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DIGNIDADE, DIREITOS HUMANOS E FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT

Javier Orlando Aguirre-Pabón

RESUMO
No texto ofereço uma interpretação integrada do significado textual que o termo “dignidade”
tem na filosofia prática de Kant. Nesse sentido, minha tese é que a noção kantiana de
dignidade é, com efeito, uma noção sócio-política e jurídica que provém do sentido comum e
geral que o termo tinha na época de Kant. Este significado se refere à ideia de exercer um
ofício, cargo e, principalmente, a ostentação de um título legal de nobreza ou honra. Meu
texto está dividido em três seções. Primeiramente, apresento a ideia de dignidade humana
tal como vem sendo desenvolvida no discurso dos direitos humanos. Segundo, exponho a
noção de dignidade tal como é apresentada pela filosofia prática de Kant. Analisarei
principalmente a fundamentação da metafísica dos costumes, a crítica da razão prática e a
metafísica dos costumes, tanto na Doutrina do Direito, quanto na Doutrina da Virtude. Por
fim, na terceira seção, apresentarei algumas conclusões de todas as seções anteriores.

Palavras-chave: Kant, dignidade humana, filosofia prática, direitos humanos.


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INTRODUÇÃO

Hoje, a noção de “dignidade humana” é considerada um conceito-chave no


desenvolvimento do discurso dos direitos humanos. Isso é algo que foi recentemente
reconhecido pelo filósofo Jürgen Habermas, para quem “a dignidade humana (...) constitui a
'fonte' moral da qual derivam o sustento de todos os direitos fundamentais”. Nesta
tendência, as referências à filosofia prática de Kant também são corriqueiras, como o próprio
Habermas lembra. Da mesma forma, para o professor alemão Dietmar Von Der Pfordten
“Kant se refere à dignidade humana numa boa parte de suas obras. Isso motivou um
número considerável de intérpretes a atribuir à dignidade uma posição central na filosofia
moral e jurídica de Kant”. No mesmo sentido, de acordo com Christopher McCrudden, “ao
longo do tempo, essa conexão entre a dignidade e Kant tornou-se provavelmente a
concepção não religiosa mais citada de dignidade. Alguns, até, consideram Kant como o pai
do conceito moderno de dignidade”.
Entre esses autores que vinculam fortemente Kant com nossa concepção moderna
de dignidade, podemos citar o professor de Columbia G.P. Fletcher, para quem “As últimas
décadas tem sido testemunhas de um renascimento do pensamento jurídico kantiano. Nas
obras de nossos mais importantes teóricos do direito e da justiça é comum encontrar
referências às ideias kantianas”. Para
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Jeremy Waldron, “Fletcher está convencido de que a moderna noção constitucional


de dignidade é inteiramente kantiana”.
Da mesma forma, de acordo com Susan Shell,

Immanuel Kant é certamente o filósofo que colocou o conceito de


dignidade humana no mapa do discurso moral moderno. Poucos
pensadores, sejam de direita ou de esquerda, seja religiosos ou
seculares, se abstêm de lhe prestar homenagem por causa disso. As
perspectivas contemporâneas predominantes sobre a autonomia do
paciente e o consentimento informado refletem, sem dúvida, uma
clara origem kantiana.

Em linhas gerais, este é o problema que quero explorar no meu artigo, a saber, a
relação entre nossa noção contemporânea da dignidade humana, tal como vem sendo
desenvolvida no discurso dos direitos humanos, e o conceito kantiano de dignidade, como é
efetivamente apresentados em seus textos.
Seguindo Von Der Pfordten, poderíamos dizer que o uso que Kant faz do termo
“dignidade” se caracteriza por três tendências. Primeiro, é necessário notar que Kant não
usa consistentemente o termo “Menschenwürde” (dignidade do ser humano), pois além
desse termo, Kant também usa outras formas compostas, tal como “Würde des Gebots”
(dignidade da lei), “Würde der Pflicht” (dignidade do dever) e “Würde der Sittlichkeit”
(dignidade da moral), particularmente “Würde eines vernünftigen Wesens” (dignidade de um
ser racional) e “Würde der Menschheit” (dignidade da humanidade).
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Em segundo lugar, o termo “dignidade”, especialmente como “Würde eines


vernünftigen Wesens” (dignidade de um ser racional) só parece desempenhar um papel
importante na argumentação da Fundamentação da metafísica dos costumes. De fato, na
abordagem kantiana tardia da moralidade (crítica da razão prática e metafísica da moral), o
termo não parece desempenhar nenhum papel protagonista.
Terceiro, a noção kantiana de dignidade humana, em contraste com nossa noção
moderna, está em sua maioria ausente de todas as obras importantes de Kant sobre
filosofia política e jurídica. Como destaca Der Pfordten, “(…) Isso não ocorre sem certa
ironia histórica, uma vez que o significado moderno de 'Würde des Menschen' foi
influenciado por importantes disposições políticas e legais do século XX, incluindo o
Preâmbulo da Carta da Nações Unidas em 1945, o Preâmbulo e o artigo 1 da Declaração
Geral dos Direitos Humanos de 1948 e o artigo 1 parágrafo 1 da Constituição da República
Federal da Alemanha de 1949”.
Pois bem, no meu artigo, gostaria de oferecer uma interpretação integrada dessas
três tendências. Nesse sentido, minha tese é que a noção de Kant de dignidade é, com
efeito, uma noção política e jurídica. Uma noção que efetivamente provém de sua filosofia
política e jurídica, mas não se baseia em seus próprios conceitos fundamentais, mas que se
baseia no sentido comum e geral que o termo “dignidade” ostentava naquele momento.
Esse significado comum se refere à ideia do exercício de um ofício, cargo e, principalmente,
a ostentação de um título jurídico de nobreza ou honra. Segundo Jeremy Waldron,
“dignidade na obra de Kant é a tradução inglesa do termo e não a do próprio Kant. Kant usa
o termo alemão 'Würde'. Já existe uma prática estabelecida de traduzir Würde como
dignidade. Mas as duas palavras têm conotações ligeiramente diferentes. Würde é uma
expressão que está muito mais próxima da ideia de 'valor' do que o nosso termo 'dignidade'.
Para Waldron, Kant usa o termo dignidade
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(...) de maneiras muito mais próximas das conotações tradicionais de


nobreza (...) Em sua filosofia política, Kant fala da distribuição de
dignidades; ele descreve a nobreza como uma dignidade que torna
seus possuidores membros de um estado superior sem precisar de
nenhum serviço especial de sua parte; e também diz que nenhum
ser humano pode existir sem dignidade, pois, pelo menos, todo ser
humano tem a dignidade de cidadão.

Assim, o sentido primário de dignidade é, para Kant, um sentido jurídico e político.


Este significado é ampliado como uma analogia operativa ao domínio da ética para destacar
o valor especial e único que pode ser atribuído ao ser humano enquanto ser racional, capaz
de estabelecer e seguir leis morais.
Em preparação para o desenvolvimento do meu argumento, gostaria de destacar
duas passagens em que o termo "dignidade" é aplicado até mesmo a entidades não
humanas, a saber, as próprias leis do dever e os mais elevados princípios práticos. O
primeiro caso encontra-se na Seção I dos Fundamentos, onde Kant afirma que a propensão
a racionalizar (dar razões como desculpa) contra as leis estritas do dever e a gerar dúvidas
sobre sua validade para torná-las mais adequadas aos nossos desejos sensíveis e
inclinações é o mesmo que corrompê-los em seus fundamentos e destruí-los em toda a sua
dignidade (4:405, destacado fora do texto).
O segundo caso encontra-se na Crítica da Razão Prática. Lá, no Livro Um, Capítulo
II, Kant afirma que o empirismo rebaixa a humanidade ao elevar as inclinações humanas à
dignidade de um princípio prático supremo (5:71, destacado fora do texto).
Nestes dois casos parece claro que a palavra dignidade poderia ser facilmente
substituída pela palavra "valor único". Algo que também poderia ser feito no último parágrafo
de uma Resposta à pergunta o que é ilustração, onde Kant, desta vez referindo-se aos
seres humanos, afirma: “Assim, quando a natureza se desembrulhou,
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sob esta casca dura, a semente de que ela mais ternamente cuida, a saber, a propensão e
a vocação para pensar livremente, esta última reage pouco a pouco sobre a mentalidade do
povo (que assim se torna gradualmente capaz de liberdade de ação) e, eventualmente, até
mesmo sobre os princípios do governo, que acha proveitoso para si mesmo tratar o ser
humano, que agora é mais do que uma máquina, de acordo com sua dignidade” (8:41-42,
destacado fora do texto).
Meu texto está dividido em três seções. Em primeiro lugar, apresentarei a ideia de
dignidade humana tal como vem sendo desenvolvida no discurso internacional dos direitos
humanos. Nesta parte tentarei oferecer uma ideia geral do significado e função da nossa
noção moderna de dignidade humana. A seguir exporei a noção de dignidade tal como é
apresentada na filosofia prática de Kant. Analisarei principalmente os Fundamentos da
metafísica dos costumes, a Crítica da razão prática e a Metafísica dos costumes, tanto na
Doutrina do Direito quanto na Doutrina da Virtude. Por fim, na terceira seção, apresentarei
algumas conclusões do exposto.

I. DIREITOS HUMANOS E DIGNIDADE HUMANA

Devido ao papel central que a noção de dignidade humana desempenha tanto na


Carta das Nações Unidas quanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, esse
conceito tornou-se uma referência permanente no discurso dos direitos humanos. Como
aponta McCrudden,

A dignidade está se tornando um lugar comum nos textos legais que


sustentam as várias proteções de direitos humanos em muitas
jurisdições. É um conceito frequentemente utilizado em decisões
judiciais, por exemplo, para justificar a eliminação de restrições à
prática do aborto nos Estados Unidos, ou na mesma imposição de
restrições para o show de arremesso de anões na França, ou para
abolir as leis que proibiam sodomia na África do Sul, bem como
considerações de suicídio assistido em toda a Europa.

No Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a dignidade é


mencionada duas vezes. o primeiro para
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afirmam que “a liberdade, a justiça e a paz no mundo se baseiam no reconhecimento da


dignidade intrínseca e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família
humana”. Por outro lado, de acordo com a segunda referência: “os povos das Nações
Unidas reafirmaram na Carta sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no
valor da pessoa humana e na igualdade de direitos entre homens e mulheres (…)”.
Após o Preâmbulo, o termo dignidade humana aparece explicitamente em três
artigos. De acordo com o artigo primeiro “Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos (...)". Do mesmo modo, de acordo com o artigo 22 “Toda a pessoa,
como membro da sociedade, tem direito (…) à satisfação dos direitos económicos, sociais e
culturais, essenciais à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade”. Por
fim, o artigo 23 estabelece que “Toda pessoa que trabalha tem direito a uma remuneração
justa e satisfatória, que lhe assegure, bem como a sua família, uma existência de acordo
com a dignidade humana (...)”.
Sobre a inclusão da dignidade humana na Declaração, McCrudden destaca que,
embora fosse algo previsível, dada sua inclusão prévia no Preâmbulo da Carta das Nações
Unidas, o assunto não foi isento de controvérsias. Segundo McCrudden, “o próprio
Humphrey, por exemplo, considerava claramente que a referência à dignidade não
acrescentava nada de novo ao seu rascunho e que sua incorporação ao artigo 1º da
Declaração era mera retórica. Para outros, no entanto, foi um esforço vital articular sua
compreensão da base sobre a qual a própria existência dos direitos humanos poderia ser
afirmada. Nesse mesmo sentido, Mary Ann Glendon nos lembra que “quando o
representante sul-africano questionou o uso do termo, Eleanor Roosevelt argumentou que
ele foi incluído para enfatizar que todo ser humano é digno de respeito (...)
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O termo pretendia explicar por que os seres humanos têm direitos em primeiro lugar.
Hoje a controvérsia parece resolvida, uma vez que dignidade aparece agora como
um termo comum nos novos instrumentos internacionais de direitos humanos. Como o
próprio McCrudden observa,

Em 1986, a dignidade tornou-se tão central para as Nações Unidas e


sua ideia de direitos humanos que a Assembleia Geral da ONU
indicou, em suas diretrizes para novos instrumentos de direitos
humanos, que tais instrumentos deveriam ser de natureza
fundamental e derivados da dignidade inerente e valor de cada
pessoa. Desde então, e não surpreendentemente, grandes
convenções como os Direitos da Criança (1989), os Direitos dos
Trabalhadores Migrantes (1990), a Proteção contra o
Desaparecimento Forçado e os Direitos das Pessoas com
Deficiência (2007), incluíram referências à dignidade, apontando sua
essencialidade para os direitos humanos em geral e (geralmente)
sua essencialidade para os direitos específicos desta ou daquela
convenção.

Dessa forma, o papel da dignidade humana se expandiu para atingir o próprio


conteúdo de artigos referentes a diversos direitos, como os direitos relacionados às
condições carcerárias e ao tratamento dos presos, o direito à educação, o direito a gozar
das condições mínimas de bem-estar, os direitos das pessoas com deficiência de serem
tratadas como indivíduos autônomos, o direito ao bom nome, os direitos das culturas
indígenas, o direito de controlar o acesso e uso de informações pessoais, etc.
Agora, em relação à interpretação judicial da noção de dignidade humana, Andrew
Clapham identificou pelo menos
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quatro cenários em que geralmente tem sido desenvolvido. Segundo ele,

(...) a preocupação judicial com a dignidade humana teve pelo


menos quatro aspectos: (1) a proibição de todo tipo de tratamento
desumano, humilhação ou degradação por uma pessoa em
detrimento de outra; (2) a garantia da possibilidade de decisão
individual e das condições de realização da autonomia e do próprio
projeto de vida de cada indivíduo; (3) o reconhecimento de que a
proteção da identidade grupal e cultural pode ser essencial para a
proteção da dignidade pessoal; e (4) a criação das condições
necessárias para que cada indivíduo tenha suas necessidades
individuais satisfeitas.

O primeiro cenário pode ser ilustrado com o caso do Tribunal Europeu de Direitos
Humanos Selmouni vs. França. Nela, a Corte "reitera que, em relação às pessoas privadas
de liberdade, recorrer à força física sem que isso seja algo estritamente necessário em
virtude do comportamento do detento, é algo que viola a dignidade humana e é, em
princípio, uma violação do direito estabelecido no artigo 3”.
No mesmo sentido, McCrudden lembra que:

A dignidade tem sido frequentemente utilizada pelos Tribunais ao


considerar a pena de morte. O juiz Brenann da Suprema Corte dos
Estados Unidos foi possivelmente quem iniciou essa tendência em
Furman v. Geórgia. Ao considerar a aplicação da Oitava Emenda e
sua proibição de punição cruel e incomum, ele sintetizou a
jurisprudência anterior sobre a emenda como referente à proibição
da aplicação de punição incivilizada e desumana. O Estado, mesmo
em seu papel sancionador, deve tratar seus membros com respeito
em virtude de seu valor intrínseco como seres humanos. Uma
punição é cruel e incomum, portanto, se não for compatível com a
dignidade humana.
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Para o segundo cenário, ou seja, aquele referente às condições para alcançar a


autonomia e o próprio projeto de vida de cada indivíduo, é possível citar o caso da Planned
Parenthood vs. Casey. Há juízes Kennedy, O'Connor, Souter J.J. e Stevens J. usou a noção
de dignidade para apoiar o direito da mulher de escolher ser mãe. De acordo com eles,

(…) nossa lei confere proteção constitucional às decisões pessoais


relacionadas ao casamento, procriação, contracepção, relações
familiares, criação de filhos e educação (…) Nossos casos
reconhecem o direito do indivíduo, casado ou solteiro, de estar livre
de interferência governamental injustificada em assuntos que afetam
uma pessoa tão fundamentalmente como a decisão de criar ou gerar
um filho (...) Nossos precedentes respeitaram o domínio privado da
vida familiar em que o Estado não pode entrar (...) e decisões
pessoais que uma pessoa pode tomar em sua vida, decisões
centrais para a dignidade e autonomia humana, são essenciais para
a liberdade protegida pela Décima Quarta Emenda.

Agora, no cenário referente à proteção da identidade grupal e cultural, McCrudden


lembra que

Existe uma relação significativa em grande número de jurisdições


entre a dignidade e o reconhecimento de direitos para pessoas
homossexuais, lésbicas e transgêneros, a começar pelas ações
judiciais contra a criminalização da sodomia por ser contrária aos
princípios dos direitos humanos e, mais
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recentemente, no contexto de demandas para permitir o casamento


entre pessoas do mesmo sexo.

Um exemplo disso é o caso sul-africano de 1998 da National Coalition for Gay and
Lesbian Equality v. o Ministério da Justiça. Neste caso pode-se ler que

Não há dúvida de que a existência de uma lei que puna uma forma
de expressão sexual para homens homossexuais os degrada e
desvaloriza no contexto mais amplo da sociedade em geral. Assim, é
uma violação palpável da sua dignidade e uma violação do artigo
10.º da Constituição (…) O dano causado por este regulamento
pode, e afeta, a sua capacidade de alcançar a sua própria identidade
e realização como pessoas. O dano também atinge a sociedade em
geral e dá origem a uma ampla variedade de outras discriminações,
que coletivamente injustamente impedem uma distribuição equitativa
de bens e serviços sociais e a oferta de oportunidades sociais para
homossexuais.

Por fim, sobre a relação entre dignidade e a criação das condições necessárias para
que cada indivíduo tenha suas necessidades individuais atendidas, podemos citar nosso
próprio Tribunal Regional de Direitos Humanos. Com efeito, de acordo com a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o direito à vida "inclui não apenas o direito de todo ser
humano a não ser arbitrariamente privado de sua vida, mas também o direito a não ser
impedido de ter acesso a condições que garantir uma existência digna.
Como apontei anteriormente, Kant, implícita ou explicitamente, é frequentemente
mencionado como uma forte influência em todo esse desenvolvimento jurídico da noção de
dignidade humana. Um
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Um caso memorável a este respeito é o do Tribunal Constitucional Federal Alemão que, em


2006, declarou inconstitucional a Lei de Segurança da Aviação (Aviaton Security Act). Com
ele, o Parlamento pretendia conceder às forças armadas a possibilidade de abater um avião
de passageiros que se transformara num míssil vivo, como aconteceu no atentado terrorista
de 11 de setembro. A Corte, entretanto, considerou que o Estado não poderia matar os
passageiros em tais circunstâncias. Para o Tribunal, o dever do Estado (segundo o artigo
2.2. da Constituição alemã) de proteger a vida das potenciais vítimas de um atentado
terrorista não tem o mesmo peso que o dever de respeitar a dignidade humana dos
passageiros. Nesse sentido, segundo a Corte, “(...) com suas vidas decididas
unilateralmente pelo Estado, às pessoas a bordo da aeronave (...) é negado o valor devido a
cada ser humano para si". Como indica Habermas, “(…) o eco do imperativo categórico
kantiano é ouvido nas palavras da Corte. O respeito pela dignidade de cada ser humano
proíbe o Estado de tratar uma pessoa simplesmente como um meio para um fim, mesmo
que esse outro fim salve a vida de muitas outras pessoas”.
Ora, como mencionado acima, em muitos campos acadêmicos e jurídicos esse “eco”
kantiano referido por Habermas costuma estar relacionado à noção de dignidade que é
utilizada no discurso atual dos direitos humanos. Nesse sentido, tal discurso busca adquirir
uma legitimidade moral que ultrapasse os limites jurídico-políticos sem abandonar, porém,
os terrenos da razão prática. Esta é, considera-se, a grande contribuição de Kant ao
discurso dos direitos humanos, a saber, o desenvolvimento de um conceito de dignidade de
natureza moral a partir do qual os princípios jurídico-políticos são fundamentais. No entanto,
uma exegese de textos do próprio Kant, onde o filósofo faz uso do conceito de dignidade,
leva à conclusão de que tal relação entre Kant e os direitos humanos é suscetível de
problematização.
Na seção seguinte do artigo, será apresentada uma exegese dos textos kantianos no
sentido indicado para destacar a
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dificuldades interpretativas que devem ser enfrentadas por aqueles que, ao compreender os
direitos humanos como princípios morais, pretendem ter como fundamento a noção kantiana
de dignidade.

I. A NOÇÃO KANTIANA DE DIGNIDADE HUMANA

Esta seção será dividida em duas partes. Em primeiro lugar, apresentarei as


referências explícitas de Kant ao termo "dignidade" encontradas na Fundamentação da
Metafísica da Moral e na Crítica da Razão Prática. Mais tarde, realizarei o mesmo
procedimento com a Metafísica dos costumes.

a. A dignidade na fundamentação da metafísica dos costumes e na crítica da razão


prática

É na Seção II da Fundamentação da Metafísica dos Costumes que o termo


“dignidade” é usado de forma recorrente por Kant e com alguma relevância para sua
argumentação sobre o imperativo categórico.
Agora, é necessário notar que, embora em usos futuros Kant relacione o termo
“dignidade” à ideia de um ser que é um fim em si mesmo, nos Fundamentos o uso
sistemático desse termo é feito no contexto da discussão da fórmula do imperativo
categórico referente ao “Reino dos Fins”.
A ideia do “Reino dos Fins” é uma ideia que Kant não utilizará posteriormente em
seus textos. No entanto, na Fundamentação sim é considerado um conceito muito útil
derivado do princípio segundo o qual todo ser racional deve valorizar a si mesmo e suas
ações na perspectiva de um ser capaz de se dar e se dar leis universais através das
máximas de sua vontade. Como Kant aponta, “(…) todos os seres racionais estão sob a lei
de que cada um deles deve tratar a si mesmo e a todos os outros nunca apenas como
meios, mas sempre ao mesmo tempo como fins em si mesmos. Mas daí surge uma união
sistemática de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, isto é, um reino, que pode
ser chamado de reino dos fins (reconhecidamente
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apenas um ideal) porque o que essas leis têm por finalidade é apenas a relação desses
seres entre si como fins e meios” (4: 433).
Assim, para Kant, o termo “reino” funciona como uma analogia para expressar sua
ideia de uma união sistemática de seres racionais realizada por meio de leis comuns. Esse
domínio incluiria tanto os seres racionais considerados fins em si mesmos, quanto os fins
particulares que cada ser racional estabelece para si mesmo. Desta forma, fica claro que se,
como membro do reino dos fins, um ser racional é capaz de dar leis universais (leis que, por
sua vez, também o cobrem), esse ser e todos os outros que são como se ele tivesse uma
dignidade especial que é o que lhe dá o título de agir assim. É por isso que a primeira vez
que Kant menciona o termo dignidade, ele o faz para indicar a categoria especial de um ser,
isto é, de um ser racional que não obedece a outras leis além daquelas que ele mesmo dá.
Mais tarde Kant afirmará que “a dignidade da humanidade consiste justamente nessa
capacidade de dar a lei universal, embora com a condição de também estar ela própria
sujeita a essa mesma lei” (4: 440).
Essa faculdade legislativa, entendida como um título especial que todo ser racional
possui, o coloca em uma situação em que está acima de qualquer preço, seja um preço de
mercado referente às inclinações e necessidades humanas, ou um preço de luxo referente
ao gozo do bem. simples jogo sem objetivo de nossas faculdades mentais. Como aponta
Kant, “No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. O que tem preço pode ser
substituído por outra coisa equivalente; o que, por outro lado, é elevado acima de todo
preço e, portanto, não admite equivalente, tem dignidade” (4:434).
No entanto, nos Fundamentos Kant esclarece que esse título especial que um ser
racional detém não se origina apenas de sua condição de ser racional capaz de estabelecer
fins e preços para as coisas que o cercam. Sua dignidade deriva, mais precisamente, de sua
capacidade de estabelecer e seguir a lei moral. Nas palavras de Kant,

(...) a moralidade é a única condição sob a qual um ser racional pode


ser um fim em si mesmo, pois somente por isso é possível ser um
membro legislador no reino dos fins. Portanto, a moralidade, e a
humanidade, na medida em que é capaz de moralidade, é a única
que tem dignidade. Habilidade e diligência no trabalho têm
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a preço de mercado; sagacidade, imaginação viva e humor têm um


preço extravagante; por outro lado, a fidelidade nas promessas e a
benevolência dos princípios básicos (não do instinto) têm um valor
interior (4:435).

É por isso que para Kant, como Der Pfordten aponta, “a dignidade não é a razão
última para a obrigação ética. Esta encontra-se, ao contrário, na capacidade de
autolegislação do ser humano, no "fato da razão" ou na lei moral dentro de mim”. Portanto, é
possível concluir que o termo “dignidade” é usado principalmente para indicar uma condição
especial referente a um valor único e incomparável. Kant afirma que é a capacidade de
legislar a si mesma que determina todo valor. Mas, por essa mesma razão, essa capacidade
expressa sua dignidade “isto é, um valor incondicional, incomparável, e a palavra respeito
por si só fornece uma expressão decente para a estimativa que um ser racional deve dar”
(4: 436).
Mais uma vez, não é dos indivíduos como tais, ou dos seres racionais como tais, que
se predica a dignidade, mas dos seres racionais que participam da lei moral. É por isso que,
para Kant, “a autonomia é, portanto, o fundamento da dignidade da natureza humana e de
toda natureza racional” (4:436). Em outras palavras, não é nascer com dignidade que
justifica a autonomia e a liberdade dos seres humanos (enquanto seres racionais). Ao
contrário, é a autonomia, ou seja, a capacidade de estabelecer e seguir a lei moral, que nos
permite dizer que os seres humanos (enquanto seres racionais) têm dignidade. Esta ideia
segundo a qual todos os seres humanos, como seres racionais, têm um valor único na
medida em que são capazes de formular e seguir o imperativo categórico permanece no
pensamento de Kant ao escrever a Crítica da Razão Prática. No entanto, ele não usa mais o
termo "dignidade" para indicar tal valor. De fato, na Crítica da razão prática, Livro I, Capítulo
III Sobre os incentivos da razão prática pura, há passagens que, apesar de não conterem
explicitamente o termo “dignidade”, remetem às mesmas ideias que Kant expressou na
Fundação.
No capítulo mencionado, Kant formula a seguinte pergunta: “(…) que origem há
digna de você, e onde se encontra o
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raiz de sua nobre descendência que orgulhosamente rejeita todo parentesco com as
inclinações, descendência da qual é a condição indispensável daquele valor que os seres
humanos podem dar a si mesmos?” (5:86). Para Kant a resposta é clara: “Não pode ser
nada menos do que o que eleva um ser humano acima de si mesmo (como parte do mundo
sensível) (...) toda a natureza, no entanto considerada também como uma capacidade de
um ser sujeito a leis especiais - isto é, leis práticas puras dadas por sua própria
personalidade, na medida em que ele pertence também ao mundo inteligível” (5: 86-87). O
termo "dignidade" é aqui substituído pela noção de "personalidade", usada para indicar uma
diferença radical do reino da natureza.
Ora, neste contexto, Kant também afirma que, em virtude da autonomia humana, que
nos possibilita sermos sujeitos da lei moral, os seres humanos são os únicos seres da
natureza que não podem ser usados apenas como meios. Como Kant aponta: “Em toda a
criação, tudo o que se deseja e sobre o qual se tem algum poder também pode ser usado
apenas como um meio” (5:87). Nesta passagem, Kant afirma que ser um fim em si mesmo
significa, em última análise, que “tal ser não deve ser submetido a qualquer propósito que
não seja possível de acordo com uma lei que possa surgir da vontade do sujeito afetado” (5:
87). No entanto, é claro que isso não pode ser interpretado como se tudo estivesse
esgotado nas finalidades estabelecidas pelo próprio sujeito, pois "toda vontade, mesmo a
própria vontade de cada pessoa dirigida a si mesma, restringe-se à condição de
concordância com a autonomia do ser racional” (5:87).
Como pode ser visto, Kant não usa o termo "dignidade" uma única vez em todas
essas passagens. No entanto, como a noção de "personalidade" significa, por um lado,
liberdade e independência do mecanismo da natureza que caracteriza os seres humanos e,
por outro, a capacidade de estar sujeito a leis especiais, ou seja, leis práticas dadas por si
mesmos, Kant é capaz de indicar com essa palavra o valor especial e único que os seres
racionais possuem; valor único que na Fundação era indicado com o termo “dignidade”. De
qualquer forma, é preciso destacar que na mesma Fundação Kant já havia relacionado a
ideia de “pessoa” com a noção de um ser moral-racional que é um fim em si mesmo. Nas
palavras de Kant, "os seres racionais são chamados de pessoas
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porque sua natureza já os marca como um fim em si mesmo, isto é, como algo que não
pode ser usado apenas como meio e, portanto, limita toda escolha (e é objeto de respeito)”
(4: 428).
Para Kant, essa ideia de personalidade é algo facilmente observável, pois é natural
até pelos motivos humanos mais comuns. Kant pergunta, mais uma vez usando o termo
"dignidade":
Nem todo homem moderadamente honrado, por vezes, descobriu
que se absteve de uma mentira de outra forma inofensiva pela qual
ele poderia se livrar de um caso problemático ou até mesmo obter
alguma vantagem para um amigo querido e merecedor, apenas para
não ter que desprezar -se secretamente em seus próprios olhos?
Quando um homem íntegro está na maior angústia, que ele poderia
ter evitado se apenas pudesse desrespeitar o dever, ele não é
sustentado pela consciência de que ele manteve a humanidade em
sua própria dignidade em sua própria pessoa e a honrou, que ele
não causar vergonha a seus próprios olhos e temer a visão interior
do auto-exame? (5:88).

Segundo Kant, os motivos para agir em todos esses casos se originam do fato de
que esses homens não suportam levar uma vida indigna aos seus próprios olhos. Para Kant,
este é o significado do genuíno incentivo moral da razão prática pura: “não é outra coisa que
a própria lei moral pura, na medida em que nos permite descobrir a sublimidade de nossa
própria existência supra-sensível e efetiva subjetivamente o respeito por sua vocação
superior em seres humanos, que são ao mesmo tempo conscientes de sua existência
sensível e da dependência, ligada a ela, de sua natureza patologicamente afetada” (5: 88).
Vale a pena notar que nesta última passagem Kant usa o termo "sublimidade" para
expressar a mesma ideia que, em outras ocasiões, ele quis expressar com o termo
"dignidade", ou seja, a ideia de pertencer a um único e classificação especial, que diferencia
os seres humanos (como seres morais racionais) do resto da natureza; um posto que, como
qualquer outra dignidade, confere direitos, mas, por sua vez, exige deveres. Em outras
palavras, um posto que confere aos seres humanos o direito de estabelecer a lei moral, mas
também os sobrecarrega com o dever de segui-la fielmente.
Agora, nos Fundamentos, podemos encontrar uma passagem na qual Kant usa os
termos "dignidade" e "sublimidade" de forma intercambiável. Com efeito, segundo Kant,
“(…) embora ao pensar o conceito de dever pensemos em sujeição à lei, ao mesmo tempo
representamos assim uma certa sublimidade e dignidade na
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a pessoa que cumpre todos os seus deveres. Pois, de fato, não há sublimidade nele
enquanto está sujeito à lei moral, mas certamente há enquanto ele é ao mesmo tempo
legislador em relação a ela e só por isso subordinado a ela” (4: 439-440).
Nessa explicação, Kant indica que todos os fins que um ser racional estabelece a
seu critério são simplesmente fins relativos, pois seu valor só se origina de sua relação com
a faculdade subjetiva do desejo. Nesse sentido, nenhum desses fins relativos poderia
sustentar o imperativo categórico. Mas, afirma Kant, “suponha que houvesse algo cuja
existência em si tenha um valor absoluto, algo que, como fim em si mesmo, pudesse ser um
fundamento de leis determinadas; então nele, e somente nele, estaria o fundamento de um
possível imperativo categórico, isto é, de uma lei prática” (4: 428). Imediatamente após
apresentar esse pressuposto, Kant indica que todo ser humano e em geral todo ser racional
existe como um fim em si mesmo e que, portanto, é o único ser existente que possui um
valor interno absoluto; algo que algumas páginas depois, como vimos, Kant chamará de
"uma dignidade".

b. A Dignidade na Metafísica dos Costumes

Na Doutrina do Direito há duas referências diferentes à noção de dignidade humana.


Por um lado, implicitamente, tal noção aparece no primeiro dever de direito derivado por
Kant da primeira parte da Fórmula de Ulpiano, ou seja, “Ser um homem honrado”. Segundo
Kant, essa parte inicial da fórmula refere-se à honra legítima (honestas iuridica) que
“consiste em afirmar o próprio valor como ser humano em relação aos outros, dever
expresso pelo ditado ‘Não se faça de mero meio para os outros’. mas seja ao mesmo tempo
um fim para eles'” (6: 236). Kant afirma que esse dever será explicado posteriormente como
uma obrigação derivada do direito da humanidade em nossa própria pessoa, mas essa
explicação não se desenvolve na Doutrina do Direito, mas na Doutrina da Virtude, Parte I,
Livro I, Capítulo II Os deveres do ser humano para consigo mesmo simplesmente como ser
moral, bem como na Parte II Deveres de virtude para com os outros, Capítulo I Dos deveres
para com os outros simplesmente como seres humanos, Seção II Sobre
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os deveres de virtude para com outros seres humanos que se originam do devido respeito.
O segundo grupo de referências é absolutamente central para a hipótese que estou
desenvolvendo neste texto. A primeira referência a esse grupo encontra-se na primeira
seção (O Direito de um Estado) da segunda parte da Doutrina do Direito, dedicada ao direito
público. Nessa seção, Kant menciona as três autoridades que existem dentro de cada
Estado, ou seja, “a autoridade soberana (soberania) na pessoa do legislador; o poder
executivo na pessoa do governante (em conformidade com a lei); e a autoridade judiciária
(para atribuir a cada um o que é seu de acordo com a lei) na pessoa do juiz (potestas
legislativa, rectoria et iudiciaria)” (6:313). Segundo Kant, todas essas autoridades são
dignidades (Würden), e como necessariamente se originam da ideia de um Estado como tal,
como essencial para o seu estabelecimento, são dignidades cívicas (6: 315).
Ora, para Kant, cada autoridade, considerada em sua dignidade, tem características
particulares. A dignidade do legislador implica que sua vontade, referente ao
estabelecimento de propriedades (o que é "externamente meu ou seu" nas palavras de
Kant) é irrepreensível. No mesmo sentido, a dignidade do executivo implica que seu poder
como governante supremo seja irresistível. Por fim, a dignidade do juiz torna seu veredicto,
no caso do juiz supremo, irreversível, ou seja, inapelável (6: 316).
Na Observação Geral D desta seção, Kant aponta que existem outras dignidades
além daquelas próprias dos cargos públicos, que, no entanto, também fazem de seus
titulares membros de alto status mesmo sem nenhum serviço especial de sua parte. Kant
está se referindo, neste caso, às dignidades da nobreza. Por fim, nesta mesma observação,
Kant afirma que em um Estado não pode haver um ser humano que não possua algum tipo
de dignidade, pois toda pessoa terá pelo menos a dignidade de cidadão.
66

Isso nos permite concluir que o significado geral que o termo "dignidade" tem para
Kant é um significado sócio-político e jurídico associado à noção de uma posição especial
que é mantida dentro de um Estado; um posto que confere direitos, mas também exige
deveres; uma gama que acaba por indicar a ideia de um valor especial e único. Nessa
perspectiva, é fácil entender que, quando Kant distingue preço e dignidade nos
Fundamentos, e atribui esta aos seres racionais como seres capazes de seguir o imperativo
categórico, ele está respondendo a Hobbes, para quem, "O valor ou O VALE de um homem
é, como todas as outras coisas, seu Preço; isto é, tanto quanto seria dado para o uso de
seu Poder: e, portanto, não é absoluto; mas uma coisa dependente da necessidade e
julgamento de outro”. Os exemplos que Hobbes dá do acima são os seguintes: “Um
condutor capaz de Souldiers é de grande valor em tempo de guerra presente ou iminente;
mas em Paz não é assim. Um juiz instruído e incorrupto, vale muito em tempo de paz; mas
não tanto na Guerra. E como em outras coisas, também nos homens, não o vendedor, mas
o comprador determina o preço. Pois deixe um homem (como a maioria dos homens faz)
avaliar a si mesmo como o valor mais alto que puder; no entanto, seu verdadeiro valor não é
mais do que é estimado pelos outros.
No entanto, apesar de manter o mesmo significado que a palavra “dignidade” tem
para Hobbes, Kant a reserva para indicar a capacidade moral do ser humano. Para Hobbes,
“O valor público de um homem, que é o valor que lhe é atribuído pela Common-wealth, é o
que os homens comumente chamam de DIGNIDADE. E este Valor dele pela Common-
wealth, é entendido, por cargos de Comando, Ju-
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ditadura, emprego público; ou por Nomes e Títulos, introduzidos para distinção de tal Valor”.
Assim, Kant parte desse entendimento geral do termo “dignidade” entendido como o
valor público de um ser humano e, por isso, só pode introduzi-lo, na Fundação, após
apresentar sua ideia de Reino dos fins. Vale notar que a palavra alemã usada por Kant é
Reich, expressão que, segundo Mary J. Gregor, tradutora da edição de Cambridge das
obras de Immanuel Kant, também poderia ter sido traduzida como “Commonwealth”. Com
isso, como se vê, Kant e Hobbes compartilhariam o mesmo entendimento do termo
dignidade, ou seja, o valor do ser humano no contexto público de um Estado. Kant, no
entanto, estende essa ideia para ser aplicada ao que seria seu Reino dos fins, ou seja, a
união sistemática de todos os seres morais que estabelecem a lei moral e se orientam
exclusivamente por ela.
O significado que Kant dá ao termo “dignidade”, conforme explicado nas seções
anteriores, é mantido em sua última grande obra ética, a Doutrina da Virtude. De fato, na
Parte I, quando Kant descreve no segundo capítulo o dever do ser humano para consigo
mesmo meramente como um ser moral, o termo "dignidade" aparece explicitamente mais
uma vez em uma forma desenvolvida.
Kant agora usa a noção de dignidade para diferenciar um ser humano como homo
phaenomenon de um ser humano como homo noumenon. Como Kant aponta: “No sistema
da natureza, um ser humano (homo phaenomenon, animal rationale) é um ser de pouca
importância e compartilha com o resto dos animais, como filhos da terra, e valor ordinário
(premium vulgare).” (6:434). No entanto, para Kant, nem mesmo a capacidade humana de
estabelecer metas é suficiente para fazer a diferença, pois essa capacidade apenas confere
um valor extrínseco relacionado à utilidade (um usus premium). Nas palavras de Kant, “ela
dá a um homem um valor mais alto do que outro, ou seja, um preço como de uma
mercadoria em troca com esses animais como coisas, embora ele ainda tenha um valor
menor do que o meio universal de troca, o dinheiro, o valor dos quais pode, portanto, ser
chamado de pré
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eminente (pretium eminens)” (6: 434). Em contrapartida, o ser humano, considerado como
pessoa (homo noumenon), ou seja, como sujeito de uma razão moral prática, é exaltado
acima de qualquer preço, pois, nessa perspectiva, o ser humano não pode ser valorizado
simplesmente como meio de os fins de outros seres, ou mesmo para seus próprios fins.
É nessa perspectiva que o ser humano deve ser considerado um fim em si mesmo e,
portanto, possuidor de uma dignidade, que é definida por Kant como um valor interno
absoluto pelo qual essa pessoa pode exigir respeito de todos os demais seres racionais.
Essa dignidade lhe dá o direito de se comparar com todos os outros seres dessa classe e se
valorizar em pé de igualdade com eles. Mas o objeto de respeito não é simplesmente sua
individualidade, mas sua própria pertença àquela categoria especial de seres a que
pertencem os seres racionais. Como Kant aponta, “a humanidade em sua pessoa é o objeto
do respeito que ele pode exigir de qualquer outro ser humano, mas que ele também não
deve perder” (6: 435).
Vale lembrar que o contexto em que aparecem essas referências ao termo dignidade
é dado pela discussão de Kant sobre o dever do ser humano para consigo mesmo como ser
moral. Nessa linha de argumentação, Kant discute como tal dever se opõe à ideia de
servilismo. Portanto, é perfeitamente coerente para Kant afirmar que um ser da categoria de
seres humanos, ou seja, um ser que possui dignidade, deve estar sempre consciente de sua
dignidade como ser racional e, portanto, "não deve repudiar a moral - estima de tal ser, ou
seja, deve perseguir seu fim, que é em si um dever, não abjetamente, não com espírito
servil (animo servili) como se estivesse buscando um favor, não negando sua dignidade ,
mas sempre com a consciência de sua sublime predisposição moral (que já está contida no
conceito de virtude)” (6: 435). Para Kant, essa autoestima especial já é um dever dos
próprios seres humanos.
Kant indica ainda alguns exemplos desse dever com referência à dignidade da
humanidade em nós mesmos:

Não seja lacaio de ninguém. – Não deixe que outros pisem


impunemente em seus direitos. – Não contrate dívidas para as quais
não possa dar total garantia. – Não aceite favores que você poderia
prescindir, e não seja um parasita ou um bajulador ou (o que
realmente difere deles apenas em grau) um mendigo. Seja
parcimonioso, então, para que você
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não ficar carente. – Reclamar e choramingar, até mesmo gritar de


dor no corpo, não é digno de você, principalmente se você sabe que
mereceu; assim, a morte de um criminoso pode ser enobrecida (sua
desgraça evitada) pela determinação com que ele morre. – Ajoelhar-
se ou prostrar-se no chão, mesmo para mostrar sua veneração por
objetos celestes, é contrário à dignidade da humanidade, como é
invocá-los em imagens reais; pois então você se humilha, não diante
de um ideal representado por sua própria razão, mas diante de um
ídolo de sua própria criação (6:436).

A segunda referência explícita à noção de dignidade na Doutrina da Virtude aparece


na Parte II Deveres da virtude para com o outro, capítulo I Dos deveres dos outros
simplesmente como seres humanos, Seção II Dos deveres da virtude para com os outros
seres humanos que originam no respeito que lhes é devido. Nela, Kant afirma que “a própria
humanidade é uma dignidade; pois um ser humano não pode ser usado meramente como
meio por qualquer ser humano (seja por outros ou mesmo por si mesmo), mas deve sempre
ser usado ao mesmo tempo como um fim. É justamente nisso que consiste sua dignidade
(personalidade), pela qual ele se eleva acima de todos os outros seres do mundo que não
são seres humanos e, no entanto, podem ser usados, e assim sobre todas as coisas” (6:
462). Portanto, se a própria humanidade é uma dignidade, todo ser que pertence à
humanidade terá uma categoria especial que dá título a uma legítima exigência de respeito
por parte de outros seres humanos, mas também a sujeita ao devido respeito para com
todos os outros, bem como a si mesmo. Como Kant aponta, “assim como ele não pode se
entregar por qualquer preço (isso entraria em conflito com seu dever de auto-estima), ele
também não pode agir contra a auto-estima igualmente necessária dos outros, como seres
humanos, que isto é, ele tem a obrigação de reconhecer, de maneira prática, a dignidade da
humanidade em todos os outros seres humanos. Por isso, cabe a ele o dever de respeito
que deve ser demonstrado a todos os outros seres humanos” (6: 462).
Disso se segue que, de acordo com Kant, mesmo que os atos de um homem vicioso
não lhe granjeem meu respeito como ser humano, ele não pode ser negado por considerá-lo
totalmente perdido e condenado. Nas palavras de Kant, a censura do vício e do mal “nunca
deve se transformar em completo desprezo e negação de qualquer valor moral para um ser
humano vicioso; pois nesta suposição ele nunca poderia ser melhorado, e isso não
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consistente com a ideia de um ser humano, que como tal (como um ser moral) nunca pode
perder inteiramente sua predisposição para o bem” (6: 464).
Assim, Kant reitera sua ideia segundo a qual os seres humanos, como seres morais
racionais, possuem um valor especial e único que os diferencia de qualquer outro ser: um
valor comparável à honra, privilégios e deferência devidos a um posto ou título, ou seja, a
uma dignidade.
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CONCLUSÕES

Como vimos, nos Fundamentos Kant usa o termo “dignidade” para se referir ao valor
especial e único de seres racionais capazes de seguir o imperativo categórico em virtude de
sua autonomia. Assim, a noção de dignidade, assim entendida, não precisa ser incluída na
filosofia política e jurídica de Kant, pois, no caso das normas jurídicas, o incentivo do dever
não precisa ser incluído na própria lei. Ou seja, na medida em que a norma legal pode ser
cumprida simplesmente por medo, por exemplo, é possível admitir nela um incentivo
diferente da própria ideia de dever e da realização da autonomia.
Apesar disso, o termo “dignidade”, aplicado à filosofia prática de Kant, deve ser
entendido a partir do sentido primordialmente sócio-político e jurídico referente à ideia de
posto ou, como Hobbes o apresentou, à ideia de valor público. de um ser humano conforme
estabelecido pela Commonwealth. Esse significado, como vimos, foi efetivamente aceito e
exposto por Kant em sua Doutrina do Direito. Assim, em seu sentido ético, como valor único
e interno atribuído aos seres morais racionais, o termo "dignidade" já está assumindo
grande parte do sentido sócio-político e jurídico de classificação.
Este foi, de fato, o significado geral atribuído à palavra “dignidade” na primeira
declaração de direitos. De fato, a Declaração de Direitos Inglesa de 1689 fala de “dignidade
real” em cinco casos. Além disso, ainda mais notavelmente, o artigo 6 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 afirma que “A lei é a expressão da vontade geral.
Todos os cidadãos têm o direito de contribuir para a sua preparação, pessoalmente ou
através dos seus representantes. Deve ser o mesmo para todos, seja protegendo ou
punindo. Como todos os cidadãos são iguais perante ela, todos são igualmente admissíveis
em toda dignidade, cargo ou emprego público, de acordo com suas capacidades e sem
qualquer outra distinção que não a de suas virtudes e talentos.
As declarações contemporâneas de direitos humanos e as interpretações judiciais
parecem ter um sentido diferente de dignidade, baseado principalmente na individualidade
dos seres humanos e comumente funcionando como fundamento
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dos direitos fundamentais implicados por tal ideia de dignidade. Esse sentido não é
totalmente incompatível com o uso do termo por Kant, especialmente entendido como um
conceito sociopolítico de posição tal como aparece na Doutrina do Direito. Em última
análise, como sugere Jeremy Waldron, a noção moderna de dignidade humana e o discurso
contemporâneo dos direitos humanos implicam uma equalização ascendente de hierarquia,
segundo a qual cada ser humano, sem distinção de qualquer classe, como sua raça, cor,
sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento ou outros estratos, tem a mesma dignidade, posição e direitos que
antes eram concedidos apenas à nobreza.
No entanto, é preciso reiterar que, do ponto de vista da filosofia moral de Kant, o
termo “dignidade” não tem a importância reivindicada por aqueles que tentam utilizá-lo como
elemento moral legitimador no discurso atual dos direitos humanos. De fato, a compreensão
de Kant do conceito de "dignidade" é uma compreensão sociopolítica que se estende, por
analogia, ao domínio moral. “Dignidade”, então, é um termo que, em Kant, tem raízes mais
sociopolíticas do que morais. Como aponta Habermas, "(...) o conceito de 'dignidade
humana' não adquiriu importância sistemática em Kant, pois todo o ônus da justificação
repousa sobre a explicação moral-filosófica da autonomia".
Agora, isso não significa que aqueles que interpretam o discurso dos direitos
humanos usando o senso moral de dignidade de Kant não estejam certos. No entanto, o que
se pretende afirmar é que, além de Kant, existem outras influências, talvez muito mais
importantes, que contribuíram para o desenvolvimento do nosso moderno conceito de
dignidade. Dentre estes, segundo Habermas, é preciso destacar as contribuições
produzidas pelas traduções para a linguagem secular feitas pela filosofia dos princípios
religiosos da tradição judaico-cristã. Em suas próprias palavras, “foi somente a partir das
discussões medievais sobre a criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus que
o indivíduo conseguiu libertar-se de sua dependência de um conjunto
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dos papéis sociais: todos terão que enfrentar o Juízo Final como pessoas únicas e
insubstituíveis”. Segundo Habermas, essa ideia religiosa, traduzida para a linguagem laica
pela filosofia, possibilitou que a “dignidade humana” fosse compreendida com duas
características cruciais. De um lado, sua individualização, ou seja, a afirmação do valor do
indivíduo nas relações horizontais entre diferentes seres humanos que também são seus
"iguais". Por outro lado, a afirmação do valor absoluto de cada ser humano, ou seja, a
postulação do valor único de cada pessoa.
De qualquer forma, e ainda que suas fontes teóricas sejam complexas e diversas, a
relação entre dignidade e direitos humanos é inegável. Como o próprio Habermas aponta,
implícita ou explicitamente, sempre houve um vínculo conceitual interno entre dignidade
humana e direitos humanos. Assim, “(…) a dignidade humana configura o portal através do
qual o substrato igualitário e universalista da moralidade é transferido para o campo do
direito. A ideia de dignidade humana é o eixo conceitual que conecta a moralidade do igual
respeito a todas as pessoas com o direito positivo e o processo de legislação democrática,
de modo que sua interação possa dar origem a uma ordem política baseada nos direitos
humanos.

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