.1. Mútuo em geral e o Mútuo Pecuniário Oneroso
O mútuo é o modelo básico dos contratos de crédito. Tal como está previsto e regulado no
Código Civil caracteriza-se por se um contrato unilateral, real quanto à constituição “pelo qual
uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada
a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade” (artigo 1142.º do Código Civil).
O mútuo pode ser:
✓ Gratuito ou oneroso, consoante seja retribuído ou não. A retribuição será feita sob a
forma de juros (artigo 1145.º/1 do Código Civil). A modalidade do mútuo que será objeto
da nossa atenção será o mútuo pecuniário oneroso.
✓ Garantido ou não, ou seja, o crédito à restituição do capital e, eventualmente, ao
pagamento de juros, pode estar tutelado por uma garantia. Esta pode ser pessoal (por
exemplo, uma fiança), real (por exemplo, um penhor ou hipoteca) ou assente na
titularidade de um direito (por exemplo, a cessão de créditos em garantia).
✓ Simples ou de escopo. Estamos face ao primeiro quando o mutuário não assume qualquer
dever quanto ao destino da quantia emprestada. O mútuo será de escopo quando a
contraparte do mutuante se obriga a empregar essa quantia para determinado fim.
Como já foi referido, o mútuo é um contrato real quanto à constituição, ou seja, o contrato
não está concluído enquanto, para além das declarações de vontade, não for também feita a
entrega da coisa33 (do dinheiro) ao mutuário. Concluído o contrato, mesmo que se tenham
acordado juros, as obrigações decorrentes estão unicamente a cargo do mutuário.
Nada obsta, porém, a que se celebre um contrato de mútuo consensual atípico. Neste caso,
será já um contrato bilateral, sinalagmático. Obtido o acordo o contrato conclui-se, daí
decorrendo a obrigação para o mutuante de entregar o capital. Caso não o faça, a outra parte
pode recorrer à ação para cumprimento.
No que diz respeito à forma, sem prejuízo de lei especial, o mútuo civil de valor superior a
25 000 € só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular
autenticado e o de valor superior a 2 500€ se o for por documento assinado pelo mutuário
(artigo 1143.º do Código Civil).

tratasse de uma pessoa que tivesse capacidade para fazer as perguntas adequadas, um administrador de uma empresa, ou
uma pessoa com determinado nível educacional, entendeu-se que a pessoa tinha capacidade de entender e que o Banco não
tinha esse dever de informação.
33Note-se que o crédito em conta realizado pelo banco na conta do mutuário, no âmbito do mútuo bancário, constitui a
entrega. O que está em jogo nestes casos é só a moeda escritural, sendo ela o objeto do contrato.

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Aspeto nuclear no regime do mútuo é a transmissão da propriedade das coisas mutuadas para
o mutuário (artigo 1144.º do Código Civil). Isto é, o credor deixa de ser titular das quantias e
passa a ser simplesmente titular de um crédito à restituição das quantias. O mutuante perdendo
a propriedade da coisa, passa a correr o risco da insolvência do mutuário, sendo um contrato
de risco muito elevado para o mutuante.
Faz parte do mútuo a existência de um período mínimo de gozo do bem por parte do mutuário,
que atendendo ao que se retira do artigo 1148.º/1 e 2 do CC, deverá ser de trinta dias.
4.1.1. A natureza das obrigações do mutuário no mútuo oneroso
No mútuo oneroso, o mutuário está obrigado a pagar os juros e a restituir o capital (decorrido
o prazo contratual/denunciado o contrato/resolvido o contrato/vencida antecipadamente a sua
obrigação de restituição).
Estas obrigações têm natureza diversa:
✓ Obrigação de restituir o capital - obrigação com prestação instantânea. Esta obrigação
não depende do período para se constituir e pode ser realizada num só momento. Muitas
vezes fraciona-se esta prestação, amortizando-se o capital ao longo do tempo.
✓ Obrigações de juro – têm por objeto prestações duradouras, reiteradas. São prestações
que se vão constituindo com o decurso do tempo. Visam remunerar a cedência de um
certo montante de capital por um determinado período.

Desta diferente natureza surgem resultados práticos muito diferentes em caso de


incumprimento por parte do mutuário:
✓ Quanto à restituição do capital - nos termos gerais, face ao incumprimento vigora as
regras da perda do benefício do prazo (artigo 780.º do Código Civil). O credor pode
exigir imediatamente o pagamento das prestações em falta. Em caso de resolução do
contrato, produzem-se efeitos retroativos no que diz respeito às prestações já realizadas
(artigos 433.º e 434.º do Código Civil).
✓ Quanto às obrigações de juros - se o contrato for resolvido não há lugar a qualquer
restituição dos juros já recebidos (artigo 434.º/2 do Código Civil). Igualmente, não há
perda do benefício do prazo relativamente aos restantes juros que ainda não se
constituíram.
Isto decorre do AUJ de 25/3/2009 (Cardoso Albuquerque), nos termos do qual: “No contrato
de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo da
cláusula de redação conforme ao artigo 781.º do Código Civil não implica a obrigação de
pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”.
Efetivamente, os juros relativos a períodos futuros não são devidos, porque se referem a
períodos que ainda não decorreram, isto porque os juros constituem a contrapartida por banda
do mutuário da utilização dessa quantia, por esse período de tempo, a que se encontram ligados
(por exemplo, um ano, nos juros anuais).

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Exemplo: A empresta a B 10 000€ a um ano, com pagamento semestral de juros. Temos aqui
uma distinção clara do que é o capital e do que são os juros.
Exemplo: A empresta a B uma determinada quantia a 20 anos em que mensalmente o devedor
paga numa única prestação global, em que uma parte diz respeito à amortização do capital e
uma outra parte diz respeito aos juros. O facto de estarem integradas numa única prestação,
não significa que não tenham regimes distintos. São chamadas prestações compósitas, porque
são compostas por dois elementos.

4.1.2. O prazo
As partes podem ter acordado num prazo ou ter concluído o contrato sem prazo.
Na primeira hipótese, se o mútuo for oneroso, o prazo presume-se estipulado a favor de ambas
as partes34. Permite-se, porém, que o mutuário antecipe o pagamento, desde que satisfaça os
juros por inteiro (artigo 1147.º do Código Civil), o que tutela o interesse do credor à sua
perceção.
A presunção é ilidível, pelo que nada obsta a que se convencione o pagamento antecipado do
capital e, somente, dos juros corridos até esse momento.
Pelo contrário, também se poderá acordar que nem com o pagamento antecipado de juros o
devedor pode cumprir antes de ter decorrido o prazo.
Se não se tiver fixado o prazo, decorre do artigo 1148.º do Código Civil que se se tratar de um
mútuo gratuito a obrigação se vence decorridos trinta dias após a exigência do seu
cumprimento. Cumprida a obrigação, extingue-se o contrato.
Sendo um mútuo oneroso sem fixação de prazo, “qualquer das partes pode pôr termo ao
contrato, desde que o denuncie com uma antecipação mínima de trinta dias” (artigo 1148.º/2
do Código Civil).

4.1.3. A resolução
Se for incumprida a obrigação de capital, o credor terá de recorrer, nos termos gerais, à
interpelação cominatória do artigo 808.º do Código Civil. Se se tratar de uma prestação
fracionada, o incumprimento de uma prestação dará lugar à exigibilidade antecipada das outras
(artigo 781.º do Código Civil). Resolvido o contrato, operam-se os efeitos retroativos, tendo de
ser restituídas as prestações que o mutuante já recebeu (artigo 434.º/1 do Código Civil). Sendo
a prestação fracionada, só haverá direito à resolução se se passar o crivo do artigo 802.º/2 do
Código Civil.

34O credor não pode exigir a quantia antes de decorrido aquele período, mas o devedor também não pode pagar antes de
decorrido aquele período de tempo.

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No que diz respeito às obrigações de juros, está prevista no artigo 1150.º do Código Civil uma
norma excecional, não sendo necessário recorrer à interpelação cominatória para se resolver
depois o contrato. Basta a mora.
O fundamento apresentado radica na posição de debilidade do mutuante face ao mutuário, uma
vez que este passa a ser o titular do dinheiro, passando a outra parte a ter um simples crédito à
restituição. Ora, na insolvência o referido direito poderá ser objeto de um pagamento muito
limitado. É tendo em conta este aspeto que a lei permite a resolução imediata do contrato.
Evidente é que se tem de atentar ao princípio previsto no artigo 802.º/2 do Código Civil, em
que se obsta à resolução quando o incumprimento tenha escassa importância, atendendo ao seu
interesse.
Tendo em conta a ratio da norma, o seu regime não se deve estender àqueles casos em que o
mutuante não se encontre na posição típica de fragilidade decorrente do mútuo. É o que sucede
quando este seja titular de uma garantia sólida: pessoal, real, assente na titularidade de um
direito. Nestes casos, o artigo 1150.º do Código Civil deve ser interpretado restritivamente.

4.2. Mútuo Comercial


O Mútuo comercial denomina-se empréstimo mercantil e está previsto no artigo 394.º do
Código Comercial. A sua regulação, aí, porém, é escassa. Limita-se ao caráter retributivo do
mútuo e à forma.
Em primeiro lugar, o mútuo é comercial quando a coisa cedida, aqui o dinheiro, “seja destinada
a qualquer ato mercantil35” (artigo 394.º do Código Comercial).
Não é necessário que o mutuante seja comerciante. Em rigor, o mutuário também não. Tal
sucede se, por exemplo, ele pretenda essa quantia para comprar para revenda (artigo 463.º do
Código Comercial). A compra e venda é um ato objetivamente mercantil, embora neste caso
não seja e nem precisa de ser subjetivamente comercial.
Exemplo: se A emprestar a B certa quantia, sendo que nenhum deles é comerciante, e B
pretender esse empréstimo para comprar um móvel para revenda, ele destina essa quantia para
a prática de um ato comercial, e nessa medida é um mútuo comercial.
O regime que a lei liga ao mútuo comercial é um regime abusivo:
✓ O artigo 395.º do Código Comercial determina que o mútuo comercial é sempre
retribuído;
✓ Na falta de previsão de taxa, aplica-se a taxa legal (artigo 395.º, §único do Código
Comercial);
✓ Por fim, o empréstimo mercantil, se for entre comerciantes, admite, seja qual for o
seu valor, todo o género de prova (artigo 396.º do Código Comercial). Ou seja,
significa que não está sujeito a forma.

35É um ato de comércio acessório. Mas o empréstimo bancário é um ato comercial autónomo, por força do artigo 362.º do
Código Comercial.

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4.3. Mútuo Bancário


O mútuo é um dos negócios centrais da atividade bancária, constituindo um ato comercial
autónomo (artigo 362.º do Código Comercial). Ele é o modelo da concessão de crédito, sendo
celebrado em massa, de forma profissional, pelos bancos.
Não se trata, ao contrário do que sucede no mútuo civil, de um contrato real quanto à sua
constituição, mas sim de um mútuo consensual socialmente típico no comércio bancário.
Sendo o mutuante um banco (ou outra instituição de crédito36), aplica-se o artigo único do
Decreto-Lei n.º 32 765, de 29/4/1943, que aligeira os requisitos de forma, bastando37 o escrito
particular, mesmo quando a outra parte não seja comerciante, independentemente do seu valor.
Porém, sempre que o contrato de empréstimo mercantil tenha sido celebrado pelo banco com
um comerciante, aplica-se os artigos 394.º e 396.º do Código Comercial, vigorando assim a
liberdade de forma.
Consequentemente, sempre que do regime comercial resulte uma forma menos exigente, será
essa a forma exigível para o mútuo bancário. O artigo único do Decreto-Lei n.º 32 765, de
29/4/1943 não impõe essa mesma forma quando da lei comercial ou da própria lei civil resultar
uma exigência menor.

4.3.1. Modalidades de empréstimos bancários


Podemos estabelecer as seguintes classificações de empréstimos bancários:
✓ Quantos aos prazos (artigo 4.º/1 e 2 do Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8/5):
• Empréstimos de curto prazo - quando o prazo de vencimento não exceda um
ano;
• Empréstimos de médio prazo - quando o prazo de vencimento seja superior a
um ano, mas não exceda cinco anos;
• Empréstimos de longo prazo – se o prazo de vencimento for superior a cinco
anos.
✓ Quanto às garantias:
• Garantidos – caso o mutuante beneficie de garantias dos seus créditos, sejam
elas de natureza real, pessoal ou assentes na titularidade de um direito;
• A descoberto – quando os créditos não sejam garantidos.
✓ Quanto ao mutuário:
• Crédito ao consumo;
• Crédito empresarial.
✓ Quanto ao número de mutuantes:
• Simples;
• Sindicados.

36 Que nos termos dos seus estatutos e do RGICSF tenha capacidade para conceder crédito.
37 Deve-se interpretar o “bastando” como um dever, sendo o escrito particular uma exigência de validade e não uma opção.

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✓ Quanto à vinculação do mutuário na utilização do capital emprestado:


• Simples;
• De escopo – emprestado para um fim convencionalmente determinado.

4.3.2. As condições do empréstimo


A taxa de juro contratual será aquela resultante da livre negociação entre as partes, não havendo
regra específica sobre esta matéria, sendo aliás o que resulta do artigo 7.º/1 do Decreto-Lei n.º
349/98, de 11/11. Isto não significa que não existam limites para a taxa de juros. Eles decorrem
do artigo 1146.º do Código Civil:
✓ 3% para os juros remuneratórios, quando o crédito esteja assegurado por uma garantia
real;
✓ 5% para os juros remuneratórios, quando o crédito não beneficie de uma garantia real;
✓ 7% para os juros moratórios, quando o crédito esteja assegurado por uma garantia real;
✓ 9% para os juros moratórios, quando o crédito não beneficie de uma garantia real;
Inicialmente, os limites da taxa aplicavam-se só ao contrato de mútuo. Porém, em 1983, o
Decreto-Lei n.º 262/83 aditou o artigo 559.º-A ao Código Civil, que conferiu força expansiva
a este regime. Assim, os limites máximos passaram a aplicar-se a “toda a estipulação de juros
ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga, renovação,
desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito ou outros análogos”.
Mas estes limites aplicam-se ao mútuo bancário?
O entendimento tradicional da doutrina e da jurisprudência desde 1990 é o de que os juros
bancários estão liberalizados e, portanto, não sujeitos às limitações do artigo 1146.º do
Código Civil. Tal resultaria do Aviso n.º 3/93, n.º 2, do Banco de Portugal, onde se dispõe:
“São livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras as taxas
de juro das suas operações, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal.”
Ou seja, segundo este entendimento, estes limites do artigo 1146.º do Código Civil vinculam
toda a gente, exceto os bancos.
Posição contrária, ou seja, que os limites do artigo 1146.º do Código Civil, também se aplicam
aos bancos foi assumida pelo Sr. Doutor Silva Loureiro, pelo Sr. Doutor Pedro Pais de
Vasconcelos e pelo Sr. Professor Miguel Pestana Vasconcelos. Segundo os mesmos, é preciso
atentar ao contexto histórico:
✓ Até à Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1990, quem propunha as taxas era o Banco
de Portugal, através de um conjunto de avisos, e fazia isso porque a Lei orgânica do
Banco de Portugal o permitia. A partir de 1990, o Banco de Portugal deixou de poder
impor taxas. Portanto, o que resulta do disposto no Aviso n.º 3/93 é que as taxas estão
liberalizadas, porque o Banco de Portugal não as pode impor. Mas estarem liberalizadas
não significa que estejam afastadas dos limites legais, e foi essa inferência que foi feita.
Assim, este entendimento dá os seguintes argumentos:

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✓ Os avisos do Banco de Portugal têm a natureza de regulamentos, pelo que não podem
ir para além do que a lei habilitante, neste caso, a Lei orgânica do Banco de Portugal;
✓ O Aviso n.º 3/93 ressalva as taxas fixadas por diploma legal. Ora, o artigo 1146.º do
Código Civil, cujo âmbito é alargado pelo artigo 559.º-A e pelo artigo 102.º do Código
Comercial, também fixa taxas, como limites máximos.
✓ Mesmo que o Aviso tivesse o conteúdo de efetivamente liberalizar as taxas de juro, ele
seria simplesmente ilegal. Desde logo, dada a inexistência de lei habilitante, uma vez
que os estatutos do Banco de Portugal não lhe conferem qualquer poder para o efeito.
Em segundo lugar, porque, como é claro, um Aviso que consiste num regulamento não
pode derrogar uma lei.
✓ Para além disso, não se vê uma razão que justificasse nesta altura afastar para as
instituições de crédito dos limites decorrentes da lei geral. Se assim fosse estariam
criados dois regimes. Exemplo: se um pai emprestasse dinheiro a um filho, estaria
sujeito às limitações dos juros usurários. Se uma sociedade comercial não bancária
emprestasse a uma outra sociedade comercial, eventualmente dentro do grupo, estaria
sujeita aos máximos legais - contudo, se qualquer um destes sujeitos fosse contrair um
empréstimo num banco, este já não teria de obedecer a essas limitações, podendo fixar
taxas de valor superior ao permitido pelo artigo 1146.º do Código Civil (com o limite
geral do artigo 282.º do Código Civil).
Nesta matéria ainda não há jurisprudência dominante.

4.4. Contrato De Abertura De Crédito


A abertura de crédito é um dos contratos mais celebrados no comércio bancário. Trata-se de
um contrato nominado, integrado nas operações de banco (artigo 362.º do Código Comercial),
em regra, legalmente atípico, mas socialmente típico. Em termos de qualificação, trata-se de
um contrato bilateral, sinalagmático, consensual, duradouro e, em regra, é oneroso.
O único aspeto do contrato em geral previsto na lei é o cálculo dos juros. Com efeito, de acordo
com o artigo 6.º/2 do Decreto-Lei n.º 58/2013, 8/5, os juros relativos “às operações de abertura
de crédito, empréstimos de conta corrente ou outras de natureza similar serão calculados em
função dos montantes e períodos de utilização efetiva dos fundos pelo beneficiário”.
Em termos doutrinais, a abertura de crédito pode ser definida como o contrato pelo qual o
Banco (o creditante) coloca à disposição da outra parte, o beneficiário (ou creditado) uma
quantia pecuniária que este tem o direito, nos termos aí definidos, de utilizar (mas não tem de
o fazer), pelo período acordado ou por tempo indeterminado, pagando o respetivo preço, ou
seja os juros, ou só em parte, e pelo tempo que necessitar.
Na abertura de crédito temos:
✓ O contrato inicial de abertura de crédito – que determina o conteúdo dos negócios
subsequentes e as condições em que a soma disponibilizada poderá ser utilizada. É
assim um contrato quadro.

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✓ Negócios subsequentes – podem ser bilaterais (exemplo: mútuo) ou unilaterais


(exemplo: aval);
A abertura de crédito poderá ser onerosa ou gratuita, consoante o beneficiário pague, ou não,
uma contrapartida pela disponibilidade da quantia. Esta contrapartida denomina-se comissão
de abertura de crédito, sendo em regra calculada de forma percentual sobre o valor do crédito
aberto, podendo, no entanto, as partes acordar uma outra fórmula de cálculo.
Quando não se fixe qualquer comissão pela disponibilidade dessa quantia (por exemplo, o
descoberto autorizado), a abertura de crédito será gratuita. Nesta eventualidade, o banco,
embora não veja a disponibilidade do dinheiro remunerada, pretende a utilização dessa quantia
ou de parte dela, para auferir juros38.
Quando a abertura do crédito for onerosa, a remuneração do creditante é dupla: a comissão de
abertura e os juros (função meramente eventual), calculados sobre o montante e o período de
utilização efetiva do crédito à taxa fixada.

4.4.1. Modalidades
✓ De acordo com o critério da reposição da disponibilidade do crédito, a abertura de
crédito poderá ser:
• Simples - o beneficiário poderá utilizar o crédito, uma vez, na sua totalidade,
ou recorrer a utilizações parciais até se atingir o limite fixado no contrato.
Contudo, as restituições, no todo ou em parte das quantias movimentadas, não
permitem repor o valor inicial. Exemplo: o valor da abertura de crédito é de
1000€. Significa que ele pode ir movimentando até 1000€. Suponhamos, que
ele movimenta até 500€, e depois restitui 200€. Ao restituir não repõe o valor
do crédito disponibilizado, ele mantém-se em 500€, apesar da dívida dele ter
diminuído.
• Em conta-corrente - as restituições que o beneficiário faça das quantias
utilizadas (e também dos juros a elas correspondentes) permitem repor a
disponibilidade, no todo ou em parte, de acordo com o valor restituído.
Exemplo: celebrámos um contrato de abertura de crédito, durante 6 meses, pelo
valor de 5000€. O sujeito utiliza 2 000€, decorridos 3 meses paga 1000€. Ou
seja, o sujeito ainda podia utilizar 3000€, a partir do momento em que paga
1000€, o valor do crédito que ele pode, no futuro, utilizar, passou para 4000€.
✓ Quanto ao tempo, a abertura de crédito pode ser celebrada:
• a termo certo, em regra, por prazos automaticamente prorrogáveis, salvo
oposição,
• por tempo indeterminado, hipóteses menos comuns. Neste último caso, o
contrato cessa por denúncia39.

38 São a contrapartida da utilização em concreto do crédito e não da disponibilidade. Assim, a disponibilização do crédito não
é remunerada, mas a efetiva utilização do crédito já o é.
39 A denúncia é um ato de cessação do contrato celebrado por tempo indeterminado, e não carece de motivação, mas carece

de pré-aviso.

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✓ Quanto à finalidade, e em termos semelhantes ao mútuo, o crédito pode:


• estar destinado por força de cláusula contratual – a um determinado fim;
• ser livremente utilizado pelo beneficiário na sua atividade.
✓ A abertura de crédito poderá:
• ser garantida40, caso o banco beneficie de uma garantia que assegure os seus
créditos à restituição das quantias utilizadas e aos juros. O crédito assegurado
pela garantia é o do saldo final, decorrente ou do decurso do prazo ou da sua
cessação antecipada. Tal não obsta a que se possa convencionar, só ou em
conjunto, a prestação de uma garantia para cada mobilização de capital.
• a descoberto, quando tal não sucede.
As aberturas de crédito são concedidas, também, em regra, a particulares. Consiste na
permissão que o Banco concede ao consumidor de dispor de fundos que excedem o saldo da
sua conta de depósito à ordem. Este é um caso de abertura de crédito legalmente típica que
sucede no âmbito do regime do crédito ao consumo, denominada “ultrapassagem de crédito”.
Um caso diverso é o do descoberto tolerado. Não há contrato, mas o banco admite, ou vai
admitindo, que o cliente continue a movimentar a conta, mesmo quando esta não tenha já saldo
positivo, por curtos períodos de tempo, para debelar uma necessidade momentânea. O Banco
não assume qualquer obrigação, pelo que poderá a todo o momento exigir a reposição do saldo
da conta (a valores positivos, ou pelo menos, a zero).
Todavia, se o banco vier a admitir de forma consecutiva facilidades de caixa a um seu cliente
ao longo do tempo, gerando uma situação de confiança justificada na manutenção dessa
situação, exige a boa-fé que, caso queira deixar de o fazer, deverá informá-lo com uma
antecedência determinada, dentro de outras circunstâncias, pelos valores em causa, o período
de tempo ao longo do qual foi admitindo esse recurso, etc.

4.5. Antecipação Bancária


Este contrato caracteriza-se por ser um empréstimo pecuniário, em regra de curto prazo, cujo
montante está em permanente relação com o valor de uma garantia, cujo objeto são direitos ou
bens móveis corpóreos, que lhe está ligada.
A manutenção de uma margem entre a quantia emprestada e a garantia é essencial, tendo de se
manter ao longo de toda a relação contratual. Por isso, se o valor da garantia diminuir, o Banco
poderá exigir a sua reposição, e, por outro lado, se a outra parte realizar restituições parciais do

40 Muito comum, na prática, é a prestação de uma fiança geral


ou “omnibus” pelos sócios, ou só o sócio-gerente, da sociedade
com quem se celebra o contrato de crédito, abrangendo as quantias que forem utilizadas. É também corrente o recurso a uma
livrança em branco, com pacto de preenchimento, subscrita pela sociedade creditada e avalizada pelos sócios desta e, mesmo,
por vezes, pelos seus cônjuges. O que acontece se a sociedade não pagar? Exemplo: vamos supor que o valor em dívida são
6000€ de capital e 500€ de juros. O Banco vai preencher a quantia em dívida da letra com 6500€, a letra foi emitida pela
Sociedade, e, portanto, a sociedade responde, mas há uma garantia que foi prestada pelo sócio, e, em regra, pelo cônjuge
também. O que quer dizer que o Banco pode executar diretamente os patrimónios, quer do cônjuge, quer do sócio-gerente.

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montante do empréstimo, ela poderá exigir a diminuição da garantia para que se mantenha essa
relação entre esta e a quantia emprestada.
Exemplo: o Banco A antecipa 50 000€ à empresa B, mas exige que a empresa B constitua
garantias a favor do Banco A, que têm de ter sempre um valor superior a 20% do montante em
dívida. Neste caso concreto, o valor das garantias teria de ser de 60 000€, e esta diferença tem
de se manter ao longo do contrato. O que quer dizer que se as garantias se desvalorizarem
(exemplo: se for um penhor de valores mobiliários), e em vez de valerem 60 000€ passarem a
valer 55 000€, significa que o sujeito tem de reforçar as garantias, ou então pagar parte do
crédito, de forma a manter a proporção entre o crédito e a garantia.
Trata-se de uma relação sempre imediata e proporcional, variando a quantia emprestada tem
de variar a garantia, e vice-versa.
Estamos assim face a um contrato complexo com duas variantes:
✓ Temos um elemento de crédito – que pode ser um mútuo ou uma abertura de crédito;
✓ Temos um elemento de garantia – pode ser uma garantia qualitativa, sob a forma de
penhor ou transmissão fiduciária, cujo objeto serão, em regra, valores mobiliários.
Em terceiro lugar, temos um nexo de proporcionalidade, a margem, entre aqueles dois
elementos que se tem de manter ao longo do período de vigência do contrato.
Assim, o que temos essencialmente é um contrato misto.

4.6. Locação Financeira


A locação financeira é um dos mais importantes instrumentos de concessão de crédito, em
termos económicos e sociais, tanto empresarial, como ao consumo.
Quem tenha um conhecimento mínimo da organização empresarial41 sabe que grande parte dos
meios e bens que a integram é detida em locação financeira. Exemplos: automóveis, máquinas;
Do ponto de vista do crédito ao consumo, trata-se de um instrumento muito comum de
financiamento de aquisição de uma viatura automóvel e também de habitação.
A locação financeira consiste numa figura que foi regulada pelo legislador antes de ter ainda
relevo na prática comercial. Visou-se promover a sua utilização pelos agentes económicos,
embora inicialmente só no âmbito empresarial. Todavia, o seu objeto veio a ser sempre
alargado, até que, em 1995, passou a poder ter por objeto qualquer bem que pudesse ser dado
em locação (artigo 2.º/1 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6), destinado tanto à atividade
empresarial como ao consumo.
Porque é que o legislador português tipificou este contrato logo em 1978 no Governo do Sr.
Professor Mota Pinto? Porque queria promover a locação financeira, e a melhor maneira de a
promover era dar-lhe um quadro legal seguro.

41A locação financeira é interessante para as empresas, porque adquirem os bens a uma taxa de juro mais baixa, mas também
porque permite-lhes utilizar as despesas que vão fazendo como forma de, em termos fiscais, reduzir a matéria tributada.

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4.6.1. Caracterização
A lei define locação financeira como o contrato pelo qual “uma das partes se obriga, mediante
retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou
construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período
acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos
critérios nele fixados” (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
Como deveres principais do locador financeiro temos:
✓ Dever de concluir o contrato de compra e venda ou de empreitada que tenha por objeto
a coisa escolhida pelo locatário financeiro; Exemplo: A celebra um contrato com o
Banco para adquirir um avião que ainda não foi construído. Significa que o Banco terá
de celebrar um contrato de empreitada com o fabricante do avião, para que ele construa
o avião.
✓ O dever de conceder o gozo dessa mesma coisa ao locatário financeiro para os fins a
que se destina;
✓ O dever de, se o locatário financeiro o quiser, lha vender, decorrido o prazo contratual
(artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
O locatário financeiro, da sua parte, deverá pagar as rendas financeiras acordadas.

4.6.2. As funções
Estamos face a um contrato bifronte, com uma função dupla: crédito e garantia. Esta última
traduz-se no recurso à propriedade do bem, que o locador adquire e mantém na sua esfera até
recuperar totalmente o capital despendido com a sua aquisição, mais os juros.
Trata-se de um contrato de garantia assente na titularidade do bem42. Tem uma especial
vantagem se o locatário se tornar insolvente, uma vez que aquele bem (objeto da locação
financeira) não integra a massa insolvente do locatário, porque estará integrado na massa
patrimonial do locador financeiro. A posição deste, nestas circunstâncias, é muito mais forte,
porque assenta na propriedade ou titularidade de um determinado bem.
Por outro lado, concede-se crédito. Todavia, ao contrário do que sucede com os outros
instrumentos de financiamento bancário, como o mútuo, a antecipação, o factoring, ele não se
traduz na entrega de dinheiro que o creditado poderá usar indistintamente na sua atividade.
O financiamento dirige-se aqui a um bem específico que a empresa utilizará na sua atividade,
durante o prazo contratual. O crédito é o preço pago pelo locador na sua compra. Exemplo: O
Banco compra a carrinha por 30 000€, o valor do crédito são os 30 000€. A utilização dos bens
pela empresa permitir-lhe-á gerar os meios para amortizar o capital e pagar os juros.

42Por exemplo, nos contratos fiduciários, um sujeito transfere ações para o banco que é o financiador. Este financiador
mantém-nas na sua esfera e só as retransmite se a outra parte satisfizer o valor em dívida. Se o locatário não pagar e entrar
em incumprimento definitivo, o financiador pode transacionar esses bens no mercado e, com o valor obtido pela venda das
ações satisfaz o montante em dívida. Chama-se a esta ação o mecanismo de autossatisfação por parte do financiador.

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O locatário financeiro ao longo do período contratual paga as rendas financeiras, que são
prestações compósitas:
(i) uma parte é composta pela amortização do capital;
(ii) a outra parte é o juro acordado.
Decorrido o período contratual, o cliente pode adquirir ao Banco através de um contrato de
compra e venda o bem por um valor residual.
Assim, temos uma relação trilateral, na medida em que há três intervenientes, mas que assenta
em dois contratos. Eventualmente, poderá haver um terceiro contrato.

4.6.3. As partes no Contratos de Locação Financeira


As partes do contrato são o locador e o locatário financeiro.
Quanto ao primeiro, só podem exercer a “título profissional” (artigo 8.º/2 do RGICSF) a
atividade de locação financeira:
✓ Os bancos (artigo 4.º/1/ alínea b) RGICSF);
✓ As instituições financeiras de crédito (IFIC);
✓ As Sociedades de Locação financeira (artigo 1.º/1 do Decreto-Lei n.º 72/95, de 15/4).
Sem ser a título profissional, não há propriamente limitações. O que se percebe com facilidade,
pois estamos perante um importante instrumento de crédito, cujo exercício profissional a lei
reserva a determinadas entidades.
Não há requisitos específicos quanto ao locatário financeiro. Poderá ser, de entre outros, um
comerciante, um profissional liberal, um ente público ou, mesmo, fruto da evolução do regime,
um consumidor.
Com efeito, a locação financeira passou a poder ter por objeto bens de consumo, aplicando-se-
lhe, nessa medida, verificados os pressupostos, o regime do crédito ao consumo.

4.6.4. Objeto da Locação financeira


A locação financeira pode ter por objeto “quaisquer bens suscetíveis de serem dados em
locação” (artigo 2.º/1 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
Podemos distinguir:
✓ Locação financeira mobiliária – cujo objeto são bens móveis. Exemplos: automóveis,
aviões, satélites, comboios, material militar.
✓ Locação financeira imobiliária – tem por objeto bens imóveis; com as devidas
adaptações de disciplina, deve incluir-se o estabelecimento comercial43, uma vez que
pode ser objeto de locação (exemplo: 1109.º do Código Civil).
✓ Alguns autores defendem, inclusive, que ações e obrigações podem ser dadas em
locação financeira.

43É possível adquirir-se o estabelecimento comercial diretamente ou adquirir o sujeito jurídico que detém o estabelecimento.
No caso de uma pastelaria, temos a pastelaria, enquanto estabelecimento, e o dono da pastelaria, que poderá ser uma
sociedade comercial.

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✓ O Sr. Professor Pestana Vasconcelos entende que podem ser objeto de locação
financeira também marcas e patentes44. Dada a especialidade do objeto, o regime da
locação financeira terá de ser adaptado a estes bens e completado com o regime da
licença.
O Sr. Professor Pestana Vasconcelos entende que a locação financeira em relação a patentes
deve ser admitida porque, em Portugal, existe a licença de patente - o sujeito permite a outro
explorar aquela patente, durante um determinado período, mediante o pagamento de uma
contrapartida, os chamados royalties. A doutrina entende que este caso, na sua essência, trata-
se de uma verdadeira locação.

4.6.5. Prazos da locação financeira


Existe, hoje, uma grande flexibilidade no que toca aos prazos da locação financeira. A lei
limita-se a estatuir, por um lado, que, quando o contrato tenha por objeto coisas móveis, o
prazo não deve ultrapassar o período presumível de utilização económica dessa coisa (artigo
6.º/1 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
Por outro lado, o negócio não pode ter duração superior a 30 anos, considerando-se reduzido a
esse limite se o ultrapassar (artigo 6.º/1 e 2 do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
Se não for fixado prazo (o que será raro), os prazos supletivos são de 18 meses ou de 7 anos,
consoante se trate de bens móveis ou de bens imóveis, respetivamente (artigo 6.º/3 do Decreto-
Lei n.º 149/95, de 24/6).

4.6.6. As rendas da Locação Financeira


A determinação do valor das rendas e do valor residual pode ser livremente configurado pelas
partes.
As rendas podem ser:
✓ Progressivas - aumentando o seu valor ao longo do tempo;
✓ Degressivas – diminuindo o montante de cada uma delas com o decurso da relação
contratual;
✓ Constantes – em que o seu valor unitário é o mesmo durante o decurso do prazo;
É possível que os juros sejam calculados com recurso a um spread associado a um indexante,
pelo que o seu valor sofrerá flutuações.
As rendas da locação financeira são rendas financeiras, ou seja, compostas, cada uma delas,
por dois elementos:
✓ Numa parte, a amortização do capital;

44O direito de patente é um direito de propriedade industrial, um direito sobre um bem imaterial que confere ao seu titular
um direito de exploração durante um período. As marcas são sinais distintivos.

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✓ Noutra parte, os juros do crédito concedido (podem ser, eventualmente, aqui incluídas
outras despesas que o locador financeiro tenha tido de efetuar, assim como eventuais
comissões administrativas ou de gestão);
As primeiras são prestações fracionadas, as segundas são prestações duradouras reiteradas.
As rendas financeiras não permitem a amortização da totalidade do valor pago pelo bem, sendo
para o efeito ainda necessário o pagamento do valor residual.
O prazo prescricional da obrigação de pagar as rendas é curto, de cinco anos, e decorre da
aplicação conjugada, atendendo ao seu caráter compósito, das alíneas d) e e) do artigo 310.º do
Código Civil. Com efeito, a primeira diz respeito aos juros e a segunda às quotas de
amortização do capital pagáveis com os juros.

4.6.7. Modalidades de locação financeira


Neste ponto temos de distinguir a locação financeira “trilateral” da locação financeira
restitutiva (ou sale and lease back).
A primeira, é o tipo de locação financeira que temos vindo a analisar.
Na locação financeira restitutiva (ou sale and lease back), temos o locatário que vende ao
locador financeiro um bem seu que este de imediato lhe dá em locação financeira. Não há, ao
contrário da modalidade anterior, a compra de um bem a um terceiro, mas sim à contraparte do
locador no contrato de locação financeira.
Do ponto de vista funcional, a locação financeira restitutiva aproxima-se mais de um mútuo
com alienação em garantia do que de uma locação financeira “trilateral”.
Exemplo: a empresa A tinha a propriedade de todos os edifícios nos quais estavam instalados
hotéis. Todavia, precisa de financiamento e então vende esses edifícios, que lhe foram
imediatamente dados pelo banco em locação financeira. Assim, a empresa A continua a utilizá-
los ao longo do tempo, pagando rendas financeiras, e no fim do período contratual acordado,
pode voltar a adquirir a propriedade por um valor residual.
A locação financeira restitutiva é um negócio fiduciário, há a transmissão de um bem de um
sujeito para o outro e depois, através do negócio de locação financeira, o antigo proprietário
continua a utilizá-lo, normalmente.
Esta figura gera, porém, problemas particulares. Destaca-se o facto de que a ela se pode recorrer
unicamente, de forma fraudulenta, para se afastar o privilégio creditório imobiliário dos
trabalhadores, o que o regime das garantias reais equivalente (a hipoteca) não permitiria. Por
outro lado, tem um regime diverso da locação financeira em sede de resolução dos negócios
praticados antes do início do processo de insolvência.

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4.6.8. Distinção de figuras próximas


4.6.8.1. A locação
Ao contrário do que o seu nomen iuris poderia indicar, a locação financeira afasta-se muito do
contrato de locação.
A locação financeira é um instrumento de financiamento garantido pela propriedade do
bem, bem esse que o locador financeiro não quer explorar economicamente. O locador
financeiro visa simplesmente a restituição do capital investido e dos juros, sendo as rendas
compostas por estas duas parcelas.
Na locação, pelo contrário, o locador pretende explorar economicamente o bem, cuja
transferência não está em jogo. Ele recebe, como contrapartida, as rendas ou alugueres que
consistem na sua retribuição por assegurar o gozo da coisa pata o fim a que ela se destina.

4.6.8.2. Leasing Operacional


Consiste num contrato de locação, tendo geralmente por objeto automóveis ou material
informático, em que o locador se obriga a realizar a manutenção do bem e a prestar outros
serviços conexos.
Exemplo: a empresa A precisa de um automóvel. Pode estar interessada em celebrar um
contrato de locação financeira, mas também pode celebrar um contrato de leasing operacional.
Assim, o locador obriga-se a substituir os materiais desgastados, realizar as revisões.
O locatário, em princípio, não tem direito de adquirir o bem e não terá interesse nisso.
Enquanto o locador obriga-se a manter o bem de acordo com as condições previstas no contrato,
em perfeitas condições de funcionalidade.
É um contrato misto de locação e prestação de serviços.

4.6.8.3. Aluguer de longa duração (ALD)


Trata-se de uma figura atípica, legalmente, conhecida na prática comercial pelas suas iniciais
(ALD). Consiste num contrato de crédito e garantia com a seguinte configuração: as partes
recorrem a um contrato que qualificam como de locação, mas modificada de forma a ter um
conteúdo semelhante do da locação financeira. A esse contrato associa-se uma promessa
unilateral de venda do locador ou um pacto de opção de compra, tendo como beneficiário o
locatário, decorrido o prazo contratualmente fixado.
A montante está ainda a compra do bem a ser dado em ALD, bem esse escolhido pelo locatário.
Os objetos do contrato são quase sempre automóveis, sendo uma figura muito usada na prática
comercial, tanto por instituições de crédito, como por outras pessoas coletivas.
Mas porque é que as partes não recorrem à locação financeira invés do ALD?

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Há uma raiz histórica. Inicialmente até 1995, a locação financeira não podia ter por objeto bens
de consumo e por isso criou-se a figura do ALD. Só que se acrescentou no regime do aluguer
de longa duração, de forma a não correr riscos, uma promessa de compra e venda. Desta forma,
em rigor, defraudavam-se as regras de locação de financeira, porque muitas empresas que
celebravam estes contratos não eram Instituições de Crédito.
Atualmente, a lei sujeitou ao regime da Locação financeira todas os ALD, por serem contratos
que visam obter um resultado económico semelhante ao da locação financeira.

4.6.9. A fase pré-contratual


Cabe ao locatário procurar o bem que mais lhe interessa para a sua atividade, tendo em conta
as duas possibilidades económicas. Para o eleger, deve contactar diversos fornecedores, no
âmbito de uma relação pré-contratual enformada pela boa-fé (artigo 227.º do Código Civil).
Tendo definido o tipo de bem e o fornecedor, formulará uma proposta ao locador.
Todavia, não pode antes da conclusão do contrato de locação financeira realizar a encomenda
de um bem com vista à celebração do contrato futuro. Se o fizer, “atua por sua conta e risco” e
o locador não pode de algum modo vir a ser “responsabilizado por prejuízos eventuais
decorrentes da não conclusão do contrato, sem prejuízo do disposto do artigo 227.º do Código
Civil” (artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).

4.6.10. A Posição do locador financeiro


4.6.10.1. Deveres
O locador está obrigado a comprar ou mandar construir o bem escolhido pelo locatário
(artigo 9.º/1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6), para que este o passe a usar. A
compra poderá ser realizada ao locatário ou a terceiro, consoante se trate de uma locação
financeira restitutiva ou de uma locação financeira trilateral. Por vezes, o locador poderá insistir
na aquisição de bens que sejam mais fáceis de transacionar, porque em caso de incumprimento
do contrato, o Banco terá de colocar os bens no mercado e, assim, será mais fácil a sua venda.
O locador concede, mas não assegura, o gozo45 do bem para os fins a que se destina (artigo
9.º/1 alínea b) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6). Para o efeito, o bem terá de ser entregue ao
locatário (salvo se se tratar de uma locação financeira restitutiva). Tendo em conta a posição
estritamente financeira do locador, ele poderá acordar com o vendedor a atribuição do direito
de entrega à sua contraparte no contrato de locação financeira, sendo a referida compra,
nessa parte, um contrato a favor de terceiro. Assim, o locatário poderá e deverá exigir ao
vendedor a entrega da coisa.

45Neste aspeto a locação financeira distingue-se da locação. Na locação, o locador assegura o gozo do bem, o que significa
que se a coisa precisar de ser reparada, ele tem obrigação de o fazer. Na locação financeira, o locador limita-se a entregar o
bem, sem assegurar esse gozo, o Banco não fará reparações do bem objeto de locação financeira.

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O bem será, pois, entregue ao locatário pelo terceiro. Para tutelar a sua posição, o locador
impõe, contratualmente, que o locatário assine, aquando da entrega, um “auto de receção do
bem e conformidade do bem”, onde declare que este lhe foi entregue e que depois de exame
não tem defeitos. Só depois disso, o locador pagará ao terceiro.
Decorrido o prazo contratual, o locador está obrigado a vender o bem ao locatário financeiro
pelo preço previsto no contrato, o valor residual46, se ele pretender comprá-lo (artigo 9.º/1/
alínea c) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6). A obrigação de venda só se constitui, pois, se o
locatário exercer o seu direito de aquisição (artigo 10.º/2 alínea b) do Decreto-Lei n.º 149/95,
de 24/6).

4.6.10.2. Direitos
Para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem
incompatíveis com o regime da locação financeira, o locador tem o direito de:
✓ Defender a integridade do bem, nos termos gerais de direito (artigo 9.º/2 alínea a) do
Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6);
✓ Examinar o bem, sem prejuízo da atividade normal do locatário (artigo 9.º/2 alínea b)
do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6);
✓ Fazer suas, sem compensações, as peças ou outros elementos acessórios incorporados
no bem pelo locatário (artigo 9.º/2 alínea c) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6);
Exemplo: Um automóvel, objeto de locação financeira, decorridos 2 anos do prazo
contratual, necessita de peças novas. Quem paga as peças novas é o locatário, mas o
locador pode fazer suas todas essas peças mesmo que o bem tenha valorizado, não tem
de pagar, adicionalmente.
Tem igualmente o direito às rendas, direito esse que pode ser cedido ou por venda ou em
garantia, como forma de refinanciamento.

4.6.11. A posição do Locatário financeiro


4.6.11.1. Deveres
O locatário tem de pagar as diversas rendas previstas no contrato (artigo 10.º/2 alínea a) do
Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6). Elas podem ser calculadas de forma diversa, mas consistem
em rendas financeiras, compostas pela amortização de parte (maior ou menor, consoante o
montante do valor residual) do bem, mais os juros sobre o valor em dívida (a base de cálculo
integra também o valor residual), a que acrescem eventuais despesas com a gestão do contrato.

46Importa distinguir o valor residual, que é aquilo que o locatário financeiro tem de pagar se quiser adquirir o bem, do valor
venal do bem. Este último é o valor económico que se estima que o bem vá ter decorrido o prazo contratual. Exemplo: se o
bem for um automóvel, estima-se que decorridos os 3 anos, aquele automóvel, em condições normais de uso, valha 5000€
(valor venal, pode valer mais ou valer menos, é uma estimativa). Por regra, o valor residual é mais baixo do que o valor venal,
por exemplo, 3000€ o que significa que há um incentivo a que o locatário adquira o bem.

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Se o objeto do contrato for uma fração autónoma, as despesas correntes necessárias à fruição
das partes comuns de edifício e aos serviços de interesse comum recaem sobre o locatário
financeiro (artigo 10.º/2 alínea b) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
A este propósito temos de referir que se trata de obrigações face ao locador financeiro e não
perante o condomínio. Face ao condomínio quem está vinculado é o titular do bem, neste caso
o locador financeiro. Aliás, nada justificaria que o condomínio ficasse em pior posição no caso
de o bem ter sido dado em locação financeira, do que se fosse arrendado. Temos de distinguir
as relações externas (quem está obrigado perante o condomínio) das relações internas (quem
está obrigado a contribuir para as despesas correntes).
Nada obsta, no entanto, a que o locador imponha ao locatário financeiro o cumprimento perante
o condomínio (pagamento a terceiro liberatório). Poderá facilmente controlar o cumprimento
dessa obrigação impondo a entrega dos recibos de pagamento.
Se o locatário, pese embora a estipulação contratual nesse sentido não cumprir, o locador
financeiro, como devedor perante o condomínio, terá de pagar as despesas, pois essa obrigação
de contribuir para as despesas decorre do estatuto de proprietário.
O locatário financeiro tem ainda os deveres de não aplicar o bem a fim diverso daquele a
que ele se destina, ou a movê-lo para local diferente do contratualmente previsto, salvo
autorização do locador (artigo 10.º/2 alínea d) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6). Exemplo:
Se for adquirido um bem para fins de habitação, não pode o locatário dedicá-lo ao comércio.
O locatário tem de assegurar a conservação do bem e não fazer dele uma utilização
imprudente (artigo 10.º/2 alínea e) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6). Deve realizar as
reparações, urgentes ou necessárias, bem como quaisquer obras ordenadas pela
autoridade pública (artigo 10.º/2 alínea f) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
Temos ainda o dever do locatário não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial do bem
por meio da cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto
se a lei o permitir ou o locador financeiro a autorizar artigo 10.º/2 alínea g) do Decreto-Lei n.º
149/95, de 24/6).
O locatário financeiro deve comunicar ao locador financeiro, dentro de 15 dias, a cedência
do gozo do bem, quando permitida ou autorizada, nos termos supra (artigo 10.º/2 alínea h) do
Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6) e avisar imediatamente o locador financeiro, sempre que
tenha conhecimento de vícios no bem ou saiba que o ameaça algum perigo ou que terceiros
se arrogam direitos em relação a ele, desde que o facto seja ignorado pela outra parte (artigo
10.º/2 alínea i) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
Temos os deveres de celebrar o seguro do bem objeto do contrato, contra o risco da sua perda
ou deterioração, por um lado, e pelos danos por ela provocados, por outro (artigo 10.º/2 alínea
j) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6). O locador financeiro, por norma, obriga à celebração
destes contratos aquando do próprio contrato de locação financeira. O seu incumprimento
constitui fundamento para a resolução do contrato.

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4.6.11.2. Direitos
Para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem
incompatíveis com o regime da locação financeira, assistem ao locatário financeiro, de entre
outros:
✓ Direito de usar e fruir da coisa, sendo este um dos direitos centrais do locatário (artigo
10.º/2 alínea a) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
✓ Direito de defender a integridade do bem e o seu gozo, nos termos do seu direito
(artigo 10.º/2 alínea b) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6) e usar das ações
possessórias, mesmo contra o locador (artigo 10.º/2 alínea c) do Decreto-Lei n.º
149/95, de 24/6).
✓ Caso o locador o autorize expressamente, pode onerar, total ou parcialmente, o seu
direito (artigo 10.º/2 alínea d) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).
✓ Se a locação financeira tiver por objeto uma fração autónoma, o locatário financeiro
poderá exercer os direitos próprios do locador, com exceção dos que, pela sua
natureza, somente por aquele possam ser exercidos (artigo 10.º/2 alínea e) do Decreto-
Lei n.º 149/95, de 24/6).
✓ Direito de adquirir o bem locado, sendo este um direito caracterizante do contrato
(artigo 10.º/2 alínea e) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6).

4.6.12. A relação entre o locatário financeiro e o fornecedor do


bem
A operação de locação financeira assenta em dois contratos coligados, a que se pode
eventualmente juntar a venda pelo valor residual:
✓ Temos o contrato de locação financeira, de onde decorre a relação entre as partes;
✓ O contrato de compra e venda ou de empreitada, que o locador está, por força do
primeiro obrigado a celebrar, em que as partes são o locador e o vendedor ou
empreiteiro.
Reconhecendo os interesses que aqui se jogam a lei no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 149/95,
de 24/6, veio permitir ao locatário exercer contra o vendedor ou empreiteiro “todos os direitos
relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada”.
O primeiro aspeto a sublinhar é que não existe qualquer cessão ope legis da posição contratual,
essa mantém-se no locador financeiro. Simplesmente, reconhece-se ao locatário o exercício
destes direitos relativos ao bem locado.
Assim, o locatário poderá resolver o contrato, em caso de incumprimento definitivo. Cabe-
lhe igualmente o exercício da interpelação cominatória, para transformar a mora em
incumprimento definitivo, nos termos do artigo 808.º do Código Civil. Resolvido o contrato,
terá direito a uma indemnização pelo interesse contratual positivo (artigo 801.º/2 do Código
Civil). É titular também da indemnização por mora (artigo 804.º do Código Civil).
Cabe-lhe exercer o direito de anulação do contrato (artigo 905.º do Código Civil) ou de
redução do preço (artigo 911.º do Código Civil), se se tratar da venda de bem onerado.

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Exemplo: A vende a B um bem que está hipotecado. Pode ainda exercer os diversos direitos
decorrentes do regime da venda de coisa defeituosa (artigo 913.º do Código Civil),
nomeadamente a reparação ou substituição da coisa, nos termos definidos no artigo 914.º do
Código Civil. O mesmo sucede com as pretensões indemnizatórias decorrentes desses regimes.
Não pode recorrer à exceção de não cumprimento por falta da entrega da coisa, mas deverá
comunicá-lo ao locador para este a exercer. A cessação do contrato de compra e venda atinge
depois o contrato de locação financeira.
Se o locatário for um consumidor, o Sr. Professor Pestana Vasconcelos defende que se deverão
aplicar as regras da venda de bens do consumo (Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8/4 alterado pelo
Decreto-Lei 84/2021, de 18/4), isto apesar do contrato entre locador e fornecedor não o ser. O
Sr. Professor defende que haja uma extensão do Regime da Venda de Bens para Consumo às
situações em que o consumidor adquire o bem indiretamente. Assim, o locatário pode exercer
os direitos conferidos pelo Regime da Venda de Bens para Consumo face ao vendedor.
Sempre que se tratar de um contrato de crédito ao consumo, haverá que aplicar o regime do
Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2/6, porque este regime prevê, diretamente, a locação financeira.
Atendendo a que, face a uma determinada norma não podemos pretender um resultado que, por
mais conveniente que seja, não tenha apoio legal, devemos interpretar o regime através do
seguinte raciocínio:
✓ Esta é uma forma indireta de aquisição de um bem para consumo, através da concessão
de crédito por parte do Banco.
✓ A teleologia da venda de bens de consumo é a de proteger o consumidor, aquela que é
chamada a parte mais frágil da relação face àquele que é o vendedor daqueles bens.
✓ Se não articularmos este regime no sentido de alargar esta proteção à locação financeira
estaremos a criar uma lacuna na proteção do consumidor, perante este instrumento
relevante de aquisição de bens.
✓ O regime de venda de bens para consumo pretende um alargamento máximo e por isso
é que é possível sustentar que, atendendo à dimensionalidade deste regime, ele se deve
aplicar nestas circunstâncias.
✓ Justifica-se, também, por razões de justiça material.
É importante ancorar este raciocínio nos instrumentos de interpretação que temos disponíveis,
verificando o sentido e o alcance da norma, quais os princípios em causa (princípio da tutela
do consumidor), procurar as semelhanças e chegar a um resultado. O último ponto da
interpretação é o controlo dessa interpretação pelo resultado através de um raciocínio preciso.
Deve-se presumir a racionalidade do legislador (artigo 9.º do Código Civil).
4.6.13. Resolução do contrato de locação financeira
Nos termos do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6, o contrato de locação financeira
pode ser resolvido por qualquer dos contraentes, nos termos gerais, com fundamento no
incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais,
constantes da lei civil, relativas à locação.
Consagram-se adicionalmente dois fundamentos de resolução do contrato:

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✓ A dissolução ou liquidação da sociedade locatária (artigo 18.º, alínea a) do Decreto-Lei


n.º 149/95, de 24/6);
✓ Verificação de qualquer dos fundamentos de declaração de falência47 do locatário
(artigo 18.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6);

4.6.13.1. Os fundamentos específicos


A dissolução ou liquidação da sociedade locatária não levanta dificuldades. Mas o mesmo não
se pode dizer quanto à verificação de qualquer dos fundamentos de declaração de insolvência
do locatário.
Se antes da declaração de insolvência se verificarem quaisquer dos fundamentos dessa
declaração, o locador financeiro pode resolver o contrato.
A dúvida prende-se com a existência desse direito depois de declarada a insolvência. Pode
nesta sede perguntar-se se o locador poderá resolver o contrato, já depois da declaração de
insolvência do locatário, ou, se, a seguir a esse momento, caberá exclusivamente ao
administrador decidir quanto à execução ou recusa do cumprimento do negócio. Cremos que é
o último resultado o correto, pelas seguintes razões:
✓ O regime da insolvência48 do locatário financeiro que esteja na posse da coisa decorre
do artigo 104.º/3 e 5 e do artigo 102.º do CIRE). Este regime visa obstar a que sejam
retirados do estabelecimento do insolvente, bens necessários à continuação da sua
atividade antes de a assembleia da apreciação do relatório deliberar sobre o seu
encerramento ou a manutenção desta (artigo 156.º/2 CIRE). Ora, seria contraditório
permitir que esse resultado fosse alcançado por via da resolução do contrato pelo
locador, que poderia ter como resultado inviabilizar qualquer recuperação da empresa
ou a sua alienação como um todo (artigo 162.º do CIRE);
✓ Para completar o quadro, os interesses do locador financeiro estão já devidamente
acautelados. Se o administrador da insolvência optar pelo cumprimento, as rendas
passam a ser dívidas da massa (artigo 51.º/1 alínea f) CIRE). Se o administrador optar
pela recusa de cumprimento, o locador poderá reter as rendas já pagas e terá direito à
restituição do bem (que poderá transacionar), assim como adquire crédito sobre a
insolvência (artigos 102.º/3 e 104.º/5 CIRE).
Assim, justifica-se uma interpretação restritiva do artigo 18.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º
149/95, de 24/6, impedindo o locador de resolver o contrato depois de declarada a insolvência.
Depois desse momento, a opção é, e só, do administrador.

47 O artigo 18.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6, refere-se à falência, mas à luz das alterações introduzidas pelo
CIRE deve-se agora interpretar como sendo insolvência, o que encontra apoio por um lado no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º
53/2004, de 18/3, e por outro lado, no facto de o conceito de falência, em 1979, ser idêntico à atual noção de insolvência.
48 Matéria aprofundada no ponto 3.6.15. “Regime Insolvencial” e no Capítulo de Direito da Insolvência

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4.6.13.2. Regime geral da resolução


Vamos nos centrar naqueles que são os casos mais comuns que conduzem à resolução do
contrato: o incumprimento da obrigação de pagar as rendas por parte do locatário.
Não realizada uma prestação por parte do locatário financeiro, ele incorre em mora. O locador
financeiro pode, nos termos gerais, transformar a mora em incumprimento definitivo
(artigo 808.º/1 do Código Civil) e resolver o contrato (artigo 802.º/1 do Código Civil), salvo
o limite do artigo 802.º/2 do Código Civil (caráter pouco significativo atendendo ao interesse
do credor), tendo direito ainda a ser indemnizado pelo interesse contratual positivo.
Alternativamente, o locador financeiro pode recorrer ao artigo 781.º do Código Civil e exigir
o cumprimento das rendas vincendas. Ou melhor, da parte das rendas vincendas
correspondentes à amortização do bem, mas não já os juros incluídos nessas rendas.
O contrato mantém-se, tendo o credor direito, em caso de incumprimento, a ser indemnizado
por mora se, e enquanto, essa quantia não lhe for entregue. Pode ainda recorrer ao artigo 808.º
do Código Civil e, se o locatário não cumprir, resolver o contrato nos termos do artigo 801.º/2
do Código Civil, tendo igualmente direito a ser indemnizado pelo interesse contratual
positivo.
Se o valor da prestação for manifestamente diminuto no quadro global, funciona a limitação
do artigo 802.º/2 do Código Civil. Além disso, o Sr. Professor Pestana Vasconcelos defende
que se aplica à locação financeira dirigida à aquisição do bem o regime dos artigos 934.º e
935.º do Código Civil. Isto por força do artigo 936.º/1 do Código Civil que confere uma
eficácia expansiva a esta disciplina. Com efeito, essas disposições aplicam-se igualmente “a
todos os contratos pelos quais se pretenda obter resultado equivalente ao da venda a
prestações”.
Assim, a locação financeira, como já vimos, trata-se de contratos de crédito e garantia em que
o pagamento do valor em dívida se fará ao longo do tempo em diversas prestações de caráter
financeiro cujo gozo se concede ao creditado, que, se for uma empresa, o utilizará de imediato
no âmbito da sua atividade. Deste modo, na generalidade dos casos, a locação financeira
trilateral49 é um instrumento de aquisição indireta de um bem e, portanto, tem uma finalidade
próxima à da finalidade da venda com reserva de propriedade, assim sendo, pode-se aplicar
este regime.
Daqui decorre que a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do
preço (incluindo-se para a determinação deste as rendas e o valor residual), não dará lugar à
resolução do contrato, sem que se possa estabelecer convenção em contrário. Não permite,
igualmente, exigir o cumprimento antecipado da parte da amortização incluída nas rendas
vincendas, nos termos gerais do artigo 781.º do Código Civil. Parece duvidoso que esta norma
se aplique a quem não seja consumidor, pois é este que a norma visa proteger. Assim, se se
tratar de profissionais parece que será suficiente a proteção decorrente do artigo 802.º/2 do
Código Civil, para a resolução.

49Mas e quanto a uma locação financeira restitutiva (ou sale and lease back)? Aqui, este é um negócio de financiamento puro
e não tem um resultado semelhante à venda a prestações.

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4.6.13.3. Os efeitos da resolução do contrato


As locações financeiras dirigidas à aquisição do bem, a resolução implicará a restituição do
montante das rendas que constituem a sua amortização, mas já não dos juros aí incluídos (tal
como decorre da sua diferente natureza).
Se assim não fosse, resolvido o contrato, poderia manter o que já havia recebido como
amortização do bem e obteria, ao mesmo tempo, a restituição do próprio bem. Mesmo que
aquele bem se tenha, entretanto, depreciado, o que daí decorre é um direito a indemnização do
locador que poderá ser satisfeita por via da compensação (uma vez que o locatário financeiro
é credor da parte de amortização do bem que compõe as rendas recebidas).
Resolvido o contrato, o locador tem direito à restituição do bem (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º
149/95, de 24/6). Enquanto o ex-locatário não o fizer, está em mora, tendo de indemnizar a
outra parte.
Restituído o bem, o locador tem uma tripla escolha:
✓ Poderá vendê-lo;
✓ Dá-lo outra vez em locação financeira ou em locação, ao anterior locatário ou a terceiro;

4.6.13.4. As cláusulas penais


Os contratos de locação financeira preveem um conjunto diverso de cláusulas penais, sobre as
quais existe ampla jurisprudência.
Começaram por ser impostas cláusulas nos termos das quais, incumprido e resolvido o contrato,
o locador poderia exigir ao locatário o conjunto das rendas vencidas e não pagas, as rendas
vincendas, assim como o valor residual. Elas foram, em geral, consideradas abusivas pela
jurisprudência.
Mais tarde houve um segundo movimento que defendia que os locadores financeiros reteriam
as prestações vencidas e não pagas e 50% das rendas vincendas. Ainda assim, o valor era
excessivo, porque o Banco iria manter o bem imóvel ou móvel na sua propriedade.
Com efeito, o locador resolvia o contrato, mas impunha uma solução em que ficava numa
posição melhor do que se a outra parte tivesse cumprido, uma vez que obteria imediatamente
a parte da amortização do capital incluída nas rendas vincendas, os juros a constituir no futuro
integrados nessas rendas, o valor residual e manteria a propriedade do bem.
A cláusula penal que acabou por vir, em geral, a ser aceite foi aquela em que o locatário, para
além de ter de pagar as prestações vencidas, terá ainda de pagar 20% das prestações
vincendas e o valor residual. Subentende-se que perde, também, as prestações pagas. Estas
cláusulas têm, assim, um caráter móvel, sendo o seu montante, maior ou menor, de acordo com
o número e valor das rendas já pagas. Se esta quantia ultrapassar metade do preço (rendas
mais valor residual) será reduzida a esse montante, podendo as partes sempre prever a
ressarcibilidade do dano excedente, como resulta do artigo 935.º do Código Civil.

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Exemplo: o preço de compra do bem ao vendedor é de 100, e ele reparte-se em 80 integrados


nas rendas e 20 no valor residual. Os juros globalmente considerados são de 40, o que significa
que o valor das rendas é de 120 (80+40). O prazo é de 10 meses, sendo o valor mensal das
rendas de 12. Suponhamos que eram pagas 4 rendas (48) e que, de seguida, o locador resolvia
o contrato por incumprimento da outra parte. Se a cláusula penal fosse composta pela retenção
das rendas pagas, mais 20% das rendas vincendas mais o valor residual, teríamos o seguinte
resultado: 48 + 15,5 (20% de 72) + 20 (valor residual) = 83,5. Como metade do valor global
seria 70 (120 das rendas + 20 do valor residual/ 2), a cláusula teria de ser reduzida até esse
valor, neste caso em 13,5.
O Sr. Professor Pestana Vasconcelos ainda acrescenta que tudo depende da natureza do bem e
a jurisprudência não faz essa distinção.
Exemplo: um automóvel vai perdendo acentuadamente valor ao longo do tempo. Passado 3
anos, vale essencialmente 2/3 do que valia anteriormente.
Exemplo: Suponhamos que a locação financeira tem por objeto um imóvel. Os imóveis
potencialmente valorizam ao longo do tempo. Portanto, o locador vai reter todas as rendas já
pagas, mais 20% das rendas vincendas e o valor residual, mantendo na sua esfera o imóvel.
Imaginemos que o imóvel vale 200 000€, e o valor de aquisição foi de 190 000€, já tinham sido
pagas a título de rendas 50 000€, e 20% das rendas vincendas é 20 000€ e o valor residual era
de 20 000€. Isto significa que em termos de cláusula penal o Banco obteria 90 000€. O Banco
fica numa posição fortemente protegida em circunstâncias desta natureza, ao contrário da
contraparte.
O Sr. Professor defende que o Banco nunca pode ficar numa situação melhor do que aquela em
que ficaria se o contrato tivesse sido integralmente cumprido, mesmo em sede insolvencial. Se
isso acontecer, há uma obrigação de restituição que se insere no âmbito da relação obrigacional
complexa de liquidação. Só não se insere no âmbito do Enriquecimento sem causa, porque este
regime tem carácter subsidiário.

4.6.14. Direitos findo o prazo contratual


Decorrido o prazo contratual, o locatário financeiro tem um conjunto de opções:
(i) Exercer o seu direito de compra do bem pelo valor residual. Nesse caso, o locador
financeiro tem de lho vender.
(ii) Pode entregar o bem ao locador financeiro e não exercer o direito de compra.
(iii) Pode ainda tentar junto do locador financeiro estender o prazo contratual.
Se o bem for entregue ao locador financeiro, ou seja, se a contraparte não tiver exercido o seu
direito de compra do bem, o locador financeiro pode:
(i) Vender esse bem no mercado;
(ii) Utilizar o bem para celebrar outro contrato de locação financeira com um
terceiro;
(iii) Dar esse bem em locação (simples).

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4.6.15. Regime insolvencial


A locação financeira só poderá ser resolvida pelo administrador, caso seja declarado
insolvente o locador financeiro nos termos gerais do artigo 120.º do CIRE.
O mesmo não sucede com a locação financeira restitutiva, que estão abrangidas por maioria de
razão no artigo 121.º, alínea e) do CIRE.
A locação financeira constitui um negócio em curso previsto e regulado no artigo 104.º do
CIRE, onde a lei lhe fixa um regime idêntico ao da venda com reserva de propriedade (artigo
104.º/1 e 2 do CIRE).
Os casos regulados são:
✓ Insolvência do locador financeiro (artigo 104.º/1 CIRE);
✓ Insolvência do locatário financeiro (artigo 104.º/3 e 5 CIRE);
No 1º caso, o locatário, caso já lhe tenha sido entregue a coisa, pode exigir o cumprimento
do contrato, onde se inclui o direito de adquirir o bem decorrido o prazo contratual.
No 2º caso, se for declarada a insolvência do locatário financeiro e este se encontrar na posse
da coisa, o contrato mantém-se e caberá ao administrador optar entre o seu cumprimento e a
recusa do cumprimento (artigo 104.º/3 e 5 CIRE). A outra parte pode fixar um prazo razoável
ao administrador, nos termos gerais, para que este exerça a sua opção (artigo 102.º/2 do CIRE),
mas esse prazo não poderá esgotar-se antes de decorridos cinco dias sobre a data da assembleia
de aprovação do relatório (artigo 104.º/3 CIRE).
Também relativamente a estes bens, será necessário esperar pela deliberação por parte da
referida assembleia quanto ao encerramento ou manutenção em atividade do estabelecimento
ou estabelecimentos compreendidos na massa insolvente de que o bem objeto de locação
financeira faça parte, para que o administrador, tendo a massa meios para o efeito, possa optar,
de forma avisada, pela execução.
Quando o administrador opte pelo cumprimento as rendas tornam-se dívidas da massa
(artigo 51.º/1 alínea f) CIRE), pelo que para tal é igualmente necessário que esta tenha meios
para este pagamento. Decorrido o prazo contratual, o administrador poderá ou não exercer o
direito de compra do bem, mediante o pagamento do valor residual. Se o administrador não
pagar as rendas, como o contrato se mantém, o locador financeiro poderá resolver o contrato,
exigindo a restituição da coisa.
O administrador poderá ainda optar pela recusa do cumprimento. A posição do locador
financeiro decorre do disposto do artigo 104.º/5 e do artigo 102.º/3 do CIRE. Daqui resulta que
não haverá lugar à restituição das rendas já pagas (artigo 102.º/3 alínea a) do CIRE), adquirindo
este último para além do direito à restituição do bem, o crédito decorrente do artigo 102.º/3
alínea c) do CIRE, e, eventualmente, o direito a ser indemnizado (artigos 102.º/3 alínea d) (iii)
CIRE), como créditos sobre a insolvência.
Porém, se daqui resultar uma vantagem para o locador este terá de restituir à massa a diferença
entre o montante necessário para se colocar na posição em que estaria se o contrato tivesse sido

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integralmente cumprido e aquela em que fica em virtude da recusa de cumprimento pelo


administrador.
4.7. Contrato de Cessão Financeira (Factoring)
4.7.1. Caracterização inicial
A cessão financeira pode ser definida, em termos gerais, como o contrato pelo qual uma das
partes (o facturizado) cede ou se obriga a ceder a totalidade ou parte dos seus créditos
comerciais de curto prazo decorrentes dos contratos já celebrados ou a celebrar com certos
terceiros (alguns ou mesmo a totalidade dos clientes do cedente), para que este último os
administre e cobre na data do seu vencimento e, eventualmente, nos termos fixados nesse
negócio, lhe conceda adiantamentos calculados sobre o valor nominal desses créditos e/ou,
também, garanta o cumprimento ou a solvência dos devedores cedidos.
Assim, é um contrato empresarial que visa de forma articulada a realização de três funções
económicas eventuais e uma função económica permanente:
✓ Cobrança de créditos – pela qual o facturizado paga uma comissão de cobrança;
✓ Financiamento a curto prazo – tem por contrapartida o pagamento de juros;
✓ Garantia de cumprimento – pela qual o facturizado paga uma comissão de garantia;
✓ Consultadoria comercial (função económica permanente);

4.7.2. A tipicidade do contrato


O contrato de cessão financeira é entre nós um contrato nominado, legalmente atípico,
embora socialmente típico. Na verdade, a lei não estabelece um tipo legal para este contrato,
tendo-se limitado a definir a atividade de factoring. Esta consiste na “aquisição de créditos a
curto prazo, derivados da venda ou da prestação de serviços, nos mercados interno e externo”
(artigo 2.º/1 do Decreto-Lei n.º 171/95, de 18/7).
A lei limita-se depois, na prática, a pouco mais do que estabelecer a forma escrita para o
contrato (artigo 7.º/1 do Decreto-Lei n.º 171/95, de 18/7) e a impor que a transmissão de
créditos seja sempre acompanhada pelas respetivas faturas, ou suporte documental
equivalente (artigo 7.º/2 do Decreto-Lei n.º 171/95, de 18/7).
O contrato de cessão financeira é socialmente típico, uma vez que:
✓ As empresas, em regra, vendem concedendo um prazo para o pagamento do preço
(exemplo: 30, 60 ou 90 dias), e entregam imediatamente o bem ao comprador. O
primeiro problema é que a empresa, durante esse período em que está a conceder o que
chama de Crédito Comercial poderá ter necessidade ela própria de crédito, porque
uma empresa tem despesas de funcionamento (exemplo: água, luz, pagamento das
rendas da locação financeira, obrigações fiscais, etc.). Isto gera aquilo que os
economistas denominam de uma Tensão de Tesouraria (uma ausência de bens
líquidos durante um período).
✓ Assim, num segundo momento, a empresa vai precisar de crédito a curto prazo,
podendo recorrer a diversos institutos. Aquilo que a Empresa pretende é obter um

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adiantamento imediato do valor do crédito, que é calculado sobre o valor do crédito ao


preço.

Exemplo: uma Empresa vende uma máquina por 10 000€, a 30 dias. Se ela recorrer ao
factoring, aquilo que ela pretende é o adiantamento, em regra, de 80% desses 10 000€.
O Factoring é dos principais instrumentos de concessão de crédito a curto prazo na
economia empresarial.
✓ Além disso, se a empresa vender e entregar o bem e conceder um prazo de 60 dias para
o pagamento do preço, ela está a correr o risco de o comprador não pagar. Se o
comprador não pagar e se ela não tiver vendido com reserva de propriedade, a Empresa
não vai poder resolver o contrato por falta do pagamento do preço, nos termos do artigo
886.º do Código Civil. Ou seja, aquilo que o factoring também confere é uma garantia
de cumprimento do outro sujeito.
✓ Por fim, uma empresa que venda ou preste serviços tem de ter o mínimo de serviços
administrativos para exigir a cobrança de créditos, especialmente se houver múltiplas
vendas. Portanto, uma das funções que o factoring desempenha é ele próprio fazer a
cobrança dos créditos.

4.7.3. As partes no contrato


Só podem celebrar, de forma habitual, contratos de cessão financeira:
✓ Bancos;
✓ Sociedades de factoring;
✓ Instituições Financeiras de Crédito (IFICs);
A contraparte do factor é o facturizado ou aderente, que poderá ser vendedor de bens ou um
prestador de serviços.

4.7.4. As funções desempenhadas


4.7.4.1. A Administração e Cobrança de créditos
Transmitido o direito ao factor, a sua cobrança e administração passam a ser realizadas pela
instituição de crédito. Nessa medida, os serviços administrativos da empresa facturizada podem
ser reduzidos a um mínimo, passando também ela a beneficiar da especialização da instituição
de crédito nessa atividade. Esta função está presente na generalidade dos contratos.
Exemplo: uma start-up que vive com os computadores de duas ou três pessoas, prestam
serviços, e têm um conjunto de créditos que tem de cobrar. Quem vai fazer a cobrança?
Transmitem o crédito de 1000€ e o factor vai cobrar uma comissão pela cobrança de 5%, neste
caso, vai cobrar 50€ de comissão de cobrança. O factor decorridos os 120 dias acordados, vai
cobrar o crédito (1000€) e o factor vai entregar o crédito ao factorizado, mas desconta os 5%
relativos à comissão.

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4.7.4.2. Concessão de crédito


O factoring é um instrumento muitíssimo relevante de financiamento de curto prazo.
As empresas na venda e na prestação de serviços concedem, em regra, aos seus devedores um
prazo para o pagamento de preço (30, 60 ou 90 dias). Esta dilação temporal coloca aos credores
dificuldades de tesouraria, impondo-lhes, na falta de meios próprios, o recurso ao crédito nesse
período de tempo.
Este crédito é obtido também através de adiantamentos prestados pelo factor. Com efeito, este
adiantará uma percentagem acordada entre as partes do valor nominal do direito transmitido
(em regra, cerca de 80% desse valor).
Essa função financeira é entre nós a mais relevante, dada a escassez de meios próprios das
sociedades comerciais portuguesas.
Exemplo: Temos a celebração de um Contrato de Compra e Venda no dia 1/01/2023, no valor
de 1000€. Foi concedido um prazo de 60 dias para o pagamento do prazo, e por isso este só
pode ser exigido a 01/03/2023. Como esta empresa carece de crédito a curto prazo, ela a
02/01/2023 vai ceder o crédito ao factor. A partir desta data o credor passa a ser o factor. Ou
seja, será o factor no dia 01/03/2023 que fará a cobrança. A empresa ao ceder o crédito de 1000
€ pede no dia 02/01/2023 um adiantamento ao factor. Esse adiantamento calcula-se sobre o
valor deste crédito de 1000€, em regra será 80% desse valor, i.e., seria 800€. Ou seja, neste
momento, aquando da cessão de crédito, o factor entrega ao facturizado 800€ (o adiantamento).
Ora, ao conceder o adiantamento, o factor só vai cobrar aquele crédito passado o prazo
acordado (60 dias). A contrapartida da concessão de crédito são os juros, o factor vai cobrar ao
factorizado juros à taxa acordada entre eles por um período de tempo de 2 meses. Vamos supor
que os juros são calculados a uma taxa de 4% ao ano (25€). O factor quando cobrar os 1000€,
irá ter de abater aqui os 800€ do adiantamento, os 50€ da comissão de cobrança e os 25€ de
juros (a soma é 875€), portanto o factor irá devolver ao facturizado 125€.

4.7.4.3. Garantia da solvência ou do cumprimento dos devedores


cedidos
O factor poderá garantir o cumprimento ou a solvência do devedor cedido, colocando-o, na
medida do conteúdo da própria garantia, a salvo do incumprimento ou da insolvência da outra
parte.
Isto é muito comum no factoring internacional.
Exemplo: A vende para a Alemanha madeira, no comércio internacional é muito importante
que haja uma garantia do pagamento de terceiro. Portanto, o que o factor vai fazer é prestar
essa garantia. Temos um crédito de 1000€ e um prazo de 90 dias. Decorridos os 90 dias, o
factor vai cobrar os 1000€ a este sujeito. Mesmo que o devedor não pague terá de entregar os
1000€, abatidos da comissão da garantia e da comissão de cobrança e dos juros (caso houvesse
adiantamento) ao facturizado.

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4.7.4.4. Consultadoria comercial


O factor informa os facturizados sobre a capacidade económico-financeira das suas potenciais
contrapartes negociais.
Dada a natureza da sua atividade, o factor reúne um conjunto de informações extremamente
valiosas sobre as empresas que atuam num dado mercado, sabendo se são dignas de crédito.
Assim, consegue determinar o risco de incumprimento do contrato.

4.7.5. A estrutura unitária e a estrutura plural


4.7.5.1. A cessão global de créditos presentes e futuros
O contrato de factoring pode ter por efeito a cessão global de uma massa de créditos
presentes e futuros para o factor sobre determinados devedores indicados no contrato.
No que diz respeito aos créditos futuros, embora o ente financeiro só os adquira quando estes
se constituam, não é para tal necessária a celebração posterior de um negócio de transferência
com o facturizado, pois nascido o crédito a transferência é imediata.
O Direito Português permite com grande amplitude a disposição sobre bens futuros (artigo
399.º do Código Civil). É admitida a prestação de coisa futura sempre que a lei não a proíba.
Temos até um regime próprio para a venda de coisas futuras, previsto no artigo 880.º do Código
Civil.
Não se exige que estes créditos estejam já determinados aquando da celebração do contrato,
basta, nos termos do artigo 280.º/1 do Código Civil que sejam determináveis.

4.7.5.2. A estrutura plural ou Contrato-quadro


É também possível que as partes celebrem um contrato do qual, entre outros efeitos, decorra
para o facturizado a obrigação de transmitir ao factor, à medida que ele próprio os for
adquirindo, os créditos previstos nesse contrato e, para o ente financeiro, o dever de aceitar,
nos termos igualmente aí estabelecidos.
Nesta hipótese, o contrato inicial, na medida em que dentro de um conteúdo mais amplo e
complexo prevê e impõe a celebração de contratos subsequentes (os contratos de segundo
grau) que constituem os negócio-base da cessão de cada um dos créditos, é um autêntico
contrato-quadro.
Quanto aos contratos de segundo grau, eles terão natureza diversa entre si conforme seja
concedido o referido adiantamento e também se o factor, cumprindo a obrigação decorrente do
contrato-quadro, garantir esse crédito.
Esta estrutura é assim composta por:

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✓ Um contrato-quadro – de onde decorre, entre outras, as obrigações de as partes


celebrarem os contratos pelos quais se opere a cessão dos créditos, e cujo conteúdo está
também aí previsto, tendo estes negócios subsequentes natureza diferente entre si;
✓ Contratos de segundo grau – estes são totalmente dependentes do contrato de cessão
financeira no que diz respeito às suas funções e conteúdo. Verificando-se as condições
definidas no contrato-quadro, constituído o direito, nascem os deveres de celebração do
contrato de segundo grau que opera a transferência do crédito.

4.7.6. A cessão de créditos


A cessão de créditos de curto prazo decorrentes da venda ou prestação de serviços, constitui o
núcleo essencial do factoring, cujo regime decorre dos artigos 577.º a 588.º do Código Civil.
Contudo, a cessão de créditos assume diversas colorações de acordo com o conteúdo do seu
negócio base.

4.7.6.1. Aspetos Gerais


A cessão de créditos não é um negócio em si, mas sim um efeito de um determinado negócio
que a produz, o negócio-base (artigo 582.º/1 do Código Civil). Ela consiste na transferência do
direito da esfera do cedente para a do cessionário, sem se tornar necessário o consentimento do
devedor cedido.
Contudo, cedente e devedor podem acordar a não transmissibilidade do crédito (pacto de
non cedendo), embora esse acordo não seja oponível ao cessionário, a não ser que se
demonstre que ele dele tinha conhecimento aquando da cessão.
A cessão de crédito, tal como os restantes efeitos do negócio-base em que se insere, produz-se
por mero efeito do contrato. Todavia, a transferência do crédito só é eficaz em relação ao
devedor cedido, após o conhecimento, notificação ou aceitação da mesma por parte deste
último (artigo 583.º/1 e 2 do Código Civil). Antes desse momento, é liberatório o pagamento
realizado ao cedente, assim como são oponíveis ao cessionário os negócios relativos ao crédito
concluídos entre o transmitente do crédito e o devedor cedido. Exemplos: diminuição do valor
do crédito, a alteração do prazo contratual, a aceitação de uma dação em pagamento.
Face a terceiros, a cessão é imediatamente eficaz, exceto perante segundos adquirentes a
quem o cedente tenha cedido o mesmo crédito antes da notificação da primeira cessão ao
devedor cedido (artigo 584.º do Código Civil).
Se for a segunda cessão a primeira a ser notificada, o segundo cessionário adquire, embora o
crédito estivesse já na esfera do primeiro adquirente do crédito. É uma aquisição a non
domino.
A notificação é, assim, um elemento-chave na tutela da posição do cessionário.

4.7.6.2. A notificação

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Para evitar os riscos supra descritos e obstar a uma recusa de cumprimento do devedor cedido,
o factor exige à outra parte que insira nas faturas enviadas aos seus clientes uma indicação
segundo a qual o direito de crédito resultante desse contrato lhe foi transmitido e,
consequentemente, só o pagamento à instituição de crédito será liberatório.
Os devedores do facturizado devem considerar-se, assim, notificados da cessão de créditos pela
fatura que este último lhes envia com a clara indicação da transferência do crédito ao factor.
Porém, o artigo 583.º/1 do Código Civil admite a notificação extrajudicial e não impõe qualquer
forma para a mesma.
Apesar de tudo, os factores, logo que aceitam o crédito, notificam eles próprios o devedor da
cessão, sendo, pois, este último duplamente notificado.

4.7.6.3. O âmbito da transmissão


Na cessão de créditos a posição contratual não é transmitida, mas, sim, o crédito, que não se
transmite isoladamente. Salvo convenção em contrário, com ele transferem-se todas as suas
garantias e acessórios que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (artigo 582.º/1 do
Código Civil). Assim, por exemplo, a hipoteca, o penhor e, no que toca aos acessórios, os juros
vincendos, a cláusula penal.
Sempre que se trate de uma venda com reserva de propriedade, esta é transmissível ao
cessionário, mas é necessário acordo nesse sentido, não se verificando de forma automática.

4.7.6.4. As garantias de existência e da exigibilidade do crédito


O cedente garante ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito, nos termos aplicáveis
ao negócio, gratuito ou oneroso, em que a cessão se integra (artigo 587.º/1 do Código Civil).
Pela primeira garante a sua qualidade de credor à data da cessão, portanto que o crédito
existe e que está no seu património. Pela segunda garante que na data do vencimento o
cessionário poderá exigir o pagamento sem que o devedor cedido lhe possa opor qualquer
exceção.
Não garante, salvo convenção em contrário, nem a solvência do devedor cedido (artigo 587.º/2
do Código Civil), nem o cumprimento em si.
Por isso, se o cedente transmitir ao factor um crédito inexistente, viola a garantia da existência
do crédito e o negócio é nulo (artigo 280.º do Código Civil).

4.7.6.5. Os meios de defesa oponíveis pelo devedor cedido ao


cessionário
O princípio estruturante da cessão de créditos consiste em impedir que o devedor cedido seja
prejudicado pela transferência do direito. Nessa medida, a lei permite-lhe opor ao cessionário
todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente, ainda que o adquirente
do crédito os ignorasse, excetuando somente aqueles que “provenham de facto posterior”
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ao conhecimento da cessão (artigo 585.º do Código Civil), o que no factoring sucede quando
ele é notificado.
Um dos meios de defesa mais relevantes a que o devedor pode recorrer, em especial, quando
exista uma relação de negócios entre ele e o cedente é o recurso à compensação. Essencial,
aqui, é que o crédito do devedor sobre o cedente se tenha constituído antes de ter tido
conhecimento da cessão pelo primeiro, independentemente, do vencimento do referido direito
se ter verificado antes, ou depois, do mesmo conhecimento. Exemplo: A Sociedade A, vende
à Sociedade B a 1/5/2019, 30 computadores por 30.000 €. Foi acordado que os computadores
seriam entregues a 1/6/2019 e o preço seria pago a 30/6/2019. O crédito foi cedido ao banco C
a 4/5/2019, tendo a Sociedade B sido notificada a 20/5/2019. Pode a Sociedade B compensar
a sua dívida com o crédito que detém sobre a Sociedade A, emergente de um contrato de venda
com ela celebrado a 10/5/2019 e com vencimento a 28/6/2019? Sim, pois o crédito foi
constituído antes da notificação da cessão à Sociedade B, não importando o facto do
vencimento se ter verificado depois da notificação da cessão.
Em particular, na exceção de não cumprimento do contrato, uma vez que encontra a sua
razão de ser no caráter sinalagmático, na relação de correspetividade que se estabelece entre as
obrigações de ambas as partes do contrato, é irrelevante que já se tenha produzido o
conhecimento da cessão do crédito.
Exemplo: A compra a B 30 computadores o contrato é celebrado no dia 01/01. O crédito ao
preço vence no dia 01/06, os computadores devem ser entregues no dia 01/05. O crédito é
cedido no dia 01/02 e a notificação é realizada no dia 05/02. Suponhamos que os computadores
chegam ao armazém de A e A verifica que eles apresentam um defeito. No dia 01/06 quando
o cessionário lhe exigiu o pagamento ele vai dizer que não paga porque os computadores
tinham defeito.
O mesmo se passa com a própria resolução do contrato bilateral por parte do devedor do crédito
cedido, mesmo quando o facto aquisitivo deste direito se tenha verificado já depois do
conhecimento por parte do devedor cedido da transferência do crédito.

4.7.6.6. Resolução do contrato de compra e venda ou de prestação


de serviços
Ora, o cedente transmitiu o crédito ao cessionário, e não a posição contratual. Portanto é o
cedente que é parte no contrato com o devedor cedido. A resolução do contrato é um meio de
defesa integrado na posição contratual, portanto esta defesa só pode ser exercida pelo cedente,
não podendo ser exercida pelo cessionário.
Porém, o cedente para resolver o contrato precisa do acordo do cessionário, porque a resolução
do contrato levará à extinção do crédito e, como vimos, o cedente garante ao cessionário, nos
termos do artigo 587.º CC, a existência do crédito.
Assim, a interpelação cominatória só pode ser realizada pelo cessionário. Assim, o cedente e o
cessionário têm de se articular para resolver o contrato.

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4.7.7. Modalidades das cessões de créditos no factoring


Cada uma das cessões pode desempenhar funções diversas. Recorrendo à terminologia adotada
nos contratos de factoring, deve distinguir-se, por um lado, as cessões sem recurso das com
recurso, consoante o factor preste ou não garantia, e, por outro lado, as cessões com
adiantamento e sem adiantamento, consoante o factor conceda adiantamento do crédito ou
não, calculado sobre o valor nominal do crédito, e sobre o qual se pagam juros.
Estas modalidades de cessão têm necessariamente de se cruzar, dando lugar a quatro
combinações:
✓ A cessão com recurso sem adiantamento – o factor presta só o serviço de
administração e cobrança dos créditos cedidos. Aqui, caso o devedor cedido incumpra,
o factor retransmite o crédito e exige o pagamento da comissão de cobrança.
✓ A cessão com recurso e com adiantamento – o factor presta serviço de administração
e cobrança do crédito e concede o adiantamento, mas não garante o cumprimento pelo
devedor cedido. Por isso, caso este não cumpra, o factor retransmitirá o crédito e exigirá
a restituição do adiantamento concedido, bem como o pagamento dos juros e da
comissão de cobrança (estes são sempre devidos). A esta modalidade chama-se
factoring financeiro.
✓ A cessão sem recurso e sem adiantamento – o factor administra e cobra os créditos,
assim como, ao mesmo tempo, garante o cumprimento do devedor cedido.
✓ A cessão sem recurso com adiantamento – o factor garante o pagamento do devedor
cedido, presta o adiantamento e administra e cobra o crédito. Caso o devedor não
cumpra, o factor, ainda assim, além de não retransmitir o crédito, entrega (decorrido
um determinado período de mora do devedor) à outra parte o valor cobrado, abatido
das comissões de garantia e de cobrança, bem como dos juros. Na eventualidade de o
devedor cumprir, será entregue ao facturizado essa mesma quantia. Denomina-se full
factoring, porque abarca o conjunto das funções do factoring.

4.7.7.1. Contrato com recurso e sem adiantamento


São elementos deste contrato:
✓ A cessão do crédito ao factor;
✓ Gestão e cobrança do crédito, que tem como contrapartida uma comissão;
Não há adiantamento e o factor não presta a sua garantia.
O crédito é transmitido para que o factor administre e cobre por conta da outra parte (o
facturizado), a quem deverá entregar o fruto da cobrança ou retransmiti-lo. É, pois, uma
transferência fiduciária, pois o objeto do contrato é a prática de um ato jurídico por conta de
outrem, embora em nome próprio. O contrato que serve de base à cessão será então o contrato
de mandato sem representação.

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4.7.7.2. Contrato com recurso e com adiantamento (Factoring


financeiro)
São elementos deste contrato:
✓ A cessão do crédito;
✓ A cobrança e a gestão do crédito, pela qual é paga a comissão de cobrança;
✓ Adiantamento, pelo qual se pagam juros;
Na medida em que há a cessão do crédito em função do cumprimento temos como negócio
base um mandato sem representação de caráter fiduciário, uma vez que integra uma
transferência fiduciária de um direito e permite que o factor faça a respetiva cobrança.
Temos depois o adiantamento, que consiste na concessão de crédito de curto prazo, pelo qual
se pagam juros. Daqui nasce, a obrigação de restituição do capital e uma obrigação de juros.
Assim, os elementos do contrato de mútuo são muito claros. O pagamento destas obrigações
faz-se recorrendo-se à quantia cobrada a terceiro através da cessão em função do cumprimento.
Em termos globais, trata-se de um contrato misto50 com elementos de mútuo e de mandato
fiduciário também no interesse do mandatário.

4.7.7.3. Contrato sem recurso e sem adiantamento


São elementos deste contrato:
✓ A cessão do crédito ao factor;
✓ A cobrança e a gestão desse direito, que tem como contrapartida a comissão de
cobrança;
✓ A garantia prestada pelo factor, que tem como correspetivo a comissão de garantia;
Esta é uma modalidade de factoring internacional. Funcionalmente, é um seguro de créditos.
Ora no que diz respeito à cobrança do crédito, aplica-se o que já se disse para as restantes
cessões, tendo aqui elementos de mandato fiduciário sem representação.
O aspeto central relativamente ao contrato em análise diz respeito à garantia prestada pelo
factor à sua contraparte negocial. Na sua essência trata-se de uma fiança, embora atípica. A
garantia é acessória e não autónoma.
Nos termos da fiança, o cessionário deveria ficar sub-rogado (artigo 644.º do Código Civil)
adquirindo dessa maneira o crédito face ao terceiro. Aqui tal não sucede pois o factor já é titular
do crédito face ao devedor, porque lho anteriormente foi transmitido para que ele o
administrasse e cobrasse. Essa titularidade que tinha um caráter fiduciário, perde essas
características.
Assim, trata-se de um contrato misto composto por elementos de mandato sem representação
e fiança.

50
Nós podemos ter: (i) contratos mistos, que é a fusão de elementos de contratos típicos num único tipo contratual; (ii)
contratos coligados, que não perdem a sua natureza, mas estão ligados um ao outro, se cair um contrato, cai o outro também.

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4.7.7.4. O contrato sem recurso e com adiantamento (Full


Factoring)
São elementos deste contrato:
✓ A cessão do crédito ao factor;
✓ A cobrança e a gestão desse direito, que tem por contrapartida a comissão de cobrança;
✓ A garantia prestada pelo factor, cujo correspetivo é a comissão de garantia;
✓ A concessão de um adiantamento.
Estamos perante uma estrutura contratual complexa resultante da fusão de elementos dos tipos
contratuais de mandato fiduciário sem representação, fiança e de mútuo.

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VI- Direito da Insolvência


1. Considerações gerais introdutórias
A falência teve a sua origem na Idade Média no âmbito das relações entre comerciantes. A
falência caracteriza-se pelo comerciante estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações,
ou seja, de não conseguir fazer devidos pagamentos aos seus credores.
Sendo o comércio uma cadeia de pagamentos, a insolvência tem efeitos sobre os credores desse
sujeito, podendo conduzir à sua própria insolvência. Mesmo quando se trate de empresas em
boa saúde económica e financeira cria-se um efeito sistémico em toda a cadeia, trata-se do
conhecido fenómeno das “falências por arrastamento”. Na Idade Média prevenia-se este efeito
sistémico pelo quebramento da Banca do comerciante falido, e daí surgir o termo “banca rota”.
Além disso, previa-se as seguintes sanções: (i) prisão do comerciante por dívidas, (ii) expulsão
do comerciante da cidade, (iii) difamação do comerciante. Por conseguinte, o comerciante
fugia, e assim a fuga do comerciante passou a ser um índice da situação de insolvência.
Em 1980, distinguiam-se dois regimes:
✓ Falência – regime privativo dos comerciantes. O comerciante estava impossibilitado
de cumprir as suas obrigações, isto é, não tinha meios líquidos suficientes, porém, podia
ter meios ilíquidos de valor superior às obrigações (exemplo: um imóvel), porém os
meios ilíquidos demoram tempo a serem alienados no mercado.
✓ Insolvência – regime dos não comerciantes. Utilizava-se o critério de relevo
matrimonial, isto é, para um não comerciante estar insolvente era necessário que o
passivo fosse superior ao ativo.
Nesta época não havia instrumentos de recuperação de uma empresa próxima de uma situação
de falência. Estes instrumentos de recuperação de uma empresa foram criados com a entrada
em vigor do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (1993),
o CPEREF.
Com o CPEREF eliminou-se a diferença entre o regime de falência e o regime de insolvência.
Isto é, a falência que estava ligada unicamente aos comerciantes, passou a designar-se por
insolvência, e este regime estendia-se aos não comerciantes. Declarada a insolvência tínhamos
duas vias: (i) a recuperação de uma empresa ou se ela não fosse suscetível de recuperação (ii)
iniciava-se o processo de insolvência a que se seguia a liquidação.
Em 2004, entrou em vigor o novo Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas
(CIRE), substituindo o CPEREF, que vigorou uns escassos 11 anos, embora tenha sido alterado
em 1998.
Este novo diploma revela uma filosofia básica diversa do anterior centrando-se unicamente na
satisfação do interesse dos credores. Enquanto no CPEREF o resultado a ser alcançado de
forma prioritária era a recuperação da empresa sempre que a empresa declarada insolvente
fosse economicamente viável e financeiramente recuperável, no CIRE a recuperação da
empresa é meramente um instrumento para o referido fim, ou seja, a recuperação da empresa
está dependente da decisão dos credores.

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Esta é a solução que resulta do regime estabelecido apesar do artigo 1.º do CIRE estabelecer
“o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a
satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado,
nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando
tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição
do produto obtido pelos credores.”
Para a recuperação da empresa ser aprovada é necessário a apresentação de um plano de
insolvência na Assembleia de credores, que sendo aprovado, deve ser homologado pelo
tribunal (há um juízo de legalidade).
Relativamente à liquidação (a via mais comum), a insolvência tem um caráter de processo
executivo de âmbito universal, mas há dois enxertos declarativos:
(i) Quanto à declaração de insolvência
Sempre que o pedido de declaração de insolvência seja deduzido por um dos credores e o
devedor se oponha, entra-se num processo declarativo que terminará com uma sentença que
decretará ou não a situação insolvência.
(ii) Verificação e graduação dos créditos
Para os créditos contra o devedor valerem no âmbito do processo de insolvência, estes terão de
ser reclamados pelos respetivos credores. Após a reclamação de créditos, o juiz procederá à
verificação dos créditos, ou seja, irá verificar quais os créditos que, efetivamente, existem e
que podem ser feitos valer no processo de insolvência. Posteriormente, o juiz procede à
graduação de créditos. Neste âmbito, os outros credores podem opor-se à verificação de um
crédito ou à graduação do crédito. Assim, entra-se num incidente declarativo que terá por fim
a sentença de graduação e verificação dos créditos. É neste momento que os créditos se
estabilizam.

2. Quem (e o que) pode ser declarado insolvente


É o artigo 2.º do CIRE que nos diz quem (e o que) pode ser declarado insolvente. O processo
de insolvência não tem que necessariamente conduzir à declaração de insolvência.
Embora na epígrafe do artigo 2.º surja a indicação de que estão ali em causa “sujeitos” passivos
da declaração de insolvência, a verdade é que nas várias alíneas do seu n.º 1 são identificadas
realidades que não são verdadeiros sujeitos: a herança jacente, o património autónomo, as
comissões especiais, o E.I.R.L.
A partir da leitura do artigo 2.º verificamos que não se exige que o devedor seja comerciante
ou, sequer, que seja empresário. Podem ser declarados insolventes:
✓ Qualquer pessoa singular ou coletiva:
• Sociedades civis;
• Sociedades comerciais e civis sob forma comercial que ainda não viram o
contrato pelo qual se constituíram definitivamente registado;

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• Associações com ou sem personalidade jurídica;


• Cooperativas, antes do registo da sua constituição;
• Fundações;
• Sociedades civis;
✓ Herança jacente;
✓ Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada;
✓ Outros patrimónios autónomos;
O artigo 2.º/2 do CIRE afasta do âmbito de aplicação do n.º 1:
✓ Pessoas coletivas públicas e as entidades públicas empresariais (EPE’s), nos termos da
alínea a). Ex: hospitais;
✓ As empresas de seguros, as instituições de crédito, as sociedades financeiras, as
empresas de investimento que prestem serviços que impliquem a detenção de fundos
ou de valores mobiliários de terceiros e os organismos de investimento coletivo, na
medida em que a sujeição a processo de insolvência seja incompatível com os regimes
especiais previstos para tais entidades, nos termos da alínea b);
Não é possível qualquer credor se dirigir a um tribunal para pedir a declaração de insolvência
de um Banco, isto porque há um regime próprio que contém os aspetos relacionados com o
saneamento de instituições de crédito e sociedades financeiras que prevê que a “liquidação
judicial das instituições de crédito fundada na revogação de autorização pelo Banco de
Portugal faz-se nos termos do presente diploma e, em tudo o nele não estiver previsto, nos
termos do CIRE” e estabelece que a “decisão de revogação da autorização pelo Banco de
Portugal produz os efeitos da declaração de insolvência”. Além disso, o Banco de Portugal
tem competência exclusiva para requerer a liquidação da instituição de crédito.

3. A situação de insolvência
Na teoria podemos atender a dois critérios para determinar se alguém está em situação de
insolvência:
✓ Critério de caixa (cash flow)
Trata-se da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Este critério não exige que a empresa tenha um passivo superior ao ativo, isto porque é possível
ter o ativo superior ao passivo e o devedor não conseguir cumprir as suas obrigações, na medida
em que parte dos bens desse património podem ser ilíquidos. Exemplo: imóvel, armazém.
Desvantagens:
• Por um lado, pode levar à aplicação do regime da insolvência quando se podia recorrer
ao processo executivo. Isto é, o regime da insolvência é relevante para trazer ao
processo todos os credores quando não há forma de todos serem satisfeitos. Ora, se um
sujeito tem um património superior às dívidas incumpridas, todos os credores serão
pagos;
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• Por outro lado, uma empresa pode ter um património negativo, isto é, ter mais dívidas
do que créditos, mas continuar a ter acesso a crédito e enquanto tiver acesso poderá
cumprir as obrigações, e segundo este critério não se encontrará numa situação de
insolvência.

✓ Critério do balanço ou do ativo patrimonial (balance sheet)


Os sujeitos estarão numa situação de insolvência quando o seu passivo seja superior ao ativo.
Este critério é útil mas apresenta algumas desvantagens:
• O património das sociedades pode variar bastante se o seu objeto for, por exemplo, a
compra e venda de ações na Bolsa. Ora, o valor das ações varia muito ao logo do dia, o
que pode gerar que uma entidade esteja insolvente e depois deixasse de estar consoante
o valor do património da empresa (que estaria em constante alteração);
• Na contabilidade das empresas, é muito difícil de contabilizar valores intangíveis
(exemplo: o valor de uma marca, da clientela, do bom nome, do know-how). Estes
indicadores não seriam à partida tidos em consideração para efeitos de contabilidade e,
consequentemente, para a insolvência;
• Grande parte do passivo pode dizer respeito a dívidas face aos sócios, isto é, aos
suprimentos. Não faz sentido que uma sociedade seja declarada insolvente quando as
suas dívidas sejam face aos sócios porque estes já sabiam dos riscos e serão sempre os
últimos a ser pagos declarada a insolvência.

3.1. Pressupostos objetivos da declaração de insolvência


3.1.1. O “critério geral”: impossibilidade de cumprir as obrigações
vencidas
Encontra-se em situação de insolvência “o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir
as suas obrigações vencidas” (artigo 3.º/1 do CIRE). Apenas são consideradas as obrigações
vencidas e não as vincendas, e também só releva a impossibilidade51 de cumprir.

3.1.2. A manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo


O critério geral enunciado no artigo 3.º/1 do CIRE não parte da situação relativa do passivo e
do ativo do devedor. Pelo contrário, o artigo 3.º/2 do CIRE considera que, em certos casos, já
é relevante a situação do passivo e do ativo (embora continue a poder aplicar-se o critério
geral).
Que casos são esses? São aqueles em que os devedores são pessoas coletivas e patrimónios
autónomos “por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente,
por forma direta ou indireta”.

51Não está em causa uma impossibilidade objetiva que constitui causa de extinção de obrigações, nem há impossibilidade se
o devedor tem meios para cumprir mas não o faz porque contesta a existência da obrigação.

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Assim, quanto a essas pessoas e patrimónios, a lei considera que também são considerados
insolventes “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo
as normas contabilísticas aplicáveis”.
Estamos perante um critério autónomo, pretendendo a lei evitar que se mantenha ou agrave
uma situação claramente perigosa para quem se relaciona com o devedor.
A eventual manifesta 52superioridade do passivo em relação ao ativo segundo as normas
contabilísticas aplicáveis não conduz necessariamente à existência de uma de uma situação de
insolvência. Com efeito a lei prevê regras especiais de reavaliação referidas no artigo 3.º/3
CIRE:
✓ Critério do justo valor - têm de ser considerados “no ativo e no passivo os elementos
identificáveis, mesmo que não constantes do balanço, pelo seu justo valor”. Na aferição
do valor dos bens temos de atender ao valor contabilístico dos bens, de acordo com o
artigo 3.º/2 do CIRE, mas com grande frequência, este valor contabilístico não
corresponde ao valor de mercado dos bens. Exemplo: um imóvel que está contabilizado
pelo seu preço inicial de 150 000€. Decorrido um determinado período, o imóvel pode
se valorizar, por exemplo para 200 000 € mas isso por norma não é refletido nos
documentos de contabilidade. Assim, é possível reavaliar os bens, mas através de
critérios de mercado, tendo em conta o que o bem vale atualmente.
✓ Se o devedor é titular de uma empresa “a valorização baseia-se numa perspetiva de
continuidade ou de liquidação, consoante o que se afigure mais provável”. Assim, se
estamos perante uma empresa, devemos atender ao valor da empresa enquanto
organização, isto é, àquilo que a empresa vale como tal e não à mera soma dos diversos
elementos que a compõem isoladamente considerados, mas isto se se perspetivar a sua
continuação no património do devedor, ou seja, se houver um plano de recuperação, ou
no património de terceiros;
✓ O passivo não incluirá “dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos
distribuíveis ou do ativo restante depois de satisfeitos e acautelados os direitos dos
demais credores do devedor”. Assim, do passivo devem ser excluídas as dívidas que
apenas hajam de ser pagas à custa do ativo restante depois de satisfeitos ou acautelados
os direitos dos demais credores. Um dos instrumentos principais de financiamento das
sociedades por quotas consiste nos suprimentos.
Se da reavaliação resultar que o passivo não é superior ao ativo então a sociedade não está
insolvente de acordo com este critério.

52 “Manifestamente” é um conceito indeterminado. Como o preenchemos? No entendimento do Sr. Professor Pestana


Vasconcelos deve distinguir-se o tipo de empresas. Exemplo: empresas tecnológicas têm um ativo muito reduzido e podem ter
recorrido muito ao crédito, assim nestes casos deve-se admitir uma diferença maior (15% ou 20%); noutro tipo de empresas
em que não há esse ativo esta diferença de 15% ou 20% já será, manifestamente, excessiva. Mas, entende-se que 5% ou 10%
nunca será excessivo qualquer que seja a empresa.

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3.1.2.1. Suprimentos53
Podem ser:
✓ Empréstimos que o sócio concede à sociedade com caráter de permanência. Presume-
se que tem carácter de permanência os empréstimos concedidos por prazo superior a
um ano.
✓ Dilações de pagamento que um sócio confere a uma sociedade pelo período superior a
um ano. Exemplo: a sociedade deve dinheiro ao sócio, ele não lho exige e mantém o
dinheiro na sociedade.
O regime dos suprimentos é diferente dos empréstimos concedidos por terceiros à sociedade,
desde logo porque:
✓ o sócio credor não pode pedir a declaração de insolvência da sociedade por
incumprimento de um crédito de suprimentos;
✓ as garantias reais prestadas pela sociedade a créditos de suprimentos são nulas.
✓ Em termos insolvenciais são considerados créditos subordinados, nos termos do artigo
48.º CIRE. Ou seja, só serão satisfeitos depois de pagos os credores comuns. Mais, no
elenco de créditos subordinados são os últimos a serem pagos. Isto significa que, em
termos práticos, os créditos por suprimentos quase nunca serão pagos, por isso é que
se diz que os suprimentos são quase capital social.
Por tudo o exposto é que se justifica o critério do artigo 3.º/3, alínea c) CIRE, ou seja, das
dívidas decorrentes de suprimentos terem de ser retiradas do passivo.

3.1.3. A iminente insolvência


Decorre do artigo 3.º/4 do CIRE que se equipara “A situação de insolvência atual a que seja
meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência”.
Apenas o devedor pode requerer a declaração de insolvência com base na situação de
insolvência iminente. O devedor terá interesse em requerer a declaração de insolvência pois
tornar-se-á mais fácil a aprovação de um plano de recuperação.

53
É um instrumento muito comum de financiamento das sociedades, porque, em particular, as sociedades por quotas têm
um capital social muito reduzido, portanto para funcionar precisam de dinheiro e quem realiza suprimentos são os sócios.

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4. A Tramitação do processo de insolvência antes da sentença de


declaração de insolvência ou de indeferimento do pedido de
declaração de insolvência
4.1. Requerimento de Insolvência
4.1.1. Quem pode requerer
O próprio devedor pode requerer a declaração da sua insolvência e, em muitos casos até deve
requerê-la. Com efeito, esse dever resulta do artigo 18.º/1 do CIRE, embora o n.º 2 o afaste se
o devedor, sendo pessoa singular, não for titular de empresa.
No artigo 20.º/1 do CIRE encontra-se a identificação de outros sujeitos com legitimidade para
requererem a declaração de insolvência do devedor:
✓ por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas;
✓ por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu
crédito;
✓ ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe
estão legalmente confiados.
O artigo 20.º/1 do CIRE enumera um conjunto de factos cuja verificação deve ter lugar para
que os sujeitos referidos possam requerer a declaração de insolvência do devedor. Não se trata
de outras situações de insolvência que se devam somar às previstas no artigo 3.º do CIRE, mas
sim de meros requisitos de legitimidade e de “factos-índices ou presuntivos da insolvência,
tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a
insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações”.

4.1.1.1. A vantagem para o credor que requer a declaração de


insolvência
Para além das vantagens que qualquer credor pode retirar do processo de insolvência, o artigo
98.º/1 do CIRE atribui ao credor que requer a declaração de insolvência do devedor um
privilégio creditório mobiliário geral que incide sobre todos os bens móveis integrantes da
massa insolvente.

4.1.1.2. Dedução de pedido infundado


A dedução de pedido de declaração de insolvência ou a apresentação à insolvência só devem
ter lugar quando existam fundamentos para tal. O devedor não deve apresentar-se à insolvência
apenas para obter alguma proteção perante os credores e estes não devem requerer a insolvência
daquele apenas como meio de pressão para conseguirem o pagamento dos seus créditos.
Por isso mesmo é que o artigo 22.º do CIRE determina que a indevida apresentação à
insolvência ou a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência dão origem, em
caso de dolo, a responsabilidade civil pelos prejuízos causados, consoante os casos, aos
credores ou ao devedor. E tal responsabilidade não fica automaticamente afastada por se
conseguir provar um facto-índice previsto no artigo 20.º/1 do CIRE.

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4.1.1.3. Desvantagens para certos credores que não requerem


atempadamente a declaração de insolvência
Nos termos do artigo 97.º alíneas a) e b) do CIRE estão estabelecidas algumas desvantagens
para certos credores que não agiram com celeridade na defesa do seu crédito.
Da alínea a) decorre que a declaração de insolvência tem como consequência a extinção dos
privilégios creditórios gerais acessórios de créditos sobre a insolvência de que sejam titulares
o Estado, as autarquias locais e as instituições de segurança social quando esses créditos tenham
sido constituídos “mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência”.
A alínea b) determina a extinção de privilégios creditórios especiais de que sejam titulares os
mesmos sujeitos e que sejam acessórios de créditos sobre a insolvência vencidos “mais de 12
meses antes da data do início do processo de insolvência”.

4.2. O dever de apresentação à insolvência


Os devedores, desde que não sejam pessoas singulares não titulares de empresas na data em
que fiquem em situação de insolvência têm o dever de requerer à declaração da sua insolvência
no prazo de 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência tal como
descrita no artigo 3.º/1 ou à data em que devessem conhecê-la. Fica desde logo excluída a
existência desse dever quando se trata de uma situação de insolvência tal como descrita no
artigo 3.º/2 do CIRE.
Neste âmbito, o artigo 18.º/3 do CIRE prevê uma presunção – “Quando o devedor seja titular
de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência
decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum
dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º”.
Neste âmbito, então, devemos distinguir:
✓ o devedor singular não titular de uma empresa - não tem a obrigação de se apresentar à
insolvência;
✓ os devedores, quer sejam pessoas coletivas ou pessoas singulares, titulares de empresas
- são obrigados a apresentar-se à insolvência;
Quando o devedor é uma pessoa singular com capacidade, a ele cabe a iniciativa da
apresentação à insolvência. Não necessita de atuar através de representante.
No que diz respeito aos devedores que podem ser objeto de um processo de insolvência e que
não são pessoas singulares, decorre do artigo 19.º do CIRE que a iniciativa da apresentação à
insolvência cabe ao órgão social incumbido da administração do devedor ou, se não for o caso,
a qualquer dos seus administradores.

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4.3. Incumprimento do dever de apresentação à insolvência


O incumprimento do dever de apresentação à insolvência tem desde logo a consequência
prevista no artigo 186.º/3 e 4 do CIRE, isto é, o referido incumprimento faz presumir a
existência de culpa grave do devedor. Esta presunção é ilidível.
No plano geral, o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pode também ter
relevo, sobretudo perante o teor do artigo 228.º do Código Penal, em que se encontra previsto
o crime de insolvência negligente.

5. Efeitos da declaração de Insolvência


5.1. Efeitos sobre o devedor
O artigo 81.º do CIRE estabelece que a declaração de insolvência priva imediatamente o
insolvente (por si ou pelos seus administradores) “dos poderes de administração e de
disposição dos bens integrantes da massa insolvente”. Tais poderes passam assim a competir
ao administrador da insolvência.
A massa insolvente abrange “todo o património do devedor à data da declaração de
insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (artigo
46.º/1 do CIRE). Por sua vez, os bens absolutamente impenhoráveis nunca podem integrar a
massa insolvente, mas os bens relativamente impenhoráveis já podem ser apresentados
voluntariamente pelo devedor.
Assim, o administrador da insolvência assume a “representação do devedor para todos os
efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência” (artigo 81.º/4 do CIRE). Mas essa
representação já não abrange, em regra, a intervenção do próprio devedor no processo de
insolvência, os seus incidentes e apensos (artigo 81.º/5 do CIRE).
O artigo 81.º/2 do CIRE proíbe ainda ao devedor “a cessão de rendimentos ou a alineação de
bens futuros suscetíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza”, ainda que se trate de
“rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do
processo”.
Note-se ainda que o administrador da insolvência não está sujeito a “limitações ao poder de
disposição do devedor estabelecidas por decisão judicial ou administrativa, ou impostas por
lei apenas em favor de pessoas determinadas.” (artigo 81.º/3 do CIRE).
Se o insolvente violar este regime (artigos 81.º/1 a 5 CIRE), decorre do artigo 81.º/6 do CIRE,
que os atos por ele praticados são, em princípio, ineficazes relativamente à massa54. Exemplo:
se um insolvente vender um bem que está integrado na massa o contrato é válido e produz
efeitos nos termos gerais. Porém esse contrato não será eficaz relativamente à massa, e
portanto, o bem não é transmitido.

54
Há autores que entendem que se trata de uma ineficácia absoluta. Mas que será de aceitar a sua ratificação
pelo administrador da insolvência de modo a aproveitar as eventuais vantagens que resultem do ato para a
massa insolvente.

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O facto dos poderes de administração e disposição passarem a competir ao administrador da


insolvência não significa que os administradores do insolvente cessem automaticamente
funções. O artigo 82.º/1 do CIRE estabelece que os órgãos sociais do devedor “mantém-se em
funcionamento após a declaração de insolvência”. No entanto, não serão, em regra,
remunerados.
Os titulares dos órgãos sociais não podem sequer renunciar aos cargos se não tiverem procedido
ao “depósito de contas anuais com referência à data da decisão de liquidação em processo de
insolvência” (artigo 82.º/2 do CIRE).

5.2. Efeitos processuais


O artigo 85.º/1 do CIRE prevê a possibilidade do administrador da insolvência com
“fundamento na conveniência para os fins do processo” requerer a apensação ao processo de
insolvência das ações “em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa
insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa
influenciar o valor da massa”, bem como das ações “de natureza exclusivamente patrimonial
intentadas pelo devedor”.
No que diz respeito às ações executivas intentadas por credores da insolvência, o artigo 88.º/1
do CIRE faz a distinção entre as que têm apenas como executado o insolvente e as que têm
outros executados. No primeiro caso, a declaração de insolvência obsta à instauração ou
prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência. No
segundo caso, a declaração de insolvência não impede que a execução prossiga contra os outros
executados.

6. A sentença de declaração de insolvência


6.1. Aspetos gerais (artigo 36.º do CIRE)
6.1.1. Data e hora da prolação da sentença
A sentença de declaração de insolvência deve sempre indicar a data em que é proferida. Quanto
à hora da sua prolação ou ela é indicada na sentença ou na falta dessa indicação considera-se
que a prolação teve lugar ao meio-dia (artigo 36.º/1 alínea a) CIRE).

6.1.2. Identificação do devedor insolvente e da sua sede ou residência


O artigo 36.º/1 alínea b) do CIRE impõe a identificação do devedor insolvente na sentença de
declaração de insolvência, acrescentando que deve ser igualmente feita a indicação da sede ou
residência, consoante os casos.

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6.1.3. Identificação dos administradores de direito e de facto, do devedor


e fixação de residência, bem como o próprio devedor singular
A sentença contém a identificação dos administradores, de direito e de facto do devedor. Isto,
evidentemente, se este os tiver. Quanto à fixação de residência aos administradores e ao
devedor pessoa singular, não se trata de dizer onde os mesmo vão residir, mas sim de assegurar
que esses sujeitos estão contactáveis para lhes ser exigido o cumprimento dos seus deveres
(artigo 36.º/1 alínea c) CIRE).

6.1.4. Nomeação de administrador da insolvência e indicação do seu


domicílio profissional
A nomeação do administrador da insolvência (artigo 36.º/1 alínea d) do CIRE) constitui um
momento de grande relevo no processo de insolvência, pois aquele deverá desempenhar um
papel central no desenrolar do processo.

6.1.5. A Administração da massa insolvente pelo devedor


No artigo 36.º/1 alínea e) do CIRE está previsto que a sentença determine a administração da
massa insolvente pelo devedor, desde que preenchidos os pressupostos constantes do artigo
224.º/2 do CIRE:
✓ É necessário que o devedor tenha requerido a administração da massa pelo próprio;
✓ O devedor tem de ter apresentado um plano de insolvência ou que se tenha
comprometido a apresentá-lo no prazo de 30 dias após a sentença de declaração de
insolvência;
✓ Nesse plano deve-se prever a continuidade da exploração da empresa por si próprio;
✓ Não pode haver razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras
desvantagens para os credores;
✓ O requerente da insolvência, se não for o devedor, tem de dar o seu acordo;
✓ Só pode haver administração da massa insolvente pelo devedor se essa mesma massa
compreende uma empresa (artigo 223.º CIRE);
Exemplo: na massa insolvente há um conjunto de bens do insolvente e um desses bens é uma
pastelaria. O insolvente pode requerer que se mantenha a administrar esses bens. Para esse
efeito, é necessário que esteja aí incluída a pastelaria e que os outros credores não se oponham,
bem como que seja demonstrado que não haverá prejuízo para a massa. É necessário ainda que
o devedor tenha apresentado ou se comprometa a fazê-lo, no prazo de 30 dias após a prolação
da sentença de declaração de insolvência, um plano de insolvência em que preveja a
continuidade da exploração da empresa por ele próprio.

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6.1.6. A assembleia de credores para apreciação do relatório


De acordo com o artigo 36.º/1 alínea n) do CIRE o juiz designa na sentença de declaração de
insolvência o dia e a hora para a realização da assembleia de apreciação do relatório do
administrador da insolvência (cfr. O artigo 156.º do CIRE).
O administrador terá de realizar um relatório quanto à possibilidade de recuperação do devedor
ou da empresa integrada na massa insolvente, nos termos do artigo 155.º do CIRE. Sempre que
se lhe afigure conveniente a aprovação de um plano de insolvência para recuperação da
empresa deve apresentá-lo na assembleia de credores para apreciação do relatório. Deste modo:
✓ o relatório do administrador pode ser negativo quanto à possibilidade de recuperação
da empresa ou
✓ o relatório do administrador ser positivo, mas os credores não aprovarem a prossecução
do processo de insolvência com esta possibilidade de recuperação da empresa ou
✓ O relatório do administrador é positivo e os credores aprovam a sua prossecução ou
✓ Os próprios credores podem cometer ao administrador da insolvência o encargo de
elaborar um plano de insolvência;
Nas duas primeiras hipóteses, o seguinte passo do processo será a liquidação dos bens e partilha
da massa insolvente. Nas duas últimas hipóteses, pode-se determinar a suspensão da liquidação
dos bens e a partilha da massa insolvente. Todavia, a aprovação desse plano de insolvência terá
de se realizar ainda numa assembleia com essa finalidade. A suspensão cessa se o plano não
for apresentado pelo administrador da insolvência nos 60 dias seguintes ou se o plano
apresentado não for subsequentemente admitido, aprovado ou homologado.

6.1.7. Apreensão de bens


A sentença de declaração de insolvência decreta a apreensão e entrega imediata ao
administrador da insolvência dos elementos de contabilidade do devedor e de todos os seus
bens. A apreensão tem lugar ainda que os bens estejam “arrestados, penhorados ou por
qualquer forma apreendidos ou detidos”.
O Administrador da Insolvência passa a ter, com a declaração de insolvência poderes para
administrar e dispor dos bens da massa insolvente (artigo 81.º/1 do CIRE). E essa massa
insolvente é composta por “todo o património do devedor à data da declaração de insolvência,
bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo” (artigo 46.º/1 do
CIRE).
Assim, estes bens apreendidos (que são bens penhoráveis) passam a integrar a massa
insolvente, que constitui um património autónomo que em caso de liquidação se destina a ser
alienado para satisfação dos credores.

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6.1.8. Prazo de reclamação de créditos


De acordo com o artigo 36.º/1 alínea f) do CIRE, a sentença de declaração de insolvência
designa prazo até 30 dias para a reclamação de créditos. O prazo designado pelo juiz não tem
de ser 30 dias, pode ser inferior.
Esta reclamação dos créditos é fundamental porque os credores e Ministério Público na defesa
dos interesses das entidades que represente, que quiserem obter satisfação pelos bens
integrados na massa devem reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento,
acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham (artigo 128.º CIRE).
Segundo o artigo 128.º/5 do CIRE, a verificação tem por objeto todos os créditos sobre a
insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu
crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de
insolvência, se nele quiser obter pagamento.
Se o credor não reclama o seu crédito no prazo designado na sentença de declaração de
insolvência, pode ainda intentar ação contra a massa insolvente para verificação ulterior de
créditos (artigos 146.º ss CIRE).

7. A sentença de verificação e graduação de créditos


Dentro do prazo de 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, “o administrador
da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e
uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética” (artigo 129.º/1 do CIRE). Por
outro lado, o administrador da insolvência pode reconhecer créditos não reclamados desde que
eles constem “dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu
conhecimento”.
Nos termos do artigo 130.º do CIRE, no prazo de 10 dias subsequentes à apresentação das listas
dos credores reconhecidos e não reconhecidos, pode qualquer interessado impugnar a lista de
credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida
inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos
reconhecidos. Se houver impugnações, entraremos aqui numa fase declarativa enxertada no
processo de insolvência.
Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos
créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos
elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste
dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo
administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta.
Na sentença de verificação e graduação de créditos teremos:
✓ A graduação geral para os bens da massa insolvente e
✓ A graduação especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e
privilégios creditórios (artigo 140.º/ 2 CIRE).

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Na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a


proveniente da penhora, mas as custas pagas pelo autor ou exequente constituem dívidas da
massa insolvente (artigo 140.º/3 CIRE).
Ora, aqui é preciso atender que se os bens integrados na massa especial chegarem para
satisfazer os créditos aí graduados, o seu excedente irá integrar a massa geral de bens. Se pelo
contrário, os bens integrados na massa especial não forem suficientes para satisfazer os créditos
dos credores garantidos e privilegiados, esses credores quanto a essa parte “em falta” serão
credores comuns quanto à massa geral. Por outro lado, se o credor tiver um privilégio
mobiliário geral, este será satisfeito em primeiro lugar pelos bens integrados na massa e que
não estejam incluídos na graduação especial. Só depois de satisfeitos os credores garantidos e
privilegiados com a massa especial, e os credores com privilégio mobiliário geral é que serão
satisfeitos os credores comuns, e no final os credores subordinados.

7.1. Classificação dos créditos


7.1.1. Créditos sobre a massa
Os créditos sobre a massa insolvente estão elencados no artigo 51.º do CIRE, tais como:
✓ As custas do processo de insolvência;
✓ As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros
da comissão dos credores;
✓ As dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa
insolvente;
✓ As dívidas resultantes da atuação do administrador da insolvência no exercício das suas
funções;
✓ Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser
recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a
período anterior à declaração de insolvência;
✓ Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado
pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação
já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se
reporte a período anterior a essa declaração;
Os créditos a que se reportam as dívidas da massa insolvente devem ser pagos nas datas dos
respetivos vencimentos (artigo 172.º/3 do CIRE) e não carecem de ser reclamados pelo meio
previsto no artigo 128.º do CIRE.
Por outro lado, resulta do disposto do artigo 46.º/1 do CIRE e do artigo 172.º/1 do CIRE que o
pagamento dos credores do insolvente só se realiza, depois de pagas as dívidas da massa
insolvente. Assim, os credores da massa são satisfeitos em primeiro lugar relativamente a todos
os outros credores.
Estas dívidas não têm de passar pelo processo de verificação e graduação de créditos porque
este processo tem o objetivo de dar a conhecer ao administrador a insolvência quais os créditos
existentes, e as dívidas da massa são dívidas resultantes do próprio processo. Se não houver

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património suficiente para o pagamento destas dívidas da massa o administrador da insolvência


pode ser responsabilizado.

7.1.2. Créditos sobre a insolvência


São créditos sobre a insolvência, os créditos que recaem sobre o insolvente e assumem caráter
patrimonial, que sejam garantidos por bens da massa insolvente e cujo fundamento seja prévio
à declaração de insolvência, bem como aqueles cujos titulares demonstrem que os adquiriram
no decurso do processo de insolvência, nos termos do artigo 47.º/1 e 3 do CIRE.
Existem três tipos de créditos sobre a insolvência: (i) os garantidos e privilegiados; (ii) os
subordinados e (iii) os comuns.

7.1.2.1. Créditos garantidos e privilegiados


São garantidos, os créditos que beneficiem de garantias reais55, incluindo os privilégios
creditórios especiais, integrando o capital e os juros correspondentes até ao valor dos bens
objeto da garantia (artigo 47.º/1 alínea a) do CIRE). Haverá, contudo, certas garantias que se
extinguem com a declaração de insolvência e os seus titulares perdem o e seu estatuto de
credores garantidos (artigo 97.º do CIRE).
São créditos privilegiados os que beneficiam de privilégios creditórios gerais 56 sobre bens
integrantes da massa insolvente, podendo ser mobiliários e imobiliários (artigo 47.º/4 alínea a)
do CIRE). O pagamento dos créditos privilegiados é efetuado com base na execução dos bens
não afetos a garantias reais prevalecentes e respeitando a prioridade de cada privilégio,
consoante a sua graduação.
Os credores garantidos vão ser satisfeitos de acordo com a sua graduação relativamente ao bem
que garante o crédito, uma vez que o mesmo bem pode ser garantia de diferentes créditos, e
estes créditos não terão o mesmo grau de prevalência. Exemplo: perante duas hipotecas sobre
o mesmo imóvel elas não concorrem as duas ao mesmo tempo para o cumprimento dos
respetivos créditos. Primeiro prevalece a hipoteca mais antiga e só quando esse crédito está
integralmente pago é que se passa para o segundo crédito garantido.
Além disso, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos
necessários à satisfação das dívidas da massa, segundo o artigo 172.º/1 do CIRE. Ou seja, do
produto da alienação dos bens que são objeto destas garantias reais tem de se deduzir um valor
para satisfazer os credores da massa. A lei estabeleceu atualmente que “a imputação não
excederá 10% do produto de bens objeto de garantias reais, salvo na medida do indispensável
à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação
integral dos créditos garantidos.” (artigo 172.º/2 CIRE).

55Exemplo: hipoteca, direito de retenção, privilégio imobiliário especial;


56
Não incidem sobre um bem certo e determinado, mas conferem uma preferência pela satisfação do valor desses bens, não
sendo assim uma garantia real. Exemplo: os créditos laborais dos trabalhadores (artigo 333.º do Código de Trabalho).

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Exemplo: uma hipoteca sobre um imóvel alienado. Com o produto da venda desse imóvel tem
de se satisfazer o credor hipotecário, mas antes disso tem de se retirar até 10% desse produto
da venda para satisfazer os credores da massa. Os bens objeto das garantias reais respondem
mesmo pelos juros abrangidos pela garantia real que se constituam posteriormente à declaração
de insolvência (artigo 48.º alínea b) a contrario CIRE). Se os juros ultrapassarem o valor dos
bens objeto das garantias reais, nesse excedente tornam-se créditos subordinados.
Se a garantia em causa não for bastante para a realização do pagamento de todo o crédito, o
excedente será satisfeito como crédito comum. Exemplo: X tem um crédito de 1 milhão de
euros, sendo que tinha realizado uma hipoteca sobre uma casa mas essa casa foi vendida apenas
por 500 mil euros. Os outros 500 mil euros passam a crédito comum, ou seja, vão ser pagos
juntamente com todos os demais.

7.1.2.2. Créditos comuns


São créditos que são definidos por exclusão de partes, ou seja, estamos perante um crédito
comum se não estivermos perante uma dívida da massa, nem de um crédito garantido, nem de
um crédito privilegiado, nem de um crédito subordinado (artigo 47.º/4 alínea c) CIRE).
O pagamento destes créditos é feito após a dedução do valor para satisfazer os credores da
massa e após terem sido satisfeitos os créditos garantidos e privilegiados.
Sempre que os bens integrados na massa não sejam suficientes para a satisfação integral dos
credores comuns, fazemos um rateio. Isto é, temos de definir o valor dos créditos comuns e o
valor da massa insolvente, da sua comparação vai resultar uma proporção. Exemplo: A massa
insolvente tem um património de 1000 e os créditos comuns tem o valor de 3000. Ora, isto dá-
nos uma proporção de 1/3. Definida a proporção, os credores vão ser pagos em função desta.
Assim, quem tiver um crédito de valor nominal maior vai receber um valor maior, mas sempre
na proporção daquilo que é o património existente face à totalidade dos créditos. Assim se A
tiver um crédito de 1500€, vai ser pago 1/3 desse valor, ou seja, 500€.

7.1.2.3. Créditos subordinados


Definem-se como subordinados, os créditos enumerados no artigo 48.º do CIRE “exceto
quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que
não se extingam por efeito da declaração de insolvência” (artigo 47.º/4 alínea c) do CIRE).
Os credores de créditos subordinados ficam numa situação prejudicial face aos demais, uma
vez que são os últimos a ser satisfeitos e são pagos em termos hierárquicos, segundo a ordem
das alíneas do artigo 48.º do CIRE, ou seja:
✓ Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor (artigo 49.º
do CIRE), desde que a relação especial existisse já aquando da respetiva constituição,
e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início
do processo de insolvência;

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✓ Os juros de créditos não subordinados constituídos após a declaração da insolvência,


com exceção dos abrangidos por garantia real e por privilégios creditórios gerais, até
ao valor dos bens respetivos;
✓ Os créditos cuja subordinação tenha sido convencionada pelas partes;
✓ Os créditos que tenham por objeto prestações do devedor a título gratuito;
✓ Os créditos sobre a insolvência que, como consequência da resolução em benefício da
massa insolvente, resultem para o terceiro de má-fé;
✓ Os juros de créditos subordinados constituídos após a declaração da insolvência;
✓ Os créditos por suprimentos.
Os credores com créditos subordinados têm legitimidade para propor a insolvência de uma
sociedade, mas não estão autorizados a votar nas assembleias de credores nem podem participar
nas comissões de credores.
Os créditos subordinados não podem ser compensados com dívidas da massa. Ex.: A irmão de
B (devedor insolvente) tem um crédito face a B de 1000€ e tem uma dívida face a B de 500€.
A não pode compensar estes créditos. Assim, A vai ter de pagar os 500€ e esperar ser satisfeito
depois da satisfação dos créditos da massa, garantidos e privilegiados e dos créditos comuns.

7.2. Efeitos sobre os créditos


Nos termos do artigo 91.º/1 do CIRE “A declaração de insolvência determina o vencimento de
todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.”. Assim,
aquelas obrigações que apenas vencessem em data posterior à declaração de insolvência veem
esse vencimento antecipado, sem necessidade de interpelação.
Os credores não são sempre titulares apenas de créditos de natureza pecuniária expressos em
euros. Para que se torne mais fácil comparar os créditos o artigo 96.º do CIRE vem estabelecer
que para efeitos da participação do titular no processo de insolvência deve ser realizada uma
operação de conversão. Assim, os créditos não pecuniários e os créditos pecuniários sem
montante determinado “são atendidos pelo valor em euros estimável à data da declaração de
insolvência”. Por sua vez, os créditos expressos em moeda estrangeira ou índices “são
atendidos pelo valor em euros à cotação em vigor à data da declaração de insolvência no
lugar do respetivo pagamento”.
O artigo 97.º/1 do CIRE enumera um grande conjunto de garantias que se extinguem com a
declaração de insolvência.
O titular de créditos sobre a insolvência que, simultaneamente, tenha dívidas à massa insolvente
poderá ter interesse em efetuar a compensação57. No entanto, o artigo 99.º do CIRE começa
por estabelecer alguns limites à compensação de créditos sobre a insolvência com dívidas à
massa insolvente. Em primeiro lugar, a partir da declaração de insolvência os titulares de
créditos sobre a insolvência só podem compensá-los com dívidas à massa desde que se
verifique pelo menos um dos seguintes requisitos:

57
Causa de extinção das obrigações segundo o artigo 847.º Código Civil.

98
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✓ O preenchimento dos pressupostos legais da compensação seja anterior à data da


declaração da insolvência;
✓ O crédito sobre a insolvência ter preenchido os requisitos estabelecidos no artigo 847.º
do Código Civil antes do contra crédito da massa;
Já o artigo 99.º/4 do CIRE indica casos em que a compensação é excluída:
✓ Se a dívida à massa se tiver constituído após a data da declaração de insolvência,
designadamente em consequência da resolução de atos em benefício da massa
insolvente;
✓ Se o credor da insolvência tiver adquirido o seu crédito de outrem, após a data da
declaração de insolvência;
✓ Com dívidas do insolvente pelas quais a massa não seja responsável;
✓ Entre dívidas à massa e créditos subordinados sobre a insolvência.

7.3. Regime dos negócios em curso


7.3.1. Considerações iniciais
O regime do CIRE não prevê os efeitos sobre todos os negócios em curso, uma vez que é
possível encontrar noutros diplomas legais normas aplicáveis a certos negócios. Exemplo: No
Código de Trabalho temos previsto o regime insolvencial.
O regime dos negócios em curso não é um regime estabelecido em termos gerais como acontece
para os créditos. É um regime que é ditado pela lei para cada tipo contratual e nem todos os
tipos contratuais estão previstos no CIRE.
Este regime dos negócios em curso justifica-se que tutele o sujeito que ainda não realizou o
cumprimento, porque a lei permite-lhe recorrer à exceção de não cumprimento do contrato.
Todavia, se já tiver havido cumprimento por qualquer uma das partes, imaginemos que o
vendedor entregou a mercadoria, mas ainda não lhe foi pago o preço, já não vale este regime e
aí o que temos é um simples crédito sobre a insolvência. Exemplo: A vende a B 30
computadores, entrega-os imediatamente, com pagamento a 60 dias. Depois da entrega o
comprador é declarado insolvente, não se aplica o regime do artigo 102.º do CIRE. O vendedor
terá um crédito sobre a insolvência, um crédito comum e terá de o reclamar. Mas se ele não
tivesse realizado a entrega podia valer-se do regime do artigo 102.º do CIRE.

7.3.2. O artigo 102.º do CIRE - Princípio geral quanto aos negócios ainda
não cumpridos
O artigo 102.º CIRE tem por epígrafe “Princípio geral quanto aos negócios ainda não
cumpridos”. Contudo, lendo o seu n. º1 verificamos que afinal parecem estar em causa apenas
contratos bilaterais ainda não cumpridos na totalidade por qualquer das partes à data da
declaração da insolvência. Por outro lado, o seu âmbito de aplicação parece ser essencialmente
a compra e venda de coisas genéricas.

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Exemplo: A vende a B 30 computadores daqueles que tem em armazém por 3000€, o


comprador é declarado insolvente e não houve entrega da mercadoria. Evidentemente, não
houve ainda transmissão da propriedade sobre as coisas.
Para os negócios abrangidos pelo artigo 102.º/1 do CIRE, a lei estabelece que o respetivo
cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela
execução do contrato ou pela recusa do cumprimento. Embora o CIRE não defina um prazo
para essa opção o artigo 102.º/2 do CIRE permite que a outra parte no negócio fixe um prazo
“razoável” ao administrador da insolvência para que este opte por uma das duas alternativas.
Caso, porém, não indique, dentro do prazo fixado, deve-se considerar que o administrador
recusa o cumprimento.
A opção não existe se for “manifestamente improvável” o cumprimento pontual das obrigações
contratuais pela massa insolvente. No exercício do direito de optar, o administrador da
insolvência deve necessariamente olhar para o que é vantajoso para a massa insolvente e para
o conjunto dos credores.

✓ O Administrador da insolvência opta pela recusa do contrato


As consequências da recusa do cumprimento pelo administrador da insolvência são
pormenorizadamente abordadas no artigo 102.º/3 do CIRE.
Em primeiro lugar, a recusa não confere às partes o direito à restituição do que já tiver sido
prestado.
Em segundo lugar, a lei confere à massa insolvente o direito de exigir “o valor da
contraprestação correspondente à prestação já efetuada pelo devedor na medida em que não
tenha sido ainda realizada pela outra parte”.
Em terceiro lugar, a outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor
da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação
correspondente que ainda não tenha sido realizada.
Em quarto lugar, o direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo
incumprimento (i) apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos
do segundo ponto. (ii) é abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação
do terceiro ponto; (iii) constitui crédito sobre a insolvência;
✓ O Administrador da Insolvência opta pela execução do contrato
Se o administrador da insolvência optar pela execução do contrato, deve ser tido em conta que
as dívidas resultantes de “contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado” por aquele
são consideradas, em princípio, dívidas da massa insolvente (artigo 51.º/1 alínea f) CIRE).
O Administrador da Insolvência só optará pelo cumprimento do contrato se pretender a
recuperação da empresa e para isso o fornecimento daqueles bens seja essencial. Exemplo: se
estivermos perante uma fábrica têxtil e se interromperem a entrega de matéria-prima a fábrica
deixa de funcionar.

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7.3.3. Venda com reserva de propriedade (e operações semelhantes)


O artigo 104.º do CIRE tem em vista não apenas os contratos de compra e venda com reserva
de propriedade, mas também os contratos de locação financeira.
Se o vendedor ou locador financeiro é o insolvente no contrato de compra e venda com
reserva de propriedade ou de locação financeira, respetivamente, estatui-se que o comprador
ou locatário financeiro, a quem a coisa já tenha sido entregue na data da declaração de
insolvência, poderá exigir o cumprimento integral do contrato, tendo evidentemente nesse caso
de cumprir a sua prestação (artigos 104.º/1 e 2 do CIRE). A expectativa de aquisição pelo
comprador é desta forma expressamente protegida, mesmo em sede insolvencial.
Caso seja o comprador ou locatário financeiro o insolvente, se ele se encontrar na posse da
coisa, e desde que a cláusula de reserva de propriedade tenha sido estipulada por escrito até ao
momento da entrega da coisa (artigo 104.º/4 CIRE, sob pena de não ser oponível à massa), a
lei remete para o regime geral do artigo 102.º CIRE, com algumas particularidades, quanto ao
prazo fixado ao administrador da insolvência (artigo 104.º/2 CIRE) e ao cálculo do valor
previsto no artigo 102.º/3 alínea c) CIRE.
De acordo com o disposto no artigo 102.º do CIRE, que estabelece o regime geral para os
negócios bilaterais do insolvente em que não tenha havido total cumprimento nem por este nem
pela outra parte, o cumprimento fica suspenso, podendo o administrador optar pela execução
ou recusar o cumprimento. O vendedor poderá fixar um prazo razoável ao administrador da
insolvência para que este exerça a sua opção, findo o qual “se considera que recusa o
cumprimento” (artigo 102.º/2 CIRE). Neste caso, o prazo “não pode esgotar-se antes de
decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório” (artigo 104.º/3
CIRE).

✓ O Administrador da Insolvência opta pela recusa do contrato


A posição do vendedor é conformada pelo disposto no artigo 102.º/3 e do artigo 104.º/5 do
CIRE. O direito de propriedade, em todo o caso, mantém-se na esfera do alienante.
Recusado o cumprimento, nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou (artigo
102.º/3 alínea a) CIRE), o que significa que, tratando-se de uma venda a prestações, o vendedor
não terá que restituir os montantes já recebidos. Este poderá exigir à outra parte “a diferença
entre o montante das prestações (…) previstas até ao final do contrato, atualizadas para a
data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o
valor da coisa na data da recusa…” (artigo 104.º/5 do CIRE), como crédito sobre a
insolvência.
O alienante terá direito a ser indemnizado, também como crédito sobre a insolvência (artigo
102.º/3 alínea d) (iii) do CIRE), dos prejuízos resultantes do incumprimento, a que se terá de
abater o quantitativo a que este tenha direito, em resultado da aplicação do critério anterior
(artigo 102.º/3 alínea d) (ii) CIRE).

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✓ O Administrador da Insolvência opta pelo cumprimento do contrato


A obrigação do comprador transforma-se numa dívida da massa insolvente (artigo 51.º/1 alínea
f) CIRE).
O Administrador da Insolvência terá interesse na manutenção dos contratos de compra com
reserva de propriedade e de locação financeira devido à perspetiva de recuperação da empresa,
dado esses bens serem necessários para a atividade desse estabelecimento. Há aqui uma
proteção adicional do locador financeiro, dado que é sempre mantido na sua esfera o bem, a
garantia é sempre preservada na insolvência.
Se o administrador, tendo optado pelo cumprimento, não cumprir, o vendedor manterá, nesse
caso, o direito de resolução do contrato58.

8. Processo Especial de Revitalização da Empresa


Naqueles casos em que uma empresa esteja numa situação económica difícil ela não pode
recorrer à insolvência. O único mecanismo que lhe está aberto é o processo especial de
revitalização da empresa (PER).
O processo especial de revitalização (artigos 17.º ss CIRE) destina-se a permitir à empresa que,
comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência
meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações
com os respetivos credores de modo a concluir com este acordo conducente à sua revitalização.
Se a empresa estiver em situação de insolvência iminente pode recorrer ao PER ou o devedor
pode apresentar-se à insolvência, embora não esteja obrigado a fazê-lo.

58Repare-se que o vendedor não poderá resolver o contrato depois de declarada a insolvência enquanto se mantiver o
direito de escolha do administrador.

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MATÉRIA ABORDADA PELA SRA. PROFESSORA


MARIANA FONTES DA COSTA

I - Estatuto dos Comerciantes59


A qualidade de comerciante tem implicações ao nível do regime de alguns atos, dito de outra
maneira, os comerciantes gozam de um estatuto próprio. Esse estatuto reflete-se ao nível do
regime, desde logo nos seguintes aspetos:
✓ Segundo o artigo 2.º do Código Comercial, os atos praticados pelos comerciantes são
considerados atos subjetivamente comerciais, exceto se o ato em si não for de natureza
exclusivamente civil (exemplo: o casamento), e se o contrário do próprio ato não
resultar.
✓ A prova de determinados factos em que intervêm comerciantes é facilitada. Exemplo:
o artigo 369.º Código Comercial quanto ao empréstimo mercantil.
✓ Os créditos dos comerciantes obedecem ao regime da prescrição presuntiva de dois
anos do artigo 317.º, alínea b) do Código Civil.
✓ As dívidas comerciais dos comerciantes casados presumem-se contraídas no exercício
dos seus respetivos comércios, sendo em princípio da responsabilidade comum dos
comerciantes e dos seus cônjuges.
✓ Nos termos do artigo 18.º do Código Comercial, os comerciantes estão obrigados a:
• adotar uma firma;
• ter escrituração mercantil;
• fazer e inscrever no registo comercial os atos a ele sujeitos;
• dar balanço e prestar contas;

1. Obrigações Dos Comerciantes


1.1. Obrigação de adotar uma firma
A primeira obrigação tal como consta do conjunto de obrigações que indicámos anteriormente
é a obrigação de adotar uma firma.
A firma define-se, habitualmente, como sendo o nome comercial do comerciante, o sinal que
o individualiza ou identifica.
Até há relativamente pouco tempo esta era a definição, generalizadamente, correta e aceite.
Com a alteração do regime, autores como o Sr. Professor Coutinho de Abreu entendem que
esta é uma noção insuficiente dada a diluição de conceitos que se gerou com esta alteração, isto
porque, além de identificar os comerciantes, a firma individualiza:

59
Matéria abordada nas páginas 41 a 47 desta sebenta.

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✓ Alguns não comerciantes, como sociedades civis de tipo comercial e Agrupamentos


Complementares de Empresas (ACE) com objeto civil;
✓ Empresários individuais não comerciantes;
Esta matéria vem tratada sobretudo nos artigos 32.º e seguintes do Regime do Registo Nacional
das Pessoas Coletivas (RNPC), aprovado pelo Decreto-Lei 129/98, de 13 de maio:
✓ O objetivo da firma é facilitar a identificação daquele sujeito como comerciante a atuar
no exercício do seu comércio, bem como facilitar a identificação dos atos em que o
comerciante atua nessa qualidade de comerciante (artigos 36.º e seguintes Regime do
Registo Nacional de Pessoas Coletivas).
✓ O artigo 39.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas permite que
empresários individuais não comerciantes adotem firma.
Portanto, já não é verdadeiro que só os comerciantes é que têm firma60.
Durante muito tempo houve uma distinção clara entre firma e denominação:
✓ A firma era constituída pelo nome das pessoas.
✓ A denominação era constituída por expressões que identificavam, essencialmente, o
objeto social da atividade desenvolvida pelo comerciante. Exemplo: Reparações
informáticas Lda.
Atualmente, contudo, esta distinção já não opera nestes termos.
O Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, tendencialmente, usa o termo firma
quando estão em causa comerciantes, ou seja, para designar o signo individualizador de
comerciantes, e o termo denominação para designar, preferencialmente, o sinal identificador
de não comerciantes.
O que significa que uma firma pode ter o nome do comerciante, mas também elementos ou
expressões relativas à atividade do comerciante, e o contrário também pode ser verdade, ou
seja, uma denominação também pode ser composta pelo nome da pessoa (pelo empresário não
comerciante) e/ou por expressões relacionadas com a sua atividade.

60 Estamos a viver uma fase de mudança de paradigma: crescentemente, está-se a evoluir de uma noção de comércio para
uma noção de empresa. Isto já é ostensivo em alguns ordenamentos jurídicos, por exemplo, no Direito Italiano, o nome da
Unidade Curricular é “Direito das Empresas”, isto é totalmente visível também no Brasil, em que o Código Comercial é
integrado como um dos Livros do Código Civil ao qual se dá o nome de “Direito das Empresas”, no Direito Austríaco também
houve recentemente uma alteração do Código Comercial para Código das Empresas, e na Alemanha ainda não houve esta
mudança brusca, mas a recente reforma do Código de Direito Comercial Alemão já introduz o elemento de empresário e de
empresa como elemento determinante na qualificação das matérias.

Isto é o que faz sentido, porque a realidade económica aqui mais relevante, mais do que a noção de comércio, é a noção de
empresa (estrutura autónoma criadora de valor suscetível de troca e mercado).

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1.1.1. Composição das firmas


1.1.1.1. Composição das firmas das Pessoas Singulares
A firma das pessoas singulares:
→ Tem de ser composta pelo nome do comerciante completo ou abreviado, conforme
seja necessário para identificação da pessoa. Em regra, a abreviação não pode reduzir-
se a um único vocábulo, porque, caso contrário não teria o elemento de identificação,
nos termos do artigo 38.º/1 e artigo 3.º do Regime do Registo Nacional de Pessoas
Coletivas.
→ Este nome pode ser antecedido por expressões ou siglas que correspondam a títulos
académicos, profissionais ou nobiliárquicos a que o comerciante tenha direito, nos
termos do artigo 38º/3 do Regime do Registo Nacional de Pessoas Coletivas.
→ Pode ainda ser aditada uma alcunha ou expressão alusiva à atividade exercida pelo
comerciante.
→ Se o comerciante desenvolver a sua atividade no âmbito de um E.I.R.L a firma adotada
deverá, igualmente, ser constituída pelo seu nome completo ou abreviado, acrescido
ou não de referência ao objeto do comércio nele exercido e pelo aditamento
“Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada”, ou “E.I.R.L”, nos termos
do artigo 40.º do RNPC.

1.1.1.2. Composição das firmas das sociedades comerciais


✓ Sociedades em nome coletivo:
• A firma vem regulada no artigo 177.º/1 CSC, e deve ser composta: (i) ou pelo
nome completo ou abreviado ou firma de todos os sócios ou (ii) nome completo
ou nome abreviado ou firma de um ou alguns sócios, com o aditamento
abreviado ou por extenso “&Companhia”, ou qualquer outro que indique a
existência de outros sócios. Exemplo: “&Irmãos” ou “&Filhos”;
• Apesar do artigo 177.º CSC não o dizer expressamente, por analogia com o
artigo 38.º/1 RNPC e artigo 42.º/1 do RNPC, as firmas das sociedades em nome
coletivo ainda podem conter expressões alusivas ao objeto social, bem como
siglas, iniciais, expressões de fantasia ou composições (firma-mista);
• Se alguém não for sócio de uma sociedade em nome coletivo permitir a
inclusão do seu nome ou firma na firma social, responderá pelas obrigações
subsidiariamente em relação à sociedade e solidariamente com os sócios (artigo
177.º/2 CSC).
✓ Sociedades por quotas:
• A firma, regulada no artigo 200.º CSC, deve ser formada com ou sem sigla, (i)
nome completo ou abreviado, ou firma de todos, alguns ou algum dos sócios
(firma-nome), ou (ii) por uma denominação particular (firma-denominação), ou
(iii) pela reunião de ambos os elementos (firma mista);
• Em qualquer caso tem de conter o aditamento “Limitada” por extenso ou
abreviado “Lda.”, ou “Responsabilidade Limitada”;

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• Note-se, ainda, que se a sociedade por quotas for unipessoal a firma deve incluir
“sociedade unipessoal” ou “unipessoal” antes do aditamento “Limitada” ou
“Lda.” (art.270.º -B CSC);

✓ Sociedades anónimas
• É em tudo igual à das sociedades por quotas, quanto à firma, exceto o
aditamento que é “Sociedade Anónima” ou “S.A.”.
Nas palavras de Coutinho de Abreu “são na verdade muito semelhantes os
dizeres dos artigos 200.º/1 CSC e artigo 275.º/1 CSC” no caso do artigo 275.º
CSC a diferença prende-se com o exposto no ponto anterior;
• Para as sociedades anónimas, o Código não exige nenhuma especificação
semelhante à disposta no artigo 270.º-B CSC para as sociedades anónimas
unipessoais;

✓ Sociedades em comandita
• Temos os sócios comanditados que respondem em termos semelhantes aos
sócios das sociedades em nome coletivo. Por outro lado, os sócios
comanditários respondem em termos análogos aos sócios das sociedades
anónimas;
• Nos termos do artigo 467.º CSC, deve ser composta pelo (i) nome completo ou
abreviado ou firma de um, alguns ou todos os sócios comanditados e o
aditamento “Em Comandita” ou “& Comandita”, em sociedades em comandita
simples. Nas sociedades em comandita por ações tem o aditamento “Em
Comandita por ações” ou “& Comandita por ações”.
• Ainda é possível que na firma constem o nome ou firma de sócios comanditários
e de não sócios que em tal consintam expressamente (artigo 467.º/2 e 3 CSC),
sendo que, nesse caso, ficam sujeitos às consequências do n.º 3 e nº 4 do artigo
467.º CSC, por causa da confiança que criam no terceiro61.
• Podem ainda integrar elementos de fantasia ou elementos alusivos ao objeto
social nos termos previstos para as firmas das sociedades em nome coletivo.

61
Regime similar ao já visto no âmbito das sociedades em nome coletivo

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1.1.2. Princípios das firmas e denominações


1.1.2.1. Princípio da verdade (artigo 32.º/1 RNCP)
Os elementos que compõem as firmas e denominações devem ser verdadeiros, e não induzir
em erro sobre a identificação, natureza ou atividade do seu titular:
(i) a firma dos comerciantes individuais deve conter o nome deles e não de outrem, a
firma-nome e a firma mista das sociedades e dos ACE devem conter o nome ou a
firma dos sócios (ou associados) e não de estranhos62;
(ii) as firmas e denominações não podem conter palavras, expressões, abreviaturas, etc.
que induzam em erro quanto à caracterização jurídica dos respetivos titulares
(exemplo: “Associação de Importadores de Automóveis, Lda.” para uma sociedade
por quotas – artigo 32.º/4 alínea a) RNPC e artigo 10.º/5 alínea a) CSC);
(iii) as firmas-denominações, as firmas mistas e as denominações não podem incluir
elementos que sugiram atividades diversas das que os respetivos titulares exercem
ou se propõem a exercer (artigo 32.º/2 RNPC, artigo 10.º/1 CSC)63 .

Uma das manifestações deste princípio é a de que: se uma das pessoas deixar de ser sócio, a
firma deve ser alterada no prazo de um ano, exceto se, aquele que saiu ou os herdeiros,
consentiram por escrito na continuação da mesma firma (artigo 32.º/ 5 RNPC). A alteração da
firma, nestes casos, é requerida pelo princípio da verdade, mas também pela tutela do direito
ao nome. A possibilidade de a firma permanecer inalterada constitui uma restrição ao princípio
da verdade, pois induz em erro quanto à continuação daquele sócio. A lei permite essa restrição
em prol da identificabilidade.

1.1.2.2. Princípio da novidade e da exclusividade


As firmas e denominações devem ser distintas e não suscetíveis de confusão ou erro com as
registadas ou licenciadas no mesmo âmbito de exclusividade, mesmo que a lei permita a
inclusão de elementos utilizados por outras firmas já registadas (artigo 33.º/1 RNPC). Portanto,
em matéria de novidade, o princípio é desde logo limitado ou restringido pelo princípio da
exclusividade, neste sentido só é necessária novidade dentro de firmas registadas ou licenciadas
dentro do mesmo âmbito de exclusividade (artigo 35.º/1 e 4 RNPC).
✓ Quanto às sociedades comerciais nos termos do artigo 37.º/2 RNPC têm direito ao
uso exclusivo da firma em todo o território nacional;
✓ Quanto a agrupamentos complementares de empresas (ACE), cooperativas e
agrupamentos europeus de interesse económicos, têm, em princípio, direito ao
uso exclusivo da firma em todo o território nacional, exceto se o seu objeto
estatutário indicar a prática de atividade de caráter, essencialmente, local ou

62 No caso das sociedades em comandita pode constar o nome dos sócios comanditários ou de estranhos que, expressamente,
o autorizarem. Sendo que, nesse caso, ficam sujeitos ao princípio da responsabilidade própria dos sócios comanditados, nos
termos dos artigos 467.º/3 e 4 CSC.
63 Artigo 200.º/2 e 3 CSC, artigo 275.º/ 2 e 3 e em legislação mais específica como o artigo 11.º/1 do Regime Geral das

Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

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regional, nesse caso, este será o âmbito de exclusividade, ou seja, restringe-se a este
âmbito territorial (artigo 43.º/2 RNPC e artigo 36.º/3 RRNPC);
✓ Quanto aos comerciantes em nome individual:
(i) se for comerciante com firma-nome, não gozam de exclusividade, a proteção
é feita com recurso à proteção do direito ao nome (artigo 72.º/2 CC), ou
eventualmente, se estiverem preenchidos os requisitos com recurso ao
instituto da concorrência desleal (artigo 311.º do Código da Propriedade
Industrial). O Sr. Professor Coutinho de Abreu entende que é uma solução
contestável no caso dos comerciantes homónimos que podem ter fimas
iguais, por exemplo. O Sr. Professor Coutinho de Abreu entende que seria
preferível uma solução como a apresentada no Código Comercial Alemão
(HGB), nos termos do qual, a firma deverá ter um aditamento que a distinga,
claramente, de outra já registada e assim, ambas teriam um âmbito de
exclusividade.
(ii) Sendo uma firma mista o âmbito de exclusividade é o âmbito do concelho
onde se encontra o estabelecimento principal do comerciante (artigo 38.º/4
RNPC e artigo 40.º/3 RNPC);

1.1.2.3. Princípio da não confundibilidade


O critério da novidade prende-se com o princípio da não confundibilidade, isto é, tem-se pelo
critério de um público médio, de normal capacidade e diligência. Atenderemos para averiguar
da confundibilidade das firmas os seguintes critérios:
✓ Grafia;
✓ Efeito fonético das expressões;
✓ Núcleo caracterizante64;
✓ Âmbito da atividade – um problema suscitado na doutrina é se este juízo de
confundibilidade só se deve colocar perante comerciantes que exercem atividades
equivalentes. Há autores que defendem que a questão da confundibilidade só se
coloca em situações de concorrência, porque só aí haverá risco de confundibilidade
(exemplo: um banqueiro e um supermercado ainda que tenham firmas idênticas,
ninguém se dirige ao supermercado para contrair um empréstimo bancário). O Sr.
Professor Coutinho de Abreu entende que o juízo da inconfundibilidade deve ser feito
para todas as firmas, sejam elas concorrentes ou não, mas que esta concorrência das
atividades é um critério a ponderar na inconfundibilidade, como resulta do artigo
33.º/2 RNPC. Haverá confundibilidade, não apenas quando se conclui que o público
médio poderá acreditar tratar-se do mesmo comerciante, mas também quando o
público médio poderá admitir, em função da parecença das firmas (firma “oficiosa”),
haver alguma relação especial entre comerciantes que são absolutamente distintos
(Exemplo: tratar-se do mesmo grupo de sociedades).

64Nas palavras do Sr. Professor Coutinho de Abreu trata-se do “coração” da firma ou denominação, na medida em que os
aditamentos obrigatórios (exemplo: Lda, S.A., A.C.E.) são elementos de fraca eficácia distintiva.

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1.1.2.4. Princípio da capacidade distintiva


Esta questão não se coloca nas firmas-nome, já que estas têm capacidade distintiva na mesma
medida dos nomes das pessoas humanas.
Mas a questão já se coloca nas firmas-denominação que não contenham elementos de fantasia,
ou seja, uma firma que não contenha o nome, nem elementos que as permita distinguir em
relação às demais. Uma firma que apenas tem referência do objeto social/designações genéricas
(exemplo: “Sociedade de Seguros S.A.”), a vocábulos de uso comum para designar atividades
(exemplo: “Sociedade Ideal, L. da”) ou topónimos ou indicações de proveniência (exemplo:
“Sociedade Conimbrense, S.A.”) tem de ser conjugada com outros elementos que configuram
identidade e autonomização face aos restantes (exemplo: “Sociedade Coimbrense Editora
S.A”), nos termos do artigo 33.º/3 RNCP e do artigo 10.º/4 CSC.

1.1.2.5. Princípio da unidade


Trata-se de um princípio muito discutido pela doutrina em Portugal. Há autores que defendem
que deve ser possível ou deveria ser conferida aos comerciantes individuais a possibilidade de
terem mais do que uma firma quando tenham mais do que uma empresa (Sr. Professor Ferrer
Correia e doutrina alemã). Em Portugal, vigora o princípio da unidade, ou seja, a cada pessoa
uma firma, cada comerciante só pode ter uma firma:
✓ Comerciante em nome individual (artigo 38.º/1 RNPC);
✓ Sociedades Comerciais e restantes entidades coletivas que podem ser comerciantes
(artigo 9.º/1/c) CSC e artigo 171.º/1 CSC)
Este princípio só tem uma exceção, nos termos do artigo 40.º/1 RNPC, relativamente aos
comerciantes individuais que tenham mais que uma empresa: (i) tendo mais do que uma
empresa e (ii) se exercem a sua atividade num contexto de E.I.R.L. e (iii) outra atividade fora
dele, neste caso têm duas firmas.
Se algum comerciante adquirir a firma de um outro comerciante não pode manter as duas
firmas, terá de aditar a outra firma à sua, nos termos do artigo 38.º/1 e 2 RNPC e artigo 44.º/1
e 3 RNPC.

1.1.2.6. Princípio da licitude65


As firmas e denominações não podem conter expressões proibidas por lei, ofensivas da moral
e dos bons costumes, incompatíveis pelo respeito da liberdade de opção política, religiosa ou
ideológica, que desrespeitem símbolos nacionais, personalidades, épocas ou outras instituições,
cujo nome ou significado seja de salvaguardar por razões históricas, patrióticas, institucionais,
culturais ou outras atendíveis (artigo 32.º/4 alíneas b), c) e d) RNPC).

65 O Sr. Professor Coutinho de Abreu fala, aqui, de uma licitude residual para frisar que os restantes princípios manifestam,
igualmente, requisitos de validade-licitude.

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O Sr. Professor Coutinho de Abreu também menciona a licitude como um princípio, mas
apenas por uma questão sistémica, uma vez que, nas suas palavras este “princípio” reúne vários
princípios conforme se percebe pela letra do artigo 32.º/4 RNPC.

1.2. Obrigação de ter escrituração mercantil


Trata-se do registo ordenado e sistemático em livros e documentos de factos relativos à
atividade mercantil dos comerciantes, tendo em vista a informação deles e de outros sujeitos.
Exemplo: contabilidade organizada, atas das reuniões dos órgãos da sociedade comercial, a
documentação da correspondência expedida pelo comerciante, o registo em unidades
monetárias de factos, operações e situações patrimonial-contabilizáveis.
Nos termos do 30.º do Código Comercial, o comerciante pode escolher o modo de escrituração
mercantil, bem como o suporte físico, no entanto, nos termos do artigo 31.º do Código
Comercial, as sociedades comerciais continuam obrigadas a ter livros de atas, o que é
extensível às outras pessoas coletivas. Nas palavras do Sr. Professor Coutinho de Abreu o
artigo 31.º do Código Comercial prevê as formalidades extrínsecas e o artigo 39.º do Código
Comercial estabelece as formalidades intrínsecas das atas. Para efeitos de escrituração
mercantil, goza grande relevância a regulamentação em lei fiscal.

1.3. Obrigação de prestação de contas


O balanço é o documento de prestação de contas onde se compara o ativo com o passivo para
revelar o valor do capital próprio ou a situação líquida da sociedade. É um dos principais
documentos da prestação anual de contas.
Nos termos dos artigos 18.º e 62.º do Código Comercial os comerciantes são obrigados a dar
balanço anual do seu ativo e passivo, nos três meses do ano seguinte. Porém nem todos os
comerciantes têm o dever de prestar anualmente contas, nomeadamente, através do balanço,
desde logo, alguns pequenos comerciantes não têm de cumprir o Sistema de Normalização
Contabilística, onde estão definidas as regras de prestar contas (artigo 10.º do Decreto-Lei n.º
158/2009), ou seja, estão dispensados de ter contabilidade organizada.
A prestação de contas é relevante sobretudo no domínio das sociedades comerciais (e civis de
tipo comercial). Os membros do órgão de administração devem elaborar e submeter
anualmente aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, as contas do exercício
e demais documentos de prestação de contas nos termos dos artigos 65.º e seguintes CSC.66
Nos termos do artigo 40.º do Código Comercial os comerciantes devem arquivar os
documentos respeitantes à escrituração mercantil, assim como a correspondência emitida
e recebida por um período de 10 anos. Quantos aos livros de escrituração, o prazo conta-se
do último registo, do último assento ou lançamento.

66 Se os documentos de prestação de contas não forem apresentados atempadamente, pode qualquer sócio requerer ao
tribunal que se proceda a inquérito (artigo 67.º/1 CSC).

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Se houver uma liquidação da sociedade, o prazo passa a ser de 5 anos que se conta da data da
deliberação que aprova o relatório e contas finais dos liquidatários e designa o depositário dos
livros e demais documentos de escrituração (artigo 157.º/4 CSC).
Embora não goze de unanimidade na doutrina, a doutrina maioritária entende que esta
obrigação de escrituração mercantil é transmissível aos herdeiros. Neste sentido, escreve o Sr.
Professor Coutinho de Abreu que, é transmissível na medida em que a obrigação não é de
natureza estritamente pessoal, e já que os documentos mantêm utilidade para a reconstituição
e prova de factos anteriores à morte.

1.4. Obrigações de inscrição no registo comercial


A função do registo comercial é a de dar publicidade a certos atos/factos, não é uma condição
de validade, nem de eficácia inter partes, mas sim de eficácia perante terceiros, artigo 1.º do
Código de Registo Comercial.
Em matéria de registo comercial vigora o princípio da tipicidade, só são sujeitos a registo67
os factos e entidades previstos na lei (1.º e 10.º/f) Código de Registo Comercial).
Nos termos do artigo 18.º do Código Comercial devem os comerciantes fazer inscrever no
registo, os atos sujeitos a ele. Sem prejuízo de outros diplomas legais encontrámos as entidades
e factos sujeitos a registo no artigo 15.º do Código de Registo Comercial.
Ao abrigo do princípio da instância, nos termos do artigo 28.º do Código de Registo
Comercial o registo efetua-se a pedido dos interessados, salvo os casos de oficiosidade
previstos na lei (artigos 29.º e seguintes do Código de Registo Comercial).
O artigo 15.º/2 do Código de Registo Comercial ressalva que os factos relativos a comerciantes
individuais estão sujeitos a registo facultativo. Contudo, certos factos dos processos de
insolvência relacionados com comerciantes individuais (e outros sujeitos) devem ser registados
(artigo 9.º e artigo 38.º/ 2 alínea b) do CIRE).
O registo comercial pode ser consultado online (wwww.empresaonline.pt), nos termos do artigo
73.º/1 do Código de Registo Comercial. O registo tem caráter público, o que significa que
qualquer pessoa pode pedir certidões dos atos de registo. É possível obter certidões online,
nomeadamente, a designada certidão permanente que nos dá informação em suporte eletrónico,
permanentemente, atualizada dos registos em vigor respeitantes à entidade.
Os atos do artigo 70.º/2 do Código de Registo Comercial são obrigatoriamente públicos e de
consulta e de acesso livre em sítios da Internet de acesso público.

67Há duas formas de registo: o registo por transcrição (ou por extrato) e o registo por depósito (artigo 53.º-A/1 e artigo 53.º-
A/3 do Código Registo Comercial, respetivamente).

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1.4.1. Efeitos do registo


“O registo por transcrição definitivo68 constitui presunção de que existe uma situação jurídica,
nos precisos termos em que é definida” (artigo 11.º do Código de Registo Comercial). As
presunções do registo são, em regra, ilidíveis (artigo 350.º CC).
O efeito central do registo é o facto de este ser condição de oponibilidade contra terceiros, ou
seja, não é condição de validade, nem de eficácia inter partes, nem em relação aos seus
herdeiros. Contudo é condição de oponibilidade a terceiros (artigo 13.º/1 do Código de Registo
Comercial) – para estes efeitos é considerado terceiro quem não seja parte no facto, nem seu
herdeiro, nem representante (artigo 13.º/1 e artigo 14.º/ 3 do Código de Registo Comercial).
Assim, os atos sujeitos a registo só serão oponíveis depois da data de registo, artigo 14.º/1 e 2
Código de Registo Comercial.
Dizer que o registo é condição de oponibilidade a terceiro, não quer dizer que tendo o terceiro
conhecimento do facto que não possa invocá-lo contra as partes, a seu favor (ele pode invocar
o facto, simplesmente, as partes é que não lho podem opor).
Isto não se aplica aos atos em que o registo não tem um efeito meramente declarativo, mas sim
constitutivo. Nestes casos, o ato é ineficaz em sentido amplo (contra todos): terceiros, partes,
seus herdeiros e representantes. O registo é condição para existência e eficácia do ato em
sentido amplo (artigo 13.º/2 Código de Registo Comercial).

2. Responsabilidade por dívidas comerciais contraídas por


cônjuge comerciante
Trata-se de um regime primordialmente tutelador do comércio.
Existem duas presunções cuja conjugação impacta nos regimes de bens aquando de casamento
com cônjuge comerciante:
✓ As dívidas do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do
comércio, portanto nada sendo provado em contrário presume-se que as dívidas de um
comerciante são derivadas da sua atividade comercial (artigo 15.º do Código
Comercial);
✓ Se os cônjuges forem casados em regime de comunhão de adquiridos ou de comunhão
geral de bens69, as dívidas contraídas por um dos cônjuges no exercício da sua atividade
comercial são da responsabilidade comum de ambos, exceto se se provar que não
foram contraídas em proveito comum do casal (artigo 1691.º/1 alínea d) CC);
Isto significa que, por estas dívidas respondem primeiro os bens comuns do casal e na sua falta
respondem, solidariamente, os bens próprios de cada um dos cônjuges.
Os credores só têm de provar que o devedor é comerciante e que as dívidas resultam de atos
objetivos ou subjetivamente comerciais70, para fazer funcionar estas duas presunções.

68 Há duas formas de registo, este artigo deixa de fora desta presunção o registo por depósito.
69 Ou seja, não estando casados em regime de separação de bens, há comunicabilidade de dívidas.
70 Não têm de provar o consentimento do outro cônjuge ou que as dívidas foram contraídas para ocorrer aos encargos normais

da vida familiar como terá de acontecer nas alíneas a) ou b) do artigo 1691.º/1 CC.

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Estas presunções são ambas ilidíveis e terá interesse em afastar estas presunção o cônjuge não
comerciante e, eventualmente, o devedor comerciante. Porém, é praticamente impossível ao
devedor ou ao cônjuge não comerciante provar que a dívida não foi contraída em proveito
comum do casal, e assim afastar a presunção. Desde logo, porque esse proveito comum afere-
se pelo fim visado e não pelo resultado. O fim tem de ser no interesse do casal, devendo ser
apreciado objetivamente à luz do homem médio e tem de resultar imediatamente do ato
praticado, mas não tem de ser proveito patrimonial, incluindo-se aqui proveitos morais e
culturais. Exemplo: pagamento das férias em família ou da escola.
Um caso paradigmático de afastamento desta presunção em tribunal foi o de dois cônjuges
viverem separados de facto e não haver filhos em comum. Ou seja, não havia qualquer apoio
financeiro da parte do cônjuge comerciante ao outro cônjuge ou ao agregado familiar.
O Dr. Coutinho de Abreu fala ainda de uma outra situação em que poderá haver afastamento
desta presunção quando o cônjuge comerciante compre (para revenda) uma mercadoria por um
preço manifestamente exagerado, a fim de beneficiar especialmente o vendedor-amante.
Deste modo, para não se aplicar a presunção do artigo 1691.º/1, alínea d) CC tem de ficar
provado que há uma separação de patrimónios dos dois cônjuges.
Este regime, atualmente, tem uma relevância relativa na medida em que a atividade comercial
é, maioritariamente, exercida no seio de sociedades comerciais e este regime não se aplica
quando está em causa uma sociedade comercial71.

71O problema, no âmbito das sociedades comerciais são os avais. Se o gerente concede um aval no âmbito da atividade
comercial, este é extensível e abrange o casal.

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II - Empresas72
1. Noção de Empresa
Não há propriamente uma noção unívoca de empresa, mas há vários ramos que têm procurado
defini-la. Existem algumas noções:
✓ Lei da Defesa da Concorrência no artigo 3.º define como “qualquer entidade que
exerça uma atividade económica que consista na oferta de bens ou serviços num
determinado mercado independentemente do seu estatuto jurídico e do modo de
funcionamento”;
✓ Artigo 5.º do CIRE determina que “para efeitos deste código considera-se empresa
toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer
atividade económica”;
O entendimento de empresa previsto na Lei de Defesa da Concorrência centra-se no sujeito
(conceção subjetiva) e o entendimento de empresa previsto no CIRE centra-se na empresa
como organização de meios produtivos (conceção objetiva).
Estas definições abrangem quer empresas comerciais, quer as empresas não comerciais.

2. Empresa Comercial e Estabelecimento Comercial


Tendencialmente, a palavra empresa ou estabelecimento comercial são sinónimos. Os dois
termos podem ser utilizados da mesma forma. Por outro lado, tendencialmente,
estabelecimento comercial reserva-se para falar em empresas em sentido objetivo: empresa
como instrumento e estrutura produtiva de determinado sujeito.
Há inúmeras leis onde os termos são ainda usados como sinónimos seja em empresa em sentido
objetivo, seja empresa em sentido subjetivo.

3. Empresa em sentido subjetivo


Entende-se a empresa em sentido subjetivo como: sujeito jurídico que exerce uma atividade
económica, sendo sujeito de direitos e deveres, podendo ser uma pessoa singular ou coletiva
ou até mesmo entidades sem personalidade jurídica.
O Dr. Coutinho de Abreu entende que as aceções de empresa em sentido objetivo e em sentido
subjetivo não se equivalem de modo a poder falar-se de um conceito unitário de empresa, um
conceito geral que valha para todas as espécies empresariais (pese embora o facto de, na grande
maioria dos casos a empresa-sujeito implique a empresa-objeto).
As empresas em sentido subjetivo evidenciam-se principalmente no direito (de defesa) da
concorrência.
Para que o sujeito jurídico seja qualificável como empresa tem de exercer uma atividade
económica, isto é, tem de estar em causa a troca de bens e/ou serviços. Todavia não tem,
necessariamente, que ser dirigida à obtenção de lucros, nem ser desenvolvida no seio de uma
organização de trabalho dependente e/ou outros fatores produtivos, ou seja, neste sentido
72 Empresa comercial durante muito tempo foi sinónimo de sociedade comercial. A separação foi feita para acomodar os
interesses dos acionistas da sociedade comercial com os interesses de outras partes interessadas (complexo da empresa). Na
mudança de padrão académico e pedagógico volta-se a uma crescente personificação de empresa.

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subjetivo não é necessário que se identifique uma organização de meios autónoma face ao
sujeito, não é preciso que haja estabelecimento comercial (pode depender tão-só da pessoa do
sujeito).

Assim, são empresários:


✓ os profissionais liberais;
✓ os artistas;
✓ um inventor que comercializa a própria invenção.
Mas, à luz do direito da concorrência, já não exerce uma atividade económica empresarial:
✓ Consumidores privados;
✓ Estado e outros entes públicos que adquirem bens para satisfação de necessidades sem
intenção de os reintroduzir no mercado;
✓ Estado e outros entes públicos que atuem somente no exercício de prerrogativas de
autoridade ou de poder público;
✓ Trabalhadores dependentes;
✓ Entidades (principalmente públicas, mas não só) que exercem atividades,
exclusivamente, sociais, baseadas no princípio da solidariedade, sem fins lucrativos,
recebendo os beneficiários prestações gratuitas ou mediante contraprestações não
proporcionais aos custos daquelas. Ex.: Universidades públicas, os hospitais EPE;

As empresas em sentido subjetivo podem situar-se quer no setor público, quer no setor privado
ou quer no setor cooperativo.
No âmbito do setor privado, elas podem ser:
✓ Pessoas coletivas com ou sem personalidade jurídica. Ex.: sociedades comerciais,
agrupamentos complementares de empresas, agrupamentos europeus de interesse
económico e, em alguns casos, associações e fundações;
✓ Pessoas singulares73. Ex.: comerciantes, agricultores, artesãos, profissionais liberais,
cientistas.
No setor público integram-se sobretudo as empresas públicas estaduais, regionais e locais, de
carácter societário ou institucional, com exceção daquelas que não respeitam o requisito da
atividade económica. Ex.: hospitais EPE.
No setor cooperativo temos as cooperativas do primeiro grau e as cooperativas do grau superior
(denominadas de uniões de cooperativas).
Nos termos do artigo 3.º/2 da Lei Da Concorrência considera-se como uma única empresa o
conjunto das empresas juridicamente distintas que constituam uma unidade económica ou
mantenham laços de interdependência.

73Sendo de notar que estas pessoas singulares podem ser uma empresa em sentido subjetivo e não ser, simultaneamente,
uma empresa em sentido objetivo;

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4. Empresa em sentido objetivo


Define-se empresa em sentido objetivo: organização intencional de meios (pessoas e bens)
apta à promoção do exercício, relativamente estável e autónomo, de uma atividade de
produção de um resultado consubstanciado de valor económico próprio suscetível de troca no
mercado74, predominantemente, com finalidade lucrativa.

4.1. Elementos da empresa em sentido objetivo


Quanto aos elementos da empresa adota-se a posição do Dr. Filipe Cassiano dos Santos que
distingue seis elementos principais:
✓ Estrutura organizatória complexa acompanhada de uma estratégia de intervenção no
mercado75;
✓ Natureza produtiva da atividade prosseguida com vista à criação de valor económico
novo;
✓ Particular relevância do capital, de entre os meios colocados ao serviço da atividade
empresarial;
✓ Autonomia funcional do processo produtivo não dependente em exclusivo de
qualquer dos seus elementos ou fatores intrínsecos.
✓ Objetivo de autonomia financeira com predominância de finalidade lucrativa – as
empresas têm de ser capazes de sobreviver;
✓ A identidade própria da empresa como sujeito económico e verdadeiro ator do
mercado;

5. Direito Comercial e Direito Empresarial


No Direito Português atual não existe uma sobreposição total entre Direito Comercial e Direito
Empresarial.
Por exemplo, há atos que a lei qualifica como objetivamente comerciais e que não são
integráveis em nenhuma estrutura empresarial. O exemplo máximo é da compra e venda
comercial (da compra com intenção de revenda). Ex.: um funcionário fabril que decide comprar
um automóvel para nos tempos livres o renovar e o revender. Isto é um ato objetivamente
comercial, uma compra e venda comercial, nos termos do artigo 463.º do Código Comercial,
mas que claramente não tem por trás deste exercício comercial uma estrutura empresarial. Não
há aqui qualquer organização de meios produtivos dotada de autonomia.
O Dr. Coutinho de Abreu defende que a atividade profissional do comércio pode até ser
exercida fora do contexto empresarial. Os exemplos que dá são o do pequeno vendedor
ambulante e os pequenos agentes comerciais a título individual que exercem a sua atividade
fora de uma estrutura organizativa.
O Dr. Pedro Pais de Vasconcelos tem uma posição diferente. Defende que o exercício
profissional do comércio se desenvolve sempre numa estrutura empresarial, que pode ser
simples ou complexa, mas que não deixa de ter essa autonomia.

74 Por outro lado, Coutinho de Abreu entende que não se deve falar de mercado a propósito das empresas, porque há
organizações que produzem apenas para o Estado ou para outras empresas e, portanto, não vão ao mercado. Devido a esta
crítica, a Professora Mariana Costa introduziu a expressão “suscetível de troca no mercado”.
75 Mais se acrescenta, nas palavras de Cassiano Dos Santos “a empresa pode até não ter ainda entrado em funcionamento ou

estar encerrada – ponto é que assuma já uma identidade no mercado ou não a tenha perdido conforme os casos”.

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Ora, o contrário também deve ser ponderado. Da mesma forma que há atos comerciais que não
são atos empresariais, ou seja, não são praticados no seio das empresas, há empresas que não
são comerciais. Exemplo: As empresas que são geridas no contexto de atividades de
profissionais liberais.
O Dr. Coutinho de Abreu defende que são comerciais as empresas cujo objeto se traduza na
realização de atos ou atividades objetivamente mercantis, assumindo especial relevância neste
contexto a enumeração do artigo 230.º do Código Comercial.
Apesar de efetivamente não existir uma sobreposição entre Direito Comercial e Direito
Empresarial, as franjas dissonantes são muito pequenas e tem crescentemente uma importância
económica quase insignificante76.
O Dr. Filipe Cassiano dos Santos defende de iure condendo a eliminação da distinção entre
empresa comercial e empresa não comercial, deixando apenas de fora do Direito Comercial,
aquilo que o autor designa por atividades económicas não capitalistas que são exercidas não
empresarialmente e as que, por esse facto, ou por opção do legislador são excluídas do âmbito
de aplicação do Direito Comercial. Esta é a posição que a Professora Mariana Fontes da Costa
defende e que tem vindo a crescer também na doutrina e legislação internacional77.

6. Empresa comercial ou empresa meramente civil?78


No âmbito da atividade empresarial, podem-se distinguir as empresas comerciais das empresas
civis. São empresas comerciais aquelas cujo objeto se traduza na realização de atos ou
atividades objetivamente comerciais. O problema situa-se em saber o que são atos
objetivamente comerciais em matéria de empresas, para isso temos de atender ao artigo 230.º
Código Comercial.

6.1. Empresas da indústria extrativa, designadamente, as que fazem


exploração de recursos geológicos.
Para o Dr. Coutinho de Abreu estas empresas não são comerciais, porque:

✓ Não cabem em nenhuma alínea do artigo 230.º do Código Comercial;

76 O grosso da atividade comercial é exercida no contexto das empresas, tanto que estamos a falar de atos objetivamente
comerciais não praticados por comerciantes. E mesmo quanto às empresas a tendência vai no sentido da comercialização da
atividade empresarial, que significa que o centro do valor produtivo deixa de estar na pessoa para estar na organização. Com
a crescente profissionalização, nós sem sabemos quem está nas Sociedades de Advogados, isto não é relevante em termos de
clientes, porque a expressão de que “o cliente vai atrás do advogado” deixa de ser aplicável.
77 Existe este movimento de despersonalização mesmo na atividade dos profissionais liberais. E então tem havido esta
aproximação entre o Direito Empresarial e o Direito Comercial, ao ponto dos italianos já não falarem de Direito Comercial, o
Livro no Código Civil chama-se “Das Empresas”. O mesmo no Brasil, o Direito Comercial é tratado por Direito Empresarial.
A posição que tem vindo a ser crescentemente defendida (mas não pelo Dr. Coutinho de Abreu) é de haver uma presunção
de comercialidade da atividade empresarial que o legislador afastaria por determinação expressa da lei. Ou seja, assumia-se:
• Que a atividade comercial profissional é toda exercida em contexto empresarial, com maior ou menor sofisticação,
mas há sempre uma estrutura empresarial por trás;
• Que por natureza as empresas têm essa dimensão comercial, salvo aquelas que o próprio legislador exclui;
78 Matéria abordada pelo Professor Pestana Vasconcelos (as dúvidas do artigo 230.º do Código Comercial).

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✓ Não é possível, por analogia legis, identificá-las em nenhuma alínea do artigo 230.º do
Código Comercial;
✓ Não estão preenchidos os pressupostos da analogia iuris, uma vez que não resulta da lei
nenhum princípio geral de comercialidade que se aplique a estas empresas;
Assim, se nenhuma norma comercial prevê estas empresas, elas serão empresas civis.
Concomitantemente, as sociedades que desenvolvem esta atividade são sociedades civis, ainda
que adotem a forma comercial.
A Sra. Professora Mariana Fontes da Costa discorda, porque as empresas da indústria extrativa
são, em regra, grandes estruturas empresariais, com um grau de sofisticação e de intensidade
de atividade elevados. Assim, pela própria natureza da atividade, pelo grau de organização com
que ela se propõe, estas deveriam ser consideradas empresas comerciais79.
A Sra. Professora Mariana Fontes da Costa segue o entendimento do Dr. Filipe Cassiano dos
Santos que de iure condendo, a lógica deveria ser: todas as empresas são comerciais, com a
exceção daquelas que a lei, expressamente, exclui.

6.2. Empresas agrícolas, silvícolas, florestais e as pecuárias.


Estas empresas estão expressamente excluídas no artigo 230.º, no §1 do Código Comercial
“Não se haverá como compreendido no n.º 1 o proprietário ou o explorador rural que apenas
fabrica ou manufatura os productos do terreno que agriculta, acessoriamente à sua exploração
agrícola, nem o artista, industrial, mestre ou oficial de ofício mecânico que exerce diretamente
a sua arte, indústria ou ofício, embora empregue para isso, ou só operários, ou operários e
máquinas”80.
O Dr. Coutinho de Abreu defende que preenchidos estes pressupostos não há comercialidade,
pelo que estamos perante empresas civis. Neste preceito cabem não só as empresas agrícolas,
mas também as silvícolas, florestais e as pecuárias.
Exemplo: A AGROS cabe nesta classificação de empresa agrícola, porque a própria fabricação
e manufatura é desenvolvida pelo próprio proprietário ou explorador rural. Ora, não parece
coerente encararmos a AGROS como uma sociedade civil não dotada de natureza comercial.
O Dr. Pedro Pais de Vasconcelos e o Dr. Filipe Cassiano dos Santos entendem que o artigo
230.º §1 do Código Comercial abrange atividades que não gozam sequer de uma estrutura
empresarial, ou seja, cuja natureza as exclui deste contexto empresarial. E, portanto, sempre
que esta atividade for desenvolvida num contexto empresarial, elas serão comerciais.

79 Não há motivo para não lhes serem aplicadas as regrasde desculpabilização e as regras de estímulo da atividade económica
que estiveram na origem do Direito Comercial (ex.: regime de juros, a desformalização, as garantias).
80Quando a fabricação ou manufatura é desenvolvida pelo proprietário ou explorador rural e assente nos produtos por ele
agricultados, sendo acessória dessa exploração agrícola, não são empresas comerciais.

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6.3. Empresas de transformação exploradas por artesãos


São empresas de transformação exploradas por artesãos as que exercem diretamente a
atividade, ainda que empregando cumulativamente outros operários.
Há autores que, à luz do artigo 230.º §1 do Código Comercial que entendem que não é legítimo
falar-se em empresas artesanais. Porém, o Dr. Coutinho de Abreu alerta para a distinção
necessária entre empresa, enquanto uma organização produtiva, e empresa comercial.
Deste modo, o Dr. Coutinho de Abreu defende que a atividade artesanal pode ser desenvolvida
em contexto empresarial, mas será uma empresa civil, uma vez preenchido o requisito do artigo
230.º §1 do Código Comercial do artesão “exerça diretamente a sua arte, indústria ou ofício,
embora empregue para isso, ou só operários, ou operários e máquinas”. Porém, este requisito
já não estará preenchido se o artesão se limita à direção administrativa, comercial e/ou
financeira da empresa, sendo nesse caso uma empresa comercial.

7. Natureza lucrativa da Empresa


Importa questionar se esta natureza lucrativa é um elemento essencial da empresa regulada pelo
Direito Comercial. O propósito principal das empresas é a obtenção de lucro, dado que cria
postos de trabalho e movimentação de economia. A questão que se coloca é se pode haver uma
empresa que não tenha como objetivo principal a obtenção de lucro. A doutrina divide-se:
✓ Há autores que entendem que não (doutrina minoritária).
✓ A doutrina maioritária, na qual o Dr. Coutinho de Abreu se inclui, é a de que o escopo
lucrativo não constitui um elemento essencial do conceito de empresa. Exemplos: as
cooperativas, empresas públicas, empresas exploradas por associações ou fundações.
Portanto, existem casos em que a finalidade lucrativa é alheia à atividade empresarial.
Fundamental é que a empresa tenha condições para autonomamente subsistir.

8. Tipos de empresas consoante o setor de propriedade dos


meios de produção
8.1. Empresas do setor privado
Podem ser detidas por pessoas singulares e/ou pessoas coletivas, a título individual ou por mais
do que uma pessoa. Exemplo: uma empresa que pertence a mais do que uma pessoa singular é
a empresa que pertence ao património comum dos cônjuges. Quanto a exemplos de pessoas
coletivas proprietárias de uma empresa no setor privado, temos como exemplo paradigmático
as sociedades comerciais. Outros exemplos são ainda os agrupamentos complementares de
empresas ou mesmo associações e fundações, que podem explorar estabelecimentos
comerciais, a título principal ou secundário.
Exemplo: Associação que promove a atividade teatral e que explora uma sala de espetáculos
sem fins lucrativos.
As fundações são muito comuns em empresas familiares para evitar conflitos nas sucessões.
Exemplo: Wallenberg family.

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8.2. Empresas do setor cooperativo e social


Nos termos do artigo 2.º do Código das Cooperativas, definem-se por pessoas coletivas
autónomas, de livre constituição de capital e composição variáveis, que através da cooperação
e entreajuda dos seus membros com obediência aos princípios cooperativos visam, sem fins
lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas sociais ou culturais daqueles.
Há um conjunto grandes de cooperativas, que estão a ser utilizadas para a promoção de start-
ups, para projetos de promoção de novas atividades empresariais.

8.3. Empresas do setor público


Integram-se neste setor, principalmente:
✓ Empresas públicas estaduais e Empresas públicas das regiões autónomas;
✓ Empresas locais e Serviços municipalizados;

8.3.1. Empresas públicas estaduais


Nos termos do artigo 5.º/1 do Regime do Setor Público Empresarial são empresas públicas as
organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada
nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer,
isoladamente ou conjuntamente, de forma direta ou indireta influência dominante.
Existem dois tipos de empresas públicas:
✓ Empresas Públicas Societárias (as EP’s Societárias) que podem adotar a forma de
sociedade por quotas ou sociedades anónimas. As Empresas Públicas Societárias que
não tenha capitais exclusivamente públicos, ou seja, que tenham um capital privado,
terão uma finalidade lucrativa, porque são sociedades. As Entidades Públicas
Societárias que tenham um capital inteiramente público já não terão o lucro como
elemento determinante.
✓ Entidades Públicas Empresariais (EPE’s) – dado terem capitais exclusivamente
públicos, o lucro não é um elemento determinante. Aliás, o Dr. Coutinho de Abreu
recusa a natureza de empresa a algumas EPE’s quando elas não têm a capacidade de
autossustentação, como é o caso das Universidades Públicas e dos Hospitais Públicos.

8.3.2. Empresas públicas locais


Estão previstas na Lei n.º 50/2012. A atividade empresarial local pode ser desenvolvida pelos
municípios, pelas empresas municipais (sigla E.M), pelas empresas intermunicipais (sigla
E.I.M) e pelas empresas metropolitanas (sigla E.M.T).
Não podemos confundir empresas locais com serviços municipalizados.
A competência para a criação de serviços municipalizados pertence à Assembleia Municipal
sob proposta da Câmara Municipal. Estes não gozam de personalidade jurídica e integram a
estrutura organizacional do município. Não obstante, podem constituir verdadeiras empresas a
título objetivo.

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III – E.I.R.L
E.I.R.L é a sigla que designa Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada.
Na sua essência consiste num património autónomo81 ou separado. Isto significa que os bens
afetos ao E.I.R.L. só respondem, em regra, pelas dívidas decorrentes da atividade empresarial.
E mais importante ainda, pelas dívidas decorrentes da atividade empresarial só respondem os
bens adstritos ao E.I.R.L.
O E.I.R.L não vingou na ordem jurídica, porque:
✓ A lei apenas permite um E.I.R.L por comerciante e, portanto, para comerciantes que
explorem várias empresas haverá a mistura de patrimónios, cuja não verificação era
uma das finalidades subjacentes à criação do E.I.R.L;
✓ Nos termos dos artigos 10.º, 11.º e 22.º do Decreto-Lei n.º 248/86, quanto ao E.I.R.L.
estão consagradas uma série de exceções à autonomia patrimonial, nomeadamente:
• Permite que o património pessoal do comerciante responda por dívidas
comerciais do E.I.R.L. em caso de mistura de patrimónios;
• Permite que o património do E.I.R.L. responda por dívidas do comerciante em
caso de insolvência deste;
• Permite ainda essa responsabilidade nos casos do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º
248/86.
Ora, isto fez com que os comerciantes optassem por constituir sociedades unipessoais por
quotas.

81O património autónomo não é um ente dotado de personalidade jurídica, mas tem personalidade judiciária. É um conjunto
de bens que só podem ser utilizados num determinado contexto. Ex.: herança jacente não distribuída.

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IV - Estabelecimento comercial
1. Noção de Estabelecimento Comercial
O Estabelecimento comercial, ou seja, a empresa em sentido objetivo é um bem económico ou
patrimonial transpessoal, o que significa que é cindível da pessoa que o criou ou da pessoa que
o detenha num dado momento (daí que possa ser vendido ou trespassado).
É um bem duradouro, reconhecível e irredutível, distinguindo-se os negócios sobre o
estabelecimento dos negócios sobre algum ou alguns dos seus elementos. Trata-se de um bem
complexo composto por vários bens ou elementos.

2. Elementos que compõem o estabelecimento comercial


Nesta matéria temos duas conceções distintas:
✓ A conceção restrita adotada pelo Dr. Coutinho de Abreu;
✓ A conceção ampla do Dr. Ferrer Correia e do Dr. Orlando de Carvalho;
Esta definição dos elementos que compõem ou não o estabelecimento comercial é essencial
para efeitos de trespasse82.
O estabelecimento pode ser comercial ou não comercial. É essencial saber o que vai ser
transmitido com o estabelecimento sobretudo quando o trespasse é feito com a frase “por esta
via trespassa-se todo o ativo e passivo do estabelecimento”. Ora, as matérias-primas, as
infraestruturas e a maquinaria não há dúvidas que se aliena. Mas quanto ás dívidas, os contratos
e os créditos a doutrina diverge.

2.1. Conceção restrita dos elementos que compõe o estabelecimento


Nesta conceção, o estabelecimento comercial abrange apenas os fatores produtivos – objetos e
instrumentos de trabalho ou capital, - e o trabalho propriamente dito. Abrange ainda outros
bens que primordialmente (ou também) individualizam ou identificam as empresas – logótipos,
recompensas, marcas. Assim, abrange:
(i) Coisas corpóreas, isto é, aquilo de que necessita para funcionar e o que produz, com,
por exemplo: prédios, máquinas, ferramentas, mobiliário, matérias-primas,
mercadorias;
(ii) Coisas incorpóreas, como por exemplo, invenções patenteadas, modelos de utilidade,
desenhos ou modelos, marcas, logótipos;
(iii) Bens jurídicos não coisificáveis, como as prestações de trabalho de serviços e bens
como algumas situações de facto com valor económico como o “know-how” não
patenteado ou não patenteável que é aplicado na prática empresarial, os designados
segredos empresariais, artigo 313.º/1 do Código de Propriedade Industrial;

82
O trespasse é a alienação em vida, a título definitivo do estabelecimento comercial.

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2.2. Conceção ampla do conceito de Empresa


Por outro lado, outros nomes da doutrina entendem que as empresas são compostas pelos
elementos acima referidos, concordando quanto a estes com o Dr. Coutinho de Abreu, porém
acrescentam:
(i) As situações e relações de facto com valor económico: o “know-how”, as relações de
facto com os clientes, fornecedores e financiadores, bem como a organização interna
da empresa. Falamos do conjunto de situações e relações de facto com valor
económico ligadas à empresa a que se dá o bom velho nome de “Aviamento83”,
também chamado “Goodwill”.
(ii) Os direitos de crédito, direitos reais e outros com caráter absoluto ligados à empresa;
(iii) Obrigações ligadas à exploração das empresas.

O Dr. Coutinho de Abreu rejeita esta conceção porque:


✓ A empresa exige essa organização de meios, porém não se confunde com eles. A
organização corresponde ao modo como estes se relacionam, não sendo um elemento em
si, trata-se de um modo de ser ou de estar desses meios empresariais (inter-relacionados).
Outros autores defendem que este modo de relacionamento é em si dotado de identidade
para além dos elementos que o compõe.
✓ Quanto à relação com fornecedores, financiadores e clientes defende o Dr. Coutinho de
Abreu que são relações de algum modo ligadas à empresa, mas não são internas. Assim,
estando ligadas externamente à empresa não são, nem podem consistir em componentes
ou elementos da empresa.
✓ Quanto à clientela84, define-a o Dr. Coutinho de Abreu como sendo: o círculo85 ou quota
de pessoas (consumidores, em sentido amplo) que com essa empresa contactam. Em
França e na Alemanha a posição dominante tem sido a de que a clientela é um elemento
da empresa. Na Itália a tese dominante é a de que a clientela é uma qualidade da azienda
(empresa). Em Portugal, a doutrina divide-se: o Dr. Barbosa de Magalhães, o Dr. Ferrer
Correia, o Dr. Orlando de Carvalho, o Dr. Pupo Correia e o Dr. Menezes Cordeiro têm
defendido que a clientela é um elemento de empresa. Em sentido oposto, o Dr. Coutinho
de Abreu, o Dr. Fernando Olavo, o Dr. Nuno Aureliano e o Dr. Pedro Pais de Vasconcelos.
O Dr. Coutinho de Abreu entende que a clientela não é um elemento de empresa, pois não
constitui um meio ou um elemento estrutural funcionalmente inserido na organização
produtiva que a empresa é, sendo antes algo que resulta do funcionamento desta. Por outro
lado, também não é uma mera qualidade da empresa, porque a empresa depende da
conquista e manutenção dos clientes embora possa subsistir, duradouramente, sem estes.

83 O Aviamento é o conjunto de situações e relações de facto com valor económico ligadas à empresa (ou seja, relação com
clientes, fornecedores financiadores, a própria organização de empresa)
84 Refere o Dr. Coutinho de Abreu que a discussão tem versado, sobretudo, quanto a este ponto.
85 Tal círculo pode ser constituído por consumidores relativamente habituais ou fixos

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2.3. Análise dos elementos que integram o estabelecimento comercial


2.3.1. Créditos de um empresário ligados à exploração empresarial, mas
cujos objetos não sejam meios do estabelecimento
Exemplo: o crédito sobre o comprador que o empresário tem pela venda de uma determinada
mercadoria.
Para a conceção ampla, estes créditos integram o estabelecimento comercial.
Defende o Dr. Coutinho de Abreu que não devem ser encarados como elemento do
estabelecimento comercial, pois não correspondem a um fator produtivo e não são um meio
primordialmente identificador da empresa.

2.3.2. Contratos conexionados com a exploração do estabelecimento, mas


cujos objetos imediatos não sejam elementos empresariais
Exemplo: um contrato de fornecimento de fios celebrado entre um empresário de confeções e
um produtor desses fios. Estas matérias-primas serão elementos do estabelecimento quando
adquiridas pelo sujeito da empresa de confeções.
O Dr. Coutinho de Abreu defende que os elementos do estabelecimento são as matérias-primas
recebidas e não o contrato de fornecimento em si.

2.3.3. Débitos que resultam da exploração do estabelecimento


Exemplo: um empresário tem uma dívida de 20 000€ que decorre da aquisição de uma máquina
para o estabelecimento.
Na posição do Dr. Coutinho de Abreu a máquina é um elemento do estabelecimento comercial,
a dívida não.

2.3.4. Dinheiro
O Dr. Coutinho de Abreu defende que o dinheiro não é elemento do estabelecimento comercial,
é um bem exterior ao processo produtivo e à estrutura empresarial.

2.3.5. Conclusões
Há autores que entendem que quer os contratos, quer os débitos, quer os créditos relacionados
com a exploração do estabelecimento comercial são elementos do mesmo, nomeadamente o
Dr. Ferrer Correia, o Dr. Oliveira Ascensão e o Dr. Menezes Cordeiro, sendo esta a posição
dominante na Alemanha.
Na França e na Bélgica domina a conceção restrita. Na Itália, a doutrina divide-se.
O Dr. Coutinho de Abreu entende que os créditos, os contratos e os débitos não sendo fatores
produtivos, nem elementos identificadores da empresa não são elementos da empresa. Mas,
note-se que quer o dinheiro, quer os créditos e débitos podem ser elementos do estabelecimento
comercial quando constituem os seus próprios meios de produção, conforme Dr. Coutinho de
Abreu defende.

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Exemplo: numa empresa bancária os créditos e os débitos e o dinheiro são elementos do


estabelecimento comercial.
Há empresas que pelo seu próprio objeto têm os créditos, os débitos e o dinheiro como meios
de produção. É o caso das instituições bancárias e das seguradoras.
Independentemente da conceção que se adote, o estabelecimento comercial tem uma identidade
e unidade que vai para além da mera soma dos seus elementos. Os elementos de uma empresa
não são organizados de forma neutra, eles encontram-se articulados e interrelacionados
segundo uma estratégia que tem um valor económico próprio. O estabelecimento comercial é
um sistema ou uma unidade complexa. Trata-se de uma organização que é aberta ao mercado,
nela entram objetos e instrumentos de trabalho e saem produtos e serviços.
Assim, cada estabelecimento goza de uma identidade própria, sendo como tal reconhecido no
mercado.

3. Situações de fronteira entre a existência e inexistência de


estabelecimento comercial
3.1. Existindo a organização produtiva apta a funcionar, mas que ainda
não entrou em funcionamento.
Para quem entende que a clientela é um elemento essencial do estabelecimento comercial,
claramente, a resposta tem de ser negativa. Uma organização produtiva que não está a funcionar
não pode consubstanciar uma empresa, porque falta um elemento essencial, segundo as
posições adotadas pela jurisprudência francesa86 e no direito italiano.
Em Portugal, a doutrina maioritária vai no sentido contrário, se resultar que o estabelecimento:
✓ Já se revela minimamente apto para produzir um fim económico-produtivo adequado
para garantir clientela que lhe permita viver e reproduzir com os respetivos processos
produtivos;
✓ Da natureza do sujeito empresário não resultar afastada essa finalidade económico-
produtiva, nem das circunstâncias, objetivamente, reconhecíveis;
Deverá admitir-se haver estabelecimento comercial.
Exemplo: Um restaurante com mesas, cadeiras, balcão, máquinas adequadas para servir
refeições, mas que ainda não abriu.
A composição dos meios produtivos permite concluir que estamos perante um estabelecimento
apto para produzir uma finalidade económico-produtiva. Porém, se esse local for detido por
uma organização de apoio a pessoas carenciadas que serve refeições gratuitas a sem-abrigos,
existe uma empresa?
Resulta claramente das circunstâncias objetivas e do sujeito que não há um fim económico-
produtivo associado aquela conjugação de meios.

86 Posição tradicioanl
da jurisprudência francesa: a clientela – o elemento “mais essencial” do fonds de commerce – tem de ser
real e certa (não meramente potencial)

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O Dr. Coutinho de Abreu refere que um estabelecimento que ainda não começou a funcionar
pode ser considerado um estabelecimento comercial se tiver já todos os meios produtivos
(capacidade produtiva e lucrativa, em regra) aptos ao exercício da atividade para o qual foi
criado, se não resultar das circunstâncias que aquilo que se pretende não é uma atividade
económica produtiva. Isto porque, se o contrário se verificar, não há como admitir que estamos
perante um estabelecimento comercial.
Exemplo: Uma cantina de uma escola pública, com oferta de refeições grátis.
O Dr. Menezes Cordeiro discorda da posição maioritária da doutrina, porque entende que a
clientela é um elemento essencial para haver estabelecimento comercial.

3.2. Uma organização produtiva que para entrar em funcionamento ainda


precisa de um ou mais elementos
Quem nega a existência de estabelecimento comercial na hipótese anterior, por maioria de
razão, também o nega nesta situação. Nas palavras de Coutinho de Abreu, o estabelecimento
“está em formação”.
Admitindo, na situação anterior, que há estabelecimento comercial, parece que a resposta
dependerá dos elementos que estão em falta. Não é possível enumerar em abstrato os elementos
essenciais (pertencentes ao âmbito mínimo), mas hão de ser bens que, combinados, projetem
no público a imagem de uma nova organização com potencial para atuar autonomamente em
termos económico-produtivos.
Deste modo, temos de fazer uma análise em concreto para perceber se os elementos existentes
são suficientes para identificar uma nova organização produtiva dotada de identidade própria.
Se o elemento que está em falta não for determinante para a projeção ao público dessa imagem
de existência de um bem novo, então parece que não deve negar-se a existência de um
estabelecimento comercial.

3.3. Transmissão de um estabelecimento comercial com exclusão de alguns


dos seus elementos
Há casos em que a lei admite a transmissão do estabelecimento não acompanhada de alguns
dos seus elementos, por exemplo, das marcas, dos logótipos, das licenças de exploração, do
próprio prédio, etc.
Assim, terá de se perceber se os elementos transmitidos são suficientes para criar no público a
convicção que existe uma organização produtiva capaz de funcionar ou não, se se mantém a
identificabilidade, para o público de que se trata do mesmo estabelecimento comercial.
A resposta dependerá de quais são os elementos excluídos e em que âmbito é que eles se
integram.

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✓ Se estiverem em causa elementos do âmbito mínimo87, então parece admitir-se não


haver estabelecimento comercial;
✓ Se tiverem sido transmitidos, pelo menos, os elementos do âmbito mínimo então será
de entender que existe um estabelecimento comercial.

3.4. Destruição dos elementos materiais do estabelecimento


Exemplo: em caso de incêndio ou terramoto.
Defende o Dr. Coutinho de Abreu que, nestas situações, mesmo que todos os bens materiais
fossem destruídos, os bens imateriais seriam suficientes para afirmar a manutenção da
existência do estabelecimento. Exemplo: marca, logótipo, licenças, contratos de trabalho, etc.

3.5. Secções e sucursais da empresa


O estabelecimento pode ser composto por várias partes, por exemplo, um armazém ou uma loja
de venda ao público, a estes dá-se o nome de secções. São divisões ou repartições necessárias
ou úteis para a realização da atividade empresarial. Assim, não gozam de autonomia, uma vez
que se integram plenamente no estabelecimento.
Já as sucursais88 levantam mais dúvidas, pois gozam de uma certa posição intermédia entre a
mera secção e o estabelecimento novo. Caracterizadas, por um lado, pela dependência em
relação à empresa de que são parte (está sujeita à direção geral da empresa) e, por outro, por
uma certa independência, por exemplo:
✓ Separação espacial;
✓ Em regra, possuem contabilidade separada;
✓ Quando estão integradas em sociedades comerciais gozam de personalidade
judiciária (artigo 13.º CPC);
✓ Têm alguma liberdade de gestão e competência para celebrar negócios, mas apenas
efetuam negócios integrantes no objeto da empresa e sujeitos à direção geral da
empresa;
Apenas perante o caso concreto é possível definir se a autonomia da sucursal lhe confere uma
identidade empresarial autónoma ou não e, consequentemente, suscetível de alienação
separada.

4. Noção jurídica de estabelecimento comercial


O estabelecimento comercial é um objeto unitário, ou seja, pode ser unitariamente objeto de
contratos e, consequentemente, de direitos.

87 Isto é, elementos essenciais para a identificação da empresa como tal, para a manutenção da identidade do estabelecimento

comercial.
88 Também denominadas de agências ou delegações

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Exemplo: o direito de propriedade, o trespasse, a locação, a penhora, o penhor. Na posição


defendida pelo Sr. Professor Pestana Vasconcelos, a locação financeira.
Parece de admitir que o estabelecimento comercial se aproxima da noção de universalidade,
pela sua natureza, mas não é verdadeiramente uma:
✓ Universalidade de facto, porque estas são compostas por coisas móveis e homogéneas
pertencentes à mesma pessoa (exemplo: biblioteca e rebanho), o que não é o caso;
✓ Universalidades de direito, porque estas são conjuntos de bens que não desempenham
qualquer função económica própria, mas que a lei unifica para certos efeitos jurídicos
(exemplo: a herança), o que, também não é o caso, porque os elementos do
estabelecimento comercial desempenham uma função económica-própria.
A doutrina tem entendido que o estabelecimento comercial é uma coisa e, portanto, que se
aplica ao estabelecimento comercial a noção de coisa.
Para o Dr. Oliveira Ascensão, o estabelecimento comercial é uma coisa móvel, associando-o a
uma universalidade de facto.
O Dr. Coutinho de Abreu defende que o estabelecimento comercial é uma coisa incorpórea ou
imaterial que compreende bens heterogéneos: composto por coisas móveis e, eventualmente,
coisas imóveis, e não-coisas (prestações de trabalho ou de serviços) que não têm de pertencer
ao dono do estabelecimento. Além disso, o estabelecimento não corresponde à soma desses
elementos. O estabelecimento comercial é uma organização produtiva dotada de
individualidade própria.

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V - Trespasse89
1. Noção de Trespasse
O trespasse é uma transmissão inter vivos com caráter definitivo de um estabelecimento (que
pode ser comercial ou não). 90
Trespassar o estabelecimento não significa trespassar a loja onde ele funciona, pode até nem
ser acompanhado do direito de arrendamento ou do imóvel.
Exemplo: Um armazém como estabelecimento comercial. O local físico da armazenagem não
é um elemento predominante da identidade do estabelecimento. Tanto faz ser aquele armazém,
como dois à frente ou dois atrás. Toda a estrutura associada à armazenagem é que tem valor
económico (organização do funcionamento das descargas, das recolhas, das entregas).
Exemplo: uma empresa que faz entregas de encomendas, é muito pouco relevante em termos
de identidade onde é que fica o local a partir do qual são feitas as entregas ou as recolhas, o
que é relevante é a rede de transportes, os funcionários, os pontos de recolha.
É possível haver um trespasse sem este estar ligado ao local físico. Mesmo quando o trespasse
está associado ao local físico, ele é muito mais que isso, tem de se manter a identidade do
estabelecimento comercial. O espaço físico só fará parte do trespasse se fizer parte desta
identidade.
Exemplo: no caso do trespasse de um restaurante; alguém ficava com o restaurante no âmbito
do trespasse e transformava-o numa loja de música: neste caso não havia trespasse, era uma
fraude, pois não há qualquer identidade entre o estabelecimento comercial que lá estava
(restaurante) com a loja de música.
A questão coloca-se, sobretudo, nas chamadas “situações-fronteira”, por exemplo,
imaginemos que temos uma churrasqueira e esta passa a ser um restaurante de sushi. Parece
que há uma rutura da identidade do estabelecimento.
Exemplo: Trespasse de uma loja de música; aquele ficou com a loja no âmbito do trespasse
manteve a loja de música, mas também usa esse estabelecimento para dar aulas de guitarra
dentro da loja; o senhorio91 invoca que não havia trespasse. Entendeu-se que havia trespasse,
na medida em que as aulas de música não eram o elemento determinante do estabelecimento,
mas sim um acréscimo face à identidade do estabelecimento que não o descaracterizava.

89A Sra. Professora Mariana Fontes da Costa fez uma nota em aula – em exame costuma sair um caso prático sobre trespasse
e/ou locação e outro sobre títulos de crédito. Às vezes alternam e colocam um caso de firmas.
90 Saiu em exame um trespasse sob a forma de uma entrada numa sociedade comercial. A entrada do sócio na sociedade
comercial foi com a transferência da propriedade do estabelecimento comercial. O caracteriza o trespasse é a transmissão
inter vivos da propriedade do estabelecimento comercial independentemente do modo ou do tipo contratual utilizado para
esse efeito. Ex.: compra e venda, escambo, doação, dação em cumprimento, entrada numa sociedade comercial.
91 Há uma série de matérias que estão a perder relevância social. Esta questão do trespasse está a perder relevância por causa
de haver uma atenuação muito grande do protecionismo do regime do arrendamento urbano. Isto era relevante quando havia
as limitações do arrendamento urbano quanto à cessação do arrendamento e o congelamento das rendas, porque artigo
1112.º do Código Civil refere que o trespassário tem direito a suceder no arrendamento urbano sem que o senhorio se possa
opor. Portanto, era uma forma de subarrendamento. As pessoas faziam trespasses não porque queriam o estabelecimento
comercial, mas porque queriam aquele contrato de arrendamento com aquela renda protegida. Defraudava-se muitas vezes
o senhorio falsificando-se trespasses, que na realidade eram subarrendamentos para garantir a manutenção do contrato de
arrendamento e a manutenção da renda controlada.

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2. Normas aplicáveis ao trespasse


A maior parte das normas que regulam o trespasse aplicam-se quer este seja oneroso ou
gratuito. Para alguns efeitos, o trespasse traduz-se em efeitos, necessariamente, onerosos:
▪ Artigo 1112.º/4 do Código Civil prevê o direito de preferência do senhorio apenas
nos casos de compra e venda ou dação em cumprimento.
▪ Artigo 152.º/2 CSC estabelece um regime específico para o trespasse em caso de
liquidação da sociedade comercial, porque estão em causa interesses patrimoniais
dos sócios e/ou dos credores.92

3. Forma
A doutrina divide-se quanto à forma que o trespasse está sujeito.

3.1. Contrato de trespasse que implica a transferência da posição do


arrendatário
A única norma que expressamente consagra uma regra em matéria de forma do trespasse é a
do artigo 1112.º/3 do Código Civil que determina que quando ao trespasse surge associada a
transmissão da posição de arrendatário deve o mesmo ser sujeito a forma escrita, ou seja, sujeito
a documento particular. Este é o único elemento seguro que temos em termos de forma do
trespasse.

3.2. Forma geral do contrato de trespasse (não implica a transmissão da


posição de arrendatário, nem da propriedade de um imóvel)
Defende o Dr. Cassiano dos Santos que nada estando previsto na lei quanto à forma geral do
contrato de trespasse deve aplicar-se o artigo 219.º do Código Civil, ou seja, liberdade de
forma.
Diferentemente, o Dr. Coutinho de Abreu por interpretação extensiva do artigo 1112.º/3 do
Código Civil, entende que, todos os trespasses, estão sujeitos a forma escrita, isto é, documento
particular. Esta posição é duvidosa, porque o artigo 1112.º/3 do Código Civil é uma norma
excecional (daí que também não se possa falar de aplicação analógica) e o autor entende que
se aplica a todos os contratos de trespasse.
O argumento utilizado é o de que como o único enquadramento normativo que consagra
expressamente o contrato de trespasse é o artigo 1112.º/3 do Código Civil, este preceito que
consagra o trespasse a propósito da transmissão da posição de arrendatário no âmbito do
arrendamento urbano deve ser interpretado extensivamente para abranger todos os contratos de
trespasse.

92Segundo o artigo 152.º/2 alínea d) CSC é o liquidatário quem procede ao trespasse do estabelecimento comercial – e a
sociedade está, nas palavras do Dr. Coutinho de Abreu, “moribunda”, mas não morta (artigos 146.º/2 e 160.º/2 CSC)

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3.3. Forma do trespasse quando implica a transmissão da propriedade de


um imóvel
O Dr. Cassiano dos Santos entende que nestes casos será exigida a escritura pública ou
documento particular autenticado por força do artigo 875.º do Código Civil.
Diferentemente, o Dr. Coutinho de Abreu, o Dr. Ricardo Costa e a Dra. Carolina Cunha
defendem que não é necessária escritura pública, nem documento particular autenticado,
mantendo-se apenas a necessidade do documento particular. O Dr. Coutinho de Abreu usa um
argumento de igualdade de razão dizendo que na constituição de uma sociedade-empresa na
hora são admitidas entradas em espécie, nomeadamente estabelecimentos com ou sem imóveis
sendo exigível apenas documento particular.

4. Âmbito do trespasse
Para efeitos de transmissão de propriedade do estabelecimento é necessário fazer a distinção
entre três âmbitos:
✓ Âmbito mínimo;
✓ Âmbito natural;
✓ Âmbito convencional;

4.1. Âmbito mínimo


Abrange os elementos que são necessários, essenciais e suficientes para identificar ou exprimir
a empresa (objeto do negócio).
Isto significa que a não transmissão de elementos que cabem no âmbito mínimo afasta a
qualificação do negócio como trespasse, tratando-se sim da cedência de propriedade de
conjuntos de bens do estabelecimento (e não o estabelecimento em si).
Não é possível definir o âmbito mínimo a priori, ele só pode ser definido no caso concreto, a
respeito daqueles elementos que são essenciais para identificar o estabelecimento.
Exemplo: Um estabelecimento comercial no qual que se centra a estátua de um sol e todo o
estabelecimento comercial gira em torno dessa figura: os bancos estão todos à sua volta, o
estabelecimento chama-se “Sol”, os menus das ementas dos restaurantes chamam-se “Sol da
Caparica”. Se o estabelecimento for trespassado sem o “sol”, parece defensável que se toda a
identidade do estabelecimento comercial gira em torno de um elemento (ainda que decorativo),
a não transmissão desse elemento ponha em causa a própria existência do trespasse. Neste caso,
percebemos que só conseguimos definir que esta estátua é um elemento essencial analisando o
caso concreto.

4.2. Âmbito natural


O âmbito natural é composto pelos elementos que se transmitem naturalmente em caso de
silêncio das partes, isto é, nada sendo dito em contrário estes elementos transmitem-se.
A lei determina que pertencem ao âmbito natural do trespasse os logótipos e as marcas, exceto
se neles figurar o “nome” ou “firma” ou “denominação” do titular, caso em que passam a
integrar o âmbito convencional (artigos 295.º, artigo 256.º/2 e artigo 30.º/3 Código da
Propriedade Industrial).

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Entende-se que, em princípio, se transmitem naturalmente os bens materiais que compõe o


estabelecimento como, por exemplo: máquinas, utensílios, mobiliário, matérias-primas,
mercadorias, inventos patenteados, etc.
Questão mais duvidosa da doutrina é saber se os prédios pertença do trespassante, ou seja,
onde funciona o estabelecimento comercial também pertencem ao âmbito natural.
Defende o Dr. Coutinho de Abreu: “quando num contrato de trespasse se não faça menção à
transmissão do prédio e não se conclua, por interpretação do negócio, que ele foi excluído,
deve concluir-se que a propriedade do mesmo foi (naturalmente) transmitida.”
Como é que podia resultar da interpretação do negócio93 que as partes não quiseram que o
prédio não integrasse o trespasse?
O elemento determinante seria o preço. Se houver uma discrepância muito grande entre o preço
do trespasse e o valor do imóvel, e não resultar da natureza do trespasse que há qualquer
elemento de liberalidade, haverá um indício muito relevante de que as partes não incluíram a
transmissão do prédio na transmissão do estabelecimento.
Exemplo: Um imóvel que vale 300 000€; trata-se de uma fábrica em que só os bens valem
150 000€. Tínhamos aqui um indício forte de que não faria parte do trespasse o imóvel, se o
preço do trespasse fosse apenas de 150 000€.
Elementos que não suscitam dúvidas quanto à sua integração ou não no âmbito natural:
✓ Prestações laborais - a lei aqui toma posição e por força do Código do Trabalho as
prestações laborais transmitem-se para o adquirente do estabelecimento, nos termos do
artigo 285.º/1 do Código do Trabalho, exceto se o trabalhador a tal se opuser, nos termos
do artigo 286.º-A do Código do Trabalho.

✓ Direito ao arrendamento do prédio no caso dos estabelecimentos que funcionam em


prédio arrendado - se o mesmo não pertencer ao âmbito mínimo, parece de admitir que
pertence ao âmbito natural, pelo que se transmite em caso de silêncio das partes, nos
termos do artigo 1112.º do Código Civil.

✓ Posição de locatário financeiro – o raciocínio deve ser semelhante ao do ponto


anterior, no sentido em que: no caso de silêncio das partes transmite-se a posição de
locatário financeiro, quando estejam em causa bens explorados no contexto do
estabelecimento,94 isto resulta indiretamente do artigo 11.º/1 do Decreto-Lei n.º 149/95
que permite a transmissão inter vivos da posição de locatário financeiro nas condições
previstas para a cessão do direito ao arrendamento. O artigo 11.º/3 do Decreto-Lei n.º
149/95 permite ao locador opor-se à transmissão nos casos em que o cessionário não
oferece garantias bastantes à execução do contrato.

✓ Diferentemente, portanto, não pertencendo ao âmbito natural, nos termos do artigo


31.º/1 e 8 do Código da Propriedade Industrial, os direitos derivados95 de licenças de
exploração de patentes, de modelos de mobilidade e de marcas se fossem
transmitidos com o trespasse afetava diretamente o titular do direito de propriedade
industrial. Exemplo: A, dono do estabelecimento comercial X, tem uma licença de
exploração do software SAP; A não é dono desse software, o que tem é um contrato
que lhe permite explorar esse software. Isto porque estamos a falar de contratos intuitu

93 O ónus da prova pertence a quem não quer a transmissão do imóvel. Ou seja, em caso de dúvida prevalece a transmissão.
94 Possível questão em exame.
95 Ou seja, não são direitos próprios.

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personae, ou seja, a licença de exploração situa-se na autorização. São contratos que se


baseiam na confiança que o titular tem naquele sujeito. Se isto pertencesse ao âmbito
natural do trespasse inutilizaria essa dimensão intuitu personae. Quando A transmite o
trespasse, a licença de exploração não o irá acompanhar a não ser que isso seja
autorizado pelo titular do direito de propriedade industrial. Estes direitos derivados de
licenças de exploração não podem ser alienados sem o consentimento escrito do titular
do direito protegido, salvo estipulação em contrário na própria licença de exploração.

✓ O mesmo referido no ponto anterior acontece quanto a outros bens alugados ou


emprestados ao trespassante nos termos do artigo 1059.º/2 do Código Civil que
remete para os artigos 424.º e seguintes do Código Civil.

✓ Quando o know-how não pertence ao âmbito mínimo deve entender-se que pertence ao
âmbito natural.

4.3. Âmbito convencional


Abrange os elementos que apenas se transmitem se as partes assim o determinarem no
contrato.
Exemplos do que pode pertencer a este âmbito:
✓ Firmas;
✓ Marcas e logótipos quando contêm o “nome”, “firma” ou “denominação” do titular do
estabelecimento;
✓ Créditos do trespassante ligados à exploração do estabelecimento, mas cujos objetos
não sejam meios do estabelecimento. Exemplo: o crédito sobre uma matéria-prima que
foi vendida. Aplica-se a estes créditos o regime da cessão de créditos do artigo 577.º do
Código Civil, sendo apenas necessário o acordo entre trespassário e trespassante.
✓ Diferentemente, estando em causa uma cessão da posição contratual do trespassante
aplicamos os artigos 424.º e seguintes do Código Civil, sendo necessária a autorização
da contraparte, que é terceiro face ao trespasse. Há, no entanto, casos em que a própria
lei dispensa no âmbito do trespasse a autorização de terceiro e consagra aliás esta
transferência no âmbito natural do trespasse. É o caso dos seguros associados ao
estabelecimento comercial e dos contratos de trabalho.
✓ Quanto à transmissibilidade das dívidas temos também um problema complexo, uma
vez que muda a posição do credor, mas sobretudo muda a pessoa do devedor e,
consequentemente, muda a garantia geral das obrigações (património do devedor).
Assim, se estão em causa dívidas associadas ao estabelecimento comercial, o credor
confiou no estabelecimento comercial como garantia da dívida associada ao próprio
exercício dessa atividade.
Exemplo: A vende uma máquina a crédito ao estabelecimento comercial, confiando que
o estabelecimento comercial servirá de garantia geral ao pagamento dessa dívida. Se o
estabelecimento comercial é cedido a dívida ficará com o trespassante? Ou antes, a
dívida pode ser cedida sem autorização do terceiro que confiou naquele património?
Quanto à transmissibilidade das dívidas, nada sendo dito em contrário, aplicam-se as
regras gerais do Código Civil em matéria de assunção de dívida: não há transmissão
automática das dívidas e exige-se o consentimento da outra parte (assunção
liberatória). Aliás, para haver transmissão sempre terá de haver ratificação do acordo
pelos credores.

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Caso contrário, o que eventualmente podemos ter aqui é uma assunção cumulativa da
dívida com a responsabilidade solidária do trespassante e do trespassário. Há uma
divisão doutrinal neste ponto: o Dr. Antunes Varela entende que mesmo para a assunção
cumulativa96 de dívida é necessário o consentimento97 do credor. Por seu lado, o Dr.
Vaz Serra e o Dr. Mota Pinto entendem que não é necessário o consentimento, dado
que há um acréscimo de garantia.
Exceções: as dívidas à Segurança Social e os créditos devidos a trabalhadores do
estabelecimento, nos termos do artigo 285.º/6 do Código de Trabalho passam a ser
também da responsabilidade do trespassário, por serem dívidas especialmente
garantidas e por ser esse sujeito que irá beneficiar do estabelecimento.

5. Obrigação de não concorrência


Têm sido avançados variados fundamentos para que ao trespasse esteja associado
implicitamente uma obrigação de não concorrência, desde logo: o princípio da boa-fé na
execução dos contratos, princípio da equidade, usos do comércio, concorrência leal, entre
outros que cujo respeito é necessário para assegurar o gozo pacífico da coisa98. A doutrina não
é unânime nesta matéria.
O Dr. Nuno Aureliano e o Dr. Pais de Vasconcelos defendem que não existe uma obrigação de
não concorrência, por analogia com o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 178/86 (que regula o
contrato de agência) e artigo 136.º do Código de Trabalho. Referem que em ambos os casos,
apenas se admite a obrigação de não concorrência quando ela vem expressamente prevista no
contrato, ou seja, não pode haver uma obrigação implícita de não concorrência. Invocam ainda
o artigo 61.º/1 da CRP e o princípio da liberdade económica.
Outros autores como o Dr. Coutinho de Abreu têm um entendimento oposto invocando que
não há analogia entre as situações acima identificadas. Entende o Dr. Coutinho de Abreu que
enquanto o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 178/86 e o artigo 136.º do Código de Trabalho se
referem a uma obrigação de não concorrência na sequência do fim de uma relação contratual,
o problema da obrigação de não concorrência no trespasse decorre do início da relação
contratual.
Assim, a obrigação de não concorrência deriva do dever do alienante assegurar o gozo pacífico
da coisa. Por força do especial conhecimento que o trespassante tem do estabelecimento
comercial e da empresa, permitir-lhe exercer uma atividade concorrente após o trespasse seria
especialmente perigoso para a empresa alienada impedindo uma entrega efetiva da mesma.
Por esta razão, defendem os autores que a obrigação implícita de não concorrência não abrange
o trespassante que não tem conhecimento do modo de funcionamento do estabelecimento
comercial.

96 Podemos ter assunção liberatória de dívida pela transmissão em que o devedor inicial deixa de ser devedor e a dívida passa
para um novo devedor. E podemos ter a assunção cumulativa de dívida, em que há um novo devedor que se vem juntar à
dívida, respondendo solidariamente com o devedor anterior.
97 À partida, e estando estes elementos no âmbito convencional, a falta de consentimento não impede a realização do

trespasse e, portanto, o negócio quanto a esta parte da transmissão é ineficaz porque depende da autorização da
contraparte. Não havendo autorização parece que será de concluir que isto não afeta a validade do negócio, esta parte
apenas se considera como não escrita, prevalecendo o negócio na sua integralidade quanto ao restante, por não ser um
elemento essencial. Se resultar do equilíbrio do negócio que este é um elemento essencial para a determinação da vontade
das partes, neste caso o contrato fica sem efeito.
98 Sendo este o mais adotado pela doutrina e, nas palavras do Dr. Coutinho de Abreu, o preferível.

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Exemplo: o herdeiro do trespassante que nunca trabalhou no estabelecimento e que o trespassa.


De acordo com esta posição, este herdeiro não tem esta obrigação de não concorrência.
De acordo com estes autores estão abrangidos pela obrigação de não concorrência o cônjuge
(uma vez que este pode, inclusive, ser solidariamente responsabilizado pelas dívidas da
exploração, artigo 1691.º/1 do CC e artigo 1695.º do CC) ou os filhos do trespassante que
tenham esse conhecimento profundo99 do estabelecimento, assim como o alienante de
participações sociais100 que detinha uma posição de controlo na sociedade, que conhecia o
negócio, o que o coloca numa posição de especial risco de concorrência face ao adquirente que
adquiriu as participações sociais.
Exemplo: marido e mulher que detém uma sociedade por quotas no âmbito da qual exploram
um determinado negócio, vendem as quotas da sociedade comercial, transmitindo-a. O facto
do trespassante ser a sociedade comercial não pode servir para escamotear a realidade, isto é,
o titular das participações sociais é aquele que controla e domina o modo produtivo de
funcionamento do estabelecimento. O trespassante, proprietário das quotas, se montar um
estabelecimento ao lado vai estar a concorrer, representando o perigo que a lei está a tentar
evitar: conhecimento privilegiado que ele tem do funcionamento do negócio.
Admitindo a existência de uma obrigação implícita de não concorrência abrange não apenas
o primeiro trespassário, mas todos os demais trespassários que lhe seguirem dentro do período
de vigência da obrigação.
Esta obrigação está sujeita a três limites:
(i) Limite espacial – a obrigação restringe-se ao território no qual existe o risco de
haver efetiva concorrência com a atividade do trespassário; exemplo: alguém
trespassa uma padaria em Vila Nova de Gaia e abre uma padaria no Porto, não é
muito provável que as pessoas se desloquem ao Porto para comprar pão, porém, se
fosse um restaurante o âmbito já seria maior.
(ii) Limite temporal - está limitada ao tempo estritamente necessário para o
trespassário consolidar os seus valores de organização e exploração de empresa.
Este período tem se entendido que oscila entre 2 e 5 anos consoante a complexidade
do negócio;
(iii) Limite material – tem de ser uma atividade efetivamente concorrente com a
atividade do trespassário; exemplo: entende-se que a churrasqueira e o restaurante
sushi não são concorrentes, embora sejam ambos restaurantes.
Não há obrigação de não concorrência se o trespassante já exercia essa atividade em outras
empresas concorrentes no momento do trespasse.
A violação da obrigação de não concorrência desencadeia os procedimentos normais de
incumprimento do Código Civil, nomeadamente:
✓ Indemnização;
✓ Possibilidade de resolução do trespasse;
✓ Sanção pecuniária compulsória;

99 Estes autores vêm dizer que o trespasse não serve apenas para deter a propriedade do estabelecimento, mas sim para poder

explorar aquela conquista produtiva que dali deriva. Se alguém abre uma exatamente igual ao lado está a eliminar a utilidade
económica do negócio pelo qual se pagou, não se estaria a permitir o gozo efetivo da coisa se houvesse uma réplica ao lado.
100 Neste caso nem sequer há trespasse pois o estabelecimento comercial continua na sociedade, ou seja, o estabelecimento

não é cedido a ninguém, o que é cedido é a titularidade das quotas. Mas neste caso pela proximidade ao trespasse tem-se
entendido que também aqui existe uma obrigação implícita de não concorrência.

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✓ E, segundo alguns autores, possibilidade de encerramento compulsório do


estabelecimento concorrente nos termos do artigo 829.º do Código Civil.
As partes podem no contrato de trespasse afastar a obrigação de não concorrência.

6. Trespasse de estabelecimento em prédio arrendado


Esta matéria vem regulada no artigo 1112.º CC. A grande especialidade do trespasse de
estabelecimento em prédio arrendado é facto do trespassante, que é simultaneamente
arrendatário, pode ceder a sua posição contratual de arrendatário ao trespassário sem
necessidade de autorização do senhorio.
Para proteção do valor económico do estabelecimento comercial bem como da sua manutenção
e desenvolvimento, a lei estabelece um regime excecional que afasta esta natureza intuitu
personae do contrato de arrendamento, permitindo a terceiro vir ocupar o lugar de arrendatário,
sem o consentimento do senhorio.
O artigo 1112.º/2 CC prevê situações em que não há trespasse efetivo:
✓ Nos termos do artigo 1112.º/2 alínea a) CC - quando não sejam transferidos os bens do
âmbito mínimo, isto porque não há verdadeiro trespasse quando não são transferidos
os bens do âmbito mínimo101. Assim, o senhorio, caso pretenda, terá de provar que
não foram transmitidos determinados elementos e que sem esses elementos, aquele
concreto estabelecimento não subsiste, não podendo por isso haver trespasse nem,
consequentemente, transmissão da posição de arrendatário.
✓ Nos termos do artigo 1112.º/2 alínea b) CC - não há trespasse se no momento da
celebração do contrato, o trespassário já tinha a intenção de dar outro destino ao
prédio, se já pretendia substituir aquele estabelecimento por outro. Nas palavras do Dr.
Coutinho de Abreu a forma, mais provável, através da qual essa intenção de mudança
do destino se revela é através de fatos posteriores ao “trespasse”.
Exemplo: A declara que vende a B um bar que funciona num prédio arrendado
pertencente a C. B, dois meses depois, reabre um restaurante nesse local.
Questão de difícil interpretação é o artigo 1112.º/5 CC, pois parece consagrar a mesma
situação do artigo 1112.º/2 alínea b) CC, colocando-se a dúvida: qual é a interpretação a dar
ao artigo 1112.º/5 CC?
Parece de afastar que o 1112.º/5 CC diga a mesma coisa que o artigo 1112.º/2 alínea b) CC,
desde logo, porque o desrespeito pelo artigo 1112.º/2 alíneas a) e b) confere ao senhorio o
direito de resolver o contrato, nos termos do artigo 1083.º/2 alínea c) CC. Segundo o
entendimento de Coutinho de Abreu, ainda que criticável, esta norma consubstancia um
fundamento autónomo de resolução.
Em ambos os casos, o que está a ser discutido é a situação em que o trespassário dá outro
destino ao prédio que não a manutenção do estabelecimento comercial. Ora, a interpretação
que se tem entendido é:

101 Os bens necessários para manter a identidade do estabelecimento

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✓ O artigo 1112.º/2, alínea b) CC prevê as situações em que no momento do


trespasse, o trespassário já tinha a intenção de vir a dar outro uso ao prédio;

✓ O artigo 1112.º/5 CC prevê as situações em que a intenção de alterar o destino


do prédio surge em momento posterior ao trespasse (na prática decide extinguir
aquele estabelecimento comercial e criar um novo). Nesse caso, entende-se que
não deve o senhorio ser obrigado a manter a relação de arrendamento com um
terceiro que ele não escolheu, deixando de existir a razão de ser da proteção do
estabelecimento comercial, deve o senhorio poder resolver o contrato.
Nos termos do artigo 1112.º/3 CC, a transmissão da posição de arrendatário tem de ser
comunicada ao senhorio no prazo de 15 dias (a contar do dia seguinte ao do escrito do
trespasse que inclui a transmissão da posição de arrendatário), por força do artigo 1038.º, alínea
g) CC. Esta comunicação tanto pode ser feita pelo trespassante como pelo trespassário.
A não comunicação atempada, que pela sua gravidade ou consequências torne inexigível a
manutenção do contrato confere ao senhorio o direito de resolver o contrato com o
trespassário102, nos termos do artigo 1083.º/2, alínea e) CC.
Nos termos do artigo 1112.º/4 CC, quando o trespasse se traduza num contrato de compra e
venda ou dação em cumprimento103 o senhorio goza de direito de preferência sobre o trespasse,
exceto se o contrário resultar de convenção no contrato de arrendamento. Exemplo: a doação
não está abrangida por este artigo. A troca também se tem entendido que não está abrangida,
já que o senhorio não se consegue substituir ao trespassário, porque não está em causa dinheiro
e sim um bem específico.

102 É com o trespassário e não com o trespassante porque houve a cedência da posição contratual de arrendatário.
103 Tem de se tratar de trespasses onerosos.

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VI - Locação do estabelecimento comercial


1. Diferença entre o trespasse e a locação do estabelecimento
comercial
O trespasse trata-se da transmissão do estabelecimento comercial com caráter definitivo, já a
locação é a transmissão do estabelecimento comercial com caráter temporário.
Assim, a locação do estabelecimento comercial é o contrato pelo qual uma das partes se obriga
a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento comercial ou não, mediante
retribuição.104

2. Normas legais aplicadas à locação


De acordo com o artigo 1109.º CC, a locação rege-se pelas regras do arrendamento para fins
não habitacionais, com as necessárias adaptações. Aplicam-se as regras relativas à duração do
artigo 1110.º CC e parece ser de aplicar o artigo 1112.º CC no que diz respeito à forma.
Nos termos do artigo 1112.º/3 CC o contrato deve ser celebrado por escrito, sob pena de
nulidade. Aplica-se também o artigo 1112.º/2 CC quanto às situações em que não há locação
do estabelecimento comercial.
Aplica-se o artigo 1113.º CC na medida em que a locação do estabelecimento não caduca por
morte do arrendatário, podendo, no entanto, os sucessores renunciar à transmissão.

3. Âmbitos de transmissão na Locação


Os âmbitos de entrega na locação são em grande medida coincidentes com os do trespasse, isto
é, o âmbito mínimo tem de ser respeitado, com as devidas adaptações105.
No âmbito natural de entrega integra-se a generalidade dos meios empresariais pertencentes
em propriedade ao locador (prédios, máquinas, ferramentas, mobiliário, logótipo, marcas,
etc.)106.
Não há transmissão da propriedade desses bens, mas sim um poder-dever de exploração do
estabelecimento no qual se funda o poder ou direito de disposição sobre os meios empresariais.
Por exemplo, ao contrário do que acontece no trespasse, as licenças de exploração podem ser
gozadas pelo locatário sem se aplicar a exigência de consentimento escrito do titular do direito
licenciado, já que não há uma alteração da titularidade da licença.

104 Esta noção ajusta-se à noção de locação geral do artigo 1022.º CC. A locação de estabelecimento é um contrato nominado
tanto na doutrina como na lei e típico, isto é, está regulado na lei.
105 As diferenças derivam da sua diferente natureza, enquanto no trespasse temos transmissão de direitos reais, na locação

temos transferência de direitos pessoais de gozo. Todas as diferenças vêm desta diferente conformação em termos
contratuais e obrigacionais.
106
Nos termos do artigo 44.º/1 RNPC, há-de entender-se que a firma se integra no âmbito convencional de entrega.

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4. Obrigação de não concorrência


Nos termos do artigo 1037.º CC, o locador não pode praticar atos que impeçam ou diminuam
o livre gozo da coisa locada.
Assim, nos termos do artigo 1043.º CC, durante a vigência da locação, o locatário também não
pode iniciar uma atividade concorrente com a que desenvolve no âmbito do estabelecimento
locado, porque isso implicaria uma redução do valor do estabelecimento. Se já tinha essa
atividade concorrente anterior à locação, pode mantê-la.
Questão mais complicada é se resulta para o locatário a proibição de exercer uma
atividade concorrente findo o contrato de locação do estabelecimento comercial. O Dr.
Coutinho de Abreu entende que por se tratar de uma obrigação que nasce da cessação do
contrato deve-se aplicar por analogia o regime do Código de Trabalho, ou seja, só existe
obrigação de não concorrência do locatário após a cessação do contrato de locação se isso
constar, expressamente, do contrato como tendo sido acordado pelas partes.

5. Locação de estabelecimento em prédio arrendado


O artigo 1109.º/2 CC refere que o senhorio não tem de autorizar a cedência do gozo do prédio,
mas esta transferência tem de lhe ser comunicada no prazo de um mês, sob pena de ineficácia.
As consequências da falta de comunicação na locação são equivalentes às consequências da
falta de comunicação no caso do trespasse.
O locatário não se substitui ao locador na posição de arrendatário, nem ocupa uma posição de
subarrendatário, salvo acordo em contrário.

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VII - Títulos de Crédito


1. Noção de títulos de crédito
O título de crédito é um documento que incorpora um direito literal e autónomo, que legitima
o seu titular a exercê-lo perante o devedor e serve de suporte à sua circulação e mobilização.
Esta é a definição dada pelo Dr. Pedro Pais de Vasconcelos e pelo Dr. Pedro Leitão Pais de
Vasconcelos. Uma definição tradicional que, nas suas palavras, não foi posta em causa com a
admissão dos valores mobiliários escriturais, uma vez que, um documento não é,
necessariamente, um papel, nos termos do artigo 362.º CC. Tanto abrange documentos
tradicionais em papel como, crescentemente, registos informáticos.
Há um conjunto muito amplo de títulos de crédito:
✓ Letras
✓ Cheques
✓ Livranças;
✓ Documentos de transporte (guias), etc.
Os títulos de créditos são atos objetivamente comerciais, independentemente do contexto em
que eles surjam, independentemente da relação jurídica que lhe subjaz ser comercial ou não,
mesmo que a emissão não seja realizada por um comerciante ou em contexto comercial.
Historicamente, os títulos de crédito foram uma criação espontânea do mercado e surgiram
para facilitar a circulação de valores monetários (dinheiro) de modo que não haja circulação de
moedas e notas. Substituiu-se a transmissão de notas e moedas pela transmissão de documentos
onde consta o crédito.
Todo o objetivo dos títulos de crédito é substituir da forma mais próxima possível a circulação
de dinheiro. Para o credor tem de ser indiferente aceitar esse documento ou dinheiro, para ser
indiferente, esses títulos de crédito, têm de ser tão abstratos quanto o próprio dinheiro. Se não
for assim, os credores não os irão aceitar.
Servem ainda para circular, entendendo-se que com a transmissão do documento se transmite
o próprio crédito independentemente do conhecimento do devedor. Os direitos circulam assim
como coisas móveis, eram “coisificados” (seguindo o regime das coisas móveis).

2. Funções económicas dos títulos de crédito

2.1. Meio de pagamento


Exemplo: A compra a B mercadorias pelo valor de 500€ e emite um cheque desse valor sobre
o seu Banco a favor de B.

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2.2. Compensação de créditos


Exemplo: A tem um crédito de 1000€ sobre B e uma dívida de 1000€ sobre C. Ou seja, A é
devedor de C e credor de B. A (sacador) pode emitir uma letra, saca a letra valor de 1000€
sobre B (sacado) e endossa a letra a C (titular do título de crédito). A letra serve para compensar
o crédito de A sobre B e o crédito de A sobre C.

Exemplo: C tem uma dívida de 1000€ sobre D. C pode endossar a letra a D que passa a ser o
titular da letra, passando C a ser o endossante. O legítimo titular quando quiser receber e se o
B aceitar (passa a ser o aceitante), o D irá exigir primeiro a B, e se B não pagar, o D tem direito
a exigir de C e de A.

As letras são feitas para circular, isto significa que o último [a receber a letra] pode sempre
exigir, primeiro, o pagamento ao que aceitou [no caso do cheque, será o Banco], e se o que
aceitou não pagar ele poderá exigir a todos os que integram a cadeia do título de crédito.

2.3. Garantia de créditos


É a sua principal função atualmente.
Exemplo: A celebra com o Banco B um contrato de abertura de crédito documentado em
benefício de C. Para garantir o pagamento do crédito, A assina uma livrança de caução em
branco, a preencher pelo Banco em caso de não pagamento de A.
As livranças caução são muito usadas porque são títulos executivos.

3. A relação extra cartular subjacente aos títulos de crédito


Os títulos de crédito têm subjacente uma relação causal ou uma relação extra-cartular.
Há sempre um motivo associado à criação de uma transferência do título de crédito, isto é, uma
relação jurídica: doação, mútuo, compra e venda. Os títulos de crédito refletem apenas uma
parte dessa relação causal (a prestação monetária).
Exemplo: No caso da mercadoria paga com um cheque, qual é a relação causal? A compra e
venda entre A e B.
Exemplo: Quando A assina uma livrança caução a favor de um Banco para garantir a abertura
de um crédito bancário, qual é a relação subjacente? A relação de abertura do crédito
bancário.
Associado a cada endosso, a cada transferência do título de crédito encontra-se uma relação
jurídica subjacente.

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4. Classificação de títulos de crédito


4.1. Públicos e Privados
Os títulos de crédito públicos são emitidos por uma entidade pública no exercício da sua
atuação pública, os restantes são privados.
Exemplo de títulos de crédito públicos: Títulos de dívida pública e as obrigações do Estado
Português;

4.2. Títulos de crédito propriamente ditos, títulos representativos e


títulos de participação
Os títulos de crédito propriamente ditos incorporam direitos de crédito pecuniários. Exemplos:
letras, livranças e cheques.
Os títulos representativos incorporam direitos reais sobre coisas. Exemplo: mercadorias, guias
de transporte (que é essencial no transporte marítimo) e os conhecimentos de carga;
Os títulos de participação são os que incorporam os direitos sociais dos sócios das sociedades.
Exemplo: as ações das sociedades anónimas;

4.3. Títulos causais e abstratos


Este critério de distinção tem por base a possibilidade de invocação contra o portador que cobra
o título, exceções extra-cartulares, ou seja, exceções que não se integram no título originárias
da relação causal subjacente ou de qualquer outra convenção ou situação jurídica extra cartular.
A relação cartular é a que consta do título, tudo o que não consta do título entende-se por
relação extra cartular.
Os títulos abstratos por excelência são as letras, as livranças e os cheques. Os restantes são
causais.

4.4. Títulos de crédito nominativos e Títulos de crédito à ordem e ao


portador
Esta categoria prende-se com o modo de circulação dos títulos.
Os títulos nominativos são os que contém no próprio título a identificação do seu titular.
Circulam por declaração do transmitente escrita no título, pelo pertence lavrado do título e pelo
averbamento no livro de ações da sociedade que os emitiu. É o caso das ações e das obrigações
nominativas.
Os títulos à ordem são aqueles cuja circulação é feita pelo endosso. O endosso é uma declaração
escrita e assinada no verso do título, em regra expressa por palavras como “pague-se à ordem
de” ou equivalente, ou até uma mera assinatura nesse local, podendo identificar-se ou não o

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endossatário. Se o endossatário não for identificado, o endosso diz-se que está em branco. O
endosso implica ainda a entrega do título ao endossatário. Exemplo: letras, livranças e cheques.
Os títulos ao portador era o caso das ações e das obrigações ao portador, que foram extintas
pela Lei n.º 15/2017, de 3 maio e circulam por entrega real, pela simples tradição.

4.5. Títulos impróprios


Dá-se o nome de títulos impróprios a documentos que podem na prática circular embora não
se destinem tradicionalmente a essa circulação. Exemplo: um bilhete de cinema; o andante; o
bilhete para uma peça de teatro;

4.6. Títulos de créditos individuais e títulos de créditos em série


Os títulos em série são emitidos em massa e destinam-se a serem tomados por diferentes
pessoas. Exemplo: ações e obrigações;
Os títulos individuais são emitidos singularmente, um a um. São infungíveis porque têm
relações subjacentes próprias, diferentemente dos títulos em massa.

5. Letras de câmbio
5.1. Noção de Letras de câmbio
A letra de câmbio é a ordem de pagamento dada por uma pessoa, que se designa por sacador
ou emitente da letra, a uma outra pessoa, o sacado que é aquele que recebe a ordem de
pagamento, para que pague uma dada quantia em dinheiro, numa dada data e local ao
beneficiário da letra, designado tomador.
Em regra, o tomador é uma terceira pessoa, mas pode não ser, pode ser o próprio sacador, ou
seja, o sacador pode dar uma ordem de pagamento a favor de ele próprio.
O tomador pode endossar a letra a novo beneficiário, e assim sucessivamente, sendo que cada
pessoa que endossa a letra fica obrigada a cumpri-la. O sacado, que é o primeiro a receber a
ordem de pagamento, só fica obrigado a cumprir a letra se a aceitar e nesse momento em que
aceita, passa a ser aceitante e torna-se o obrigado cambiário, o obrigado principal, o que
significa que o pagamento da letra deve ser exigido primeiro ao aceitante e só se o aceitante
não pagar é que o portador pode recorrer aos restantes obrigados cambiários anteriores a ele.

5.2. Principais negócios relacionados com a letra de câmbio


São negócios jurídicos unilaterais que incorporam promessas abstratas.

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5.2.1. Saque
É o negócio jurídico pelo qual o sacador (A) dá uma ordem ao sacado (B) para que pague uma
certa quantia ao tomador (C) ou à sua ordem. Salvo declaração em contrário, o sacador promete,
simultaneamente, ao tomador que o sacado vai aceitar e pagar a letra.
SAQUE

B -------------- A -------------------- C

Sacado ------ Sacador ---------- Tomador

SAQUE

5.2.2. Aceite
É o negócio jurídico pelo qual o sacado (B) declara ao sacador que aceita pagar a letra ao
tomador ou à sua ordem107, e promete pagar a letra ao tomador ou à sua ordem.

B ---------------------- A ------------------------ C

Aceitante ------------ Sacador ----------------- Tomador


ACEITE

5.2.3. Endosso
É o negócio jurídico pelo qual o tomador (C) ou qualquer outro portador da letra dá uma nova
ordem ao sacado (B) ou ao aceitante (se ele, entretanto, já a aceitou) para que pague a letra ao
endossatário (D), a quem lhe dá a ordem de endosso à entrega ou à sua ordem;
ENDOSSO

B -------------- A -------------------- C ----------------------- D

Sacado ------ Sacador ---------- Endossante --------------- Endossatário

107 Quando se diz “ou à sua ordem”, o que se quer dizer é “ou a quem ele mandar”, “ou a quem ele a endossar a letra”.

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5.2.4. Aval
É o negócio jurídico pelo qual um terceiro, o avalista (E), promete pagar a letra se aquele a
quem ele deu o aval, o avalizado (C), a não pagar. O aval constitui uma garantia pessoal de um
terceiro108. O avalista não pertence à cadeia, pois é um terceiro que garante a dívida de um dos
portadores anteriores.

Neste esquema, o E garante a dívida de C:


E (Avalista)

B -------------- A -------------------- C ----------------------- D

Sacado ------ Sacador ---------- Endossante --------------- Endossatário

6. Cheque
Tem uma estrutura muito semelhança à letra. A grande especificidade do cheque é que o sacado
é sempre um Banco, uma instituição bancária, e dá-se uma ordem de pagamento tendo por base
a relação bancária subjacente.
No cheque, o emitente (chamado sacador) dá uma ordem de pagamento ao Banco (o sacado)
para que pague uma determinada quantia numa determinada data ao tomador.
B ----------------------------- A ----------------------------- C

Banco/Sacado ------ Sacador /Emitente------------------ Tomador

7. Livrança
Deve ser atualmente o título de crédito mais usado, provavelmente.
Ao contrário da letra, a livrança tem uma estrutura bipartida (e não tripartida). A livrança é
uma promessa de pagamento pelo próprio subscritor da livrança ao tomador ou beneficiário da
livrança.
À livrança aplicam-se as regras da letra com as devidas adaptações (artigo 77.º da LULL109).
A ------------------------------------ B

Subscritor ------------------ Tomador/ Beneficiário

108 De forma muito imprecisa apresenta muitas proximidades com a fiança.


109 Lei Uniforme das Letras e Livranças.

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8. Características dos títulos de crédito


São quatro as principais características dos títulos de créditos110:

8.1. Literalidade
O conteúdo e extensão do direito incorporado no título são aqueles que dele constarem escritos.
O direito vale precisamente com esse conteúdo e extensão, o que permite a quem examinar o
título ter conhecimento completo e preciso do direito incorporado possibilitando a sua
mobilização e circulação.

O elemento declarativo prevalece sobre o elemento volitivo, sendo que se dá prioridade à


expressão escrita (“litteris”) que inspire maior confiança no declaratário, ou seja, que potencie
uma redução de falhas.

É de primacial importância o que se pode entender objetivamente dos títulos,


independentemente, do que os seus intervenientes possam ter subjetivamente querido, assim,
se na letra, cheque, livrança e extratos de fatura houver uma divergência entre o valor escrito
em algarismos e o montante escrito por extenso, prevalece o montante escrito por extenso,
e havendo diferentes valores escritos por extenso prevalece o mais exíguo, nos termos do
artigo 9.º da Lei Uniforme do Cheque (LUCH) e artigo 6.º da Lei Uniforme das Letras e
Livranças (LULL).

Esta literalidade é mais extensa quanto mais abstrato for o título. Daqui resulta, desde logo, a
impossibilidade de invocar vícios de vontade, nomeadamente, o erro-vício e o erro-obstáculo.

8.1.1. Características fundamentais que resultam da literalidade


✓ Em regra, quaisquer factos modificativos, impeditivos ou extintivos de um direito não
são oponíveis ao legítimo possuidor do título se não constarem do título;
✓ As letras, livranças e cheques são títulos incondicionais, sendo as cláusulas de condição
nulas.

110 Estas matérias dos títulos de crédito vêm reguladas na LULL e LUCH (Lei Uniforme dos Cheques) que foram amplamente
uniformizados ao nível internacional pela Convenção de Genebra, de 19 de março de 1931.

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8.1.2. Exceções ao princípio da literalidade


8.1.2.1. Relações imediatas
Nas relações imediatas podem ser oponíveis exceções extra-cartulares. As relações imediatas
são as relações que se estabelecem entre dois portadores sucessivos da cadeia cambiária, que
são simultaneamente partes não só na cadeia cambiária, mas também numa relação
fundamental.

SAQUE ENDOSSO

B ------------------------- A -------------------------- C ----------------------------- D ----------------- F

Aceitante/Sacado --- Sacador ------------Tomador/ Endossante -------- Endossatário --- Portador


ACEITE

Exemplos:
Entre A e B (sacador e sacado) há relações imediatas, pois há uma relação jurídica subjacente
que faz com que A possa dar uma ordem pagamento a B para ele pagar a C (seja uma doação,
ou uma dação em pagamento, etc).
Entre A e C há relações imediatas, pois há uma relação jurídica subjacente que faz com que A
ordene o pagamento a favor de C.
Entre B e C não há relações imediatas.
Entre C e D há relações imediatas.
Entre C e F não há relações imediatas.
Entre D e F há relações imediatas.
Sempre que há relações imediatas podemos invocar as exceções que derivam da relação
subjacente.
Exemplo: B é devedor de A em 150 000€. A compra mercadoria a C no valor de 100 000€ e
saca uma letra a B a favor de C. C endossa a letra a D. Imaginemos que B não aceita a letra,
significa que A é quem fica responsável pelo pagamento. D, portador da letra, exige o
pagamento da letra a A. A recusa pagar porque C ainda não entregou a mercadoria. A não se
pode recusar a pagar a D. Mas se for C a exigir o pagamento da letra, A já se pode recusar a
pagar invocando a exceção de não cumprimento. Isto porque a exceção de não cumprimento é
uma exceção extra-cartular, mas como entre A e C existem relações imediatas A pode impor a
C todas as exceções que derivam da relação extra-cartural, da relação que deu origem à dívida
que vai ser ressarcida pela letra.

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8.1.2.2. Exceptio doli (artigo 17.º LULL)


As exceções derivadas de relações extra-cartulares não são oponíveis ao portador mediato de
boa-fé, mas já o serão se este tiver atuado com dolo. Isto é, não basta má-fé, é necessário que
haja intenção de prejudicar no momento da aquisição do título.
Exemplo: A saca uma letra sobre B a favor de ele próprio (A), no valor de 5000€ a pagar a 30
dias. Essa letra constituía uma forma de pagamento por B de uma mercadoria que A ficou de
entregar a B. A e B acordam que B só pagaria depois de receber a mercadoria. B pode recusar-
se a pagar enquanto A não entregar a mercadoria? Sim, ao abrigo das relações imediatas.
Suponhamos que A endossa a letra a C com o objetivo especificamente de B não se poder
recusar a pagar a letra, mas C desconhece isso. Neste caso, B não se pode recusar a pagar a C,
pois C é um portador mediato de boa-fé.
Agora, A endossa a letra a C, seu amigo, precisamente para fugir à obrigação de entrega da
mercadoria, sendo que C sabia e compactuou com esse objetivo do A. Pode B recusar-se a
pagar a letra a C? Sim, B pode se recusar a pagar a C, ao abrigo do artigo 17.º LULL, dado que
ao portador que age com dolo podem ser opostas as relações extra-cartulares.
Não basta C saber, tem de compactuar com esse objetivo, isto é, tem de haver uma intenção de
prejudicar B. Esse conhecimento tem de existir no momento da transmissão da letra, se C
soubesse 5 minutos depois já não interessa para este efeito.
A boa-fé intermédia na cadeia de portadores afasta este regime.
Exemplo: C que está em conluio com A, endossa a letra a D que não sabia de nada. D, por sua
vez, endossa a letra ao E que é amigo do C e está a par disto tudo. A boa-fé do D sana a
possibilidade de invocar a exceptio doli, ou seja, afasta a possibilidade da invocação do dolo
por B.
A literalidade faz prevalecer o sentido objetivo sobre a vontade subjetiva dos seus autores ou
intervenientes. Sem a literalidade, os títulos de crédito seriam demasiado inseguros e
vulneráveis para poderem circular.

8.2. Autonomia
8.2.1. Autonomia de título cartular face ao direito subjacente111
O direito incorporado no título é autónomo do direito não cambiário subjacente que lhe deu
origem. O direito incorporado no título designa-se por direito cartular e o direito que lhe deu
origem designa-se por direito subjacente. Ele pode, no entanto, ser-lhe próximo.
O direito em que fique investido o portador de um cheque é, normalmente, do mesmo valor do
direito de crédito que esse portador detém sobre o devedor que lhe entregou o cheque. No
entanto, a pessoa do devedor é diferente: no caso do cheque, a pessoa do devedor deixa de

111Temos de separar a relação cambiária da relação que lhe deu origem. Normalmente os valores são equivalentes, porque a
relação cambiária por norma surge para pagar dívidas, para cobrir o montante de um débito. Mas as pessoas dos devedores,
o regime jurídico, as regras da prescrição, o facto de ser título executivo são características distintas da relação subjacente e
da relação cambiária, ainda que se interliguem em alguns pontos por causa da literalidade e das relações imediatas.

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ser o devedor da relação subjacente e passa a ser o Banco. Ou seja, a pessoa do devedor na
relação subjacente é o emitente do cheque e a pessoa do devedor da relação cambiária é o
Banco.
Quanto ao prazo de prescrição112: no caso do cheque é de seis meses, aplicando-se o regime
da LUCH e não o regime da relação subjacente.
O grau de autonomia entre o direito cartular e o direito subjacente varia consoante o título. E
também a propósito deste princípio de autonomia avoca-se as regras e exceções do princípio
da literalidade. A relação cambiária não provoca a novação da relação subjacente, ou seja, a
relação cambiária não substitui a relação subjacente, elas coexistem.

8.2.2. Autonomia da posição do portador do título


Vem regulada no artigo 16.º LULL quanto às letras, aplicando-se o mesmo regime à livrança
por remissão do artigo 77.º da LULL e o cheque tem um regime análogo nos termos do artigo
22.º da LUCH.
Falamos da autonomia da posição do portador do título em relação à de outros portadores
anteriores que do título tenham sido eventualmente desapossados.113
A titularidade do título traduz-se na titularidade de um direito real sobre ele, considerado como
coisa móvel, assim, é portador legítimo aquele que justificar a sua posse do título por uma série
ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco. Se na cadeira de circulação
algum anterior titular tiver sido ilicitamente desapossado do título, não poderá reivindicá-lo do
atual portador (contrariamente ao que acontece no regime geral do Direito Civil)114.
O endosso em branco vem previsto no artigo 14.º da LULL. No endosso em branco o
endossante não indica o nome da pessoa a quem faz o endosso, ou seja, limita-se a assinar o
seu nome nas costas do título. Segundo o artigo 16.º da LULL, o portador de uma letra cujo
último endosso é um endosso em branco é o legítimo portador da letra.
Alguém que recebe uma letra em branco pode fazer uma de duas coisas:
o Endossar a letra, passando a ser obrigado cambiário;
o Transferir a letra para outro portador sem a endossar115, caso em que o outro portador
é um portador legítimo, porque o último endosso é um endosso em branco, mas ele
nunca chega a ser obrigado cambiário, já que nunca se vincula ao pagamento.

112 O título de crédito prescreve porque é um título executivo. O prolongamento das regras de prescrição dos 20 anos normais
criaria uma insegurança e uma incerteza muito grande em tribunal. Além do facto de que, à semelhança do que acontece com
o dinheiro, por ele ser circulável, isso faz com que haja interesse para salvaguarda da segurança, que ele tenha prazos curtos
de ressarcimento. Pelo facto do cheque prescrever, não deixa de se poder exigir a dívida subjacente, simplesmente, deixa de
ser título executivo e funciona apenas como um documento probatório numa ação declarativa.
113 Não confundir com a autonomia a propósito do direito cartular, quanto a esta autonomiza-se o direito emergente do título

e nele incorporado do direito subjacente, que funcionalmente originou a emissão, o endosso ou outro ato cartular.
114 A titularidade de cada portador do titulo, na cadeia de circulação, é autónoma em relação à do anterior portador e não é

afetada pelos vícios que eventualmente sofra o direito daquele de quem recebeu o título.
115 Pelo facto de a letra poder circular sem endossos sucessivos, com base num endosso em branco, nunca deixa de ser um

título à ordem, não se transforma num título ao portador porque ela não circula livremente pela tradição, mas circula pela
autorização do endosso em branco. Já os cheques transformam-se em títulos ao portador, precisam sempre do endosso.

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Exemplo: C faz um endosso em branco e entrega a letra a D. D endossa a letra a favor de F. F


cobra a letra a B (porque tem de se cobrar sempre primeiro ao aceitante), mas B não paga. F
pode exigir o pagamento da letra a D? Sim, porque D torna-se obrigado cambiário.
Exemplo: D recebe a letra por endosso em branco de C, e sem fazer nenhum endosso entrega
a F. F é portador legítimo? Sim, porque o último endosso é um endosso em branco. Mas pode
F exigir o pagamento da letra a D se B não pagar? Não, porque D em momento nenhum entrou
na cadeia cambiária.
A principal consequência do artigo 16.º LULL é que o portador legítimo tem a sua posição
cambiária protegida, mesmo que na cadeia de circulação anterior algum titular tenha sido
ilicitamente desempossado. Só assim não será se no momento da aquisição ele estiver de má-
fé ou tiver cometido falta grave.
Exemplo: A saca uma letra sobre B a favor de C. C endossa a D. F furta a letra de D. F não é
possuidor legítimo porque está de má-fé. F falsifica um endosso em branco de D e exige o
pagamento a B que desconhece toda a situação. B pagar está a pagar ao possuidor legítimo?
Sim, portanto, nos termos do artigo 40.º/3 LULL ele fica exonerado da obrigação cartular.

Exemplo: F não falsifica o endosso em branco de D e exige a letra a B. Se B pagar a F fica


exonerado? Não, porque não está a pagar ao portador legítimo, porque F não recebe a letra por
uma cadeia ininterrupta de endossos. Não resulta da letra a que título é F é dela portador. B se
pagasse não ficaria exonerado porque não tinha confirmado a cadeia sucessiva de endossos que
legitima o F.

Exemplo: Imaginemos que a letra tinha um valor muito elevado e G sabia que F estava numa
situação económica muito precária, está em situação fáctica de insolvência, mas sem fazer
perguntas G aceita a letra de F. Poderia B recusar-se a pagar a letra a G quando G a apresenta
para pagamento? Tem-se entendido que isto consubstancia uma situação de falta grave, para
efeitos do artigo 16.º LULL e nessa medida deixa de ser portador legítimo.

Outra manifestação vem no artigo 7.º LULL, as obrigações cambiárias dos diferentes obrigados
cambiários são independentes entre si, o que significa que em regra o vício de uma delas não
afeta as restantes. Há duas exceções:
✓ Se houver um vício formal na declaração do sacador, este vício afeta toda a letra de
câmbio (artigos 1.º e 2.º LULL). Se esse vício formal constar em qualquer outra
declaração de qualquer outro obrigado cambiário afeta apenas essa relação cambiária e
não as restantes. O vício substancial afeta apenas aquela relação cambiária e não as
restantes.
✓ A nulidade decorrente de um vício de forma da declaração do avalizado (aquele a quem
é dado o aval) libera o avalista da obrigação que ele assume (artigo 32.º LULL), mas se
for um vício substancial o avalista permanece vinculado.
Da conjugação do artigo 16.º com o artigo 7.º da LULL resulta que o desapossado involuntário
não pode reivindicar a letra contra um terceiro portador de boa-fé legitimado por uma série
ininterrupta de endossos, mas se lhe for exigido o pagamento pode excecionar e provar o

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desapossamento involuntário, sem que isso afete a validade das obrigações dos demais
signatários da letra.
Exemplo: Depois de furtada a letra a D, F falsifica um endosso em branco de D e endossa a
letra a G. Não tendo G qualquer conhecimento da situação, mas sabendo B dessa situação
porque foi alertado por D, pode B recusar-se a pagar a letra a G com fundamento no
desapossamento da letra feito por F? Não. O único que se pode recusar a pagar a letra a G é D,
porque foi desapossado, qualquer um dos outros obrigados cambiários mantém a obrigação
cambiária.

8.3. Incorporação
A característica da incorporação está intimamente ligada com a da legitimação. Manifesta-se
na necessidade da presença (existência física) do título para o exercício do direito cartular e
para a sua circulação.
Isto significa que se o título se destruir ou for danificado ou se perder, os direitos cartulares
não podem ser exercidos, enquanto o título não for reconstituído através de um processo de
reforma. A este propósito dispõe o artigo 34.º LULL quanto à letra e à livrança e os artigos 28.º
e seguintes da LUCH quanto ao cheque.
Este processo de reforma vem previsto no artigo 367.º do Código Civil que refere que podem
ser reformados judicialmente os documentos escritos, que por qualquer modo tenham
desaparecido. A reforma opera-se através de um processo judicial comum e todo este processo
fica de alguma forma marcado pelo risco do título aparecer na posse de um terceiro justificado
por uma sequência de portadores legítimos a exigir a sua cobrança. Dado isto, o tribunal invoca
e cita todos os interessados, conhecidos e desconhecidos. Acresce que aquele que solicita a
reforma, quando exerce o direito cartular, tem de prestar uma caução válida por 5 anos, para o
caso de aparecer alguém que tenha um melhor direito ao título.

8.4. Legitimação
A posse do título de acordo com a lei de circulação legitima o portador a exercer o direito
cartular, isto significa que o portador não precisa de provar a titularidade e, em princípio, não
lhe pode ser contestada.
A legitimação do portador do título para o exercício do direito cartular, designa-se por
legitimação ativa.
Do lado passivo habilita legitimamente o obrigado cambiário a cumprir perante quem se
apresentar portador de acordo com a lei de circulação do título. O obrigado cambiário ao
cumprir perante esse portador fica exonerado e não lhe pode ser oposta a eventual ilegitimidade
da pessoa a quem pagou (artigos 35.º LUCH e 40.º/3 LULL). Trata-se aqui de legitimação
passiva.
O obrigado, ao apresentar-se-lhe alguém como portador de acordo com a lei de circulação não
precisa de investigar a verdadeira legitimidade do credor, nos termos do artigo 40.º/3 LULL o

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obrigado não tem de confirmar as assinaturas dos endossantes, tem apenas de verificar a
regularidade da sucessão dos endossos. Ele não fica, porém, exonerado se cometer fraude ou
falta grave na análise dos endossos.
Isto significa que:
✓ a legitimidade ativa dispensa o portador de provar a titularidade e proíbe o devedor
de a discutir;
✓ a legitimação passiva dispensa o devedor de a investigar e assegura que o
cumprimento que fizer perante aquele portador o exonera da dívida cartular.
A legitimação, como característica dos títulos de crédito assenta na separação da legitimidade
e da titularidade. A regra geral da coincidência entre a titularidade do direito e a legitimidade
para o seu exercício, conforme o Direito Civil, é aqui afastada. A legitimidade é do portador,
seja ele ou não o verdadeiro titular.

9. Convenção executiva
Ora, o direito cartular e o direito que resulta da relação subjacente não se confundem, existe
uma autonomia entre eles. Aliás, a função concreta que o negócio cambiário representa em
relação ao negócio subjacente pode variar. Exemplo: pode ser uma doação, uma dação em
pagamento, uma dação em cumprimento, um mútuo.
A função em concreto que o título representa em relação ao negócio subjacente consta daquilo
que se designa de “convenção executiva”.
A convenção executiva é a convenção que se estabelece entre os intervenientes do ato
cambiário, paralelo a este, na qual é acordada a função a desempenhar pelo negócio cartular
em relação ao negócio subjacente.
Esta convenção executiva tanto pode fazer parte do negócio subjacente, como ser autónoma.
Quando a letra é endossada ou o cheque é sacado para pagamento de uma dívida, presume-se,
salvo convenção em contrário que é pro solvendo, ou seja, em função do cumprimento, sendo
que pode ser estabelecido que ela é pro soluto, ou seja, em pagamento (artigo 840.º do Código
Civil ex vi 3.º do Código Comercial).
Se for uma dação pro solvendo, isso significa que o ato cambiário só opera o pagamento da
relação subjacente, na medida em que a obrigação cambiária vier efetivamente a ser cumprida.
Na dação pro soluto, a dívida subjacente fica paga, quer a obrigação cambiária venha a ser
cumprida, quer não venha.

10. Extinção dos títulos de crédito


Os títulos de crédito extinguem-se quer por:

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10.1. Causas atinentes ao título como documento


O documento pode ser, parcialmente ou totalmente, destruído ou obliterar-se por desgaste ou
velhice ou tornar-se ilegível dada a circulação. Os títulos eletrónicos também podem ser
destruídos: falsificados, degradados e destruídos por acidentes ou ataques informáticos.

10.2. Causas atinentes ao direito incorporado


O direito incorporado não se extingue por destruição do título, porém não pode ser exercido
sem ele.
Os títulos de crédito extinguem-se pela extinção do próprio direito incorporado depois de
cumprido, pago ou prescrito ou por ineficácia.
Depois do protesto por falta de pagamento ou depois de decorrido o prazo para protesto, a letra
já não circula enquanto tal, mas apenas no âmbito do regime da cessão de crédito, ou seja,
como crédito normal, e não como um título cambiário.

11. Requisitos formais da letra


A letra é um título de crédito constituída por um documento escrito e assinado que incorpora
um direito de crédito pecuniário. Quanto ao modo de circulação é um título à ordem, circula
por endosso. É um título privado e individual.
Quantos aos requisitos formais da letra temos de atender ao artigo 1.º LULL:
“A letra contém:
1. A palavra «letra» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a
redacção desse título;
2. O mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;
3. O nome daquele que deve pagar (sacado);
4. A época do pagamento116;
5. A indicação do lugar em que se deve efectuar o pagamento117;
6. O nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga118;
7. A indicação da data em que, e do lugar onde a letra é passada119;
8. A assinatura de quem passa a letra (sacador).”

116 A letra em que não se indica a época de pagamento considera-se pagável à vista.
117 O lugar designado ao lado do nome do sacado considera-se ser o lugar do pagamento.
118Se existirem vários tomadores, os direitos cambiários têm de ser exercidos por todos em conjunto. Os tomadores podem,
no entanto, ser alternativos, caso em que o pagamento a qualquer um deles desobriga o devedor.
119 Se não tiver indicação desse lugar, entende-se que é o lugar designado ao lado do sacador.

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Segundo o artigo 2.º LULL a falta de qualquer destes elementos faz com que a letra não valha
como título de crédito, mas é muito raro que isso aconteça, uma vez que as partes normalmente
usam um modelo pré-determinado para isto.
Se a letra for assinada por um sujeito que se arroga poderes de representação que não tem ou
que está a exercer em excesso, nos termos do artigo 8.º LULL aquele em cujo nome a letra foi
assinada não fica vinculado, ficando vinculado aquele que assinou a letra em representação.
Os negócios unilaterais da letra de câmbio são incondicionáveis:
✓ O saque sob condição impede a qualificação da letra como tal (artigo 1.º/2 LULL);
✓ O aceite sob condição é tido como recusa de aceite (artigo 12.º LULL);
✓ O endosso condicionado tem-se como não escrito (artigo 26.º LULL);
✓ No caso do aval a única limitação que se tem admitido é quantitativa. Quanto ao resto,
o conteúdo da obrigação do avalista é determinado pela obrigação do avalizado (artigo
31.º LULL).

12. Letra em branco120


Falamos de um título de crédito que foi posto em circulação sem estar completamente
preenchido, com o objetivo de vir a ser preenchido mais tarde. O seu incompleto preenchimento
é intencional/ voluntário (sem o valor e a data do vencimento) e o critério de preenchimento
posterior do valor e da data deve ser feito de acordo com o pacto de preenchimento: a
convenção pela qual se estabelece os termos em que o título virá a ser preenchido mais tarde.
O artigo 10.º da LULL permite que a letra seja emitida sem estar completamente preenchida e
que seja preenchida. A referência, neste artigo, tem um duplo significado:
✓ A letra pode ser emitida e circular incompleta sem que isso afete a sua existência e
validade jurídica;
✓ A existência e a validade da letra dependem de ela ter sido emitida, intencionalmente,
em branco e, portanto, da existência de um pacto de preenchimento;
O integral preenchimento da letra não é um pressuposto da sua existência, mas apenas da sua
cobrança e execução. Antes de estar preenchida já pode circular como letra e suportar os atos
cambiários que lhe são próprios, porém não pode ser cobrada nem executada. Se este não
preenchimento não for intencional ou se não houver pacto de preenchimento, a letra não vale
como letra [título executivo] e, portanto, tem um mero efeito probatório121.

Há três posições quanto ao que é juridicamente uma letra em branco:

120Este regime aplica-se plenamente à livrança em branco. O regime 77.º LULL manda aplicar à livrança com as necessárias
adaptações o regime da letra.
121
Se a letra tiver sido posta em circulação antes de completada contra ou sem a vontade do emitente, haverá falta grave,
mas essa circunstância só pode ser aposta a quem se tenha abusivamente apropriado da letra contra ou sem a vontade do
emitente ou quem a tiver adquirido deste em cumplicidade.

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✓ Para Dr. Pinto Coelho e o Dr. Oliveira Ascensão a letra em branco ainda não é uma
letra, não tendo natureza cambiária enquanto não for preenchida.
✓ Para Dra. Carolina Cunha (posição mais radical) os negócios unilaterais apostos a uma
letra em branco valem apenas como atos preparatórios e, portanto, até ao momento do
preenchimento não seriam vinculativos, nem obrigariam os seus autores que se podiam
assim desvincular livre e unilateralmente deles.
✓ O Dr. Pedro Pais de Vasconcelos tem uma posição pragmática no sentido em que a
letra em branco já é uma letra e tem, desde logo, natureza cambiária. Começando por
dizer que o artigo 1.º da LULL não pode ser isolado do artigo 10.º da mesma lei. Consta
do artigo 10.º LULL que se permite que, após criado o título em branco, o primeiro
portador o transmita ainda em branco por endosso e o título circule em branco por
sucessivos endossos, cabendo ao último portador o seu preenchimento. Dr. Pedro Pais
Vasconcelos entende que não faz sentido se permitir a circulação da letra em branco e,
em simultâneo, permitir que aqueles que a ela se vincularam, se desvinculem livremente
e unilateralmente dela a qualquer momento, uma vez que isso deixaria o título sem
obrigados e, por outro lado, se um deles se desvinculasse, nenhum dos portadores
poderia confiar nas assinaturas que constam no título, o que o tornaria imprestável para
circulação.
12.1. Preenchimento abusivo da letra
O pacto de preenchimento, como pacto fiduciário, é uma convenção obrigacional e informal.
Tem como conteúdo a obrigação de preencher a letra ou livrança de acordo com o critério
estipulado e só oponível entre as partes. À violação do pacto de preenchimento de uma letra
em branco, dá-se o nome de preenchimento abusivo da letra.
Nos termos do artigo 10.º LULL122, o preenchimento abusivo não é oponível ao terceiro
portador123, ou seja, se o portador que está a cobrar a letra for parte do pacto de preenchimento
pode-lhe ser oposto o preenchimento abusivo. Se o portador que está a cobrar a letra não for
parte do pacto de preenchimento, a exceção de preenchimento abusivo é improcedente face a
ele, e a letra terá de ser paga pelo montante e no prazo que nela figurem.
Quem deduz a exceção do preenchimento abusivo é que tem o ónus de alegar os factos em que
se apoia e a sua prova.
Ao preencher a letra em branco o portador não tem de informar o obrigado cambiário nem de
discutir com ele o preenchimento, exceto se isso tiver sido convencionado no pacto de
preenchimento.

12.2.1. Pretensão de desvinculação do avalista


Um dos aspetos mais relevantes no pacto de preenchimento é o: aval em branco.

122 Este regime é paralelo ao artigo 17.º LULL.


123 A situação aqui é que a letra é preenchida abusivamente e endossada ao terceiro. Neste caso aquele que foi vítima do
preenchimento abusivo, a única coisa que pode fazer é exigir responsabilidade perante aquele que preencheu abusivamente
a letra, mas ele mantém a obrigatoriedade de pagar a letra (a não ser que estejamos perante uma relação imediata).

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Em Portugal este problema apresenta-se quando há um crédito concedido a uma sociedade


comercial124, sendo emitida uma livrança avalizada pelo gerente (pela pessoa singular). Muitas
das vezes a discussão situa-se, não ao nível do próprio título, mas da garantia prestada, do aval.
É comum que um gerente que presta o aval ou a livrança em branco no âmbito de uma conta
corrente, (prolongando-se esta garantia num período de 7 ou 8 anos), com movimentação
constante, deixe de ser gerente e de ter participações sociais (ou seja, haja a cessão da empresa)
e seja depois chamado a garantir uma dívida que essa sociedade comercial fez no âmbito
daquela conta corrente, sob responsabilidade de outros gerentes e com participações sociais de
outros sócios.
Esta situação tem chegado a tribunal e os argumentos utilizados têm sido, essencialmente dois:
✓ O facto da categoria ou da qualidade na qual o sujeito que prestou o aval ter
desaparecido, ou seja, o facto de ter perdido o controlo, de deixar de poder controlar o
cumprimento da relação subjacente;
✓ A interminabilidade da dívida;
As questões que têm surgido em tribunal assentam, muitas vezes, em dois equívocos:
✓ por um lado, confunde-se o ato e a obrigação cambiária com a relação subjacente e com
a convenção executiva;
✓ por outro, confunde-se o aval com a fiança.
Quanto a isto temos dois acórdãos uniformizadores de jurisprudência:
✓ AUJ 4/2013: tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada não é admissível
a sua denúncia pelo avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi
prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a
ceder a sua participação social na sociedade avalizada. Assim, o tribunal apoia-se e
reforça o princípio da literalidade do título, não permitindo o seu condicionamento.
✓ AUJ 4/2001: é nula por indeterminabilidade do seu objeto a fiança de obrigações
futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades
provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua
origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervém.
É a chamada a nulidade da fiança omnibus (que abrange todas as dívidas futuras sem
limites). No entanto, têm entendido os tribunais que esta argumentação a propósito da
fiança omnibus.
Houve vários casos em tribunais em que avalistas invocavam paralelismo/analogia entre a
fiança omnibus e o aval, requerendo nulidade do aval com fundamento nesta analogia.
Na prática, o aval funciona em termos semelhantes aos da fiança, na medida em que, permite
colocar em risco todo o património do avalista (trata-se de uma garantia pessoal, sendo
simplesmente prestada no âmbito de títulos de crédito – é um negócio cambiário).
Porém, este argumento falha, porque não há analogia entre a fiança e o aval – o aval é uma das
garantias mais violentas, pois é o equivalente a uma garantia pessoal, mas não goza das

124
Uma vez que a conta corrente está em nome da sociedade comercial.

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características de causalidade da fiança. Enquanto a fiança é causal, o aval é abstrato e, por ser
abstrato e incluído em título de crédito, faz com que esta nulidade, ainda que existisse, só
pudesse ser invocada na relação entre avalista e avalizado, mas não perante o terceiro portador
de boa-fé (artigos 10.º e 17.º LULL).
Qualquer limitação ao aval só pode ser invocada nas relações imediatas por força do artigo 10.º
e do artigo 17.º LULL. Portanto:
✓ Se o avalista é parte no pacto de preenchimento (que é celebrado entre o avalizado
e o credor), então os três ficam vinculados ao conteúdo do pacto. Se, no pacto de
preenchimento, celebrado entre credor, avalista e avalizado, ficar expressamente
consagrado que aval é dado na qualidade de sócio da sociedade, então nas relações
imediatas, pode o avalista invocar isso tanto perante o credor, como perante o avalizado.
✓ Se o avalista não é parte no pacto de preenchimento, ele fica vinculado aos termos
do preenchimento acordados entre o credor e o avalizado, sendo que, qualquer acordo
distinto entre avalista e avalizado não vincula o credor subjacente.
Uma limitação ao aval que não abrange o portador do título, porque é feita apenas entre o
avalista e o avalizado, ou entre o avalista e o adquirente das participações sociais não pode
ser oponível ao portador do título, e nessa medida só poderá haver, eventualmente,
responsabilidade contratual.

13. Negócios jurídicos unilaterais cambiários


13.1. Saque
O saque tem duas dimensões:
✓ É uma ordem de pagamento dirigida ao sacado. O sacador ordena ao sacado que pague
uma determinada quantia ao tomador ou a quem ele indicar (portadores futuros).
✓ O sacador ainda se obriga a que o sacado aceite e pague a letra, assumindo que se ele
não o fizer, o próprio sacador pagará.
O sacador pode ser simultaneamente tomador, e é possível que o sacador seja simultaneamente
sacado (saca a letra sobre si próprio) – sendo denominado, neste último caso, de sacador-
tomador (artigo 3.º LULL).
O sacador responde, em princípio, pelo pagamento e pelo aceite da letra, mas pode exonerar-
se da responsabilidade pelo aceite.
Nos termos do artigo 9.º LULL, o sacador pode incluir na letra as palavras “letra não
aceitável”, “aceite proibido” ou equivalente. Neste caso, a cláusula não proíbe o aceite, mas
apenas estipula que o sacador não se responsabiliza pelo aceite, isto é, o sacador responsabiliza-
se pelo pagamento da letra, mas não se responsabiliza pelo aceite.
O sacador pode estipular juros e fazer constar essa estipulação da letra. Neste caso:
✓ Se a letra for sacada à vista ou a certo termo de vista, os juros têm estipulação autónoma
e têm de se constar do texto da letra (artigos 33.º e 5.º LULL);

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✓ Se a letra for sacada a certo termo de data ou com data certa, os juros são inseridos no
montante do saque e não podem ser objeto de estipulação própria que, se existir, se tem
por não escrita (artigo 5.º LULL);

13.2. Aceite
O aceite é o negócio jurídico cambiário, unilateral e abstrato, pelo qual o sacado aceita a ordem
de pagamento que lhe foi dirigida pelo sacador e promete pagá-la na data do seu vencimento
ao tomador ou à sua ordem (artigo 28.º LULL).
O aceite é escrito pelo sacado na letra através da palavra “aceite” ou equivalente, juntamente
com a assinatura, ou através da mera assinatura do sacado na parte anterior da letra (artigo 25.º
LULL).
Quando há aceite125, o sacado passa a designar-se como aceitante e a partir daí fica
responsabilizado pelo pagamento da letra no vencimento.
✓ O sacador assume a responsabilidade do pagamento quando emite a letra, quer o
sacado aceite ou não aceite, quer pague ou não pague.
✓ O aceitante só assume a responsabilidade pelo pagamento da letra no momento do
aceite.
A apresentação da letra a aceite é, em princípio, facultativa, exceto:
✓ Nos casos em que o sacador determina a sua obrigatoriedade, nos termos do artigo 22.º
LULL;
✓ Quando a letra é pagável à vista ou a certo termo de vista, porque, nestes casos, é a
apresentação a aceite que desencadeia o vencimento da letra ou o início do prazo de
vencimento, respetivamente.
O sacador pode determinar que não é permitido apresentar a letra a aceite antes de um
determinado prazo126. A proibição exprime-se por inserção na letra da cláusula “letra não
aceitável" ou “aceite proibido”.
O aceite não pode ser condicionado (considera-se recusado), mas pode ser parcial, ou
modificado (artigo 26.º LULL). A recusa de aceite, o aceite parcial ou modificado implica o
vencimento imediato da letra, nos termos do artigo 43.º LULL.
Se o sacado riscar o aceite antes de devolver a letra, o aceite considera-se recusado (artigo 29.º
LULL), exceto se o sacado tiver informado por escrito o sacador ou algum dos outros
intervenientes na cadeia cambiária de que aceita a letra.
Sendo a letra pagável a certo termo de vista, o aceite tem de ser datado para que se possa contar
o prazo de vencimento a partir daí (artigo 25.º LULL). O portador pode exigir que o aceite seja

125 O sacado não é obrigado a aceitar a letra e, se recusar o aceite, não incorre em qualquer responsabilidade cambiária. O
protesto por falta de aceite é feito contra o sacador que, com o saque, prometeu que a letra seria aceite, e não contra o sacado,
que não está obrigado a aceitá-la.
126 A proibição do aceite não impede qualquer portador de levar a letra a aceite, mas exonera o sacador da responsabilidade

por recusa de aceite.

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datado, não da data em que foi dado, mas da data em que a letra foi apresentada a aceite. O
aceite também deve ser datado nas letras que devam ser aceites num dado prazo.
Se o aceite não for datado, o portador deve fazer constar a omissão da data de um protesto, em
tempo útil, sob pena de perder os seus direitos emergentes da letra contra o sacador e os
endossantes, (artigo 25.º LULL).
Nos demais casos, o aceite não tem de ser datado.

13.3. Endosso127
É o negócio unilateral e abstrato com uma dupla dimensão:
✓ Um portador da letra ordena ao sacado (aceitante, depois do aceite) que pague a letra,
não a ele, endossante, mas a outra pessoa (endossatário), a um novo portador, ou à sua
ordem;
✓ O endossante compromete-se, assim, a que se o aceitante ou qualquer outro obrigado
cambiário não pagar, a assumir a responsabilidade do pagamento da letra perante o
endossatário;
Se a um endosso em branco (o endossante não identifica a pessoa do endossatário) se seguir
um novo endosso presume-se que o signatário do segundo endosso recebeu a letra através do
endosso em branco. Isto é fundamental para assegurar a cadeia de sucessão cambiária, nos
termos do artigo 16.º LULL, para se assegurar a lei de circulação que exige que haja uma cadeia
ininterrupta de endossos. Em rigor, não há uma transmissão da propriedade do título, mas antes
uma investidura do endossatário na titularidade da letra que não é derivada, mas sim, originária.
Cada endossante responde pelo aceite e pelo pagamento da letra, o que significa que: se a letra
não for paga, o portador pode exigir esse pagamento de qualquer endossante, portanto, quanto
mais circular a letra por endosso mais garantido fica o crédito cambiário. Paga a letra, o
endossante pode, depois, cobrar essa letra de qualquer um dos endossantes anteriores.
O endossante pode, no entanto, através de cláusula: “sem garantia”, “sem responsabilidade”,
“sem regresso” ou “sem obrigação” aposta na letra nesse sentido, exonerar-se da
responsabilidade do aceite e do pagamento (artigo 15.º LULL). Tal cláusula só exonera o
endossante que a inseriu na letra.
O endossante pode ainda, por cláusula nesse sentido, proibir o endossatário de fazer novos
endossos e, neste caso, fica exonerado da responsabilidade pelo pagamento da letra perante os
endossatários subsequentes (artigo 15.º LULL).
O endossante pode ainda incluir cláusulas cambiárias128 no endosso, por exemplo, “valor por
cobrar”, “valor a cobrar”, “para cobrança” que façam com que, por exemplo, ele corresponda

127 Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos, o endosso “é no fundo um novo saque que difere do primeiro por não criar a
letra, que já está sacada, e por não fixar os seus elementos, que o saque já fixou”.
128 Estas cláusulas distinguem-se das convenções extra-cartulares porque constam do próprio título e são oponíveis ao

portador. São cambiárias e não extracambiárias.

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a um simples mandato, nesse caso, o endossatário não se torna proprietário da letra, mas sim
um simples procurador do endossante (artigo 18.º LULL).
Neste caso, o portador pode exercer todos os direitos emergentes da letra da letra, mas só pode
endossá-la na qualidade de procurador129.
O endosso que é feito posteriormente ao protesto por falta de pagamento, ou feito depois de
expirado o prazo fixado para se fazer o protesto, produz apenas os efeitos de uma cessão
ordinária de créditos, não tendo dimensão cambiária (artigo 20.º LULL).

13.4. Aval
O aval é um negócio cambiário unilateral e abstrato que tem por conteúdo uma promessa de
pagar a letra e por função a garantia desse pagamento.
O aval pode ser prestado por um terceiro ou por um signatário da letra (artigo 30.º/2 LULL)
que assume o papel de garante do avalizado (obrigado), caso lhe venha a ser exigido o
pagamento.
Não se sindicando a favor de quem é prestado o aval, presume-se que é prestado a favor do
sacador (artigo 31.º/3 LULL).
O aval pode ser total ou parcial, mas não pode ser condicionado (artigo 30.º/1 LULL).
O aval é escrito na letra ou numa folha anexa e exprime-se pelas palavras “bom para aval” ou
por qualquer outra fórmula equivalente. A simples assinatura na face anterior da letra, que não
seja a do sacador ou do sacado, vale como aval (artigo 31.º LULL)
Segundo o artigo 32.º LULL, o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa
por ele afiançada, com uma exceção: o aval subsiste mesmo que o ato do avalizado seja nulo,
exceto se for por vício de forma. Esta responsabilidade não é subsidiária, mas sim solidária e
cumulativa. A posição jurídica do avalista é acessória da posição do avalizado, em matéria de
prescrição ou falta de protesto.
O avalista chamado a pagar a letra fica sub-rogado nos direitos emergentes contra a pessoa a
favor de quem foi dado o aval e contra os demais obrigados (artigo 32.º/3 LULL), ou seja, o
avalista pode exigir o pagamento da letra, não só do avalizado como daqueles de quem o
avalizado o poderia exigir.
Havendo vários avales é preciso se averiguar se:
✓ Se trata de um co-aval (aval comum): há apenas um aval prestado conjuntamente por
mais do que uma pessoa, ou seja, há apenas uma posição jurídica comum de avalista
em contitularidade de várias pessoas, caso em que a responsabilidade é solidária;
✓ Se são vários avales: cada aval é uno e independente de cada um dos outros;

129 Os obrigados podem, todavia, opor ao endossatário as exceções oponíveis ao endossante.

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14. Modalidades de vencimento e pagamento da letra


As letras podem ter quatro modalidades de pagamento:
✓ Pagamento à vista;
✓ Pagamento a um certo termo de vista;
✓ Pagamento a um certo termo de data;
✓ Pagamento em dia fixado;
Segundo o artigo 33.º LULL, quer as letras com vencimentos diferentes, quer com vencimentos
sucessivos, são nulas.

14.1. Pagamento à vista


A letra à vista é pagável mediante apresentação (artigo 34.º/1 LULL), ou seja, o portador
apresenta a letra a pagamento e a letra tem de ser paga de imediato.
Ao ser apresentada a letra ao sacado, não se coloca a este a questão de aceitar ou não, porque:
✓ Se aceita, paga imediatamente;
✓ Se paga é porque aceitou;
Não se distingue, assim, o aceite e o pagamento. Não há aceite, porque é consumido pela
apresentação, ou seja, no momento da apresentação, passa logo a ser exigido o pagamento.
A letra deve ser apresentada a pagamento no prazo de 1 ano a contar da sua data e este prazo
pode ser alargado ou encurtado pelo sacador ou por qualquer um dos endossantes130. A falta de
apresentação da letra a pagamento à vista dentro deste prazo faz extinguir os direitos
cambiários contra o sacador, contra os endossantes e demais obrigados (artigo 53.º LULL).

14.2. Pagamento a um certo termo de vista


Na letra a certo termo de vista, o prazo de vencimento começa a contar-se a partir da data do
aceite ou, em caso de recusa do aceite, a partir do momento em que há o protesto por falta de
aceite (artigo 35.º LULL).

14.3. Pagamento a um certo termo de data e Pagamento em dia fixado


As letras sacadas a certo termo de data ou pagáveis em dia fixado vencem-se nos termos dos
respetivos prazos e devem ser apresentadas a pagamento ou numa câmara de compensação, no
próprio dia de vencimento ou num dos dois dias úteis seguintes (artigo 38.º LULL).
As letras vencem-se antecipadamente nos seguintes três casos:
✓ Recusa total ou parcial de aceite;
✓ Insolvência do sacado, suspensão de pagamentos do mesmo, ainda que não confirmada
por sentença ou promoção sem resultado da execução dos bens;

130 O sacador pode também estipular que a letra não seja apresentada a pagamento antes de decorrido certo prazo.

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✓ Insolvência do sacador de uma letra não aceitável;


O portador não pode recusar o pagamento parcial, mas pode recusar o pagamento antecipado.

15. Protesto
O protesto é um ato jurídico declarativo, não negocial, pelo qual se certifica a recusa de aceite
ou a recusa de pagamento. É um ato formal praticado perante notário regulados nos termos dos
artigos 119.º e seguintes do Código do Notariado. Tem as seguintes funções:
✓ Função probatória e de segurança, eliminando os riscos de prova ou de controvérsia
quanto à falta de aceite ou de pagamento;
✓ Função conservatória dos direitos do credor que, na falta dele, vê precludida uma parte
importante do seu direito;
✓ Função de informação dando aos intervenientes na cadeia cambiária notícia da falta de
aceite ou de pagamento
O protesto deve ser feito dentro do prazo para apresentação a aceite. Se a letra for apresentada
no último dia do prazo, o protesto pode ser feito no primeiro dia útil seguinte.
Se a letra for pagável (artigos 121.º e 122.º do Código do Notariado):
✓ Em data certa ou em certo termo de data, o protesto por falta de pagamento deve ser
feito nos dois dias úteis seguintes à data em que o pagamento devia ter sido feito;
✓ Se for uma letra pagável à vista, o protesto por falta de pagamento segue o regime do
protesto por falta de aceite, isto é, deve ser feito dentro do prazo em que podem ser
apresentadas a pagamento.
O portador quando protesta a letra, tem 4 dias para avisar da falta de aceite ou de pagamento,
aquele que lhe endossou a letra e o sacador.
Cada um dos endossantes tem 2 dias para avisar aquele que lhe endossou a letra, isto é, aquele
que o antecede na cadeia cambiária, sucessivamente, até chegar ao sacador, para todos serem
avisados.
Os avalistas devem ser avisados nos mesmos prazos dos avalizados.
A falta de aviso gera responsabilidade civil (artigo 45.º LULL).
Na falta de protesto, o portador deixa de poder exercer os direitos emergentes da letra contra
os endossantes, o sacador e os demais obrigados, portanto, só pode cobrar a letra do aceitante
e do seu avalista (artigo 53.º LULL).
No entanto, se o protesto for dispensado por cláusula na letra nesse sentido: “sem despesas” ou
“sem protesto” ou equivalente (artigo 46.º LULL).
✓ aposta pelo sacador, esta produz efeitos em relação a todos os intervenientes na letra,
ou seja, dispensa de protesto todos os intervenientes;
✓ aposta por um endossante ou avalista vale para esse endossante e para os subscritores
posteriores;

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Nestes casos, os beneficiários não perdem os seus direitos por falta ou intempestividade do
protesto.

16. Prescrição
Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos: “os direitos cartulares têm prazos de prescrição
consideravelmente apertados.” Os prazos de prescrição dos títulos cambiários constam do
artigo 70.º LULL e são diferentes consoante as posições em que os intervenientes se encontram
na letra.
A prescrição não é da letra, mas sim do direito cambiário. A prescrição do crédito cambiário
não importa a do crédito subjacente que pode ter um prazo de prescrição mais dilatado do que
o prazo do direito cambiário. Dada a autonomia do direito cambiário, a prescrição deste não
atinge o direito subjacente que se mantém válido e eficaz. O credor, nesse caso, extinto embora
por prescrição o direito cambiário, poderá exigir o pagamento do direito subjacente.
O desrespeito por estes prazos faz com que o título deixe de valer como título cambiário.

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VIII - Sinais distintivos de Empresas e de Produtos


1. Sinais distintivos das Empresas
1.1. Logótipos
Os logótipos são signos suscetíveis de representação objetiva e autónoma, para distinguir
entidades ou sujeitos e, eventualmente, estabelecimentos deste (crf. os artigos 281.º, 282.º e
295.º CPI).
Serve primordialmente para distinguir sujeitos que prestem serviços ou produzam bens
destinados ao mercado.
É um sinal multidimensional ou bifuncional, porque tanto distingue sujeitos, como
estabelecimentos.
O titular do logótipo não tem de ser um empresário e cada sujeito pode ter mais que um
logótipo131.

1.2. Recompensas
As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente reconhecidos
(condecorações, medalhas, diplomas, atestados, etc.), concedidos a empresários por força da
bondade dos seus estabelecimentos ou produtos.

2. Sinais distintivos dos produtos


2.1. Marcas
As marcas são signos ou sinais suscetíveis de representação objetiva, clara e autónoma,
destinados a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou de fins.

2.2. Denominações de origem


A denominação de origem corresponde ao nome de uma região, ou local determinado ou, em
casos excecionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona, cujas
qualidades ou características se devem essencialmente ao meio geográfico – aos seus fatores
naturais (solo, clima) e/ou socioeconómicos (técnicas de produção). É possível que o produto
seja originário dessa zona e depois a sua produção, elaboração e transformação ocorra em zonas
geográficas delimitadas.

131Nas palavras de Coutinho de Abreu: “curiosamente, um mesmo sujeito, que só pode ter uma firma ou denominação, pode
ter vários logotipos;”

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2.3. Indicação geográfica


As indicações geográficas correspondem ao nome de uma região, ou local determinado, ou,
em casos excecionais, de um país, cuja reputação, determinada qualidade ou outra característica
possam ser atribuídas a essa origem geográfica, sendo produzido, elaborado ou transformado
na zona geográfica delimitada.

2.3.1. Diferença entre denominação de origem e as indicações geográficas


A diferença entre a denominação de origem e as indicações geográficas é que na
denominação de origem as qualidades do produto devem-se essencialmente ao meio
geográfico, no segundo caso o produto pode ser produzido com igual qualidade noutras zonas
geográficas, mas deve a sua fama a essa zona.

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