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Sempre que me pedem uma exposição breve sobre o ramo do direito ao qual
tenho dedicado à minha vida, lembro-me das desventuras de um Prefeito-
empresário que conheci em um congresso sobre Municípios. Depois de ouvir
minha palestra, o homem levantou-se do auditório e com um jeito simpático,
mas sem qualquer piedade, passou a desancar o direito administrativo e os
franceses. Sob as gargalhadas e aplausos entusiasmados da plateia, composta
exclusivamente de Prefeitos, ele encerrou profeticamente seu quase-discurso: -
“Ou a gente acaba com o tal direito administrativo ou ele acaba com a gente!”
Na saída, o homem me abordou para pedir desculpas pelo excesso e dizer que
nada havia de pessoal em sua proposta. Estava apenas pensando no Brasil...
Daí, contou sua história.
Depois de comandar durante 28 anos a empresa de sua família, em uma
cidade de porte médio, resolveu se candidatar ao cargo de Prefeito. Durante a
campanha, prometeu empregar sua bem-sucedida fórmula empresarial na
administração do Município. Foi eleito. Levou para a Prefeitura, como
secretários e assessores, os mais experientes empregados de sua empresa,
inclusive o advogado de confiança, um homem inventivo e culto, responsável
pela montagem jurídica de todos os negócios importantes que realizara na
vida.
Mas ficou decepcionado com seu antigo conselheiro, já agora feito Procurador-
Geral do Município. No cargo, este perdeu o brilho e o ímpeto; virou um
burocrata, apaixonado por papéis, prazos, publicações, formalidades. Não
demorou e ele se pôs a criar dificuldades para qualquer coisa, uma enxurrada
de nãos sem fim (- “Não, Prefeito, iniciar a obra amanhã não é possível; o
contrato com a empreiteira precisa ser publicado antes”. - “Nem pense nisso.
Eu
sei que o preço parece bom, mas comprar carteiras escolares depende de
licitação”. - “Impossível, Prefeito. Não há autorização legal para a Prefeitura
impedir o fumo na via pública”).
Quem diria? Logo ele, que aparentava tanta cultura jurídica, acabou também
perdendo a autoconfiança (- “Eu não sei responder agora. Prefeito, se é
possível vender o prédio do mercado municipal para quitar dívidas do
Município; parece que há umas condições, muito complicadas, a atender!”).
O pior, então, foram as humilhações que o Prefeito acabou suportando, uma
em seguida à outra, sem que o advogado o impedisse. Primeiro, foi a ordem do
Juiz da Comarca - quase um menino - proibindo o uso do aterro sanitário
recém-inaugurado, por problemas ambientais. Depois, a sustação, pela
Câmara de Vereadores, do contrato envolvendo toda a publicidade da
Prefeitura, que fora considerado ilegal pelo Tribunal de Contas (por falta de
licitação, ai meu Deus!). A gota d'água foi a divulgação de um parecer, da
própria Procuradoria do Município, entendendo nulo, por ilegalidade, um ato do
Prefeito: como se não bastasse a ousadia de assinar um texto assim, o
Procurador ainda deixou o interessado tirar uma cópia, que fez a delícia dos
jornais!
O Procurador-Geral, desgostoso de tudo, pediu exoneração. O sucessor, que
logo apareceu com os mesmos vícios, também não durou no cargo. E a história
foi se repetindo, até que, um tanto a sério um tanto por desforra, o Prefeito
anunciou pela imprensa que iria nomear um engenheiro para o posto de
Procurador-Geral. Foi impedido por uma liminar (mais uma!).
Estressado, o Prefeito buscou conselho com um desembargador aposentado,
que mantinha uma chácara na cidade. Perguntou-lhe se a causa de seus
problemas não seria um complô. Ficou sabendo que não: a causa era mesmo o
direito administrativo, coisa de franceses. Por isso, tomou ódio do tal direito
administrativo - e dos franceses.
Nesse ponto estava, no dia em que o conheci.
Saí de lá pensando que o direito administrativo - a parte do ordenamento
jurídico voltada à disciplina da organização, funcionamento e controle da
Administração Pública e, em consequência, de suas relações com terceiros -
talvez seja mesmo o inferno dos administradores. Sua missão parece ser essa,
aliás.
É verdade que o ordenamento confere à Administração Pública uma série de
poderes inexistentes em outros campos (nas relações entre empresas, entre
vizinhos etc.). Ela edita regras, fiscaliza, aplica multas, expede licenças,
requisita bens, inicia desapropriações, lança impostos. Desse ponto de vista, é
bem melhor ser o poderoso Prefeito do que um diretor de empresa - que,
manobrando no campo do direito privado, não exerce qualquer autoridade e
tem de se virar na base do consenso. Uma boa parte da especificidade do
direito administrativo vem daí: da circunstância de regular o exercício de
autoridade pública, materializando-se em uma série de institutos de que o
direito privado nem cogita (como a desapropriação, o tombamento, a
requisição, a servidão administrativa, a licença, a autorização, a revogação
etc.).
Mas não é só. A atividade administrativa é desenvolvida por uma máquina,
uma certa estrutura (pessoas políticas, órgãos. Administração direta e indireta,
autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações
governamentais, servidores públicos...). Sua organização, relativamente
complexa e bastante peculiar, baseia-se em uma série de regras: normas de
direito administrativo.
Inevitável que o antigo advogado de empresa, mesmo culto, sentisse
insegurança quando defrontado com as questões jurídicas da Administração
Municipal: elas envolvem um universo todo particular. Como qualquer outro
ramo da árvore jurídica, o direito administrativo tem seus modos, suas
tradições - sua cultura, enfim, que as normas incorporam. A parcela da ciência
jurídica dedicada a seu estudo - isto é, a doutrina do direito administrativo -
vale-se de termos, conceitos, classificações, lugares-comuns etc., nem sempre
familiares ao profissional do direito privado.
Tudo isso se complica porque, ao contrário de outros ramos, o direito
administrativo não está codificado. Enquanto o direito civil pode ser, por assim
dizer, “comprado” em uma livraria, pois suas normas estão em grande parte
reunidas e organizadas em um livro (um código), o administrativo está disperso
por todo lado, inclusive na forma de princípios apenas implícitos no
ordenamento.
Duas classificações são indispensáveis para o iniciante localizar
adequadamente o direito administrativo no mundo do direito e, em seguida,
começar a entendê-lo. A primeira é a que distingue os dois grandes ramos do
direito: o privado e o público: a segunda, a que separa as funções do Estado
em judicial, legislativa e administrativa.
As características do direito administrativo, um ramo do direito público,
afirmam-se, em primeiro privado: lugar, por oposição ao direito
Constituição
Lei
Ato administrativo