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A PRODUÇÃO DE UM TELEJORNAL
RESUMO
Neste trabalho contextualizo o processo de criação e execução do “Jornal do Projeto”, um
telejornal produzido com alunos de um projeto educativo vinculado à prefeitura municipal de
Cordeirópolis-SP no segundo semestre de 2011. Tal projeto tinha por objetivo proporcionar
aos alunos atividades didático-pedagógicas e de lazer no contra turno escolar. Eu atuava neste
projeto como docente de uma classe multisseriada constituída por vinte e um alunos que
tinham entre sete e nove anos. A proposta do telejornal partiu das crianças e tinha o intuito de
registrar algumas vivências cotidianas do projeto, da escola e do bairro. Os alunos
participaram de todo o processo de criação e execução do telejornal, organizaram-se em
equipes de editoração, redação, reportagem e apresentação. Todas as equipes estiveram sob a
minha orientação: a equipe de editoração, composta por dez alunos, ficou responsável pela
criação dos textos dos apresentadores, a seleção dos entrevistados e os temas a serem
abordados; a equipe de reportagem, formada por sete alunos, ficou responsável pelos convites
aos entrevistados, o agendamento dos locais de gravação e das entrevistas; a equipe de
apresentação, composta por quatro alunos, responsabilizou-se pelo estudo dos textos de
abertura e de encerramento do telejornal. Neste texto problematizo a importância do olhar
destes alunos para o seu cotidiano, para suas experiências e, ainda, para compreender qual a
relação com o outro. Dialogo com autores que me ajudam a refletir sobre os sentidos dessa
experiência, dentre eles Freire (1996) que considera que leitura de mundo precede a da leitura
da palavra, Larrosa (2002) que fala do saber da experiência e Bakhtin (1997) que traz o
conceito de alteridade. Como material de análise utilizo meu diário de bordo e as gravações
do Jornal do Projeto.
PALAVRAS-CHAVE: telejornal; experiência; autoria; cotidiano.
Introdução
Inspirada pela possibilidade de trabalhar com meus alunos algo diferente de tudo que
havíamos trabalhado ao longo do ano, eu levei para eles a ideia de trabalharmos com notícias.
Foram eles que sugeriram que fizéssemos um telejornal. A partir de então começamos a
trilhar o caminho para a elaboração do nosso “Jornal do Projeto”. Esta experiência deixou
marcas que levo comigo até hoje e, de alguma forma, eles também saíram marcados dessa
vivência. A transformação que se deu durante todo o processo de criação e execução do
telejornal faz jus a um registro, uma escrita-divulgação. Por isso compartilho aqui esta
experiência que foi muito significativa para mim e para a minha formação enquanto
professora iniciante.
O primeiro passo: como se faz um telejornal?
Larrosa (2002), quando traz o conceito de experiência, diz que “a experiência é o que
nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o
que toca” (p. 21). Desse modo, olho para o “Jornal do Projeto” como uma experiência no
sentido que o autor traz: um acontecimento que permanece na memória, algo que fica, que
deixa sua marca... indelével, inesquecível. Assim, quando surgiu a ideia de fazer um telejornal
com meus alunos, eu não tinha a dimensão das marcas que esse acontecimento poderia nos
deixar. Eu tinha comigo a vontade de fazer algo diferente, algo que mostrasse o nosso
trabalho, o espírito de coletividade que nos unia e fazia com que cada atividade se tornasse
única e especial.
O primeiro passo para a elaboração do telejornal foi levar uma proposta fundamentada
para os alunos, a partir do que eles haviam pensado e do que eu tinha em mente naquele
momento. Eu trouxe algumas perguntas a fim de compreender a concepção deles sobre o que
seria constituir um “jornal televisivo”. Desse modo reservei uma semana para trabalharmos
juntos de que forma é feito um telejornal dentro das emissoras de televisão e como se
constituiria o nosso jornal, dentro das nossas vontades e possibilidades.
Durante a apresentação da proposta, muitos já se manifestavam, dando opiniões,
sugestões. Outros de pronto já me disseram não querer participar, pois não gostariam de
aparecer diante da câmera. Aproveitei a oportunidade para explicitar a eles que um jornal não
é feito somente pelos apresentadores e repórteres, e sim por uma grande equipe de
profissionais. Cada um tem a sua função no jornal, que vai desde a elaboração dos temas até a
sua gravação, edição e exibição. Essa primeira etapa teve a duração de uma semana. Ao final,
já tínhamos a estrutura “operacional” do nosso “J.P.” e quais seriam as equipes e suas
respectivas funções. Abaixo um trecho do meu caderno de registros com as divisões
estruturais realizadas coletivamente.
Equipe de editoração: Darah, Luana, Renato, Natália, Cauã, Leandro, Maria, Isadora,
Carlos e Júlia. Tarefas: escolher os temas que serão abordados no J.P, quais as entrevistas e
lugares para a realização das filmagens.
Equipe de redação: Isadora, Darah, Luana, Natália, Leandro, Nathan e Cauã. Tarefas: criar
as perguntas a serem feitas aos entrevistados e também os textos de abertura das entrevistas
e da apresentação do telejornal.
Equipe de reportagem: Maria, Isadora, Carlos, Renato, Natália, Darah, Luana. Tarefas:
conversar com as pessoas escolhidas para entrevista, falando sobre o jornal e agendando um
dia e horário para a realização da entrevista.
Equipe de apresentação: Darah, Maria, Luana e Natália. Tarefas: apresentar os temas do
telejornal.
Edição e supervisão: Profa. Pamela. Tarefas: coordenar todas as etapas do telejornal,
realizar sua edição e prepará-lo para exibição.
Hoje com um olhar exotópico (BAKHTIN, 1997) sobre meu próprio trabalho consigo
compreender com mais ênfase o quão privilegiado era o espaço de trabalho que eu tinha. O
tempo/espaço do projeto era diferente do tempo/espaço da escola, e como já dito, a proposta
era diferente, as lições que deviam ser ensinadas no projeto não estavam relacionadas ao
conteúdo da escola regular. Assim, eu tinha a possibilidade de trabalhar com liberdade, sem as
amarras existentes dentro dos conteúdos de classe regular. Garcia (1999) ao escrever sobre a
questão do tempo em sala de aula diz que:
Garcia (1999) também traz duas dimensões do tempo: Chronos e Kairós, no qual,
segundo ela, o primeiro representa “o tempo dos relógios, mecanicamente mensurável” (p.
122) e o segundo “tempo estratégico, momento oportuno” (p. 120). Percebo-me enquanto
professora do projeto atuando na dimensão Kairós do tempo, pois ali estávamos – eu e meus
alunos – envolvidos em um projeto no qual não existia prazos para seu cumprimento, nem
exigia que todos fizessem a mesma coisa, ao mesmo tempo, do mesmo jeito. Do meu lugar de
autora-pesquisadora deste texto percebo o quanto trabalhar com uma dimensão “Kairós” do
tempo foi fundamental para que os alunos se colocassem dentro da produção do jornal, cada
um a seu tempo e a sua maneira.
Embora tivéssemos uma configuração de tempo diferente do tempo escolar isso não
fazia do nosso telejornal algo distanciado dos conteúdos escolares. Nesse movimento de
construção do “J.P.” foi possível trabalhar com a escrita, evidenciando a língua portuguesa e
até a matemática, dividindo-se dentro das equipes, trabalhando com as horas, o tempo
estimado de cada entrevista. Eles trabalharam noção espacial também, analisando em quais
lugares eram mais viáveis a realização das entrevistas. Sem contar a questão do debate entre
eles com relação à escolha dos temas, eles aprenderam a ouvir mais o outro e a aceitar uma
decisão coletiva, lições para além dos conteúdos previstos em sala de aula, lições para a vida.
Freire (1996) nos alerta para a riqueza dos saberes da prática que se (re) constituem
dentro do espaço escolar, e que são desvalorizados em nome de métodos pedagógicos
impostos por planos governamentais por vezes equivocados, que negligenciam a autonomia
do professor e o colocam apenas como um executor de saberes prontos, enrijecidos.
Considero essa experiência no sentido informal de que nos fala Freire (1996), pois
aconteceu em um lugar onde as enlaças do sistema não estavam presentes, permitindo-nos
enriquecer nossa vivência com conhecimento construído e socializado coletivamente.
Perceber a forte presença dos alunos no “Jornal do Projeto” e a maneira como eles se
colocaram como protagonistas daquela atividade me fez refletir sobre a autoria. Segundo
Kramer, “ser autor significa dizer a própria palavra, cunhar nela sua marca pessoal e marcar-
se a si e aos outros pela palavra dita, gritada, sonhada, grafada [...] Ser autor significa produzir
com e para o outro“ (KRAMER, 2003, p. 83). No “J.P.” as crianças deixaram “suas marcas”
nos textos criados coletivamente. Como afirma Kramer (2003), eles produziram com os
outros e para os outros, pessoas que viram e que até hoje veem o vídeo e se encantam com o
nosso telejornalzinho.
Depois de termos definido coletivamente a estrutura do nosso telejornal, ou seja, as
equipes que constituíam cada etapa da realização da atividade, a equipe de editoração se
reuniu para definir os temas. Tentei deixá-los à vontade para escolherem quais os assuntos
que seriam trabalhados no jornal. Por vezes eu os orientei quanto às questões de viabilidade
de algumas ideias, mas a definição, o consenso e a finalização dos temas ficaram sob-
responsabilidade deles. Deste modo os temas escolhidos foram:
Caderno de registros – outubro de 2011.
Equipe de editoração: Projeto da escola Amália que atende as crianças em período oposto
da aula; A importância da merenda escolar na alimentação das crianças; A direção escolar e
a sua função na escola; Os direitos da criança em nossa sociedade; Psicologia escolar no
auxílio do desenvolvimento da criança; O reforço escolar e sua importância na
aprendizagem dos alunos; A revitalização da praça da igreja traz beleza e conscientização
para os moradores.
O excerto acima evidencia uma escrita minha mais elaborada, com termos específicos.
Entretanto a essência da proposta é autoria dos alunos. A partir da escrita deles, eu organizava
um texto rebuscado, como eles mesmos costumavam dizer “agora a professora reescreve
usando palavras bonitas”. Mas eles reliam as propostas depois que eu as reescrevia e algumas
vezes me apontavam o que fugia do que havia sido decidido dentro da equipe de editoração.
Abaixo segue outro trecho do meu caderno de registros que apresenta os temas e seus
entrevistados.
Equipe de editoração:
TEMA ENTREVISTADO
Projeto da escola Amália que atende as Profa. Bianca; alunas: Maria Lucivânia e
crianças em período oposto da aula; Amanda.
A importância da merenda escolar na Merendeira Zuleide.
alimentação das crianças;
A direção escolar e a sua função na escola; Diretora Roberta Castellar.
Os direitos da criança em nossa sociedade; Assistente Social Ariena Geniselli.
Psicologia escolar no auxílio do Psicóloga Gislaine Licatta.
desenvolvimento da criança;
O reforço escolar e sua importância na Profas.: Rose Peruchi e Daniela Vite.
aprendizagem dos alunos;
A revitalização da praça da igreja traz Moradores que estiverem passando pela
beleza e conscientização para os moradores. praça na hora da entrevista.
Vemos que estas crianças contaram o que são e como veem o mundo através de suas
falas, de seus textos deixando “suas marcas”, sua autoria. Falavam de seu dia-a-dia, dos
espaços que os acolhiam diariamente, dos adultos com que eles se relacionavam. Foi
importante percebê-los como autores de suas próprias histórias, e o mais surpreendente, como
eles conseguiram transpor para o telejornal, ao mesmo tempo, a narrativa de todos dentro da
história de cada profissional que eles escolheram entrevistar. Eles atribuíram ao “J.P.” um
sentido de pertencimento e fizeram dele instrumento para contar suas histórias.
Coube a equipe de redação elaborar as perguntas a serem feitas aos entrevistados, bem
como os textos de apresentação do “J.P.” e também os textos de introdução de cada entrevista.
A equipe de reportagem ficou responsável pelos convites aos entrevistados, a apresentação
prévia do telejornal para cada pessoa convidada, o agendamento dos locais de gravação e a
realização das conversas e reportagens externas. Ao final de trinta dias letivos, tínhamos
gravado todas as entrevistas e a apresentação do nosso telejornal. Toda a parte de edição ficou
sob minha responsabilidade, devido à inexistência de softwares específicos no laboratório de
informática da escola e também horários disponíveis para a utilização do mesmo. A edição
demorou cerca de doze horas (que dividi em um final de semana). Quando o “Jornal do
Projeto” ficou pronto: produzido, editado e gravado, confeccionamos convites personalizados
e convidamos todos os entrevistados, a equipe de gestão da escola e a Secretaria Municipal de
Educação para uma exibição “formal” do nosso telejornal, com direito a pipoca e refrigerante.
Todos que estavam presentes na exibição se encantaram com a qualidade do trabalho
realizado pelos alunos. Os entrevistados ficaram perplexos com a forma que as crianças
encontraram de narrar o trabalho desenvolvido por eles no projeto e na escola. Entre olhos
brilhantes e sorrisos espontâneos, em mim permanecia a sensação de dever cumprido. E não
falo do sucesso do telejornal. Falo da realização de algo que vinha construindo com meus
alunos desde o início do ano letivo: a autoestima e a confiança na capacidade deles enquanto
sujeitos autores e protagonistas na construção de um conhecimento coletivo.
O exercício ao qual me propus na escrita deste texto foi de buscar em meus registros,
no vídeo do “J.P.” e em minha memória, indícios (GINZBURG, 1989) que me permitissem
olhar para o que foi a experiência de construir um telejornal com meus alunos. Buscar
elementos que hoje, com um olhar exotópico talvez eu consiga perceber.
Exotopia, palavra que se analisada em seu sentido etimológico tem-se o prefixo “ex”
que significa fora e “topos” que expressa lugar, ou seja, é um olhar externo, de fora do seu
lugar. Baseio-me também no conceito de exotopia apresentado por Bakhtin (1997), que
entende exotopia como o olhar do outro sobre mim, um olhar que eu jamais terei de mim
mesmo, estando no lugar que estou (o eu).
Propus-me nesta escrita fazer esse movimento exotópico de olhar com outros olhos a
experiência de produzir um telejornal com meus alunos, trazendo uma narrativa e buscando
evidenciar as principais dimensões dessa vivência. Agora, do lugar de autora-pesquisadora,
proponho-me a elencar pontos que percebo como importantes para a reflexão e para o diálogo
com alguns autores.
O primeiro é com relação à leitura que os alunos fizeram de seu cotidiano, de seus
lugares, de suas vidas. Freire (1996) nos fala da importância de poder ler o mundo dos
educandos. Essa leitura deve preceder a leitura da palavra, não com a finalidade de abandonar
a especificidade da educação, mas sim com o intuito de se constituir uma ponte entre a
realidade dos alunos e os conteúdos aprendidos em sala de aula. Desse modo, o que o aluno
aprende encontra sentido com o que ele vive. Não é um sentido utilitário, pragmático, mas
sim dialógico e significativo.
1
A ideia de “marcas de alteridade” surgiu entre as autoras em conversa mantida em encontro de orientação
(agosto 2012).
professora: as vozes. Saber ouvir o que outro diz e se permitir compreender o enunciado. Das
muitas as vozes dentro do contexto escolar, algumas “gritam”, outras falam tão baixo que é
quase impossível percebê-las. Vozes não apenas no sentido sonoro, mas também no sentido
da linguagem. Vozes podem ser uníssonas ou desarmônicas, estridentes ou graves, podem ser
até silenciosas. As vozes do silêncio muitas vezes nos dizem mais do que as que ouvimos com
clareza diariamente. Dentro do ambiente escolar, saber identificar, diferenciar e dialogar com
estas vozes é fundamental para transformarmos a nossa prática. Para o professor iniciante tais
vozes aparecem como lições a serem aprendidas. Mas é preciso estar atento ao que se ouve.
Dentro da cultura escolar existem vozes imperativas, que fazem calar o professor. Mas
existem também as vozes emancipatórias, que nos impulsionam e nos transformam. Ao
professor iniciante cabe educar os ouvidos à percepção de que vozes são essas que falam,
sobre o que falam e como falam. De uma forma ou de outra, esse movimento de escutar e
dialogar com as vozes presentes na escola aparece como uma dimensão formativa, que pode
formar este professor para a emancipação ou para o embrutecimento (RANCIÈRE, 2002).
Evidencio que a princípio dei ouvidos às vozes imperativas e desqualifiquei meu trabalho
como professora de projeto. Entretanto, quando me permiti ouvir as vozes de meus alunos,
descobri o quanto eu era importante para eles naquele contexto e a partir de então busquei
mostrar o meu valor, o valor daquilo que eu ensinava para os meninos e meninas do projeto e
sua importância para a formação deles. Ambas as vozes foram importantes em minha
constituição como docente: as vozes imperativas no sentido de me mostrar a complexidade da
profissão, sua hierarquia e seus valores e as vozes emancipatórias que me deram coragem para
sustentar a minha prática e a minha busca na construção de um conhecimento coletivo com
meus alunos.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. [tradução
feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina
Appenzellerl] (Coleção Ensino Superior).
GHIDOTTI, V. Dinâmica de uma sala de aula Freinet: vivências com as crianças e o uso
dos instrumentos. Campinas: [s/n.], 2006
KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. 3.ed. (3ª impressão). São Paulo:
Editora Ática, 2003.