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Imigração alemã: colonização se

dá em diferentes municípios do
Rio Grande do Sul

A Revolução Farroupilha atrapalhou os planos dos


colonizadores alemães por 10 anos
24/02/2024 | 7:05
Por Felipe Faleiro

Em outras frentes da colonização, parte deles se dirigiu até ao Vale do Caí, iniciando
por São José do Hortêncio, por volta de 1828, e se dirigindo a Bom Princípio,
Tupandi e Salvador do Sul. Com a Revolução Farroupilha, em 1835, houve
dificuldades na continuidade dos planos colonizadores da província e, assim, o
processo de chegadas foi interrompido, embora aumentassem as áreas já ocupadas
pelos imigrantes. Com o final do conflito, dez anos mais tarde, a decisão de acolher
estrangeiros deixou de ser do Império e passou a ser a cargo da província, diz a
professora Lissi. O projeto, então, foi retomado.

Outra parte deles, provenientes das regiões da Renânia, Pomerânia e Silésia, chegou
à chamada Colônia Santa Cruz, fundada no atual município de Santa Cruz do Sul, no
Vale do Rio Pardo em 1847, fixando-se dois anos mais tarde. “Com sua chegada, a
Colônia Santa Cruz inaugura a segunda fase de imigração alemã no Rio Grande do
Sul”, afirmou a professora Lissi Bender, vice-presidente da Academia de Letras de
Santa Cruz do Sul, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Tübingen, na
Alemanha e vencedora, em 2016, do prêmio Distinção Imigração Alemã, promovido
pela Federação dos Centros de Cultura Alemã no Brasil.

Estes vieram a partir do navio nomeado Bessel. “Com emprego do trabalho em


regime familiar e apoio mútuo entre os imigrantes, sem mão de obra escrava, eles
conseguiram superar a produção de subsistência após apenas dez anos do início da
chegada. E não foram necessários mais do que 28 anos para a colônia atingir sua
emancipação”, acrescentou ela. As três outras colônias pioneiras, entre 1825 e
1826, foram São Borja, São Pedro de Alcântara, hoje município de Dom Pedro de
Alcântara, e Três Forquilhas, as duas últimas no litoral norte gaúcho, incluindo
também parte dos territórios de Torres e Itati.
Grupos também se estabeleceram no Vale do Taquari, em colônias recém-criadas
nas planícies de territórios dos atuais municípios de Estrela, Lajeado, Arroio do
Meio, Forquetinha e Colinas, por volta de 1853. Ainda se dirigiram ao sul do Estado,
com 88 pessoas alcançando São Lourenço do Sul em 1858. Em Nova Petrópolis, na
Encosta da Serra, pomeranos, saxões e, mais tarde, boêmios de língua alemã
chegaram entre 1858 e 1859.

Por outro lado, grupos da Renânia, Saxônia e Pomerânia chegaram ao atual


território de Agudo a partir de 1857. Imigrantes da Westfália iniciaram a colonização
de Teutônia a partir de 1868 — inclusive, há hoje na região o município vizinho de
Westfália. Em 1871, ocorre o processo de unificação dos reinos para a formação da
Alemanha e, com efeito, o novo Estado-nação passa a reconhecer os imigrantes
como alemães, explica Trespach.
Em 1902, a recém-fundada associação de agricultores Bauerverein, sediada em São
José do Hortêncio, adquire terras nas áreas onde hoje estão municípios como Cerro
Largo, São Pedro do Butiá e Salvador das Missões, na região das Missões, para a
criação das chamadas “novas colônias” entre os rios Ijuí e Comandaí, em oposição às
“colônias velhas” existentes nos demais locais. “Faltou espaço para a produção
agrícola na Grande Porto Alegre, porque a imigração alemã veio, em grande parte,
para a produção de alimentos.

Houve, então, planejamento técnico para um avanço maior ao interior”, conta


Guido Hentz, historiador e voluntário à frente do Museu 25 de Julho, mantido pelo
centro cultural homônimo. “Foi iniciada uma comissão para estudar locais com boa
natureza, áreas e terras e isso foi localizado em Cerro Largo”, acrescentou. Segundo
ele, o Império intencionava a construção de ferrovias na área, mas a ideia não foi
adiante por falta de recursos. A partir daí, a região passou a ser colonizada por este
novo fluxo de imigrantes, com a criação de igrejas e escolas comunitárias.

A partir da década de 1910 e por um período de 30 anos, houve uma explosão no


número de ingressantes no Brasil. Conforme o IBGE, o auge deste processo foi na
década entre 1920 e 1929, no período histórico entre guerras, com o desembarque
de 75.801 pessoas. O centenário da imigração, em 1924, foi celebrado com festa ,e
em São Leopoldo, o dia 25 de julho foi feriado. Este ano “marcou uma nova etapa da
presença dos imigrantes e descendentes de alemães no Brasil”, afirma artigo das
pesquisadoras Roswithia Weber e Eloisa Capovilla Ramos, publicado em 2014.

Em Porto Alegre, a data foi celebrada na Sociedade Leopoldina, com a presença do


então presidente do estado, Borges de Medeiros, o intendente municipal, José
Montaury, e o cônsul da Alemanha, Henrique Daehnhardt. Conforme elas, uma das
intenções das celebrações era resgatar a antiga glória alemã, arrasada após a
derrota na Primeira Guerra Mundial. No ano seguinte, 1925, foi inaugurado em São
Leopoldo o Monumento ao Imigrante, no local onde teria havido o desembarque
dos pioneiros.
Dificuldades durante a Guerra

Enchente na rua Independência, na quadra entre as ruas Osvaldo Aranha e Brasil, em 1941. Foto: Museu
Histórico Visconde de São Leopoldo / Divulgação / CP

A vida dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, ocorrida entre 1939 e 1945,
foi complicada para os imigrantes e descendentes, já que a nação europeia figurava
entre os países do Eixo, em lado oposto ao brasileiro durante o conflito. Desta
forma, novamente o processo de colonização foi interrompido. Quem estava no
Brasil foi proibido por Getúlio Vargas de falar a língua alemã e houve perseguição do
governo mesmo a quem não era simpatizante do nazismo.

Nessa época, surgiu a figura da Oktoberfest, que, conforme registra o IBGE, surgiu
como uma forma de manifestação contra as sanções governamentais das atividades
culturais que representavam a germanidade. Entre 1940 e 1949, 6,8 mil alemães
ingressaram em território brasileiro, o segundo menor número de todo o período.
Na década seguinte, novo salto, agora para 16,6 mil, e, entre 1960 e 1969, houve a
entrada de 5,6 mil.
Aproximação entre países

As décadas passaram, a tecnologia evoluiu e o mundo tornou-se globalizado. Já as


relações entre Brasil e Alemanha foram novamente fortalecidas. Entre 1994 e 1995,
começou no Rio Grande do Sul o projeto turístico Rota Romântica, movimento que
ganhou força em 1996, quando uma delegação gaúcha foi conhecer a Romantische
Straße alemã. Hoje, 14 cidades, ligadas por rodovias como a BR 116, fazem parte da
Associação de Municípios da Rota Romântica. “Temos como foco principal fomentar
o turismo e a cultura através da preservação da cultura alemã, atrativos e
peculiaridades de cada município, língua, usos e costumes, música e corais,
culinária, e, acima de tudo, a sempre louvada hospitalidade de seu povo”, afirma a
presidente da associação, Terezinha Haas.

Veio o século XXI e, em 2019, nove cidades lançaram o projeto Vale Germânico:
Caminhos da Imigração, homologado pelo Ministério do Turismo no ano seguinte.
Atualmente, 14 municípios integram o caminho, embora nem todos os integrantes
da Rota Romântica estejam nela. Em 2021, o governador Eduardo Leite instituiu por
decreto a Comissão Oficial do Bicentenário da Imigração Alemã no RS, conectando
representantes de secretarias estaduais, universidades, entidades civis, empresariais
e religiosas, com previsão de celebrações durante todo o ano de 2024.

“Quando os imigrantes chegaram aqui em várias levas, tiveram muitos encontros


culturais e isso ajudou a forjar a população gaúcha. O ponto é que este assunto é
bastante complexo, então esta comissão é muito interessante para dar conta disto”,
explica Gessinger. O grupo está dividido em 12 subcomissões, cada uma responsável
por uma área do conhecimento, tanto do passado, assunto para as subcomissões de
História da Imigração Alemã e Folclore, por exemplo, como do presente, como as de
Exposições, Desenvolvimento Econômico e Cidadania e Direitos Humanos, e do
futuro, a ser debatido pela subcomissão de Ciência e Inovação. No entanto, a
intenção é que elas sejam multissetoriais, promovendo debates e buscando
preservar estas raízes.
Uma herança formada de arte, cultura e trabalho

A Rua Independência, em São Leopoldo, em 1924. Na esquina, é possível identificar o antigo prédio da Casa
Mena. Em frente, a Joalheria Sauter. Foto: Museu Histórico Visconde de São Leopoldo / Divulgação / CP

As marcas tangíveis da imigração estão em diversos locais do Rio Grande do Sul,


sendo a arquitetônica uma das que mais atrai turistas.

No início do século XX, Theo Wiederspahn, projetista, entre outros, do Hotel


Majestic, hoje Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ), da sede da Sogipa e do
Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), todos em Porto Alegre, foi um dos
maiores expoentes desta área.

Alguns locais misturam história e contemplação natural, a exemplo do Núcleo de


Casas Enxaimel, no município de Ivoti. Outros relembram o passado, como o
Memorial ao Imigrante Alemão, em Montenegro, da antiga sede da Unisinos, em
São Leopoldo, e do templo de confissão luterana mais antigo do Brasil em
funcionamento, datado de 1850, e localizado em Lindolfo Collor. Muitos destes
edifícios são tombados pelo patrimônio histórico nacional e estadual.
O legado também é educacional e linguístico. Levantamento de 2018 mostra que
mais de 200 escolas gaúchas ensinavam o alemão, o maior número do país, e o
idioma germânico é o segundo mais falado no Rio Grande do Sul.

Destaca-se ainda o dialeto Hunsrückisch, derivado da base falada nas regiões de


Hunsrück e Renânia Central, na Alemanha, e falado por mais de 1 milhão de
brasileiros, sendo idioma cooficial nos municípios de Santa Maria do Herval e Barão.

Ainda na área cultural, o nome do desenhista, gravurista e pintor Pedro


Weingärtner, nascido e falecido em Porto Alegre, nos anos de 1853 e 1929,
respectivamente, é lembrado entre os que retrataram o cotidiano das colônias
alemãs e gauchescas em sua época.

Na literatura, a imigração alemã e alguns de seus episódios particulares, como a


Revolta dos Muckers, foram descritas no Brasil em obras como os romances “A
Ferro e Fogo” (1972), de Josué Guimarães, “Videiras de Cristal” (1990), de Luiz
Antônio de Assis Brasil, que inspirou o filme “A Paixão de Jacobina” (2002), dirigido
por Fábio Barreto, e, ainda no cinema, em películas como “A Colmeia” (2022), do
diretor Gilson Vargas, e o clássico “Os Mucker” (1978), de Jorge Bodanzky e Wolf
Gauer.

A Oktoberfest permaneceu como uma festa relevante turística, cultural e


economicamente, ocorrendo em municípios como Igrejinha, Santa Cruz do Sul e,
mais recentemente, Porto Alegre. Também há a forte presença, principalmente no
interior gaúcho, de bailes de kerb, sociedades, coros, orquestras e grupos temáticos,
a exemplo do Danças Folclóricas Alemãs de Estrela, fundado em 1964 no município
do Vale do Taquari e o mais antigo ainda em atividade no Brasil.

Porto Alegre conta com um Consulado-Geral da Alemanha, a Câmara Brasil-


Alemanha no RS (AHKRS) e uma das cinco sedes brasileiras do Goethe-Institut,
instituição do governo alemão para fomentar o ensino do idioma germânico.
Empresas alemãs têm negócios no RS, com destaque para a Fraport, gestora, entre
outros, do Aeroporto Internacional Salgado Filho, na Capital, além de montadoras
de automóveis e demais maquinários.
Os imigrantes deixaram um legado histórico inquestionável, bem como farto
material escrito e visual. Desta maneira, hoje é possível pesquisar nomes e
biografias de praticamente todos aqueles que desembarcaram nas ondas pioneiras
da colonização, assim como os que vieram posteriormente. Em 2022, um grupo de
pesquisadores da PUCRS atualizou uma lista com mais de cinco mil referências
acadêmicas sobre imigração e colonização alemã no Rio Grande do Sul, não
incluindo trabalhos de conclusão de cursos (TCCs).

Registra-se, por exemplo, o histórico de Mathias Mombach. Nascido em Echternach,


Luxemburgo, em março de 1787, foi oficial imperial e guarda pessoal de Napoleão,
lutando em todas as batalhas, tanto nas vitórias quanto nas campanhas da Rússia e
de Waterloo, nas quais o general foi derrotado. Assim como muitos dos demais
germânicos, Mombach veio ao Brasil junto à família por volta de 1829, instalando-se
onde atualmente está a comunidade do Walachai, no município de Morro Reuter.

É, desta forma, considerado o primeiro morador do local. Mesmo com cerca de 60


anos de idade, ele tornou-se alferes da Guarda Nacional a serviço do imperador
Dom Pedro II. Guerreiro veterano, ficou conhecido como “caçador de Farrapos”,
devido a sua inimizade com os revoltosos na ocasião da Revolução Farroupilha.
Outro nome associado ao pioneirismo é o do padre Theodor Amstad, criador, na
Linha Imperial, hoje interior de Nova Petrópolis, do primeiro sistema de
cooperativismo de crédito da América Latina, em dezembro de 1902, a Caixa de
Economia e Empréstimos Amstad.

Posteriormente, os demais centros de colonização replicaram a ideia, passando a ser


coordenadas por uma central única, sediada em Porto Alegre. Neste sistema, os
colonos depositavam as sobras de suas economias, que, então, eram reaplicadas na
mesma região ou emprestadas a outros moradores locais necessitados. Deu certo e,
anos mais tarde, a união das cooperativas se tornaria o Sicredi, hoje com atuação
em todo o Brasil.
De origem alemã, também há diversos locais esportivos e culturais de Porto Alegre,
como Grêmio Náutico União (GNU), Sogipa, Associação Leopoldina Juvenil, Clube
Caixeiros Viajantes e o Centro Cultural 25 de Julho, além de hospitais como o
Moinhos de Vento. Por meio de um processo gradativo de aculturação, iniciada em
São Leopoldo, não à toa considerado o berço da colonização alemã no Brasil, os
pioneiros e os que vieram posteriormente superaram as dificuldades de uma terra
então estranha, gerando marcas indeléveis na sociedade gaúcha.

Neste contexto, os alemães costumam valer-se do conceito consolidado de Heimat,


ou “pátria”, algo com que os chegados tiveram de lidar com suor e sacrifício, mesmo
a um oceano de distância de sua terra natal. “Com seus saberes, seus
conhecimentos, sua fé, seu trabalho e sua visão de mundo, imigrantes muito
contribuíram para a construção de nosso lugar e nos deixaram um vasto legado
cultural. Tudo isso contribuiu e contribui para singularizar nosso espaço de viver”,
afirma a professora Lissi.

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