Você está na página 1de 6

Texto do Prof.

Carlos Ari Sundfeld – FGV Direito SP

O que é Direito Administrativo?

Sempre que me pedem uma exposição breve sobre o ramo do direito ao qual
tenho dedicado à minha vida, lembro-me das desventuras de um Prefeito-
empresário que conheci em um congresso sobre Municípios. Depois de ouvir
minha palestra, o homem levantou-se do auditório e com um jeito simpático,
mas sem qualquer piedade, passou a desancar o direito administrativo e os
franceses. Sob as gargalhadas e aplausos entusiasmados da plateia, composta
exclusivamente de Prefeitos, ele encerrou profeticamente seu quase-discurso: -
“Ou a gente acaba com o tal direito administrativo ou ele acaba com a gente!”
Na saída, o homem me abordou para pedir desculpas pelo excesso e dizer que
nada havia de pessoal em sua proposta. Estava apenas pensando no Brasil...
Daí, contou sua história.
Depois de comandar durante 28 anos a empresa de sua família, em uma
cidade de porte médio, resolveu se candidatar ao cargo de Prefeito. Durante a
campanha, prometeu empregar sua bem-sucedida fórmula empresarial na
administração do Município. Foi eleito. Levou para a Prefeitura, como
secretários e assessores, os mais experientes empregados de sua empresa,
inclusive o advogado de confiança, um homem inventivo e culto, responsável
pela montagem jurídica de todos os negócios importantes que realizara na
vida.
Mas ficou decepcionado com seu antigo conselheiro, já agora feito Procurador-
Geral do Município. No cargo, este perdeu o brilho e o ímpeto; virou um
burocrata, apaixonado por papéis, prazos, publicações, formalidades. Não
demorou e ele se pôs a criar dificuldades para qualquer coisa, uma enxurrada
de nãos sem fim (- “Não, Prefeito, iniciar a obra amanhã não é possível; o
contrato com a empreiteira precisa ser publicado antes”. - “Nem pense nisso.
Eu
sei que o preço parece bom, mas comprar carteiras escolares depende de
licitação”. - “Impossível, Prefeito. Não há autorização legal para a Prefeitura
impedir o fumo na via pública”).
Quem diria? Logo ele, que aparentava tanta cultura jurídica, acabou também
perdendo a autoconfiança (- “Eu não sei responder agora. Prefeito, se é
possível vender o prédio do mercado municipal para quitar dívidas do
Município; parece que há umas condições, muito complicadas, a atender!”).
O pior, então, foram as humilhações que o Prefeito acabou suportando, uma
em seguida à outra, sem que o advogado o impedisse. Primeiro, foi a ordem do
Juiz da Comarca - quase um menino - proibindo o uso do aterro sanitário
recém-inaugurado, por problemas ambientais. Depois, a sustação, pela
Câmara de Vereadores, do contrato envolvendo toda a publicidade da
Prefeitura, que fora considerado ilegal pelo Tribunal de Contas (por falta de
licitação, ai meu Deus!). A gota d'água foi a divulgação de um parecer, da
própria Procuradoria do Município, entendendo nulo, por ilegalidade, um ato do
Prefeito: como se não bastasse a ousadia de assinar um texto assim, o
Procurador ainda deixou o interessado tirar uma cópia, que fez a delícia dos
jornais!
O Procurador-Geral, desgostoso de tudo, pediu exoneração. O sucessor, que
logo apareceu com os mesmos vícios, também não durou no cargo. E a história
foi se repetindo, até que, um tanto a sério um tanto por desforra, o Prefeito
anunciou pela imprensa que iria nomear um engenheiro para o posto de
Procurador-Geral. Foi impedido por uma liminar (mais uma!).
Estressado, o Prefeito buscou conselho com um desembargador aposentado,
que mantinha uma chácara na cidade. Perguntou-lhe se a causa de seus
problemas não seria um complô. Ficou sabendo que não: a causa era mesmo o
direito administrativo, coisa de franceses. Por isso, tomou ódio do tal direito
administrativo - e dos franceses.
Nesse ponto estava, no dia em que o conheci.
Saí de lá pensando que o direito administrativo - a parte do ordenamento
jurídico voltada à disciplina da organização, funcionamento e controle da
Administração Pública e, em consequência, de suas relações com terceiros -
talvez seja mesmo o inferno dos administradores. Sua missão parece ser essa,
aliás.
É verdade que o ordenamento confere à Administração Pública uma série de
poderes inexistentes em outros campos (nas relações entre empresas, entre
vizinhos etc.). Ela edita regras, fiscaliza, aplica multas, expede licenças,
requisita bens, inicia desapropriações, lança impostos. Desse ponto de vista, é
bem melhor ser o poderoso Prefeito do que um diretor de empresa - que,
manobrando no campo do direito privado, não exerce qualquer autoridade e
tem de se virar na base do consenso. Uma boa parte da especificidade do
direito administrativo vem daí: da circunstância de regular o exercício de
autoridade pública, materializando-se em uma série de institutos de que o
direito privado nem cogita (como a desapropriação, o tombamento, a
requisição, a servidão administrativa, a licença, a autorização, a revogação
etc.).
Mas não é só. A atividade administrativa é desenvolvida por uma máquina,
uma certa estrutura (pessoas políticas, órgãos. Administração direta e indireta,
autarquias, sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações
governamentais, servidores públicos...). Sua organização, relativamente
complexa e bastante peculiar, baseia-se em uma série de regras: normas de
direito administrativo.
Inevitável que o antigo advogado de empresa, mesmo culto, sentisse
insegurança quando defrontado com as questões jurídicas da Administração
Municipal: elas envolvem um universo todo particular. Como qualquer outro
ramo da árvore jurídica, o direito administrativo tem seus modos, suas
tradições - sua cultura, enfim, que as normas incorporam. A parcela da ciência
jurídica dedicada a seu estudo - isto é, a doutrina do direito administrativo -
vale-se de termos, conceitos, classificações, lugares-comuns etc., nem sempre
familiares ao profissional do direito privado.
Tudo isso se complica porque, ao contrário de outros ramos, o direito
administrativo não está codificado. Enquanto o direito civil pode ser, por assim
dizer, “comprado” em uma livraria, pois suas normas estão em grande parte
reunidas e organizadas em um livro (um código), o administrativo está disperso
por todo lado, inclusive na forma de princípios apenas implícitos no
ordenamento.
Duas classificações são indispensáveis para o iniciante localizar
adequadamente o direito administrativo no mundo do direito e, em seguida,
começar a entendê-lo. A primeira é a que distingue os dois grandes ramos do
direito: o privado e o público: a segunda, a que separa as funções do Estado
em judicial, legislativa e administrativa.
As características do direito administrativo, um ramo do direito público,
afirmam-se, em primeiro privado: lugar, por oposição ao direito

Direito Administrativo x Direito Privado


Interesses públicos x Interesses privados
Autoridade x Igualdade
Relações jurídicas verticais x Relações jurídicas horizontais
Legalidade x Liberdade
Função x Autonomia da vontade Formalismo x Informalismo
Publicidade x Intimidade

As normas de direito administrativo regulam a realização do interesse público e


conferem à Administração, encarregada de buscá-lo, poderes de autoridade,
cujo exercício produz relações jurídicas verticais (em que ela tem uma posição
de superioridade frente ao particular). Mas esses poderes são muito
condicionados: a Administração só os tem quando previstos em lei (legalidade);
seu exercício não é mera faculdade, mas dever do administrador, e só pode
ocorrer para realizar os fins previstos em lei (função). Para permitir seu registro
e controle, a ação administrativa está sujeita à publicidade e ao formalismo,
exigindo a realização de procedimentos e a observância de inúmeros requisitos
formalísticos.
Justamente aqui entram os franceses. Querendo impedir que o Poder
Executivo ficasse sujeito aos juízes (membros da nobreza contrariada com a
Revolução Francesa), os revolucionários franceses atribuíram a missão de
julgar os atos da Administração a um órgão que a integrava, o Conselho de
Estado. Esse órgão, percebendo a incompatibilidade entre as normas do
Código Civil e os problemas da Administração, é que viria a afirmar a
necessidade de, para resolvê-los, ser utilizado um “outro direito", o
administrativo, construído em oposição ao então existente, o civil. A
jurisprudência do Conselho de Estado foi, a pouco e pouco, identificando os
pontos do Código Civil que não deviam aplicar-se à Administração e, a seguir,
enunciando as normas que, estas sim, serviam ao caso. Ao conjunto dessas
normas denominou-se direito administrativo.
As especificidades do direito administrativo, enquanto direito da função
administrativa que é, revelam-se também no confronto entre os conceitos de
função administrativa e de função legislativa:

Função Administrativa x Função Legislativa


Submissão à lei x Submissão à Constituição

Meu colega de congresso, ao tomar a imprudente decisão de empossar-se


como Prefeito - e, malgrado seu, de sujeitar-se ao direito administrativo -, o que
fez foi colocar-se ao mesmo tempo debaixo da Constituição e das leis.
Realmente, o direito administrativo, tal qual nós o conhecemos, é fruto da
separação de Poderes e da hierarquia normativa que dele deriva, nesta
sequência:

Constituição
Lei
Ato administrativo

As normas constitucionais estão no topo da pirâmide jurídica e organizam o


exercício do poder político, dividindo-o em funções (legislativa, judicial e
administrativa), atribuídas precipuamente a cada um dos Poderes (Legislativo,
Judiciário, Executivo). O Legislativo edita a lei, que se submete diretamente à
Constituição, e a Administração Pública produz atos administrativos,
submetidos imediatamente à lei e dependentes dela.
A direta dependência entre a lei e os atos do administrador está na origem das
angústias de meu amigo Prefeito, que por certo é um homem poderoso, mas
não o todo poderoso. No exercício do cargo, ele não pode fazer o que quer, o
que acha bom ou justo; deve fazer o que a lei manda - e nada mais.
O direito administrativo - resultado, no campo do direito, da implantação de
certo modelo político, o do chamado Estado de Direito - liga-se a este
fundamental objetivo: o da negação do poder arbitrário. Daí o princípio da
legalidade, em virtude do qual os atos administrativos não poderão ser fruto
dos caprichos das autoridades. Daí, também, a submissão de toda a ação
administrativa a diferentes níveis de controle, sem o que não há como impedir
ó arbítrio.
A necessidade de viabilizar o amplo controle de legalidade de cada ato
administrativo é uma das principais responsáveis pela (por assim dizer)
“burocratização” do modo de agir do Estado, expressa em exigências como as
de realizar procedimentos, de motivar os atos, de publicá-los etc. Flexibilidade
e informalismo impediriam o indispensável controle.
Talvez a mais ardente chama do inferno dos administradores seja a resultante
da articulação das funções administrativa e judicial. Nenhum ato administrativo
é definitivo; todos podem ser levados ao exame do Judiciário, para aferição de
sua legalidade. Isso gera uma inevitável interferência dos juízes no fluxo da
ação administrativa, a qual, inclusive por decisões liminares e provisórias, pode
ser paralisada, proibida ou dirigida para rumo diverso. Em suma, um inferno!
Aceitando a provocação (“Ou a gente acaba com o tal direito administrativo ...”)
tentei, sem muito sucesso, convencer meu interlocutor da inviabilidade de sua
proposta. O direito administrativo é um “direito constitucionalizado”, vale dizer,
um direito que decorre necessariamente da Constituição. Sem mudar o próprio
modelo de Estado imposto constitucionalmente, simplesmente não há como
varrer o direito administrativo da face do País.
Ao dizer isso, passei ao Prefeito meu exemplar da Constituição e lhe pedi que
lesse o caput do art. 37. Meio contrariado, ele impostou a voz e leu:
“Art. 37. A administração pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e,
também, ao seguinte: (...)”.
Esse dispositivo enuncia algumas normas fundamentais do direito
administrativo. Expliquei:
- Legalidade, a Administração não desfruta de liberdade; só podendo agir na
aplicação de leis;
- Impessoalidade, os atos da Administração devem tratar isonomicamente as
pessoas e dirigir-se a fins públicos impessoais;
- Moralidade: a moralidade administrativa é, ao lado da lei, um padrão de
observância obrigatória para os agentes públicos;
- Publicidade: a ação administrativa deve desenrolar-se de forma transparente
e aberta, sem segredos;
- Eficiência: a Administração não pode se limitar a cumprir formalidades; seu
compromisso maior é com a realização efetiva dos interesses públicos.
- “Então vamos revogar esse artigo”, animou-se o Prefeito. “Eu elegi um
sobrinho deputado federal. Ele faz a proposta. Quem há de ser contra?
Ficamos livres desse direito administrativo”.
Argumentei que a supressão do artigo seria inútil: - “É possível, claro, fazer
reformas nas leis de licitações, de desapropriação, de concessão. Viável,
também, alterar ou suprimir os dispositivos da Constituição que cuidam de
tópicos do direito administrativo (aliás, a Carta brasileira de 1988, ao contrário
das de outros países, contém muitos desses dispositivos). Isso poderá alterar o
conteúdo do direito administrativo brasileiro. Só que não comprometerá sua
existência, tampouco transformará sua substância, que se manterá enquanto o
modelo de Estado permanecer”.
Desanimado, meu interlocutor despediu-se. Mas pude ouvi-lo resmungar, na
saída:

- “Sundfeld? O nome alemão deve ser disfarce. É um francês infiltrado!”

Você também pode gostar