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CONTRATOS, EXECUÇÃO CONTRATUAL E

RESPONSABILIDADE
MÓDULO: Introdução ao Direito Negocial
TEMA 01 – Teoria geral do direito civil:
Introdução ao Direito Civil Constitucional

1. INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL

O Código Civil Brasileiro foi constituído pela Lei 10.406, de 10 de janeiro de


2002, passando a vigorar após um ano de vacatio legis, para a doutrina majoritária,
na data de 11 de janeiro de 2003. O atual Código Civil teve uma extensa tramitação
no Congresso Nacional, com seu germe, no ano de 1975, momento em que o então
Presidente da República, Ernesto Geisel, entregou para análise da Câmara dos
Deputados o Projeto de Lei 634-D, pautado no trabalho desenvolvido por uma
comissão de sete membros, sob a coordenação de Miguel Reale. O projeto legislativo
germinou durante o regime de ditadura civil-militar.
A estrutura primária do projeto legislativo que gerou a nova codificação foi
elaborada com uma Parte Geral e cinco livros na Parte Especial, tendo sido invitado
para cada uma delas um jurista de renome e notório saber jurídico, todos com ideias
gerais similares sobre as diretrizes a serem desenvolvidas. Destaca-se os convocados
para a tarefa:
● José Carlos Moreira Alves, do Estado de São Paulo – Relator da Parte
Geral;
● Agostinho Alvim, do Estado de São Paulo – Relator do livro do Direito
das Obrigações;
● Silvio Marcondes, do Estado de São Paulo – Relator do livro de Direito
de Empresa;
● Erbert Chamoun, do Estado do Rio de Janeiro – Responsável pelo livro
de Direito das Coisas;
● Clóvis do Couto e Silva, do Estado do Rio Grande do Sul – Responsável
pelo livro de Direito de Família;
● Torquato Castro, do Estado de Pernambuco – Relator do livro de Direito
das Sucessões.
A escolha foi englobante, posto que foram convocados juristas do Sul, do
Nordeste, do Centro do país, de São Paulo e Rio de Janeiro, reunindo professores,
advogados e juízes.
Verifica-se na exposição de motivos do Código Civil de 2002, Miguel Reale
explica quais foram as diretrizes básicas empregadas pela Comissão Revisora do
Código, veja-se:

a) Preservação do Código Civil anterior sempre que fosse


possível, pela excelência técnica do seu texto e diante da existência
de um posicionamento doutrinário e jurisprudencial já
consubstanciado sobre os temas nele constantes.
b) Alteração principiológica do Direito Privado, em relação aos
ditames básicos que constavam na codificação anterior, buscando a
nova codificação valorizar a eticidade, a socialidade e a operabilidade,
que serão abordadas oportunamente.
c) Aproveitamento dos estudos anteriores em que houve tentativas
de reforma da lei civil, trabalhos esses que foram elaborados primeiro
por Hahneman Guimarães, Orozimbo Nonato e Philadelpho de
Azevedo, com o anteprojeto do Código das Obrigações; e, depois, por
Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira, com a proposta de
elaboração separada de um Código Civil e de um Código das
Obrigações, contando com a colaboração, neste caso, de Silvio
Marcondes, Theóphilo de Azevedo Santos e Nehemias Gueiros.
d) Firmar a orientação de somente inserir no Código Civil matéria
já consolidada ou com relevante grau de experiência crítica,
transferindo-se para a legislação especial questões ainda em
processo de estudo, ou que, por sua natureza complexa, envolvem
problemas e soluções que extrapolam a codificação privada, caso da
bioética, do biodireito e do direito eletrônico ou digital. Aliás, quanto à
bioética e ao biodireito, prevê o Enunciado n. 2 do Conselho da Justiça
Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil que “sem prejuízo dos
direitos da personalidade nele assegurados, o art. 2.º do Código Civil
não é sede adequada para questões emergentes da reprogenética
humana, que deve ser objeto de um estatuto próprio”. Nesse sentido,
entrou em vigor em nosso país, em março de 2005, a Lei de
Biossegurança (Lei 11.105/2005), um dos satélites na órbita do
planeta Código Civil. O STF discutiu a constitucionalidade do seu art.
5.º, que prevê a possibilidade de utilização de células embrionárias
para fins terapêuticos (ADIn 3.510/DF). Acabou concluindo por sua
constitucionalidade, felizmente.
e) Dar nova estrutura ao Código Civil, mantendo-se a Parte Geral
– conquista preciosa do direito brasileiro, desde Teixeira de Freitas –,
mas com nova organização da matéria, a exemplo das recentes
codificações.
f) Não realizar, propriamente, a unificação de todo o Direito
Privado, mas sim do Direito das Obrigações – de resto já é uma
realidade em nosso país – em virtude do obsoletismo do Código
Comercial de 1850 – com a consequente inclusão de mais um livro na
Parte Especial, que se denominou Direito de Empresa. Nesse ponto,
o Código Civil Brasileiro de 2002 seguiu o modelo do Código Italiano
de 1942.
g) Valorizar um sistema baseado em cláusulas gerais, que dão
certa margem de interpretação ao julgador. Essa pode ser tida como
a principal diferença de filosofia entre o Código Civil de 2002 e seu
antecessor (...) 1.

O Código Civil de 2002 deu ênfase à questão principiológica. Nesse sentido,


Miguel Reale corrobora constantemente os regramentos básicos que são os pilares
do atual Código:
a) eticidade;
b) sociabilidade; e
c) operabilidade.

• Do princípio da eticidade

O princípio da eticidade no Código Civil Brasileiro de 2002, se distancia do


tecnicismo institucional oriundo da experiência do Direito Romano, o atual Código
Civil, busca ao invés de valorizar formalidades, o reconhecimento dos valores éticos
advindos do Direito Privado.
De forma mais cristalina, o princípio da eticidade pode ser verificado a partir
de dispositivos da atual codificação privada. Primeiro, percebe-se a valorização de

1
BRASIL. Novo Código Civil: Exposição de Motivos e Texto Sancionado. 2005. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/70319/743415.pdf?sequence=2&isAllowed=y.
Acesso em: 27 mar. 2023.
condutas éticas e de boa-fé objetiva, ou seja, aquela relacionada a conduta de
lealdade das partes negociais, nos termos do artigo 113, caput, o qual preceitua: “Os
negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de
sua celebração” 2. Trata-se da função interpretativa da boa-fé objetiva.
No mesmo sentido, o artigo 187 do Código Civil determina: “Também comete
ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” 3,
portanto o dispositivo prevê quais as sanções para a pessoa que violar a boa-fé no
exercício de um direito: ao praticar abuso de direito, assemelha-se a ilícito – função
de controle da boa-fé objetiva.
Do mesmo modo, o artigo 422 do Código Civil dispõe: “Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé”4, incentiva a eticidade, dispondo que a boa-fé deve
fazer parte da conclusão e da execução do contrato, trata-se da função de integração
da boa-fé objetiva. Acerca do artigo 113 do Código Civil, o dispositivo recebeu dois
novos parágrafos a partir da Lei da Liberdade Econômica – Lei 13.874/2019.
Importante repisar que o Código de Processo Civil de 2015, buscou prestigiar
a boa-fé, isto é, valorizando, principalmente a boa-fé objetiva, em diversos de seus
comandos. O artigo 5° do Código de Processo Civil de 2015, preceitua: “Aquele que
de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”5.
Na sequência, o artigo 6° do Código de Processo Civil de 2015, prescreve:
“Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em
tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”6. Com efeito, essa colaboração
também é imposta aos julgadores, vedando-se as decisões surpresas, posto que: “O

2 BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 27 mar 2023.

3BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 27 mar 2023.

4 BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 27 mar 2023.


5 BRASIL. Código de Processo Civil. 2015. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 27 mar. 2023.


6 BRASIL. Código de Processo Civil. 2015. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 27 mar. 2023.


juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a
respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda
que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício” 7, nos termos do artigo 10
do Código de Processo Civil de 2015.
Por fim, sem prejuízo de outros artigos, o comando previsto no artigo 489, §3°
do Código de Processo Civil 2015, prevê: “A decisão judicial deve ser interpretada a
partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio
da boa-fé”8, portanto, nota-se que a boa-fé objetiva passa a ser elemento de
interpretação das decisões judiciais de forma geral, o que ocasionou um imenso efeito
na prática cível.

• Do princípio da socialidade

O princípio da socialidade trata-se de uma das grandes pretensões do Código


Civil, uma vez que visa superar o caráter individualista e egoísta que imperava no
Código Civil Brasileiro de 1916, atualmente a Codificação prestigia o coletivo, em
detrimento do individual. Os grandes emblemas do Direito Privado receberam um
sentido social:

 Família;
 Contrato;
 Propriedade;
 Posse;
 Responsabilidade Civil;
 Empresa; e
 Testamento.

7 BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em:


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 27 mar 2023.
8 BRASIL. Código de Processo Civil. 2015. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 27 mar. 2023.
De modo geral, as orientações individualistas que atravessavam o Código
Civil Brasileiro de 1916, regressaram a possuir uma valorização no início do século
XXI, e o que pode ser atestado pela recente legislação que institui a Declaração de
Direitos de Liberdade Econômica – Lei 13.874/2019.
Salienta-se que a função social da propriedade já prescrita na Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 5°, incisos XXII e XXIII, e no seu artigo 170 inciso III,
tendo sido corroborada pelo artigo 1.228, §1° do Código Civil de 2002. Como inovação
de grande repercussão, a função social dos contratos passou a ser prevista em lei,
nos artigos 421 e 2.035, parágrafo único, do Código Civil. Destarte, trata-se de um
princípio contratual de questão de ordem pública, motivo pelo qual o contrato deve
ser, imperiosamente, visto e interpretado conforme o contexto da sociedade.
A própria posse recebe um viés de função social, posto que o Código Civil
prevê a diminuição dos prazos de usucapião imobiliária nos casos de configuração da
posse-trabalho, situação fática em que o possuidor empregou tempo e trabalho na
ocupação de um imóvel. O Código Civil de 2002, valoriza a função social e por tais
razões, a pessoa que realiza o plantio e a colheita.
Tais premissas podem ser verificadas a partir dos artigos 1.238, parágrafo
único e 1242, parágrafo único, do Código Civil de 2002, posto que diminuem os prazos
da usucapião extraordinário e ordinária, para dez e cinco ano, respectivamente,
quando o possuidor tiver realizado no imóvel obras e serviços considerados pelo
julgador de caráter social e economicamente importante.

• Princípio da operabilidade

O princípio da operabilidade, que possui dois significados. Inicialmente, há


sentido de simplicidade, posto que o Código Civil de 2002 segue a propensão de
descomplexificar a interpretação e a aplicação dos institutos nele previstos.
Exemplifica-se através da distinção que atualmente verifica-se em relação aos
institutos da prescrição e da decadência, matéria que anteriormente aventou grandes
dúvidas pela legislação pretérita, que era significativamente confusa. Por outro lado,
o princípio da operabilidade tem o sentido de efetividade e/ou concretude do Direito
Civil, o que foi continuado pela adoção da sistemática de cláusulas gerais.
As cláusulas gerais podem ser conceituadas também como janelas abertas
deixadas pelo legislador visando o seu preenchimento pelo aplicador do Direito, em
cada situação em concreto. Veja-se os exemplos de cláusulas gerais constantes do
Código Civil de 2002:

 Função social do contrato – artigo 421 do Código Civil;


 Função social da propriedade – artigo 1.228, §1° do Código Civil;
 Boa-fé – artigos 113, 187 e 422 do Código Civil;
 Bons costumes – artigos 13 e 187 do Código Civil;
 Atividade de risco – artigo 927, parágrafo único, do Código Civil.

As cláusulas gerais possuem um sentido dinâmico, o que as distingue dos


conceitos legais indeterminados, criações estáticas que se constituem da lei sem
definição. Com isso, é possível afirmar que quando o aplicador/operador do direito
efetua a tarefa de dar sentido a um conceito legal indeterminado, tornar-se-á ele a
constituir uma cláusula geral.
Destaca-se as lições da Professora Raquel de Moraes Laudanna:

Vale dizer, as características das cláusulas gerais são definidas


porque destoam do modelo de legislar da casuística, em que se
especificam todos os elementos de incidência e, portanto, limita-se o
trabalho do intérprete à subsunção do caso concreto em que se
depara, pois restam fixados os critérios de sua aplicação, deixando a
ele pouco espaço para que determine o sentido e o alcance da norma.
Contudo, a mencionada vagueza ou abertura, ínsita à noção da
cláusula geral, não significa (é bom que se esclareça) que haja um
defeito de linguagem ou alguma obscuridade, como pode parecer,
num primeiro momento. Ao contrário, tal vagueza é considerada como
socialmente típica, intencional, de programática, justamente para
possibilitar o amoldamento da fattispecie normativa a novas situações,
as quais, no mais das vezes, sequer podem ser
previstas quando da criação daquele texto normativo pelo legislador 9.

9 LAUDANNA, Raquel de Moraes. CLÁUSULAS GERAIS E CONCEITOS VAGOS NO DIREITO


CONTRATUAL: IMPLICAÇÕES COM A UTILIZAÇÃO DE VALORES CONSTITUCIONAIS. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 28, n. 1, 2012.
Salienta-se que inúmeras das cláusulas gerais são princípios, mas não
necessariamente. Exemplificando, a função social do contrato trata-se de princípio
contratual; em sentido contrário da cláusula geral de atividade de risco, que não é
princípio da responsabilidade civil.
Pois bem, a eleição da sistemática de cláusulas gerais pelo Código Civil de
2002 tem relação direta com a linha filosófica adotada por Miguel Reale em suas
obras. É cristalino que o jurista concebeu a sua própria teoria do conhecimento e da
essência jurídica, a ontognoseologia jurídica, no qual visa-se a busca pelo papel do
direito nos enfoques subjetivo e objetivo, sustentando-se em duas subteorias: a)
culturalismo jurídico; e b) teoria tridimensional do direito.
O doutrinador Flávio Tartuce sistematiza esses enfoques:

a) Culturalismo Jurídico (plano subjetivo) – inspirado no trabalho de


Carlos Cossio, Reale busca o enfoque jurídico no aspecto subjetivo,
do aplicador do direito. Três palavras orientarão a aplicação e as
decisões a serem tomadas: cultura, experiência e história, que devem
ser entendidas tanto do ponto de vista do julgador como no da
sociedade, ou seja, do meio em que a decisão será prolatada.
(...)
b) Teoria tridimensional do direito (plano objetivo) – para Miguel Reale,
direito é fato, valor e norma. Ensina o Mestre que a sua teoria
tridimensional do direito e do Estado vem sendo concebida desde
1940, distinguindo-se das demais teorias por ser “concreta e
dinâmica”, eis que “fato, valor e norma estão sempre presentes e
correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela
estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como
tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia
ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo de fato e ao jurista
a norma (tridimensionalidade como requisito essencial do direito) 10.

Com efeito, pela conjugação das construções teóricas, no exame dos


institutos jurídicos presentes no Código Civil, inúmeros deles abertos, genéricos e
indeterminados, o jurista e o julgador deverão realizar uma análise profunda dos fatos
que tangenciam a situação, para a partir disso, de acordo com os seus valores e da
sociedade, aplicar a norma de acordo com os seus limites, visando sempre interpretar
de forma sistemática a legislação privada.

10TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 11° ed. Rio de Janeiro: Forense; Método,
2021. p 104.
Portanto, fato, valor e norma serão indispensáveis para direcionar o caminho
a ser seguido para a aplicação do direito no caso concreto. Desse modo, dar-se-á o
preenchimento das cláusulas gerais, das janelas abertas. Através desse processo os
conceitos legais indeterminados recebem determinação jurídica, diante da atuação do
julgador, que deverá estar guiado pela equidade.
Em síntese, a linha filosófica, aberta por excelência, foi introduzida no Código
Civil de 2002. Veja-se o desenho da teoria tridimensional de Miguel Reale:

Fato Valor Norma

O viés de Miguel Reale é de três subsistemas: a) Fato; b) Valor; e c) Norma.


O sistema é aberto e dinâmico, em permanente diálogos e atravessamentos. Com
efeito, o civilista da atual geração, pós-moderno. Logo, se incentiva a ideia de
interação, de visão unitária do sistema, prevalecendo a constatação de que, em
diversas oportunidades, a norma não será suficiente. As cláusulas gerais são abertas
e devem ser analisadas de acordo com cada caso em específico. Frase-símbolo:
direito é fato, valor e norma.

2. DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL

A partir de uma leitura rápida pode parecer irrelevante a discussão da


constitucionalização do Direito Civil, posto que é certo e incontestável que a
Constituição Federal de 1988 é a norma suprema do ordenamento jurídico brasileiro,
por tais razões, devendo-lhe submissão e obediência formal e material, as demais
legislações, sob pena de reconhecimento de inconstitucionalidade, e por
consequência, a remoção do ordenamento jurídico.
A constitucionalização do Direito Civil não significa (simplesmente) o
estabelecimento de critérios externos à atividade privada. A Constituição Federal de
1988 impôs uma releitura dos institutos basilares do Direito Civil, em virtude de tê-los
reformulado internamente, em seu conteúdo.
Em outras palavras, trata-se de uma alteração na estrutura intrínseca dos
institutos e conceitos fundamentais do Direito Civil, determinando a necessária
redefinição de seus contornos, sob o viés das valorações presentes na Constituição
Cidadã.
A existência dos grandes antagonismos dentro do Direito sempre possibilitou
que houvesse uma sistematização do viés da análise do próprio âmbito jurídico,
criado, de modo analítico, como um conjunto de normas. No entanto, frente ao
excesso dessas normas, uma organização teórica do direito que garanta uma
definição geral e lógica dos assuntos jurídicos fica prejudicada de forma significativa,
para não se falar em inviabilizada.
Não se pode olvidar que a distinção entre Direito Público e Direito Privado não
se trata apenas de classificação, ordenação dos critérios de distinção dos tipos
normativos, ou seja, trata-se de um instrumento de sistematização. Os critérios
empregados para que fosse realizada essa distinção baseavam-se na utilidade da
legislação, uma vez que se fosse caso de utilidade pública, tratar-se-ia de uma
legislação de Direito Público, no caso de utilidade particular, seria uma legislação de
Direito Privado.
Esse critério de utilidade estrita prontamente foi contrariado, e chegou-se à
conclusão que, na realidade, o critério para fins de classificação da legislação era
fundado na utilidade preponderante da lei, posto que as utilidades de uma norma não
ficam limitadas a um único interesse, seja do Estado ou do indivíduo, porém acabam
se imbricando, na medida que a norma de uma natureza exerce influência em outra
de natureza distinta.
Em regra, o Direito Público possui como finalidade a ordem e a segurança
geral, na medida em que o Direito Privado é regido pela liberdade e pela igualdade.
Destarte, no Direito Público apenas seria válido aquilo que estiver autorizado pela
norma, enquanto que no Direito Privado tudo aquilo que não está vedado/proibido por
ela seria válido. Contudo essa dicotomia não se trata de uma barreira irremovível e a
sua divisão não é absoluta/plena na práxis dos dias atuais.
O Direito Civil Constitucional está fundado em uma visão unitária do
ordenamento jurídico. Portanto “reconhecendo a existência dos mencionados
universos legislativos setoriais, é de se buscar a unidade do sistema, deslocando para
a tábua axiológica da Constituição da República o ponto de referência antes localizado
no Código Civil” 11.
Com efeito, o Direito Civil Constitucional, como uma mudança de atitude,
significa em contribuições para evolução do pensamento privado. Tal inovação
localiza-se no fato de que se verifica uma inversão da forma de interação entre o
Direito Público e o Direito Privado, interpretando o Código Civil em consonância com
a Constituição Federal, em modificação do que habitualmente se fazia, ou seja,
precisamente o oposto.
Três são os princípios básicos do Direito Civil Constitucional: a) Da dignidade
da pessoa humana; b) Da solidariedade social; e c) Da isonomia.

• Da dignidade da pessoa humana

O primeiro princípio trata-se da dignidade da pessoa humana, previsto no


artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal de 1988, sendo o enaltecimento da pessoa
humana um dos objetivos da República Brasileira. Alguns doutrinadores o denominam
de “superprincípio” ou “princípio dos princípios” como se afirma de modo geral. A
proteção da dignidade humana, a partir de Kant, concebe-se como o principal
fundamento da personalização do Direito Civil, da valorização da pessoa em
detrimento do patrimônio.
A proteção da dignidade da pessoa humana retrata a tutela da liberdade e dos
direitos subjetivos de ordem do Direito Privado. Conforme as lições do jurista Stephan
Kirste: “ter liberdade jurídica significa, como ainda mostraremos em seguida, possuir
direitos subjetivos. A capacidade de liberdade é, assim, a capacidade de ser portador

11TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas


de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 01.
de direitos subjetivos”12, o mesmo autor ainda prolonga seu raciocínio: “Portador
desses direitos é, então, o sujeito do Direito ou a pessoa de Direito. A proteção da
dignidade humana significa, portanto, o direito ao reconhecimento como pessoa do
Direito” 13.

• Princípio da solidariedade social

O princípio da solidariedade social, igualmente, trata-se de objetivo


fundamental da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3°, inciso I, da
Constituição Federal de 1988. Ademais, outros dispositivos da Constituição trazem
essa abrangência, como por exemplo o artigo 170 que prescreve: A ordem econômica,
fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos existências dignas, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios” 14. Aqui igualmente reside o objetivo social de erradicação da
pobreza, na dicção do artigo 3°, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

• Princípio da Isonomia

O princípio da isonomia ou igualdade (lato sensu), é retratado no artigo 5°,


caput, da Constituição Federal de 1988: “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes”15
Em relação a essa igualdade, princípio reitor, pode ser a mesma idealizada
pela seguinte expressão, conferida a Aristóteles e Ruy Barbosa: A lei deve tratar de
maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais. Do texto, verifica-se na

12 KIRSTE, Stephan. Introdução à filosofia do direito. Trad. Paula Nasser. Belo Horizonte: Fórum,
2013. p. 159.
13 KIRSTE, Stephan. Introdução à filosofia do direito. Trad. Paula Nasser. Belo Horizonte: Fórum,

2013. p. 159.
14 BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 27 mar 2023.
15 BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 27 mar 2023.
sua primeira parte a solidificação do princípio da igualdade stricto sensu, isto é, a lei
deve tratar de maneira igual os iguais, e na segunda parte, traz a baila o princípio da
especialidade – e de maneira desigual os desiguais. Trata-se da essência da
igualdade substancial.
Por fim, a propensão a ser reconhecida ao sistema jurídico é a procura e o
alcance de um equilíbrio pendular entre o público e o privado. Se de um lado, as
relações privadas vão sendo delineadas pelos limites determinados pelos princípios e
garantias constitucionais, limitando a autonomia privada em homenagem aos direitos
constitucionais, por outro lado, o Direito Público passa a identificar a autonomia
privada como um instrumento importante, fazendo concessões a liberdade de
autodeterminação, mesmo que no âmbito do interesse público.

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