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O milagre

Depois do "dizer", contido nas parábolas, vamos consi­


derar o "fazer" de Jesus no seu aspecto mais específico. Na
�.
verdade, tudo é divino, significativo e salvífico nele: o batis­
mo, o contato com o povo, o chamado dos apóstolos, o loco­
.!
mover-se de um lugar para outro. Aqui pretendemos ocupar­
nos com esse seu agir que revela uma particular presença e
um poder de Deus, que maravilha e suscita admiração, que
tem uma eficácia extraordinária, confirma as afirmações so­
bre o messianismo, que vem a ser superior às capacidades
humanas. Isto é, consideraremos o que geralmente é chama­
do "milagre". Começaremos pelo conhecimento dos textos.

TESTEMUNHO EVANGÉLICO

O fato de haver referência às afirmações evangélicas


possibilita superar duas abordagens opostas dos homens de
hoje a respeito do milagre. Alguns, na realidade, desvalori­
zam-no a ponto de considerá-lo inexistente, quase como um
resíduo da credulidade de antigamente, incapaz, em todo caso,
de resistir a uma crítica séria, científica; outros o buscam avi­
damente, chegando ao ponto de enxergá-lo mesmo onde ele
não existe, tomando-se parecidos com aqueles judeus à pro­
cura de milagres (cf. 1 Cor 1,22), repreendidos por Jesus

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(cf. Mt 16,1-4). A raiz dessas duas atitudes errôneas é a mes­ pasmo e de afastar-se da fé, especificamente na tribulação
ma, quer dizer, a consideração do milagre apenas em relação dos últimos tempos (Mt 24,24). Contra essa mentalidade co-
com o desafio que ele lança às leis naturais. Analisemos a loca-se Jesus, que remete ao único sinal válido para a salva-
terminologia que sempre constitui um bom ponto de partida. ção, ou seja, para o mistério da sua morte. "Alguns escribas e
fariseus o interrogam: 'Mestre, gostaríamos de ver um sinal
teu'. ��l�_ re�pp!!_��: Uma geração perversa e a�últera espera
Vocabulário e diversidade de milagres um sinal! Mas nenhum sinal lhes será dado, senão o sinal do

______ __.Q_,s...__.quatro-1ermos_mais_usados_mos_tr:amjá a_JLrincígio __ _


profeta Jonas"' (Mt 12,38-39). Em situações diferentes, ,

quanta riqueza e quanta diversidade de sentido estão conti­ expulsar demôruos, ficar nnune da p1cadaoe serpentes e do ------ - ---- :

das em um só vocábulo de nossa língua: veneno, realizar curas, servem de ajuda para a pregação dos
apóstolos (Me 16,17-.20) e representam uma continuidade da
- "poder" (dynamis). Indica a força de origem divina
ação de Jesus sobre o vento e sobre o mar, capaz de repetir os
que opera em Jesus, nos apóstolos e nos discípulos. Está
acontecimentos do Êxodo (Me 4,35-41; cf. Ex 14,ls);
registrado doze vezes em Mateus, dez em Marcos e quize
em Lucas; a ação de Jesus destina-se à conversão cuja falta é - "prodígios" (térata). Usado juntamente com sinal,
fonte de responsabilidade (Mt 11,20-23), além da increduli­ conserva o sentido negativo deste último, isto é, indica ações
dade (Mt 13,54.58; 14,2) que, de certo modo, bloqueia o espetaculares e perturbadoras, destinadas a enganar por par­
sentido do agir de Jesus. O poder divino que atua nele ante­ te dos falsos profetas. O termo está presente em Mateus 24,24
cipa os efeitos previstos à sua volta (24,29-30; 26,64), cura a e em Marcos 13,22;
mulher acometida de hemorragia (Me 5,30), expulsa os de­ -"obra" (érgon). Indica a ação benevolente de Jesus
mônios (Me 9,39), age desde o início, mesmo em relação ao
para com os cegos, os coxos, os leprosos, os surdos, os mor­
Batista (Lc 1, 17.35), no primeiro apostolado na Galiléia
tos, cuja reintegração na plenitude de vida é prova de
(4,14), na entrada solene em Jerusalém (19,37);
messianidade (Mt 11,5) e considerada como tal após a Pás­
- "sinal" (semefon). Está presente treze vezes em coa (Lc 24,19). Uma só vez as ações de Jesus são chamadas
Mateus, sete em Marcos e onze em Lucas.1 Em continuidade "maravilhas" (thaumásia: Mt 21,15) e "prodígios" (parádo­
ao vocábulo veterotestamentário 'ôt, tem na maior patte das xa: Lc 5,26), expressão que põe em evidência as reações dos
vezes um significado negativo. Muitas vezes diz respeito a presentes, tomados pelo espanto, pela admiração, pelo ma-
ações prodigiosas e sensacionais almejadas pela curiosidade, . ravilhar-se diante de um acontecimento inesperado.
como em Herodes (Lc 23,8). Indica gestos capazes de deixar
Os sinóticos têm em comum cerca de quinze mila­
gres narrados com pormenores, além dos sintetizados

1 É o termo próprio de João, que o emprega dezessete vezes com significados diversos. (Mt 8, 16; 12,15-16; 14,34-36). As narrativas pertencem em

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- - - i: --· - -·- ---·--- ---


grande parte à tradição tríplice2 e em menor medida à du­ diabo que alienou e submeteu a pessoa, muitas vezes inca­
pla3 e à tradição simples.4 paz de decidir: está em relação direta com o reino de cuja
vinda é sinal certo.

Classificação dos milagres


As curas, de algum modo, estão condicionadas à fé
do doente, chamado a colaborar para a salvação mediante
Por muito tempo prevaleceu a divisão em milagres re­ a conversão. Entre elas, algumas se distinguem por um in­
lacionados com o homem (curas, exorcismos, ressurreição) flamado contraste com os adversários, diante dos quais Je­
e milagres relacionados com a natureza (ação sobre o mar, o sus quer revelar e legitimar o próprio poder. Assim aconte­
vento, o pão). Considerando-se que cada acontecimento de ce na cura do leproso (Me 4,40-45), do homem da mão
Jesus, afinal, sempre diz respeito ao homem, parece mais seca (Mt 12,10-14), do hidrópico curado em dia de sábado
lógica uma divisão com base nos motivos que levam o Se­ (Lc 14,1-6).
nhor a agir e à relação que se estabelece entre Jesus e a pes­
As intervenções gratuitas como o fato de ver-se livre
soa beneficiada. Essa perspectiva traz uma dupla vantagem.
da fome (Me 6,34-44), do insucesso no próprio trabalho (Lc
Deixa claro o aspecto subjetivo e salvífico do gesto e enqua­
5,4-11), do medo de _afundar-se no lago (Me 5,35-41), re­
dra em uma nova luz a dimensão prodigiosa até aqui muitas
vestem-se também de um caráter eclesial, revelando Jesus
vezes absolutizada.
protetor da sua comunidade.
Os exorcismos nem sempre distinguíveis de uma do­
Os ressuscitamentos, sinais fortes do tempo messiânico
ença, antigamente considerada como causada pelo demô­
(cf. Mt 11,5; Lc 7,22), realizados em pessoas que cheg:iram
nio, caracterizam-se por um confronto direto entre Jesus e o
a um estado irreversível, revelam Jesus Senhor da vida e
antecipam os acontecimentos futuros.

Ainda que parecidas na sua concepção, as narrações


2 O leproso (Mt 8,1-4), a sogra de Simão (8,14s), a tempestade amainada(8,18.23.27). de milagres em Mateus exprimem prevalentemente a mise­
os endemoninhados de Gerasa (8,28-34), o paralítico (9,1-8), a filha de Jairo e a mu­
lher que sofria de hemorragia (9,18-26), o homem da mão seca (12,9-14), a primeira ricórdia do Pai que vai ao encontro dos enfermos e pecado­
multiplicação dos pães (14,13-21), a cura do epilético (17,14-21), os cegos de Jericó
res por intermédio do seu Servo, que toma sobre si as enfer­
(20,29-34).
midades humanas; em Marcos as narrações acentuam a di­
3 Três milagres são comuns a Mateus e Marcos: Jesus que anda sobre as águas (Mt
14,22-33 par.), a segunda multiplicação dos pães (15,32-39) e a figueira estéril(21,18- mensão do poder presente no Filho de Deus; em Lucas reve­
22). Dois são comuns a Mateus e Lucas: o filho do centurião (Mt 8,5-13 par) e a cura
lam a salvação trazida pelo profeta messiânico. Em cada
do endemoninhado na sinagoga (Me 1,23-28 par.)(cf. Martini, "Introduzione generale
ai vangeli sinottici", cit., v. VI, pp. 60-65). milagre é possível vislumbrar uma tríplice perspectiva e fi­
4 O episódio dos dois cegos, por exemplo, encontra-se apenas em Mateus (9,27-31). Já nalidade em relação a Jesus, à salvação do homem, e em
o do surdo-mudo somente em Marcos(7,31-37; cf. Mt 15,29-31) e o do filho da viúva
de Naim que se encontra apenas em Lucas (7,11-17).
relação ao fato acontecido.

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TRÍPLICE PERSPECTIVA Perspectiva cristológica

Por séculos considerou-se o milagre como uma rea­ É fundamental considerar as dezenove narrativas
lidade que subsiste por si, como um objeto disponível para miraculosas em Mateus, as dezoito em Marcos5 e as 29 em
uma finalidade jurídica, isto é, para demonstrar que a reli­ Lucas como uma comunicação do "mundo" sobrenatural do
gião cristã vem de Deus. A análise do fato em si, prescin­ qual emanam efeitos extraordinários nas pessoas e no cos­
dindo-da sua origem e-dos-objetivos-que constituem uma -mo-. -o- nomem bíblico está aberto pata o-diãlogõ--entre o
parte sua que é essencial, corre o perigo de identificar o mundo e Deus, não considerado um intruso toda vez que
-
--- milagre-Gom-a-obra-de-um-mago-00-de;-um-eonhecedor-dos_ ----eeiàe--fazer-se-presen te;--Ainda-que -di- -st-intas,a-ordem-nattt--; - -- - -- -
-

segredos científicos. Na realidade, assim aconteceu quan­ ral e a sobrenatural podem encontrar-se. ''A totalidade do
do os gestos de Jesus foram comparados aos prodígios atri­ real não é unidimensional, ou seja, reduzida ao mundo ma-
buídos a Apolônio de Tiana. O milagre não é apenas e prin­ terial e ao inflexível conjunto de leis. A totalidade do real
cipalmente um acontecimento sensível, uma "exceção" ou assemelha-se, antes, a uma ordem piramidal, e nenhuma parte
"uma infração" às leis da natureza. Assim concebido, ele dela tem sua autonomia completa, mas todas fazem parte de
faz aparecer adversários irredutíveis e defensores tenazes. um todo orgânico, orientado para um vértice que transcende
Os primeiros negam a existência do milagre, visto que con­ as possibilidades de ação conaturais a cada uma. Estamos
sideram o mundo como realidade fechada a qualquer in­ diante de uma hierarquia de ordens, umas sujeitas às outras:
fluência do exterior, do que vem do alto, guiado por rigo­ a ordem inorgânica, submissa ao determinismo, a ordem
rosas leis que não admitem exceções como, por exemplo, orgânica com o seu finalismo, a ordem do pensamento e da
que o fogo não queime ou que um morto ressuscite. Os arte com a sua criatividade, a ordem da vida religiosa e mo-
defensores reduzem o milagre a um fato prodigioso supe­ ral com a sua liberdade. Nessa hierarquia, cada ordem infe-
rior às forças da natureza. Os dois grupos, quase como se rior está ordenada à ordem superior e está integrada na or-
fossem dois muros contrapostos, metem-se num beco sem dem total. O universo infra-humano está ordenado ao ho­
saída, partindo da mesma premissa, quer dizer, do milagre mem e este, por sua vez, está aberto à ação transcendente de
como infração do determinismo tisico. A necessidade de Deus."6 Jesus, em quem habita a plenitude da divindade,
avançar para além dessa visão não parte da negação do
extraordinário, do prodigioso, do impossível para as capa­
s Em Marcos os milagres representam um terço do evangelho. Para quem quiser ser
cidades humanas, que está presente no milagre, mas do mais preciso, são 31 % do texto, ou seja, 209 versículos sobre 666, todos inseridos

descuido de outros fatores, como se a pessoa fosse julgada nos dez primeiros capítulos, nos quais eles constituem 47%.

6 R. Latourelle & R. Fisichella, "Miracolo", em Dizionario di teologiafondamentale,


apenas pela aparência.
cit .• p. 751. Para uma abordagem completa, cf.: LATOURELLE, R. Miracoli di Gesu e
teologia dei miracolo. Assisi, Cittadella, 1987. Para uma visão mais bíbJica, cf.: F.
Uricchio, "Miracolo", em Rossano, Ravasi & Girlanda, Nuovo Dizionario di Teolo­
gia Bíblica, cit., pp. 954-978.

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\,\
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deixa transparecer no milagre o poder e a superioridade do nando-se capaz de estabelecer relações positivas com os

sobrenatural presente nele e capaz de causar modificações outros. E é ainda no exorcismo que se manifesta a presença

no humano. Os milagres projetam luz sobre a pessoa de Je­ do reino de Deus na pessoa de Jesus. "Se é através do Espí­

sus, dão a certeza de que as suas proclamações quanto ao ser rito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de

Messias, Servo, Senhor, Filho de Deus, recebem a confir­ Deus chegou para vocês" (Mt 12,28). O milagre, portanto,

mação do Pai. O divino inserido no humano mediante o ges­ depois de ter restituído o homem a si mesmo, to�a-o abert�
para um mundo superior, para a vida de Deus cuja comuni­
to de Jesus converte o homem, o introduz no reino, antecipa
cação constitui o objetivo primeiro da missão de Jesus.
aqueles novos céus e aquela nova terra aguardados para o
fim dos tempos, quando a criatura ficará "liberta da escravi­ Um milagre que não visasse à salvação fisica e espiri­
dão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos fi­ tual da pessoa humana seria destituído de sentido. Por isso,
lhos de Deus" (Rm 8,21). O milagre, enquanto revela algo ele não acontece na presença de Satanás que tenta Jesus pe­
do mundo de Jesus, é convite para, por meio da fé, aceitar a dindo dele um gesto espetacular (Mt 4,2-7); nem diante dos
totalidade deste mundo e, enquanto toma evidente a liberta­ fariseus e dos saduceus, mal intencionados (16,1-4); nem
ção física, leva a desejar e a trabalhar pela libertação inte­ mesmo diante dos concidadãos invejosos por causa das ma­
rior, alcançada mediante a adesão à palavra. ravilhas realizadas em outros lugares (Lc 4,23) ou na pre­
sença de Herodes, levado apenas pela curiosidade (Lc 23,8).
A salvação presente no milagre é uma libertação de situa­
Perspectiva soteriológica ções de escravidão, em vista de uma plena imersão no mun­
do de Deus. A doença, muitas vezes, faz-nos sentir inúteis,
A intervenção extraordinária de Jesus visa, antes de
quase um peso para os outros. Assim, a sogra de Simão, li­
tudo, reconstituir o homem na sua integridade física e psí­
vre da febre, tomou-se capaz de "servir" (Lc 4,39), e resta­
quica, a tomá-lo livre, não mais sujeito às limitações impos­
beleceu um contato dinâmico
. com os outros. Pedro, mais
tas pelas doenças ou vencido pelo medo dos fenômenos na­
tarde depois da pesca milagrosa em que ele se enxerga como
turais ou da morte. Isso se verifica de modo particular nas
curas especiais chamadas exorcismos, ou seja, libertações
d
peca or e a Jesus como Senhor (Lc 5,8), recebe o pedido
para que comunique aos homens a experiência que o trans­
do poder diabólico, nas quais é Jesus quem ordena, dirigin­
formou, "pescando-os" para o evangelho. A dependência da
do-se mais ao demônio do que ao homem. Assim, por exem-
enfermidade é, por vezes, sinal de uma escravidão mais te­
1 plo, no endemoninhado de Gerasa, especialmente na narra­
mível, ou seja, da sujeição ao diabo, como se toma evidente
ção de Lucas (8,26-39), em que um homem infeliz, solitá­
no caso da mulher encurvada "que Satanás amarrou durante
rio, sem dignidade, que "há muito tempo não se vestia, nem
dezoito anos" (Lc 13,16) e no caso de outras possessões dia­
morava em casa[...] muitas vezes preso com correntes e al­
bólicas mais sérias, das quais Jesus, que é mais forte, liber-
gemas", de repente "tinha sido salvo" completamente, tor-

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tou muitas pessoas. Jesus livra da morte e do medo, como um único módulo narrativo, todos têm o mesmo gênero lite­
no caso da viúva de Naim, à qual ele restitui o filho (Lc rário e, além disso, incluem os seguintes elementos:
7,11-17); liberta do farisaísmo que colocou a Lei acima do
•apresentação da situação como necessidade muito
bem do homem como, por exemplo, na cura do hidrópico
séria;
em dia de sábado (Lc 14,3); ele liberta do particularismo
•intervenção libertadora de Jesus mediante as pala­
judeu, como _resulta_d0_ elogio do lep_rQs_g__�élffiaritan_Q qµe, -vras ou o contato tisico;---- - - -

uma vez curado, volta para agradecer a Jesus (Lc 17,15-19).


•prova dada pelos presentes ou pelos gestos do bene-
------Para-Jesus- ,sensível-a-todo-tipo-de-sof-r-imento--huma-�---­ --------H.Giado;
no, é importante livrar a pessoa de todo mal tisico, porém é •reação de admiração e de estupefação por parte da
mais importante conduzir à posse de bens maiores. Por isso, multidão.
toda libertação tem um endereçamento certo: o reino de Deus.
A historicidade do milagre é parte de um problema
O milagre já estabelece o início do reino, apontado como
mais amplo, ou seja, o da historicidade dos evangelhos. Os
âmbito de paz, de liberdade, de harmonia e comunhão.
mesmos critérios encontrados para afirmar que os evange­
Se o milagre revela e transmite o mundo de Jesus, en­ lhos são documentos históricos (tratamos disso amplamente
tão, para que ele se realize, é necessário que haja uma rela­ na primeira parte) constituem uma base sólida para uma res­
ção pessoal entre Jesus e o homem. Assim se explica como posta positiva quanto à realidade do milagre. O modo de
Jesus se recusa a operar milagres na presença de pessoas falar e de agir de Jesus estão interligados de tal modo que
que se fecham ao reino. A união com Jesus dá-se na fé, que não é possível separá-los. A eliminação de uma parte inclui
é a consciência que se tem da própria incapacidade de salva­ logicamente a supressão da outra.
ção, abertura para a ação libertadora oferecida ao homem
De imenso valor são duas expressões que, provavel­
por Deus em Cristo, confiança na ação de Jesus e disponibi­
mente, remontam a Jesus, uma vez que vinculam estreita­
lidade para acolher as suas exigências.
mente os sinais com o apelo à conversão e com a presença
do Messias. "Se em Tiro e Sidônia tivessem sido realiza­
Perspectiva histórica
dos os milagres que foram feitos no meio de vocês [isto é,
nas cidades de Corazin e Betsaida], há muito tempo elas
As duas primeiras perspectivas e finalidades mantêm­ teriam feito penitência" (Mt 11,21). "Os cegos recuperam
se apenas quando o fato acontece realmente. Em que argu­ a visão, os paralíticos andam, os leprosos são purificados,
mentos se baseia a historicidade dos milagres? Trata-se de os surdos ouvem, os mortos ressuscitam" (Mt 11,5). É a
historicidade quanto à sua essência, não quanto a particula­ prova que Jesus oferece a João Batista de que ele é o Mes­
ridades. Todos os episódios, de fato, são transmitidos com sias. Sem tais milagres dificilmente se explicam o sucesso

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- T • 1� --- - - - O · -

'
�e Jesus no meio do povo, a adesão dos discípulos, a hosti­ A Boa Notícia, tanto para Jesus como para os apóstolos, com­
hd �de dos chefes dos judeus. É sintomático que os adver­ preende o anúncio e a ação salvífica. "Jesus percorria todas
san, �s de Jesus não cheguem a contestar os milagres, e sim
as cidades e povoados, ensinando em suas sinagogas, pre­
ª ongem deles, buscando neles uma ligação com o demô­ gando a Boa Notícia do Reino, e curando todo tipo de doen­
.
mo, com Belzebu (Mt 12,24-27). As narrativas dos mila­ ça e enfermidade" (Mt 9,35). "Vão pelo mundo inteiro e
g�es, enfim, dos quais muitos são relatados por tradições anunciem a Boa Notícia para toda a humanidade [...] estes
div�rsas (Q, tradição tríplice, João, síntese dos Atos dos serão os sinais que acompanharão aqueles que acreditarem
Apostolas), concordam quanto à essência e diferem ape­ [.. ]" (Me 16,15.17). Ambas as coisas estão inseridas na his­
.

nas quanto aos pormenores. tória bíblica anterior, em que Deus havia falado e simultane­
amente operado prodígios em favor dos pais.
Milagre e revelação Os dois termos se atraem mutuamente, principalmen­
te por funções complementares. O gesto prodigioso nem sem­
. � ��lice finalidade prevista (cristológica, soterioló- pre é interpretado em seu significado exato pelos presentes.
g1ca, _h1stonca) pode ser aprofundada pela consideração da Para estes ele encerra algo ambíguo. Alguns, com efeito,
relaçao entre o gesto prodigioso de Jesus e outras verdades deturpam-no a ponto de ver nele uma ação diabólica ou to­
reveladas. mam-no como pretexto para difamar, hostilizar e, por fim,
planejar a morte de Jesus; outros não o entendem, como acon­
Milagre e palavra tece na multiplicação dos pães; o próprio Batista pede expli­
cações. Outros, por fim, o procuram, levados pela curiosi­
Com a palavra existe uma comunhão de origem e de dade. É, então, a palavra que tira qualquer ambigüidade,
.
efe�tos._Os sinóticos não se limitam a afirmar uma genérica explicando as verdadeiras intenções de Jesus. Além disso,
denvaçao da p�e de J�sus. Eles deixam muito claro que no início, o anúncio do mestre tem necessidade de um sus­
quem opera o mllagre e o poder de Jesus (exousía), a sua tentáculo digno de fé, de uma prova que o faça ver já par­
f�rça (dtnamis), º espírito (pneúma) que ele possui em ple­ cialmente realizado. Os dois são necessários e, muitas ve­
.
mtude. Jesus ensmava como quem tem autoridade[...] Ele zes, é a palavra que aflora. Ministério permanente de Jesus
manda at� nos espí�tos maus e eles lhe obedecem!" (Me em comparação com a ocasionalidade do milagre, a palavra
1 22 27� . ,Colocarei sobre ele o meu Espírito, e ele anun­ tem maior eficácia ao transmitir para o homem o ato de fé,
? ;
ciara o Julgamento às nações [...] é através do Espírito de tem um conteúdo revelador mais forte, é necessária no caso
D �us que �u expulso os demônios" (Mt 12,18.28). As duas do milagre para uma interpretação correta deste. E mais, o
c01s�s, mdagr � e palavra, produzem estupor, admiração, milagre transforma-se em anúncio do Cristo glorioso por
.
confiança, reJeiçãó em relação à disposição dos ouvintes. parte dos primeiros missionários que, assim, fazem dele

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237
palavra, ensinamento e evangelho de Cristo e de sua obra. Milagre e ressurreição
Milagre e palavra, intimamente relacionados, completam­
Jesus estabelece uma relação entre "milagres" e "o
se mutuamente (cf. Dei verbum, n. 2).
milagre", isto é, a ressurreição. "Eu expulso o demônio, e
faço curas hoje e amanhã; e no terceiro dia terminarei o meu
trabalho. Entretanto, preciso caminhar hoje, amanhã e de-
Milagre e fé - pois-de amanhã, porque não convém- que um profeta morra

O milagre, como já foi dito, acontece quando está pre- fora de Jerusalém" (Lc 13,32-33). A correlação é dupla. O
- milagre,_despertando.hostilidade e incompreensão_nas_p_es-_
- n
----se _ _a-fé�Sem ela Jesus nao faz-etrranar-o-po-rterque-está-- --
- te ______

nele. Isso acontece entre seus conterrâneos, em Nazaré, onde, soas mal dispostas, apressa a condenação de Jesus à mor-

rejeitado, "não pôde fazer milagres [...] e ficou admirado te: não haverá outro sinal senão aquele de Jonas! Por outro
lado, é só a experiência da ressurreição que toma possível
com a falta de fé deles" (Me 6,5-6). Estando presente a fé,
ainda que se trate de um pagão como o oficial romano, o uma compreensão mais profunda dos gestos pré-pascais.
Assim, à luz da ressurreição, entrevê-se o anúncio da eu-
milagre acontece: '"
[ ...] nem mesmo em Israel encontrei ta­
caristia na multiplicação dos pães e na pesca milagrosa a
manha fé!' Os mensageiros voltaram para a casa do oficial e
missão dos apóstolos. Depois da Páscoa o poder de Jesus
encontraram o empregado em perfeita saúde" (Lc 7,9-1O).
se estende aos apóstolos que, repletos do Espírito, ilustram
A fé é fundamentalmente um ato de confiança em Jesus, em
a figura do mestre, recorrendo à força das obras e das pala-
seu poder e em sua pessoa. Por sua própria natureza dinâmi-
vras (dimensão "cristológica"), e eles mesmos se tornam
ca e criativa, ela leva à conversão, a ·uma adesão à pessoa de
continuadores delas. Dessas referências decorre a necessi-
Jesus e ao seu programa que chega ao seguimento, como no
dade de não descuidar a referência à ressurreição, conside-
caso do cego de Jericó
(Me 10,52), e ao apostolado, como
rada juntamente com a morte.
no endemoninhado de Gerasa (Me 5,18-20). A fé não é uma
atitude puramente interior, mas se manifesta por meio da O que é, portanto, o milagre? Os sinóticos, em har­
oração, do entusiasmo, do louvor. A fé existente antes do monia com o resto da Bíblia, deixam claros três aspectos do
milagre, ainda que pequenina, pode ser ajudada por ele e até milagre. Ele é prodígio sagrado e desperta estupefação, ad­
corroborada. Embora necessária, a fé não cria o milagre, que miração, maravilha (aspecto psicológico); manifesta um ex­
emana do poder real de Jesus. Na origem existem fatos real­ traordinário poder divino, superior às capacidades humanas,
mente extraodinários e prodigiosos que facilitam o conheci­ continuando e superando a força presente na criação e em
mento e a adesão a Jesus mediante a fé. Esta é exigida antes momentos importantes da história salvífica (aspecto
do milagre e toma-se fortalecida depois. Existe certa inter­ ontológico); gradativamente descoberto pelos apóstolos, es­
dependência entre fé e milagre, mas o primado cronológico pecialmente após a Páscoa, tem como objetivo introduzir a
e de valor diz respeito à ação de Jesus. pessoa humana no mistério da vida, fazê-la participar nas

238 239

'"U �

....llill........................ ___________
• 1

riquezas insondáveis reservadas a quem se deixa guiar por


�eus (aspe�to semiológico). Os vinte séculos de vida da Igre­ 11
Jª ressaltarao ora um ora outro aspecto e ensinarão a nunca
e�cluir q��lquer um deles. O milagre é, portanto, "um pro­ A paixão e a morte
.
d1g10 rehg1os ? que na ordem cósmica (homem e universo)
expressa uma mtervenção especial e gratuita do Deus de força

4 .
� �e amor, que dirige aos homens um sinal da presença
mmterrupta da sua palavra e salvação no mundo".1

O mistério pascal compreende morte e ressurreição


de Jesus em uma unidade indissociável: a morte sem a res­
surreição seria uma derrota e tomaria inútil a nossa fé. É,
portanto, para compreender melhor o seu significado que
consideramos separadamente paixão-morte e ressurreição,
que se atraem e se interpenetram. Não basta conhecer bem
os fatos, questionar sobre o modo e a ordem em que se de­
senrolam. É primordial compreender o seu sentido. Esse sen­
tido é quase inesgotável, tratando-se de gestos-comporta­
mentos do homem-Deus, Jesus Cristo, e que justifica a exis­
tência de três narrativas, além daquela de João, nas quais
assume um significado diferente mediante o conceito de
"glorificação".

Os evangelistas estão de acordo em mostrar como a


paixão se harmoniza com a Escritura, especialmente com os
Cânticos do Servo e com o salmo 22 (razão histórica), ao
manifestar a divindade de Cristo que não permanece no se­
pulcro (razão teológica), ao acusar mais os judeus que os
romanos, ao revelar a fraqueza dos discípulos, ainda que tra­
tada com benevolência (razão apologética). Cada texto in­
clui, além do mais, os principais fatos da paixão nas horas
7 L �tourelle & Fisichella, "Miracolo". cit., em Dizionario di Teologia Fondamentale' de oração da Igreja, tomando-se difícil, senão impossível,
c1t., p. 762.

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