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CONTROLE MOTOR•Cap.

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ORGANIZAÇÃO
CENTRAL

INTRODUÇÃO

Algo intrigante nos seres com capacidade de movimento é que,


independentemente do tamanho e da complexidade do sistema ner-
voso, esses indivíduos são aptos a transformar suas intenções em ações
motoras. Entre as diferentes espécies, algumas das finalidades mais
comuns dos movimentos corporais são manutenção postural, loco-
moção e manipulação. Em todos esses casos, a regulação do compor-
tamento é feita fundamentalmente pelo disparo de comandos moto-
res pelo sistema nervoso central (SNC), pela transmissão desses sinais
por meio das vias eferentes e, finalmente, pela contração dos múscu-
los-alvo, visando a manutenção de determinada posição ou desloca-
mento de segmentos corporais para produção de movimento. Essa é
uma seqüência universal para movimentos gerados pelo próprio in-
divíduo, a qual pode ser observada desde as suas primeiras manifes-
tações no período gestacional. Apesar de essa seqüência de eventos
da produção de movimentos ser característica também de seres estru-
turalmente bem mais simples – como insetos, por exemplo – deve-se
salientar que o processo de produção de ações motoras em organis-
mos superiores é bastante complexo; envolve uma multiplicidade de
estruturas neurais e mecanismos regulatórios que só recentemente
foram compreendidos de forma mais abrangente. Uma questão ele-
mentar relacionada a esse tema diz respeito à maneira que os sinais
eferentes são regulados a fim de gerar os movimentos desejados.
Durante as décadas de 1960 e 1970, uma das disputas científicas
mais acirradas na área de investigação do controle motor foi o emba-
te da concepção de regulação do movimento exclusivamente no mo-
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do de circuito fechado contra proposições de controle motor pura-


mente por circuito aberto. Controle em circuito fechado significa que
a informação de feedback sensorial está sendo utilizada para orien-
tar a geração de uma ação motora, de forma que a diferença entre a
posição desejada dos membros e a posição informada pelos sinais de
feedback seja progressivamente reduzida, até que, no final da ação,
essa diferença seja igual a zero. Esse processo é idealizado como se
conduzido por comparações sucessivas das informações sensoriais
originárias de múltiplas fontes – visão, tato e propriocepção, por
exemplo – com um modelo interno de referência, a fim de que qual-
quer diferença resultante dessa comparação seja imediatamente
transformada, no momento seguinte da execução do movimento, em
comandos de correção. Dessa maneira, o controle muscular durante
todo o desenrolar da ação seria dependente de mecanismos regula-
tórios baseados em feedback.
Por outro lado, pela proposição de controle via circuito aberto,
um indivíduo não necessita de informação sensorial para regular seus
movimentos. A idéia é que a ação é preparada antes de seu início,
por meio de uma seqüência encadeada de comandos motores pré-
estruturados, que dispensa a participação de feedback sensorial
para que o movimento seja feito da forma pretendida. Por essa pers-
pectiva, ainda que as informações sensoriais estejam disponíveis
durante a realização de um movimento programado, elas não são
utilizadas, pois toda informação necessária para produzir o movi-
mento corretamente já está incluída na série de comandos motores
gerados no SNC. Em outras palavras: por ser completamente redun-
dante, o feedback sensorial seria desprezado como fonte de infor-
mação para o controle motor.
Nos dias de hoje, a discussão não está mais centrada em se um
modo de controle ou outro representa de forma exclusiva os meca-
nismos fundamentais de regulação de movimentos, mas sim na com-
preensão das maneiras pelas quais os comandos motores pré-estrutu-
rados e o feedback sensorial periférico interagem para produzir ações
motoras controladas nas mais diversas situações. Essa questão tem
nuances particulares em função do nível de processamento analisa-
do, pois os níveis atencional e subatencional de controle possuem
características distintas que levam à interação diferenciada, no con-
trole da ação, de sinais aferentes e eferentes. Nesse capítulo serão
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abordadas questões relacionadas à organização central dos movi-


mentos, enquanto a modulação dos comandos centrais por informa-
ção de feedback será estudada no Capítulo 5.

MOVIMENTOS PROGRAMADOS

De forma introdutória, movimentos programados são aqueles


em que uma ação completa ou a parte inicial dela é organizada no
SNC antes de o movimento se iniciar. No momento seguinte, essa
organização é traduzida em sinais eferentes, que são dirigidos ao sis-
tema muscular e que permitem a realização do movimento mesmo
que haja completa ausência de feedback periférico. Esse conjunto
pré-estruturado de sinais eferentes é chamado de programa motor
(Keele, 1968). A programação de movimentos não implica, entretan-
to, que o feedback sensorial não seja usado regularmente na execu-
ção dessa ação ou que ele não seja importante para um desempenho
refinado. Programação central é um conceito que simplesmente indi-
ca a concepção de uma seqüência previamente organizada de co-
mandos motores, na qual estão prescritas as características da ação
que se deseja realizar.
Considerando-se que a informação de feedback demora um cer-
to período de tempo para ser incorporada ao controle da ação, a pro-
gramação de movimentos é vital para o sucesso de ações de curta
duração. Algumas ações esportivas oferecem boas amostras de quan-
to esse modo de controle é utilizado. Em um jogo de futebol, ao chu-
tar uma bola em movimento, por exemplo, o chutador faz uma ação
preparatória com a perna principal para trás e, algum tempo antes de
a bola atingir a posição mais adequada para contato, dispara o movi-
mento de forma explosiva. A principal evidência de que este é um
movimento programado pode ser extraída dos casos em que a bola
sofre algum desvio inesperado de sua trajetória regular pouco tempo
antes do contato, mais freqüentemente por uma irregularidade do ter-
reno. Nessas situações, o resultado mais provável é uma espetacular
“furada”, em que o chutador não consegue atingir a bola. Isso acon-
tece mesmo que o indivíduo perceba a mudança de trajetória e saiba,
nesse exato instante, que sua ação será malsucedida. Ele simplesmen-
te não consegue alterar ou mesmo interromper, nesse breve intervalo
de tempo, o programa motor que foi enviado ao sistema muscular.
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Situações semelhantes a essa, descrita no parágrafo anterior, ocor-


rem diariamente, tal como em uma tarefa de digitação, em que por
vezes se percebe um erro de posicionamento do dedo mesmo antes
que ele se concretize, no entanto, não é possível corrigir o movimen-
to a tempo. De forma similar, podemos avaliar o quanto um movi-
mento é programado quando tentamos esmagar com as mãos um
mosquito em pleno vôo, que muda de rota justamente quando esta-
mos próximos de acertá-lo. Nessas situações, o atraso de processa-
mento de feedback faz com que o programa motor seja mantido da
forma como foi elaborado originalmente, levando a erros grosseiros
de desempenho. Nos próximos parágrafos os exemplos cotidianos
serão deixados para trás para que sejam apresentados resultados de
pesquisa referentes à capacidade de programação de movimentos.
Para tanto, o trabalho será orientado pela proposta de Summers
(1981), em que a utilização de programas motores no controle de
movimentos é evidenciada pela demonstração de que: (a) uma res-
posta motora não é alterada num curto intervalo de tempo mesmo
na presença de informação sensorial; (b) alguns movimentos podem
ser feitos na completa ausência de feedback sensorial sem declínios
visíveis de desempenho; e (c) os movimentos podem ser estrutura-
dos antes de seu início.

INCAPACIDADE DE CORREÇÃO DE MOVIMENTOS DE CURTA DURAÇÃO

Nas situações cotidianas descritas no trecho anterior foram usa-


dos exemplos de movimentos rápidos, realizados em curtos interva-
los de tempo, nos quais dificilmente o feedback sensorial poderia ser
aproveitado para fazer ajustes ao longo da ação. Tal dificuldade
deve-se ao tempo necessário para detecção de um erro ou variação
inesperada do ambiente, promoção dos devidos ajustes no programa
motor, envio dos comandos ao sistema muscular e, finalmente, trans-
formação dos sinais eferentes em contrações musculares. À medida
que o intervalo mínimo para iniciar correções voluntárias é de apro-
ximadamente 110 ms (ver Capítulo 2), vários movimentos discretos
ou partes importantes deles parecem ser regulados inteiramente a
partir de uma seqüência pré-estruturada de comandos motores. Essa
suposição foi testada de forma mais rigorosa em um estudo condu-
zido por Wadman e colaboradores (1979), no qual os participantes
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praticaram uma tarefa exigindo extensões rápidas do cotovelo, tendo


seu punho fixado a um dispositivo mecânico móvel. Os movimentos
eram feitos para alvos espaciais variando entre 7,5 e 30 cm, com
monitoração da atividade elétrica (EMG) dos principais músculos –
agonista (tríceps) e antagonista (bíceps) – utilizados na ação. Os
registros de EMG mostraram que o padrão de atividade elétrica nos
músculos monitorados foi comum para todas as extensões de movi-
mento, caracterizando-se por três fases bem definidas: (1) atividade
agonista para dar início ao movimento; (2) atividade antagonista
simultaneamente com depressão da atividade agonista, a fim de
desacelerar o deslocamento do membro; e (3) nova atividade agonis-
ta na porção final do movimento, para posicionar adequadamente a
mão no ponto desejado, com supressão simultânea da atividade
antagonista. Esse padrão é apresentado na Figura 4.1 pela linha
grossa contínua.

Normal
Bloqueado
EMG (unidades arbitrárias)

Agonista

0 0,1 0,2 0,3 Tempo (s)

Antagonista

Figura 4.1
Padrão de ativação muscular para a tarefa de extensão rápida do cotovelo nas con-
dições de movimento normal (linha grossa) e movimento bloqueado (área sombreada)
(Adaptado de Wadman et al., 1979).
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Para avaliar em que medida esses movimentos eram controlados


de forma programada, o deslocamento do dispositivo era bloqueado
algumas vezes desde o início da ação, de maneira inesperada para o
participante, fazendo com que ele não conseguisse mover o braço em
direção ao alvo especificado. Caso esse movimento fosse controlado
a partir de feedback sensorial periférico, esperava-se encontrar uma
alteração do padrão de EMG, com supressão da atividade muscular
assim que o bloqueio do dispositivo fosse detectado. O registro ele-
tromiográfico nessa condição mostrou o mesmo padrão trifásico ob-
servado em situações normais, nas quais o dispositivo mecânico era
móvel, com duas fases de atividade agonista do tríceps entremeadas
por atividade antagonista do bíceps. É interessante reparar que a
linha fina na Figura 4.1, correspondente à condição bloqueada, apre-
senta grande sobreposição se comparada à atividade muscular ob-
servada em condição normal. De particular interesse aqui é que a
magnitude dos picos de atividade elétrica foi semelhante entre as
condições experimentais, assim como o tempo em que foi observado
o último pico no EMG, ocorrido por volta de 250 ms. Em outras pala-
vras, os indivíduos apresentaram atividades musculares semelhan-
tes em períodos equivalentes em ambas as condições experimentais.
Por meio dessa estratégia, foi demonstrado que a estrutura do mo-
vimento não foi alterada em nenhuma de suas partes, mesmo com
informação sensorial indicando que a alavanca estava travada. A
conclusão principal desse estudo, portanto, é que os movimentos
de extensão do cotovelo foram controlados integralmente por meio de
programas motores, sem que houvesse interferência de feedback
periférico durante sua execução.

AUSÊNCIA DE FEEDBACK SENSORIAL

Uma das formas mais efetivas para se estimar em que extensão


os movimentos podem ser controlados a partir de programas moto-
res é a eliminação de informação aferente – o que se denomina desa-
ferentação – e a análise de seu impacto no controle motor. Para pôr
em prática essa estratégia de estudo, têm sido empregadas diferentes
técnicas em seres humanos e animais. Uma dessas técnicas consiste
em comprimir o punho continuamente por alguns minutos, até que
haja perda temporária de sensibilidade abaixo da região comprimida.
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Como os nervos aferentes são mais periféricos do que os eferentes,


existe um intervalo de tempo entre a perda de sensibilidade somes-
tésica e o declínio mais tardio de controle motor, que é usado para a
avaliação da importância dos sinais aferentes na regulação dos movi-
mentos. Algo semelhante pode ser feito com a aplicação de anestési-
co em uma cápsula articular – de um dos dedos, por exemplo – pro-
duzindo-se perda de sensibilidade dos receptores sensoriais na
articulação. Com tal procedimento é possível avaliar a participação
dessa fonte de informação sensorial no controle de posicionamento
(angulação) do segmento corporal conectado àquela articulação.
Como a perda de sensibilidade é passageira, nesses casos ocorre o
que é chamado de desaferentação funcional. Com animais freqüen-
temente é adotado um procedimento mais radical para eliminar as
informações aferentes, por meio da completa secção das vias somes-
tésicas da coluna, a fim de garantir que nenhuma informação senso-
rial será usada para controlar os movimentos. Uma vez que a perda
de sensibilidade não é restituída após o procedimento cirúrgico, ocor-
re o que se chama de desaferentação estrutural. O passo seguinte,
nas técnicas que envolvem desaferentação, é a verificação da capaci-
dade de controle em diferentes tarefas motoras em comparação com
indivíduos intactos, sem alteração das informações sensoriais.
De uma forma geral, esses estudos têm indicado que algumas
categorias de movimento são minimamente afetadas pela retirada de
informação aferente, enquanto em outras o feedback tátil-proprio-
ceptivo parece ser essencial para o controle da ação. Em habilidades
de locomoção, de coordenação motora global e naquelas que envol-
vem movimentos rítmicos, verificou-se que dificilmente é possível
perceber algum prejuízo na qualidade da ação devido à desaferenta-
ção. Por outro lado, em habilidades motoras finas, que requerem
movimentos precisamente graduados, a desaferentação freqüente-
mente leva a declínios marcantes de desempenho. Essas informações
indicam que a participação de programas motores no controle da
ação é variável em função da exigência particular de cada tarefa. In-
vestigações com indivíduos portadores de disfunções sensoriais têm
oferecido informações precisas sobre a necessidade de feedback sen-
sorial no controle motor.
Rothwell et al. (1982) realizaram um estudo de caso com um
indivíduo portador de neuropatia sensorial periférica. Essa doença
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leva à perda de sensibilidade nos braços e nas pernas, de forma que


seus portadores se tornam insensíveis ao tato, à temperatura e à dor
nos segmentos afetados. Nesse estudo, foi aplicada uma bateria de
testes de controle motor, além de uma análise de desempenho em
tarefas cotidianas. O paciente apresentava grande dificuldade para
usar suas mãos com destreza nessas tarefas, como levar comida ou
bebida à boca e abotoar suas próprias roupas para se vestir. Para
levantar um copo de uma mesa, por exemplo, ele segurava-o com as
duas mãos, aplicando força excessiva para mantê-lo elevado. Consi-
derava também praticamente impossível manter por algum tempo
um lápis, ou qualquer outro objeto pequeno, seguro apenas pelas
pontas dos dedos. Além disso, com a perda de sensibilidade cutâ-
nea, sua caligrafia tornou-se ilegível. A despeito de tal declínio de
desempenho, o paciente ainda era capaz de executar uma série de
tarefas manuais mesmo com os olhos fechados, isto é, sem qual-
quer informação sensorial útil para controlar seus movimentos.
Ele conseguia mover seus dedos de forma independente surpreen-
dentemente bem, como, por exemplo, na tarefa de tocar a ponta do
polegar com as pontas dos outros dedos alternadamente. Além dis-
so, movimentos manuais cíclicos – tais como acenar, fazer repetida-
mente flexões-extensões do punho ou dos dedos e desenhos de for-
mas geométricas no ar com a ponta dos dedos – eram feitos com
grande facilidade. Entretanto, todos esses movimentos passavam
por uma deterioração gradual de desempenho se o paciente tivesse
de manter o movimento por períodos superiores a 30 s sem receber
feedback visual.
Esses resultados apóiam a idéia de que algumas ações são ineren-
temente mais dependentes de feedback sensorial, enquanto outros
movimentos são controlados por programas centrais, que dispensam
o uso de informação aferente para sua regulação. Até onde esses
resultados permitem concluir, mesmo movimentos manuais podem
ser controlados com alguma destreza por meio de seqüências pré-
estruturadas de comandos motores. Quando a tarefa requer aplica-
ção ou manutenção graduada de força, entretanto, o feedback senso-
rial mostra-se indispensável para o controle habilidoso da ação.
Outro ponto importante desses resultados foi a confirmação da idéia
de que ações motoras de curta duração podem ser bem controladas
na ausência de sinais aferentes, enquanto para períodos mais longos
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de tempo o feedback sensorial torna-se imprescindível para manter


o nível de desempenho.

ESTRUTURAÇÃO PRÉVIA DO MOVIMENTO

Se as ações motoras de fato são estruturadas antes do início do


movimento, uma das conseqüências esperadas é que programas mo-
tores mais complexos demandem mais atividade mental para serem
preparados, em comparação ao processamento central necessário
para organizar movimentos simples. Atividades de processamento
requerem tempo, de modo que quanto maior a demanda de proces-
samento, mais longo tende a ser o tempo gasto para sua realização.
Henry e Rogers (1960) formularam, originalmente, a hipótese de re-
lação entre complexidade de programas motores e demanda de
processamento de informações em níveis superiores de controle da
seguinte maneira: movimentos mais complexos requerem progra-
mas motores mais elaborados, com maior quantidade de informação
armazenada, e assim necessitam de mais tempo para o SNC imple-
mentar seu envio ao sistema muscular. A partir dessa proposição,
seria esperado que o tempo de reação fosse maior para movimentos
mais complexos do que para movimentos simples.
Os próprios autores testaram essa hipótese ao comparar o tempo
de reação simples em três tarefas motoras, nas quais os participantes
tinham de reagir o mais rapidamente possível após a emissão de um
sinal visual. Na tarefa simples, os participantes deveriam apenas ele-
var o dedo indicador alguns poucos milímetros, perdendo contato
com uma tecla que estava sendo pressionada por eles em uma base
de suporte. A tarefa intermediária consistia em elevar o braço e agar-
rar uma bola de tênis suspensa por um cordão. A terceira tarefa foi a
mais complexa e exigia que fossem feitas duas reversões de direção:
foi usada mais uma bola de tênis suspensa ao lado da primeira e soli-
citado ao participante que perdesse contato com a tecla na base de
suporte, tocasse uma das bolas, voltasse a tocar a base de suporte e,
por fim, tocasse a outra bola suspensa. Os resultados desse estudo são
apresentados na Figura 4.2 para experimentos feitos com homens,
mulheres e jovens com 24 e 12 anos de idade. Como pode ser obser-
vado, os valores de tempo de reação ficaram ordenados de acordo
com o que foi previsto pela hipótese formulada por Henry e Rogers,
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com magnitudes crescentes em função da complexidade do movimen-


to: aumento médio de aproximadamente 8% da tarefa simples para a
intermediária e de 4% da tarefa intermediária para a complexa.

Homens Mulheres
300
24 anos 12 anos
Tempo de reação (ms)

250
200
150
100
50
0
S I C
Tarefa

Figura 4.2
Valores de tempo de reação simples para estímulo visual para homens, mulheres e jovens
de 24 e 12 anos de idade, em função do número de componentes na tarefa motora.
S = simples; I = intermediária; e C = complexa (Produzido a partir dos dados de Henry
& Rogers, 1960).

Com esse trabalho foi demonstrada uma importante relação


entre as características de uma ação motora e os processos centrais
relacionados à sua organização, a qual é revelada pelo tempo que
um indivíduo leva para começar a se mover em uma tarefa que
requer velocidade de reação. Esse efeito foi estudado mais profun-
damente em investigações subseqüentes, nas quais se avaliou o im-
pacto do oferecimento de informações necessárias à programação
motora em diferentes momentos de organização da resposta, da quan-
tidade de informação oferecida previamente ao estímulo imperativo
e do oferecimento de dicas falsas para a programação da ação. De
forma mais detalhada, quando um indivíduo conhece todos os deta-
lhes de um movimento que ele será solicitado a iniciar/realizar o
mais rapidamente possível, ele é capaz de elaborar uma pré-progra-
mação de seus movimentos antes mesmo que o estímulo imperati-
vo seja emitido. Isto é, programam-se previamente certos parâme-
tros – tais como segmentos corporais que serão empregados, direção
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e extensão do movimento –, de forma que quando o estímulo impe-


rativo for emitido o indivíduo necessite apenas efetuar aquele pro-
grama que já estava previamente preparado. Essa foi exatamente a
estratégia empregada por Henry e Rogers no estudo pioneiro relatado
anteriormente. Uma situação distinta dessa ocorre quando as informa-
ções necessárias para organizar a resposta motora são oferecidas
simultaneamente com a apresentação do estímulo imperativo, tais
como em tarefas de tempo de reação de escolha. Nessa situação, há
incerteza sobre um ou mais parâmetros de programação da ação, o
que impede que o programa motor possa ser preparado por inteiro
antes da apresentação do estímulo imperativo. Em casos como esse,
temos um processo de programação da resposta em tempo real, o que
permite avaliar não apenas o processo de efetuação, mas principal-
mente o processo de elaboração do programa motor.
A diferença das demandas de processamento entre as situações
de programação e pré-programação dos movimentos foi avaliada
por Klapp et al. (1974), em um estudo no qual os participantes foram
testados em tarefas de tempo de reação simples e de escolha, para
movimentos de um (só pressionar) ou de dois (pressionar e manter
por algum tempo) componentes executados numa tecla de telégrafo.
No primeiro experimento, os participantes não haviam praticado
qualquer uma das tarefas e o efeito de complexidade foi semelhante
para ambas as condições, com aumento significativo do tempo de
reação quando se realizava o movimento de dois componentes (lado
esquerdo da Tabela 4.1). No segundo experimento as tarefas foram
semelhantes, mas agora os participantes haviam recebido prática
extensiva em ambas as tarefas e foram incentivados a reagir o mais
rapidamente possível. Os resultados desse procedimento estão apre-
sentados no lado direito da Tabela 4.1. Os resultados revelaram que
a prática é capaz de anular o efeito de complexidade sobre o tempo
de reação simples, mas não na tarefa de tempo de reação de escolha,
na qual os indivíduos só podem programar suas respostas após a
apresentação do sinal que informa o movimento a ser realizado. Em
outras palavras, esses dados indicam que o efeito de complexidade
de movimento está associado ao processo de elaboração do progra-
ma motor, e não ao processo de transmissão de um programa previa-
mente elaborado para o sistema muscular.
A partir da constatação da relação entre demanda de programação
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Quadro 4.1
Comparação entre tempos de reação simples e tempos de reação
de escolha entre movimentos com um e dois componentes,
antes e após prática nas tarefas (Dados de Klapp et al., 1974).

Sem prática Com prática


1 componente 2 componentes 1 componente 2 componentes
TR simples 526 586 246 245
TR escolha 563 614 358 382

motora e tempo necessário para iniciar o respectivo movimento, Rosen-


baum (1980) avaliou se a ação pode ser pré-programada parcialmente
ou se o programa motor só pode ser elaborado a partir do momento em
que o indivíduo possui informações sobre todos os parâmetros do
movimento. No primeiro caso, deveria ser observada uma redução no
tempo de reação quando dicas prévias fossem oferecidas sobre alguns
aspectos do movimento antes do estímulo imperativo; no entanto se
fosse necessário conhecer todos os parâmetros da ação para elaborar o
programa motor, a informação parcial prévia não deveria levar a qual-
quer economia de tempo em uma situação de tempo de reação de esco-
lha. Para estudar essa questão, Rosenbaum empregou uma tarefa com
oito alternativas, composta pela combinação de três parâmetros: braço
(direito versus esquerdo), direção (para frente versus para trás) e ampli-
tude (movimento curto versus movimento longo). A representação
esquemática da tarefa é apresentada na Figura 4.3.
Os participantes foram testados em diferentes condições de in-
certeza sobre os parâmetros de movimento, de forma que, em al-
gumas séries de tentativas, eram fornecidas dicas prévias somente
sobre um dos parâmetros de movimento, enquanto os outros dois
parâmetros eram informados através da emissão do estímulo impe-
rativo. Assim, o experimentador, por exemplo, informava ao partici-
pante previamente que o movimento seria feito com o braço direito,
mas a direção e magnitude eram indicadas por um sinal visual que
servia como estímulo para iniciar o movimento. Em outras séries os
participantes eram informados com antecedência sobre dois, três ou
nenhum dos parâmetros.
Os resultados desse estudo são apresentados na Figura 4.4, na
qual são plotados os valores de tempo de reação em função do parâ-
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Figura 4.3
Representação esquemática da tarefa empregada por Rosenbaum (1980). Os quadra-
dos em cinza correspondem aos pontos de início dos movimentos; os círculos indicam
os alvos que foram usados, exigindo a especificação do braço de execução, direção e
extensão do movimento. Os valores indicam as distâncias (cm) entre os pontos iniciais
e os alvos proximais e distais.

metro e do número de parâmetros que tinham de ser programados


após a apresentação do estímulo imperativo, variando entre zero
(todos os parâmetros eram informados) e três (nenhuma informação
prévia). Como pode ser observado na representação gráfica dos resul-
tados, os menores valores de tempo de reação foram observados na
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condição em que nenhum dos parâmetros precisava ser programado


após a emissão do estímulo imperativo. Isto é, na condição em que os
participantes sabiam de antemão exatamente qual seria o movimento
sinalizado (situação de tempo de reação simples). Nas demais condi-
ções, as quais envolviam algum grau de incerteza, foi encontrado um
aumento progressivo no tempo de reação conforme mais parâmetros
tinham de ser programados após a emissão do estímulo imperativo.
Assim, as condições que exigiam a programação de um parâmetro
apresentaram valores de tempo de reação menores do que aquelas
que exigiam a programação de dois parâmetros, as quais, por sua vez,
foram menores do que a condição experimental que exigia a progra-
mação dos três parâmetros após o estímulo imperativo.

1 2 3
800
700
Tempo de reação (ms)

600
500
400
300
200
100
0
N E D B ED EB DB EDB
Valores especificados após o estímulo

Figura 4.4
Tempo de reação (ms) nas diferentes condições de dicas prévias. No eixo inferior estão
indicados os parâmetros programados após a emissão do estímulo imperativo: N = ne-
nhum; E = extensão; D = direção; e B = braço. No eixo horizontal superior as condições
experimentais estão agrupadas pelo número de parâmetros que deveriam ser especifi-
cados (Adaptado de Rosenbaum, 1980).

A partir desses achados, foi demonstrado que o programa motor


pode ser preparado parcialmente, pela especificação independente
de seus parâmetros. Assim, com o uso de dicas prévias, apenas os
parâmetros que não foram pré-programados precisarão ser especifi-
cados após o conhecimento completo da resposta que deve ser apre-
sentada. Tal característica nos ajuda a explicar como esportistas habi-
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lidosos são capazes de programar respostas complexas em curtíssimos


intervalos de tempo – como por exemplo na defesa de uma cortada, no
voleibol – frente à infinidade de possibilidades de ação características
de ambientes instáveis.
Analisando-se novamente o que acontece em situações esporti-
vas, em muitos casos o praticante antecipa um dado evento que o leva
a pré-programar sua resposta. No último instante, no entanto, ocorre
algo imprevisto que gera a necessidade de reprogramação de sua
ação. Isso acontece freqüentemente em jogos de tênis ou de voleibol –
quando a bola toca a rede e tem sua trajetória modificada –, no fute-
bol – quando a bola desvia em algum jogador durante seu percurso –,
e nas demais modalidades esportivas nas quais a finta é um recurso
de ataque. Em todas essas situações, o jogador é induzido a organizar
sua resposta para determinada situação e, depois de algum tempo,
precisa modificá-la rapidamente em função de uma súbita alteração
das condições ambientais. A reprogramação de movimentos tem sido
estudada por meio de um procedimento análogo a essas situações: o
experimentador fornece dicas corretas para os participantes pré-pro-
gramarem seus movimentos em várias tentativas, o que permite atin-
gir um tempo de reação relativamente baixo. Em algumas tentativas,
entretanto, o experimentador fornece uma dica falsa, fazendo com
que o participante se prepare para um movimento diferente daquele
que é solicitado no sinal imperativo. Nessa situação, o programa
motor preparado antecipadamente precisa ser modificado, reprogra-
mando-se rapidamente as especificações dos movimentos.
Em um estudo recente, Wright et al. (2001) usaram tarefas sim-
ples, como por exemplo fazer dois movimentos lineares em seqüên-
cia com os dedos, na situação de tempo de reação de escolha, para
investigar os períodos de atraso associados à reprogramação de
aspectos temporais da ação. Foram criadas quatro respostas possí-
veis a partir da combinação de dois fatores: tempo relativo, (1) tendo
como meta usar 25% do tempo total do movimento para o primeiro
componente da ação e 75% para o segundo componente; ou (2) in-
verter a relação temporal, 25-75%; e duração total do movimento, con-
cluindo-se a ação inteira em (3) 500 ms ou (4) 800 ms. Para induzir a
pré-programação da resposta, eram dadas dicas prévias apenas so-
bre um dos fatores, tempo relativo ou duração total, ou sobre os dois
parâmetros juntos. Em três quartos das tentativas essas dicas eram
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 156

156 CONTROLE MOTOR

corretas, de forma que a informação dada pelo experimentador cor-


respondia ao movimento que era requerido no estímulo imperativo.
No outro quarto das tentativas eram dadas dicas falsas a respeito dos
parâmetros do movimento que seriam indicados no estímulo impe-
rativo, de forma que o movimento tivesse de ser reprogramado após
a apresentação do sinal. Essas situações que exigem reprogramação
do movimento foram comparadas a uma condição na qual os parti-
cipantes não recebiam nenhuma dica prévia.
Os resultados desse trabalho experimental mostraram um au-
mento significativo do tempo para reagir quando a resposta tinha
que ser reprogramada em comparação à condição na qual os partici-
pantes não recebiam qualquer dica prévia sobre o movimento, como
pode ser observado na Figura 4.5. Um aspecto interessante desses
resultados é que a reprogramação de um ou de dois parâmetros le-
vou aos mesmos resultados: houve atrasos equivalentes para o início
da resposta, uma vez que não foram detectadas diferenças significa-
tivas entre as três condições de reprogramação motora. Esse achado
indica que quando ocorre reprogramação o programa motor é total-
mente reestruturado, mesmo que apenas um de seus parâmetros te-
nha de ter sua especificação alterada. Essa descoberta leva à conclu-
são de que a reprogramação da ação é qualitativamente diferente da
pré-programação, sem que seja possível alterar individualmente a
Componente alterado

Nenhum

Duração total

Tempo relativo *

Ambos

0 200 400 600 800 1000


Tempo de reação (ms)

Figura 4.5
Tempo de reação médio (ms) e erro padrão (traços horizontais) em função do compo-
nente temporal alterado com a apresentação do estímulo imperativo. O asterisco indi-
ca diferença significativa apenas entre a condição nenhum e as demais (Adaptado de
Wright et al., 2001).
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 157

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 157

especificação de um parâmetro, mantendo-se os demais parâmetros


do programa original. Tal limitação na reestruturação da resposta
gera um atraso extra na produção de movimentos quando a respos-
ta tem de ser alterada. Esse efeito tem conseqüências importantes
para o desempenho em habilidades motoras abertas, nas quais os
participantes freqüentemente enfrentam situações que se modificam
de forma inesperada, exigindo uma rápida modificação de progra-
mas motores previamente estruturados.
Uma situação relacionada à reprogramação motora ocorre quan-
do um indivíduo precisa inibir uma resposta programada, sem, no
entanto, produzir algum movimento. Em termos de organização
motora, o processo de inibição de movimentos é mais simples se
comparado à reprogramação de movimentos, uma vez que não
requer nova especificação de parâmetros do programa motor; entre-
tanto, ainda assim, exige um período considerável de tempo para ser
implementado. Em alguns casos, os movimentos são disparados
mesmo que imediatamente antes de seu início o indivíduo tenha
resolvido interromper a ação. Um caso ilustrativo dessa situação
ocorre quando um tenista prepara sua rebatida de direita para uma
bola que chega no fundo da quadra, mas no último instante percebe
que ela irá para fora. Nessa situação, se a antecipação do local de
aterrissagem da bola acontecer suficientemente antes do momento
crítico de contato, o tenista conseguirá interromper o movimento e
deixar que a bola saia; caso contrário, a rebatida será efetuada. Logan
e Cowan (1984) propuseram um modelo para explicar esse fenôme-
no com base na idéia de uma corrida de cavalos. Por essa proposi-
ção, um sinal que exige inibição da resposta – tal como um sinal
externo para interromper o movimento, para mudar o plano de
ação ou mesmo a detecção de um erro de desempenho – inicia um
processo de inibição que aposta uma corrida contra o processo res-
ponsável pela geração da resposta motora. Os dois processos se
desenrolam de forma independente. Se o processo de inibição
ganhar a corrida, a resposta será interrompida. Se o processo motor
vencê-la, o programa motor será enviado ao sistema muscular e o
movimento será produzido da forma como foi programado. Dessa
maneira, quanto mais cedo for disparado o comando inibitório
antes do início do movimento, maiores serão as chances de que se
consiga evitar a realização da ação.
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 158

158 CONTROLE MOTOR

Em uma análise geral, os resultados de pesquisa apresentados


nesta sessão confirmaram o conceito de que as ações motoras são
estruturadas antes de seu início, fazendo com que a complexidade
dos processos subjacentes à programação motora imponha tempos
diferenciados para que o SNC organize o conjunto de comandos neu-
rais que será enviado ao sistema muscular. A relação temporal espe-
rada entre as diferentes situações associadas à programação motora
é apresentada resumidamente na Figura 4.6.

Estímulo imperativo

Pré-programação
PM M

Programação
PM M

Reprogramação
PMa PMb M

Inibição
PM Ei M(i)

Figura 4.6
Representação esquemática das relações temporais entre a elaboração de programas
motores (PM; PMa, programa motor original; PMb, programa motor modificado) e o
início da produção de movimentos (M) em relação ao estímulo imperativo. Condições:
pré-programação (dicas prévias verdadeiras), programação (sem dicas), reprograma-
ção (dicas falsas) e inibição (Ei, estímulo inibitório; M(i) movimento ou inibição de
movimento).
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 159

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 159

PROBLEMAS COM O CONCEITO DE PROGRAMA MOTOR

Até aqui, a definição de programa motor foi apresentada como


uma série de comandos motores organizados centralmente, os quais
permitem que ações sejam feitas na completa ausência de feedback
sensorial. Uma idéia adicional, que por muito tempo foi associada a
essa definição, é que as características de cada movimento estão de-
talhadamente codificadas em programas motores específicos, que
ficam armazenados em algum lugar dos centros superiores do SNC,
responsáveis pelo controle motor voluntário. Para produzir uma
ação, seria necessário acessar esse programa motor na memória de
longa duração e efetuá-lo – de forma análoga à tarefa de recuperar
um arquivo digital do disco rígido (memória permanente) de um
computador. Foi justamente por meio dessa analogia que o termo
programa motor se originou, como alusão a um movimento codifica-
do centralmente. Existem três problemas, entretanto, que são ineren-
tes a essa concepção: complexidade de organização, capacidade de
memória e variabilidade condicionada ao contexto.

Problema da complexidade de organização. Quando se trata do


controle de movimentos complexos, uma questão assume importân-
cia central: como um sistema com capacidade de atenção limitada é
capaz de controlar os inúmeros graus de liberdade do corpo nas
ações que envolvem a coordenação de diferentes segmentos corpo-
rais? Certamente, um conjunto de comandos motores que especifi-
casse para os músculos principais as características desejadas de uma
ação simples, tal como elevar um dos braços à frente do corpo, não
representaria uma quantidade muito grande de informação para ser
processada no nível superior de controle da ação. No entanto, a regu-
lação desse movimento envolve uma complexa sinergia, a qual pre-
vine que o indivíduo se desequilibre em função do deslocamento do
seu centro de gravidade na direção do movimento realizado. Para
isso, antes mesmo que o músculo motor primário – nesse caso o del-
tóide anterior – seja ativado, a musculatura ipsilateral posterior das
pernas (bíceps femoral) é contraída. Esse comportamento foi obser-
vado numa situação experimental em que os sujeitos de pesquisa ele-
vavam rapidamente um de seus braços em resposta a um sinal visual
(Lee, 1980), como demonstrado na Figura 4.7. Repare na representa-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 160

160 CONTROLE MOTOR

ção gráfica: após a ativação do deltóide anterior, o bíceps femoral da


perna contralateral também é ativado, antes que o indivíduo comece
a se mover (comparar com a linha que indica o tempo de reação).
Essa análise, restrita a apenas alguns grupos musculares, é suficien-
te para dar uma noção do complexo padrão de ativação muscular
necessário para a realização de um movimento tão simples como
esse. Tal resultado ilustra o problema da complexidade de regulação
global dos movimentos, ao mostrar que a organização da ação não se
restringe a especificar a atividade de alguns poucos músculos, mas
de todo o sistema muscular envolvido no controle da ação.

Ordem
Alerta
Estímulo
Início do
EMG 1. estímulo
Deltóide anterior
(DA)
2. BFi

3. DA

EMG 4. BFc

Bíceps femoral
ipsilateral (BFi) 5. TR

Bíceps femoral
contralateral (BFc)

Figura 4.7
Representação da tarefa de elevação de um dos braços, em resposta a um sinal visual,
e seqüência de ativação muscular na execução do movimento. Pela seqüência de ativa-
ção: BFi, bíceps femoral ipsilateral; DA, deltóide anterior; BFc, bíceps femoral contrala-
teral. A última linha representa o tempo de reação (Reproduzido de Lee, 1980).

Problema de capacidade de memória. Uma questão associada


ao problema da complexidade é a seguinte: de que forma um enorme
volume de informação – que corresponde aos comandos para contro-
lar cada grau de liberdade individualmente e à coordenação entre os
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 161

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 161

diferentes graus de liberdade – pode ser armazenado na memória? A


memória de longa duração possui uma capacidade de armazenamen-
to bastante grande, cujos limites sequer são conhecidos pela ciência.
No entanto, certamente armazenar todos os detalhes do movimento
não seria algo factível, em função da quantidade de atos motores e
do número de detalhes que cada ato possui. As particularidades de
cada ação motora exigem que centenas de músculos do organismo
sejam regulados de forma única, o que significa que cada uma das
incontáveis formas de movimento que somos capazes de realizar
requer um modo particular de organização.
Quando se considera, ainda, que os elementos orgânicos que fa-
zem parte do controle motor estão em contínua mudança, o armaze-
namento literal de todos os detalhes da ação seria algo de muito pou-
ca utilidade para a geração de ações motoras. Nosso corpo tem seu
peso alterado continuamente pela ingestão de alimentos e perda de
água para o ambiente, por exemplo. Isso faz com que não haja uma
relação única entre um movimento desejado e a força necessária para
gerá-lo. Algo semelhante ocorre após um treinamento de força, ou,
no sentido contrário, pela perda de massa muscular causada por um
período de imobilidade, quando o indivíduo precisa produzir mais
ou menos força em relação a experiências passadas para mover um
de seus membros de forma controlada. Caso os detalhes do movi-
mento ficassem armazenados na memória, deveria haver também
um registro para todas as variações de peso e força que ocorrem ao
longo do tempo. Isto é, a memória humana teria de possuir uma ca-
pacidade descomunal para armazenar informações. No entanto, essa
capacidade seria, ao mesmo tempo, de muito pouca utilidade em
situações futuras.
Problema da variabilidade condicionada ao contexto. O mesmo
impulso (neural) não provoca sempre o mesmo movimento, uma vez
que as forças externas fornecem diferentes condições iniciais, por
meio da inércia, da gravidade, da resistência do ar e do atrito. Dessa
forma, o mesmo impulso neural pode gerar diferentes movimentos,
assim como movimentos similares podem ser gerados por diferentes
impulsos neurais. Em outras palavras, não há uma relação invarian-
te entre movimentos produzidos e forças musculares geradas para
que esses movimentos sejam produzidos. Dependendo da posição
do corpo em relação à força da gravidade, pode-se contrair grupos
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 162

162 CONTROLE MOTOR

musculares agonistas ao movimento a fim de vencer forças de resis-


tência (fase aquática da braçada no nado livre, por exemplo) ou sim-
plesmente descontrair progressivamente músculos antagonistas,
deixando que a força da gravidade ou a própria inércia gerada por
um movimento prévio faça o trabalho de forma gratuita (imagine o
mesmo movimento da braçada sendo feito em pé, fora da água).
Assim, não seria razoável esperar que movimentos fossem gerados
a partir de comandos totalmente preestabelecidos, vindos de um
programa motor localizado centralmente que possuísse todos os
detalhes da ação.
Os argumentos aqui apresentados evidenciam que é preciso
incorporar ao conceito de programa motor a noção de um sistema
de controle sensível às forças ambientais que agem sobre o corpo.
Como em situações normais nossos movimentos não são produzidos
no vácuo, a programação motora central precisa gerar, em determi-
nadas situações, apenas forças complementares às forças ambientais;
já em outras, forças antagônicas. Em uma mesma tarefa, existe uma
combinação complexa dessas duas situações, o que torna as exigên-
cias de controle bastante variáveis de um contexto para outro.

ORGANIZAÇÃO HETERÁRQUICA

Como foi visto na seção anterior, um dos principais problemas


enfrentados por um sistema tão complexo quanto o sensoriomotor é
como controlar um número muito elevado de elementos a partir dos
recursos de processamento de informação disponíveis no sistema. O
problema torna-se ainda mais marcante quando se considera a de-
manda de adaptabilidade de respostas frente a modificações do am-
biente e a diversidade de respostas que podem ser apresentadas para
solucionar um determinado problema motor. A principal maneira
que o sistema sensoriomotor emprega para solucionar esse proble-
ma é usar uma organização hierárquica, controlando seus inúmeros
graus de liberdade por meio das funções regulatórias do nível suba-
tencional. A idéia principal do conceito de hierarquia no controle
motor é que algo abstrato, como uma determinada intenção, seja
transformado em movimentos observáveis ao longo de um processo
vertical atravessando diferentes níveis. Quanto mais próximo do ní-
vel responsável pela intenção de um movimento, mais alto o proces-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 163

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 163

so estará localizado na heterarquia. Quanto mais próximo das estru-


turas responsáveis pela estimulação muscular, mais baixo na heterar-
quia se encontrará o processo de controle.
O nível atencional superior é aquele responsável pelo controle
motor voluntário, que trabalha com uma linguagem paramétrica.
Suas atividades de processamento relacionadas ao controle conscien-
te da ação são realizadas em função da especificação dos parâmetros
de movimento. Esse é um nível de organização de resposta igual-
mente caracterizado por um tipo de processamento seriado, que é
efetuado de forma relativamente lenta, trabalhando com alguns
poucos itens de informação de cada vez. O nível subatencional infe-
rior possui a responsabilidade de transformar os parâmetros especi-
ficados em movimento, por meio de inúmeros mecanismos sobre os
quais não se tem controle consciente direto. Nesse nível é que se de-
senrolam as operações mais complexas de controle motor, com uma
orquestração precisa das diferentes estruturas neurais que são agre-
gadas para a geração do movimento desejado. Como esse segundo
nível de controle independe de regulação consciente ou de recursos
de atenção, há a possibilidade de que um grande volume de informa-
ções seja processado em paralelo. Isso significa que inúmeras especi-
ficações e ajustes podem ser feitos simultaneamente, nos mais varia-
dos grupos musculares envolvidos na ação.

NÍVEL ATENCIONAL

Uma vez que já foi devidamente evidenciado que parâmetros de


controle motor podem ser usados consciente e voluntariamente para
pré-programar, programar e reprogramar ações motoras, tomemos a
programação motora como representativa do nível superior da hete-
rarquia de controle. Para ser sustentável, entretanto, esse conceito
precisa lidar com os problemas associados à sua concepção. Uma
proposição alternativa à idéia original de programa motor foi ofere-
cida com a formulação do conceito de programa motor generalizado
(Schmidt, 1975). A concepção sob este conceito é a de que um progra-
ma motor armazena apenas as características invariantes de uma da-
da classe de movimentos, enquanto os aspectos que se modificam de
tentativa para tentativa são especificados sob medida para as condi-
ções particulares de uma situação.
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 164

164 CONTROLE MOTOR

Apresentando o conceito de forma mais detalhada, cada vez que


um indivíduo executa uma ação, ele não retém os detalhes do movi-
mento realizado, mas sim sua estrutura organizacional e as regras
que permitem que os parâmetros de movimento sejam especificados
em situações futuras. No programa motor generalizado fica armaze-
nada a parte rígida da estrutura, que corresponde àquelas caracterís-
ticas que são sua marca registrada. Isto é, independentemente das
condições ambientais ou das variações nos detalhes do movimento,
um programa motor sempre apresentará algumas características in-
variantes. Vale ressaltar que esta representação é usada não apenas
para o controle de uma ação, mas também para controlar todos os
atos motores que possuam a mesma estrutura fundamental. Esse
conjunto de ações é denominado classe de movimento.
As características que foram propostas como invariantes em uma
dada classe de movimento são: (a) seqüenciamento; (b) faseamento
ou estrutura temporal e (c) relação entre as forças da ação. Seqüen-
ciamento significa que existe uma certa ordem entre os componentes
básicos da ação, a qual não pode ser alterada. Na execução de um ato
motor, também existe uma relação temporal entre suas partes com-
ponentes, correspondente à proporção de tempo gasto em cada uma
delas em relação ao tempo de movimento total. Essa relação é o que
se denomina faseamento ou estrutura temporal da ação. O conceito
de relação de forças traz a mesma idéia de estrutura temporal, agora
aplicada às forças relativas entre os grupos musculares participantes
da ação. Conceitualmente, mesmo que haja variação de amplitude,
características espaciais, velocidade ou força global dos movimentos,
as características invariantes são mantidas inalteradas desde que o
programa motor generalizado seja mantido.
Juntamente com um programa motor generalizado ficam arma-
zenadas regras abstratas, que são responsáveis pela adaptabilidade
da resposta. Após a execução de uma ação, algumas informações es-
pecíficas são combinadas no nível superior de controle: condições ini-
ciais, especificações usadas no programa motor, conseqüências sen-
soriais e o resultado obtido. A partir da combinação desse conjunto
de informações, originárias de cada execução da ação, são geradas abs-
trações que ficam armazenadas na memória. O caráter abstrato do
esquema motor dispensa o armazenamento literal de informações na
memória, fazendo com que haja uma grande economia de espaço.
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 165

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 165

Esse componente da memória motora é responsável pela especifica-


ção dos parâmetros do programa motor, que é feita em tempo real
frente às condições e necessidades particulares de determinada si-
tuação. Quando um indivíduo deseja executar uma ação em uma
condição específica, o programa motor apropriado é selecionado e,
simultaneamente, são especificados os parâmetros de movimento,
completando o processo de programação (ver representação esque-
mática na Figura 4.8).

Intenção

Especificação de parâmetros

Programa
motor Esquema
generalizado motor

Comandos eferentes

Figura 4.8
Representação esquemática da elaboração de programas motores, com a especificação
de parâmetros de movimento pelo esquema motor.

Um interessante trabalho experimental relacionado aos conceitos


de características invariantes e aos parâmetros de programação moto-
ra foi desenvolvido por Shapiro et al. (1981) pela comparação das
estruturas temporais da marcha e da corrida em diferentes velocida-
des de locomoção. A idéia por trás dessa investigação foi a de que se
as habilidades de andar e de correr pertencem a duas classes distin-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 166

166 CONTROLE MOTOR

tas de movimento, logo elas deveriam possuir estruturas temporais


diferentes entre si. Além disso, e mais importante para testar a con-
cepção de programas motores generalizados: se as estruturas tem-
porais de cada habilidade são invariantes, a variação métrica da ve-
locidade de locomoção não deveria alterar as respectivas estruturas
temporais. Isto é, a adaptação a condições de maior velocidade deve-
ria ocorrer pela modificação de parâmetros, especificados especial-
mente para produzir a velocidade desejada, enquanto a organização
temporal dessas habilidades locomotoras deveria permanecer relati-
vamente invariante. Para testar essas idéias, o ciclo de passo foi divi-
dido em quatro fases – duas durante o apoio e duas durante o balan-
ço para frente –, como apresentado na Figura 4.9a. A partir do cálculo
da porcentagem do tempo gasto em cada fase dos movimentos, seria
esperado que a mudança de velocidade de locomoção levasse a uma
mudança nos parâmetros de controle, enquanto os aspectos invarian-
tes do programa seriam mantidos inalterados.
O estudo de Shapiro foi conduzido com praticantes de corrida,
com variação da velocidade de locomoção em esteira rolante. Para a
marcha a variação ficou entre 3 e 6 km/h, enquanto na corrida a velo-
cidade variou entre 8 e 12 km/h. Os resultados confirmaram a pro-
posição de características invariantes para uma classe de movimentos
ao demonstrar, em primeiro lugar, que a marcha e a corrida possuem
estruturas temporais distintas. Repare na Figura 4.9b, por exemplo,
que enquanto na marcha a fase E3 é destacadamente a mais longa, na
corrida essa fase ocupa um tempo proporcionalmente mais curto,
ficando abaixo de E2 e com duração equivalente à fase F. Assim, com
estruturas temporais distintas, temos aqui caracterizadas duas clas-
ses de movimento, supostamente controladas por programas moto-
res generalizados independentes.
A comparação entre as diferentes velocidades dentro de cada
habilidade mostrou que as estruturas temporais foram mantidas
constantes, uma vez que a duração relativa de cada fase não foi
alterada significativamente entre as velocidades testadas. Isto é,
apesar dos participantes terem ajustado sua velocidade de locomo-
ção pela variação de amplitude e cadência de passos (parâmetros
de programação), a relação temporal entre os elementos componen-
tes da ação foi mantida intacta pelas velocidades testadas. Portan-
to, esses resultados suportam a noção de controle motor por meio
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 167

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 167

das variações métricas dos parâmetros sobre estruturas gerais de


organização invariantes.

(A)

Apoio Balanço

A1 A2 B1 B2

60 E1 E2 (B)
Porcentagem do ciclo

50 E3 E4
40

30

20

10
Marcha Corrida
0
3 4 5 6 7 8 9 10 12
Velocidade de locomoção (km/h)

Figura 4.9
(A) Divisão do ciclo de passo, com fases delimitadas pelos seguintes eventos: toque do
calcanhar no solo até máxima flexão do joelho (A1); perda de contato com o solo (A2);
máxima flexão do joelho durante o balanço (B1); e novo toque do calcanhar no solo
(B2). (B) Proporção de tempo para cada fase do ciclo de passada na marcha e na cor-
rida em função da velocidade de locomoção (Adaptado de Shapiro et al., 1981).

Além de oferecer uma solução para o problema de memória, o


conceito de programa motor generalizado permite explicar a capaci-
dade de gerar movimentos originais, nunca antes realizados. É
importante notar que uma diferença fundamental desse conceito em
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 168

168 CONTROLE MOTOR

relação à concepção inicial de programa motor reside na idéia de que


os movimentos atuais não são reproduções fiéis de movimentos pas-
sados, mas correspondem à geração de movimentos a partir de regis-
tros da memória. Dessa forma, transitamos da noção original de re-
cuperação de um roteiro detalhado sobre como o sistema muscular
deve ser ativado para a idéia de especificação sob medida, em tempo
real, dos parâmetros do programa motor. Por outro lado, conforme
se propõe que todos os detalhes da ação são especificados nesse nível
de organização motora, a teoria formulada por Schmidt mantém os
problemas de complexidade e de variabilidade condicionada ao con-
texto, já apontados na concepção original. Para lidar com esses pro-
blemas o sistema neuromotor precisa fazer uso de um processamento
maciçamente paralelo, que seja independente das limitações caracte-
rísticas de processos que envolvem atenção e controle consciente. Na
seção seguinte serão apresentadas informações sobre as característi-
cas desse nível de controle.

NÍVEL SUBATENCIONAL

Para lidar com os problemas de complexidade de organização e


de variabilidade condicionada ao contexto, o sistema motor usa basi-
camente duas estratégias: (1) transformar os parâmetros de movi-
mento em uma “linguagem” mais simples e que seja compreensível
pelo sistema muscular; e (2) distribuir as tarefas de controle entre di-
ferentes estruturas neurais com autonomia para regulação de aspec-
tos específicos do movimento. Em relação à primeira estratégia, uma
das hipóteses é a de que os parâmetros de movimento são converti-
dos em comandos motores que especificam diretamente a intensida-
de de contração muscular e o tempo que o músculo ficará em ativi-
dade. Esse ponto de vista foi formulado em conformidade com a
noção de especificação direta de todos os comandos motores pelo ní-
vel superior de controle, tendo sido denominada hipótese impulso-
tempo (Schmidt, 1980). Por essa perspectiva, o indivíduo precisa per-
ceber a posição inicial de seus membros, estimar a distância entre um
segmento corporal e uma posição desejada e, finalmente, programar
comandos temporizados para a ativação muscular. Dessa forma, o des-
locamento de um membro seria conseqüência da especificação dire-
ta de uma quantidade de força para determinados grupos musculares
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 169

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 169

por um certo período de tempo, gerando um impulso controlado nos


segmentos corporais (Figura 4.10a). Caso a intenção seja reduzir a
amplitude do movimento pela metade, pode-se reduzir pela metade
a força aplicada durante o mesmo intervalo de tempo (Figura 4.10b),
diminuir o tempo de aplicação de força pela metade, mantendo-se a
mesma magnitude de força (Figura 4.10c) ou fazer uma combinação
dos dois fatores.

(A)
Força

Tempo

(B)
Força

Tempo

(C)
Força

Tempo

Figura 4.10
Representação de impulsos gerados pela relação força-tempo, quantificados pela área
sob as curvas (integrais). Os painéis B e C representam formas de reduzir à metade o im-
pulso representado no painel A, por meio da diminuição pela metade da força e do tem-
po de aplicação de força, respectivamente.
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 170

170 CONTROLE MOTOR

Uma hipótese que concorre com a idéia de regulação individual


do impulso gerado nos músculos é a de que a regulação de posturas
e movimentos ocorre de forma mais simples, pela especificação de
pontos de equilíbrio entre músculos agonistas e antagonistas. Na
seção seguinte serão apresentados resultados de pesquisa que sus-
tentam essa proposição.

Ponto de equilíbrio

Uma parcela importante da pesquisa sobre os mecanismos de


especificação da posição de segmentos corporais foi conduzida com
animais, em situações em que deveriam mover um de seus braços ou
sua cabeça para uma posição indicada por um sinal luminoso. De-
pois de o movimento desejado se tornar consistente com a prática, os
animais eram desaferentados, eliminando-se assim toda informação
somestésica do segmento corporal empregado no movimento princi-
pal. Algum tempo depois, esses animais eram testados novamente na
tarefa de posicionamento de um segmento corporal. O arranjo expe-
rimental de um famoso estudo que empregou esse método é repre-
sentado na Figura 4.11 (Polit & Bizzi, 1979). Nesse trabalho, macacos
eram submetidos a uma secção das vias aferentes dorsais, eliminan-
do-se toda informação proprioceptiva de seu braço direito. Esse bra-
ço era fixado a uma haste, que podia ser movida no plano horizon-
tal. A tarefa dos animais consistia em apontar o braço na direção de
um sinal luminoso, que era apresentado no painel à sua frente. Para
eliminar a possibilidade de correções via feedback visual, era coloca-
do um anteparo entre a cabeça do animal e seu braço, impedindo que
ele visualizasse o movimento de posicionamento e a posição inicial
do membro. Todo o deslocamento do braço e a precisão de movi-
mento eram registrados por um potenciômetro conectado à haste de
suporte do braço. Outro aspecto analisado no movimento foi a ativi-
dade elétrica dos principais músculos ativados na tarefa: bíceps e
tríceps braquial.
Os resultados desse estudo mostraram de forma clara que a pre-
cisão de movimento alcançada após a desaferentação estrutural foi
equivalente àquela observada antes da cirurgia, quando as informa-
ções sensoriais ainda estavam intactas. O padrão de EMG também
foi semelhante entre as condições, no que diz respeito à magnitude e
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 171

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 171

Figura 4.11
Representação esquemática da tarefa de posicionamento do braço para um alvo visual,
que era indicado por um sinal luminoso no painel à frente do animal. A tarefa era reali-
zada sem informação somestésica (Reproduzido de Polit & Bizzi, 1979).

à organização temporal da ativação muscular. Um dos aspectos mais


interessantes e surpreendentes desse estudo, entretanto, ocorreu quan-
do foram aplicados torques nos braços dos animais imediatamente
antes do início do movimento (100-180 ms), fazendo com que o braço
fosse deslocado na mesma direção ou na direção contrária ao movi-
mento indicado pelo sinal luminoso no painel. Em algumas situa-
ções, o torque aplicado na direção do movimento fazia com que o
braço até mesmo ultrapassasse a posição indicada. Esse procedi-
mento gerava a necessidade de ativar os músculos de forma dife-
rente daquela que seria empregada na posição de repouso que ante-
cedeu a aplicação do torque.
A análise dos valores de erro de posicionamento e de atividade
muscular ratificou a conclusão de que o desempenho na condição de
desaferentação foi similar ao desempenho com aferência intacta. Em
todas as situações experimentais os animais posicionaram correta-
mente seus braços, independentemente da magnitude, duração e mo-
mento de aplicação do torque no braço de execução. A Figura 4.12
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 172

172 CONTROLE MOTOR

mostra um exemplo desses resultados, apresentando os registros de


EMG do bíceps e tríceps e variação angular do braço no eixo tempo-
ral, para movimentos de flexão do braço. O painel A representa as
características de um movimento não perturbado, o painel B repre-
senta uma condição de aplicação de força (F) na direção contrária ao
movimento, e no painel C temos representada a aplicação de força no
mesmo sentido do movimento.

A B C

F
Bíceps
F

Braço

Tríceps

Figura 4.12
Atividade elétrica nos músculos bíceps e tríceps braquial e deslocamento angular do
braço nas seguintes condições: (A) movimento não perturbado, (B) movimento com
aplicação de força (F) na direção contrária, produzindo extensão no cotovelo; e (C)
movimento com aplicação de força na mesma direção do deslocamento, gerando uma
flexão excessiva do cotovelo antes do posicionamento correto do braço (Reproduzido
de Polit & Bizzi, 1979).

Esses resultados demonstram alguns pontos de grande impor-


tância para se conhecer a forma pela qual uma determinada posição
segmentar é atingida ou, em outras palavras, como um movimento
desejado é especificado para o sistema muscular. O primeiro aspecto
a ser destacado é que a posição inicial do braço não era conhecida
pelo animal. Mesmo que houvesse alguma forma de ele perceber a
posição inicial de seu braço antes da apresentação do sinal visual, o
torque aplicado imediatamente antes do início do movimento preve-
niria o aproveitamento da informação de posição na programação do
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 173

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 173

movimento. Esse achado é contraditório com a concepção de que o


programa motor é traduzido diretamente em termos de força por
tempo de ativação muscular, pois nesse caso o conhecimento da po-
sição inicial do membro seria essencial para estabelecer tanto a
força muscular como o tempo de sua aplicação. Em movimentos
perturbados por torque seriam esperados, ainda, erros de posicio-
namento coerentes com a direção de aplicação da força externa. O
fato de que o posicionamento do braço foi tão preciso na condição
de desaferentação como na condição de aferência intacta indica que
o feedback sensorial não foi necessário para regular o controle do
braço. É preciso lembrar que o animal desaferentado não tinha tam-
bém informação visual sobre o movimento, de forma que não havia
qualquer informação sensorial relevante para o controle da ação.
Em outros termos, o movimento foi conduzido exclusivamente via
circuito aberto.
A partir de achados experimentais como esse apresentado ante-
riormente, foi formulada a hipótese de ponto de equilíbrio. Essa hi-
pótese apresenta a idéia de que um membro atinge uma determina-
da posição no espaço pela especificação de comprimento-tensão de
um conjunto de músculos, com funções antagonistas entre si, respon-
sáveis pelo movimento em uma dada articulação. Um dos pontos
principais nessa hipótese é que os músculos têm comportamento se-
melhante ao de molas ajustáveis, o que é obtido graças ao compo-
nente elástico dos tecidos contráteis. A força de tração nas molas é
gerada em função de seu comprimento e da rigidez do material.
Quanto mais curta e dura a mola, maior sua força de tração e vice-
versa. Em um dado músculo, parâmetros análogos podem ser con-
trolados pela especificação do comprimento (estiramento) do múscu-
lo e do tônus muscular. Dessa forma, a especificação da posição
desejada de uma determinada articulação poderia ser feita tanto pela
regulação de um parâmetro como pela regulação de outro, ou ainda,
por meio da regulação conjunta de ambos, para o grupo de múscu-
los responsáveis pelo movimento nessa articulação.
Um modelo mecânico pode auxiliar na compreensão desse con-
ceito. Imagine articular uma haste vertical a uma base fixa e conectar
a essa haste duas tiras de borracha (mesmo comportamento elástico
de molas), de mesmo comprimento, em lados opostos. Se agora a
outra extremidade das tiras de borracha for fixada a distâncias equi-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 174

174 CONTROLE MOTOR

valentes na base, como esquematizado na Figura 4.13A, a haste assu-


mirá naturalmente um ponto de equilíbrio bastante estável. Se uma
força for aplicada para um dos lados, a haste irá manter-se inclinada
para aquele lado enquanto perdurar a perturbação do sistema.
Assim que a aplicação de força é eliminada, entretanto, a haste retor-
na à sua posição original, restabelecendo a posição determinada pelo
ponto de equilíbrio entre as “molas”. Há duas alternativas para
modificar a sua posição por meio dos componentes intrínsecos do
sistema. Uma delas seria usar tiras elásticas de comprimentos dife-
rentes. Esse procedimento modificaria o ponto de equilíbrio, deslo-
cando a haste em direção à tira elástica mais curta (Figura 4.13B). O
mesmo resultado poderia ser obtido pelo aumento da tensão de ape-
nas um dos lados. Para tanto, a tira elástica original poderia ser subs-
tituída por outra de mesmo comprimento, porém mais espessa
(Figura 4.13C).
Com essa estratégia de controle, cria-se um ponto de equilíbrio
entre os dois conjuntos de músculos, fazendo com que o membro
atinja a posição desejada, independentemente de sua posição inicial
ou da disponibilidade de informação de feedback. Para que o ponto
de equilíbrio seja atingido, basta especificar o comprimento-tensão
para grupos musculares antagonistas em uma articulação. Para a
manutenção de uma postura estável, assim, seria necessário apenas
conservar fixo um ponto de equilíbrio. Mesmo que essa postura
sofresse uma perturbação transitória, a posição seria reassumida
automaticamente com a retirada da força de perturbação, de forma
auto-regulatória, restabelecendo o ponto de equilíbrio especificado.
Esse foi justamente o comportamento observado por Polit e Bizzi.
Para lidar com uma perturbação demorada seria necessário estabele-
cer um novo ponto de equilíbrio entre os músculos agonistas e anta-
gonistas, levando-se em consideração, agora, a magnitude e a dire-
ção da perturbação sofrida. Investigações experimentais adicionais
conduzidas com animais (Bizzi et al., 1978) e com seres humanos
(Schmidt & McGown, 1980) confirmaram essas previsões. Por dedu-
ção, esses resultados sugerem que movimentos nada mais são do que
a passagem por diferentes pontos de equilíbrio transitórios, especifi-
cados entre os pontos inicial e final da ação.
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 175

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 175

Hipótese do ponto de equilíbrio


(A)
Regulação de comprimento-tensão entre
músculos antagonistas

1 2

Mudança do ponto de equilíbrio por meio (B)


do comprimento

1 2

Mudança do ponto de equilíbrio por meio (C)


da tensão

1 2

Figura 4.13
Representação do modelo de ponto de equilíbrio por meio do posicionamento de uma
haste vertical pela simples regulação do comprimento-tensão de tiras elásticas. (A) Tiras
de mesmo comprimento e tensão, e deslocamento do ponto de equilíbrio por meio de
(B) tiras de comprimentos diferentes e (C) tiras de tensões diferentes (Adaptado de
Rosenbaum, 1991).
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 176

176 CONTROLE MOTOR

Estruturas modulares

O controle motor baseado no estabelecimento de pontos de equi-


líbrio reduz significativamente a demanda computacional da ação
em relação à idéia de especificação de força-tempo para cada múscu-
lo. O ponto de equilíbrio desempenha o papel de uma variável cole-
tiva, em função da qual todo o sistema pode ser organizado de forma
mais econômica e simples, aproveitando as propriedades físicas dos
músculos. No entanto, permanece a questão de quais estruturas se
encarregam de fazer cumprir os pontos de equilíbrio adotados pelos
vários grupos musculares empregados na manutenção de uma pos-
tura estável ou na realização de um movimento compatível com um
programa motor. A resposta a essa questão é extremamente comple-
xa, e ainda não é possível oferecer uma explanação detalhada sobre
como os diferentes mecanismos efetores interagem para produzir
um movimento voluntário de forma controlada. Por outro lado, exis-
te farta evidência de que um dos mecanismos básicos de organização
de respostas motoras é o recrutamento de circuitos neurais pré-estru-
turados, capazes de produzir movimentos coordenados sem necessi-
dade de supervisão do nível superior de controle. Tais circuitos cons-
tituem módulos geradores de movimentos coordenados, cuja
configuração está impressa na arquitetura das conexões interneurais
desde sua formação, durante o desenvolvimento embrionário. Uma
vez ativados, esses módulos desempenham uma função motriz espe-
cífica, a qual pode ser incorporada à estrutura de controle de um ato
motor complexo de forma flexível.
Conforme a coordenação ao nível muscular, articular e mesmo
intersegmentar pode ser gerada por estruturas subcorticais de inte-
gração sensoriomotora, incluindo aquelas localizadas na medula, tais
módulos de controle podem ser integrados à estrutura global de
coordenação sem acarretar aumento na carga computacional. Pelo
contrário, essa estratégia de distribuição das responsabilidades de
controle por diferentes estruturas neurais simplifica enormemente a
tarefa de regular um sistema composto por centenas de músculos, de
forma sintonizada com os eventos ambientais. Como são níveis de con-
trole que não requerem recursos de atenção, os detalhes do movi-
mento são decididos sem que haja necessidade de intervenção dire-
ta do nível consciente superior. A seguir serão apresentadas duas
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 177

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 177

categorias de unidades básicas de regulação motora, que permitem a


implementação de um modo de controle distribuído: reflexos e ge-
radores centrais de padrão.

Reflexos

Os reflexos são algumas das unidades mais simples de contro-


le do nosso organismo e sua função é produzir uma resposta moto-
ra relativamente estereotipada em reação a uma estimulação senso-
rial específica. Uma vez aplicado um estímulo eliciador de um
reflexo, a resposta será sempre semelhante, a não ser que ela seja
modulada por um centro superior. Alguns reflexos se manifestam
nos primeiros meses após o nascimento, mas deixam de se manifes-
tar de forma evidente ao longo do primeiro ano de vida, com a
maturação do SNC e a emergência da capacidade de controle motor
voluntário. Por esse motivo são chamados de reflexos primitivos
ou neonatais. Outros reflexos mantêm sua atividade durante todo
o ciclo de vida e desempenham claramente papéis importantes na
regulação motora em variadas circunstâncias e contextos. Esses são
denominados reflexos funcionais. Em ambos os tipos de reflexo,
há circuitos sensoriomotores que dispensam o controle voluntário
para a produção de movimentos.
Dentre alguns dos reflexos primitivos mais conhecidos estão o
reflexo de Moro, o reflexo tônico assimétrico do pescoço, o reflexo da
marcha e o reflexo de preensão (Figura 4.14). O reflexo de Moro é eli-
ciado por um ruído repentino ou por mudanças súbitas na posição
do bebê, particularmente aquelas que produzem a sensação de queda.
A resposta a essa estimulação assemelha-se a uma reação de susto,
em que o bebê primeiro afasta e eleva braços e pernas, estendendo os
dedos das mãos e dos pés, para depois terminar com movimentos de
aproximação dos segmentos corporais ao tronco. O reflexo tônico assi-
métrico do pescoço é uma posição assimétrica adotada pelos recém-
nascidos até aproximadamente 16 semanas de vida. Quando o bebê
gira a cabeça para um lado, o braço e a perna daquele lado são esten-
didos, enquanto os membros do lado contrário são flexionados. O
reflexo da marcha é eliciado pelo toque das solas dos pés em uma
superfície plana fixa, quando o bebê é sustentado na posição vertical.
Nessa situação, ele apresenta movimentos cíclicos com as pernas,
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 178

178 CONTROLE MOTOR

que se assemelham ao andar voluntário que será apresentado alguns


meses depois. O reflexo de preensão é observado por meio de movi-
mentos de agarrar, tanto com as mãos como com os pés, quando se
coloca um objeto cilíndrico entre os dedos com tamanho apropriado
para a preensão.

Reflexo de Moro Reflexo tônico do pescoço

Reflexo da marcha

Reflexo de preensão

Figura 4.14
Reflexos primitivos observados no primeiro ano de vida (Reproduzido de Rosenbaum,
1991).

Por muito tempo os movimentos reflexos foram considerados


uma forma de resposta completamente estereotipada, inflexível e con-
trolada por estruturas neurais distintas daquelas responsáveis pelo
controle de movimentos voluntários. Nessa visão, para que o nível
cortical consciente assumisse as responsabilidades de controle, seria
necessário que os reflexos primitivos fossem inibidos, deixando de fa-
zer parte do modo regular em que as ações motoras são produzidas.
No entanto, algumas evidências experimentais têm indicado que, em
vez de descartar esses módulos primários de movimento, nosso or-
ganismo incorpora os reflexos como parte dos mecanismos neurais
regulares do controle voluntário de ações motoras. Um dos trabalhos
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 179

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 179

marcantes sobre esse tema foi conduzido por Zelazo et al. (1972).
Nesse estudo, um grupo de bebês teve o reflexo da marcha estimula-
do diariamente da segunda à oitava semana de vida, enquanto ou-
tros bebês tiveram suas pernas movidas passivamente ou não rece-
beram qualquer estimulação especial. Após esse período, os bebês
não tiveram mais esse reflexo estimulado de forma sistemática. O
efeito do “treinamento reflexivo” foi avaliado pela idade de início do
andar voluntário independente. Os resultados mostraram que os
bebês que tiveram a resposta reflexiva estimulada começaram a an-
dar sem ajuda por volta dos 10 meses de idade, enquanto que nos
outros grupos os bebês apresentaram o andar independente somen-
te com 11 ou 12 meses. Esse achado de pesquisa sugere que a estru-
tura reflexiva estimulada nas primeiras semanas de vida é importan-
te para o surgimento precoce da marcha voluntária. A conclusão a
que essas observações conduzem é que o reflexo da marcha está rela-
cionado à regulação do andar voluntário, possivelmente fazendo par-
te de sua estrutura fundamental de controle.
Os reflexos funcionais têm seu papel mais claramente definido
no controle de movimentos voluntários, uma vez que sua participa-
ção é identificada em aspectos elementares da motricidade humana.
Existe um número bastante grande de reflexos já estudados detalha-
damente, que variam entre estruturas extremamente simples e ou-
tras que envolvem ligações encefálicas e uma ampla rede de cone-
xões interneurais, tais como os reflexos posturais. Entretanto, como
aqui o objetivo é mostrar de que forma os reflexos são empregados
no controle motor voluntário, serão apresentados apenas os repre-
sentantes mais elementares dessa categoria, para em seguida ser evi-
denciado o modo flexível com que essas estruturas são empregadas
na regulação de ações motoras.
Alguns dos reflexos mais simples, que estão na base de um com-
plexo de estruturas reflexivas, são o reflexo de estiramento e o reflexo de
inibição recíproca. O primeiro corresponde à estrutura organizacional
de movimento mais simples que possuímos, uma vez que este arco-
reflexo consiste em um órgão sensorial, um neurônio aferente, uma
sinapse na medula, um neurônio eferente e o órgão efetor (músculo).
A funcionalidade desse reflexo está em auxiliar a manter ou atingir
uma posição desejada, produzindo ajustes de baixa magnitude em
resposta a pequenas perturbações mecânicas do movimento. Esse
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 180

180 CONTROLE MOTOR

reflexo é regulado pelo sistema de coativação alfa-gama, que provo-


ca um aumento de atividade elétrica em um músculo em resposta a
um estiramento involuntário do próprio músculo. A ação desse refle-
xo pode ser vista por registros de EMG, quando se solicita, por exem-
plo, que um indivíduo assuma uma postura estática com seu braço,
com o antebraço na horizontal e o cotovelo a 90°, e, inesperadamen-
te, uma força é aplicada sobre a mão desse indivíduo. Nesse caso, em
um intervalo entre 15-40 ms após o início da aplicação da força,
observa-se um pico de atividade elétrica de curta duração no bíceps
braquial. Essa resposta muscular de baixa latência corresponde ao
reflexo monossináptico de estiramento.
Esse mecanismo elementar de regulação motora, presente em
todos os músculos esqueléticos, está estruturado paralelamente entre
as fibras e fusos musculares. As fibras musculares extrafusais são
inervadas por motoneurônios alfa, enquanto as fibras intrafusais
são inervadas por motoneurônios gama. Ambos os motoneurônios
carregam o mesmo sinal, fazendo com que a especificação de com-
primento, tanto de um como de outro, seja a mesma. Como já apre-
sentado no Capítulo 3, os fusos musculares possuem receptores sen-
soriais para estiramento. Quando o músculo sofre um estiramento
inesperado, sem que tenha havido um sinal de centros superiores
para que o músculo seja relaxado, a porção sensitiva (central) do fuso
muscular é distendida, gerando um sinal que é enviado à medula
pelos neurônios aferentes. Ao chegar à medula, esse sinal produz um
estímulo excitatório nos motoneurônios alfa, responsáveis pela pro-
dução de força no músculo estirado. O circuito é completado com a
geração de força muscular de resistência à perturbação da carga apli-
cada (ver representação esquemática na Figura 4.15).
Quando se pensa na regulação não apenas de um músculo, mas
no controle de um conjunto de músculos com funções antagonistas,
que regula os movimentos em uma articulação, há outro reflexo ele-
mentar que igualmente permeia o controle motor voluntário: é o
reflexo de inibição recíproca. Ao observar a Figura 4.15, nota-se que um
dos colaterais de inervação aferente originários do fuso muscular faz
sinapse com um motoneurônio da musculatura antagonista: o trí-
ceps braquial. Essa é uma conexão interneural que não tem função
excitatória, mas sim inibitória. Neste exemplo, ao mesmo tempo que
os motoneurônios alfa que inervam o bíceps são excitados, os moto-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 181

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 181

Vias
descendentes

Nervo Interneurônio
aferente inibitório

Neurônios
motores

Músculo extensor
Fuso
muscular
Músculo
flexor

Figura 4.15
Representação esquemática do reflexo de estiramento e do reflexo de inibição recíproca.
Quando o bíceps é estirado involuntariamente são gerados sinais excitatórios para o
próprio bíceps, por meio do sistema de coativação alfa-gama, e sinais inibitórios para
o tríceps (Adaptado de Kandel et al., 1995).

neurônios alfa que inervam o tríceps têm sua atividade inibida,


gerando uma diminuição de sua tensão muscular. Por meio desse
mecanismo, é facilitada a tarefa de resistência à força aplicada sobre
a mão, produzindo uma flexão extra do cotovelo sem que haja maior
resistência da musculatura antagonista. Esse é um mecanismo bási-
co para prevenir a co-contração muscular entre músculos antagonis-
tas em situações semelhantes à do exemplo ou, mais particularmen-
te, quando se deseja produzir força máxima, fazendo com que a ação
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 182

182 CONTROLE MOTOR

muscular para mover um segmento corporal na direção pretendida


seja mais eficiente.
O terceiro ponto a ser destacado na Figura 4.15 é que existem ca-
minhos descendentes de estruturas neurais mais complexas, de ori-
gem cortical e extracortical, que se conectam aos motoneurônios alfa.
Essas conexões têm a função de modular a ação dos reflexos e consti-
tuem justamente a ligação entre as funções reflexivas autônomas que
foram descritas anteriormente e o controle motor voluntário gerado
em centros superiores. Atualmente, essa idéia de interligação entre os
dois níveis de controle, voluntário e automático, é consensual, mas
até o final da década de 1960 era comum que os reflexos fossem con-
siderados como módulos ativados exclusiva e automaticamente por
estimulação sensorial, sem participação do controle voluntário. Um
dos trabalhos clássicos que começou a mudar essa concepção foi
desenvolvido por Nashner (1976), em um estudo dos mais interessan-
tes sobre respostas musculares a perturbações posturais.
Como foi visto, quando um músculo é estirado de forma inespe-
rada o reflexo dessa ação gera uma resposta automática, tendo como
conseqüência a contração do músculo estirado. Nashner analisou
essa resposta reflexiva em duas condições, nas quais o indivíduo
avaliado tinha de manter a postura ereta sobre uma plataforma que
era movida repentina e inesperadamente. Em uma dessas condições
a plataforma era movida para trás (translação), fazendo com que o
corpo do indivíduo se inclinasse para frente. Com esse procedimen-
to produzia-se um estiramento involuntário do tríceps sural, que dis-
parava a resposta do reflexo de estiramento (Figura 4.16, painel A).
Um estiramento similar do mesmo músculo era gerado pela rotação
da plataforma, levando a uma flexão dorsal do tornozelo (Figura
4.16, painel B), a qual igualmente disparava o reflexo de estiramen-
to. Uma diferença importante entre as duas condições, entretanto, é
que na primeira a resposta reflexiva auxilia a recuperação do equilí-
brio corporal, enquanto que na segunda a ação do reflexo perturba
ainda mais a estabilidade da postura ereta.
Na porção intermediária da Figura 4.16 são mostrados registros
representativos de EMG e na porção inferior são mostradas as osci-
lações corporais, que foram observadas em cada condição experi-
mental, para quatro tentativas consecutivas (de cima para baixo). É
interessante reparar que na condição de translação da plataforma a
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 183

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 183

(A) (B)

EMG

Oscilação
do corpo
0,01 rad

100 ms

Figura 4.16
Representação das tarefas posturais empregadas por Nashner (1976): (A) translação e
(B) rotação da plataforma. Na porção intermediária são mostrados os registros de EMG
para quatro tentativas seguidas (iniciando em cima); nos painéis inferiores são apre-
sentadas as respectivas oscilações corporais (Adaptado de Nashner, 1976).

ativação muscular vai tornando-se progressivamente mais forte e vai


sendo ativada com menor latência ao longo das tentativas. Como
nessa condição o indivíduo necessita contrair justamente a muscula-
tura posterior das pernas para corrigir a perturbação da postura, esse
comportamento indica uma resposta adaptativa do reflexo de estira-
mento à tarefa de manter a estabilidade postural, como pode ser
observado pela redução de oscilação corporal representada no painel
inferior. Gerando respostas mais robustas e com menor latência, o
reflexo auxilia na manutenção da postura ereta estável.
Os resultados mais notáveis de adaptação, entretanto, ocorreram
na condição de rotação da plataforma. Nessa condição, a resposta
reflexiva foi bem definida logo na primeira tentativa, mas nas tenta-
tivas subseqüentes a resposta foi enfraquecida até ser completamen-
te inibida na última vez. É interessante notar aqui que a contração
reflexiva, ao invés de corrigir a postura, gerava uma instabilidade
adicional à perturbação mecânica produzida pelo movimento da pla-
taforma, projetando o corpo do indivíduo ainda mais para trás, como
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 184

184 CONTROLE MOTOR

se percebe na primeira curva de oscilação corporal. Para manter a


estabilidade postural nessa condição era necessário, de forma contrá-
ria à predisposição reflexiva, ativar a musculatura anterior e relaxar
os músculos posteriores para projetar o tronco para frente. A flexibi-
lidade no uso desse reflexo ficou evidente ao longo das quatro tenta-
tivas, uma vez que a magnitude da atividade elétrica muscular foi
progressivamente reduzida, até ser inteiramente suprimida na quar-
ta tentativa da série. Com tal adaptação da sinergia de resposta, a
estabilidade postural permaneceu praticamente inalterada.
Em função desses resultados, foi mostrado que respostas reflexi-
vas podem ser facilitadas ou inibidas de acordo com a necessidade
funcional imposta pelas condições particulares de uma tarefa motora.
É importante ter em mente que essa inibição não é determinada
voluntariamente, pois sequer tomamos ciência de que tais reflexos
estão em atividade. A partir dessa constatação, temos indicada a exis-
tência de um nível organizacional de controle que está entre a espe-
cificação voluntária de parâmetros de movimento e os reflexos que
produzem diretamente as contrações musculares. Esse nível organi-
zacional tem a função de selecionar as unidades básicas de controle
que farão parte da sinergia e também de integrá-las de forma coor-
denada, a fim de que o programa motor elaborado em níveis supe-
riores da hierarquia seja executado da forma pretendida. Esse nível
organizacional tem sido denominado de estrutura coordenativa
(Turvey et al., 1982).

Geradores centrais de padrão

Reflexos, por definição, são formas de movimento caracterizadas


por respostas musculares discretas, de curta duração, que têm sua
origem na estimulação sensorial. Uma categoria à parte de movi-
mentos, que podem ser produzidos com mínima demanda computa-
cional para o nível superior de controle, corresponde a ações muscu-
lares cíclicas que independem de estimulação sensorial. Uma série de
estudos feitos com animais desprovidos de ligação entre o cérebro
(ou tronco encefálico) e a medula demonstrou que o controle de mo-
vimentos rítmicos oscilatórios pode ser efetuado de forma autônoma
por estruturas neurais dispostas ao nível medular. Tais estruturas
necessitam apenas de uma estimulação elétrica indiferenciada para
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 185

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 185

que produzam movimentos alternados de flexão e extensão entre os


membros. O mecanismo imaginado responsável por essa forma de
controle conta com um conjunto de centros de controle localizados
na periferia do SNC, dentro dos quais neurônios de controle coorde-
nam a ação muscular em sinergias que envolvem diferentes articu-
lações. Esse mecanismo neural é denominado gerador central de
padrão (GCP; Grillner, 1975) e é concebido como o responsável pri-
mário pela organização de movimentos locomotores.
Um dos estudos clássicos sobre essa propriedade dos centros in-
feriores de controle motor foi desenvolvido por Orlovsky (1972), que
usou gatos mesencefálicos, cuja tarefa era andar sobre uma esteira
rolante (Figura 4.17A). Um ponto importante a ser ressaltado é que,
após o procedimento cirúrgico, os animais perdiam completamente a
capacidade de realizar movimentos voluntários, assim como ficavam
desprovidos de qualquer informação somestésica, uma vez que a li-
gação entre o cérebro e a medula era totalmente eliminada. Como após
a secção das vias corticais descendentes os animais não conseguiam
se manter sobre suas pernas, seus corpos eram sustentados por su-
portes mecânicos. Para avaliar a capacidade de produzir movimentos
a partir dos circuitos extracorticais, os gatos recebiam estimulação elé-
trica periódica de baixa intensidade em núcleos do tronco encefálico.
A análise dos movimentos produzidos nessas condições foi feita
em função do deslocamento do quadril e do tornozelo, e de registros
de EMG dos músculos flexores e extensores nessas articulações. A
Figura 4.17B mostra um exemplo representativo dos resultados obser-
vados, em que são apresentados o deslocamento vertical do quadril e
a atividade elétrica de um músculo flexor (tibial anterior, TA) e de
outro extensor (gastrocnêmio lateral, GL) do tornozelo. Como pode
ser observado, a ação oscilatória rítmica dos movimentos de locomo-
ção foi bastante regular, com fases de flexão e extensão que se sucede-
ram periodicamente ao longo do tempo. A atividade elétrica dos mús-
culos, responsável por tal padrão, foi igualmente bem temporizada,
com alternância precisa entre a ação de músculos flexores e extenso-
res. Um dado adicional, que sustenta a idéia de autonomia dos cen-
tros subcorticais para gerar esse padrão locomotor, é que não foram
encontradas diferenças entre os padrões de movimento produzidos
por esses animais mesencefálicos e animais intactos.
Os resultados encontrados por Orlovsky evidenciam uma gran-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 186

186 CONTROLE MOTOR

(A)

(B)
Q
TA
GL
1s

Figura 4.17
(A) Representação esquemática da estimulação elétrica de centros subcorticais de gato
mesencefálico sobre esteira rolante, com suporte postural, tendo o padrão de movi-
mento e atividade muscular da perna traseira monitorados; (B) movimentos verticais do
quadril (Q) e registros de EMG de um músculo flexor (tibial anterior, TA) e outro exten-
sor (gastrocnêmico lateral, GL) do tornozelo (Reproduzido de Orlovsky, 1972).

de autonomia do sistema de controle das ações musculares em rela-


ção à supervisão ou especificação direta de detalhes do movimento
por parte do nível consciente de controle. Investigações posteriores
demonstraram que tal capacidade de controle dispensa até mesmo
a participação de centros nervosos do tronco encefálico e também
de estimulação sensorial periférica. Grillner e Zanger (1979) usaram
também a estratégia experimental de eliminação de comunicação com
os centros superiores, mas desta vez desconectaram somente a me-
dula do restante do SNC (animais medulares), de forma que nem
mesmo os centros do tronco encefálico participavam dos circuitos
neurais envolvidos no controle motor. Outro aspecto particular desse
estudo foi que a estimulação para gerar movimentos locomotores era
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 187

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 187

produzida pelo movimento da esteira rolante sobre a qual o animal


permanecia sustentado. Em outro estudo, os mesmos pesquisadores
(Grillner & Zanger, 1984) avaliaram a participação de sinais senso-
riais para a geração de atividade muscular, por meio da completa
transecção das raízes dorsais (sensoriais) da medula. Em ambos os
estudos, os resultados encontrados foram análogos àqueles obtidos
por Orlovsky: observou-se uma impressionante preservação da ca-
pacidade de controle da atividade rítmica de diferentes grupos mus-
culares associados à ação locomotora.
O que esses achados permitem concluir é que uma estrutura
capaz de produzir movimentos bem coordenados pode ser posta em
ação simplesmente pela geração de estimulação indiferenciada pe-
los centros superiores, sem que haja necessidade de informar como,
quando e com que magnitude os músculos devem ser ativados. Nes-
se sentido, os GCPs representam módulos motores capazes de gerar
especificações detalhadas para a produção de movimentos rítmicos.
Mais especificamente, a concepção é de um circuito de ativação mus-
cular, em que músculos flexores e extensores participantes de uma
ação cíclica são ativados de forma alternada e autônoma por centros
de controle dispostos na periferia do sistema nervoso (Figura 4.18).
Assim como nos reflexos, a estrutura fundamental de controle está
embutida em circuitos pré-estruturados, resultantes da memória filo-
genética da espécie, independente, portanto, de processos de apren-
dizagem para que se forme.
Apesar da grande regularidade no padrão de movimento obser-
vada nos estudos relatados anteriormente, os GCPs possuem uma
notável capacidade adaptativa. Isto é, não se trata de uma função
motora estereotipada, rígida, incapaz de se ajustar a diferentes con-
textos. Pelo contrário, quando se testa a flexibilidade de controle
dessa estrutura os resultados são notáveis. Uma avaliação do quan-
to essa estrutura neural é adaptável a diferentes demandas de movi-
mentos locomotores foi feita por Forssberg et al. (1980) com gatos
medulares. Nesse estudo, após a secção da medula, os animais eram
colocados com a pata traseira direita sobre uma esteira motorizada
enquanto que a pata esquerda era colocada sobre outra esteira moto-
rizada independente. Em uma das situações as esteiras rodavam à
mesma velocidade, que era aumentada progressivamente. Na segun-
da condição, as esteiras rodavam em velocidades diferentes, com a
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 188

188 CONTROLE MOTOR

Centros superiores

Músculos extensores Músculos flexores

GCP

Figura 4.18
Representação esquemática da estrutura básica de um gerador central de padrão (GCP),
com atividade excitatória circular entre neurônios na medula, gerando movimentos alter-
nados de flexão e extensão.

relação entre elas variando entre 2:1 e 4:1. Isto é, na relação de 2:1 en-
quanto uma das esteiras perfazia um ciclo, a outra completava dois.
Uma das formas de adaptação do padrão de movimento ocorreu
quando o aumento de velocidade induziu inicialmente a um aumen-
to da freqüência de passadas de modo coerente com a velocidade da
esteira. Quando se atingia uma velocidade crítica, porém, havia uma
mudança qualitativa do modo de coordenação. O padrão alternado
de marcha ou trote observado em velocidades mais baixas dava
lugar, abruptamente, a um padrão não-alternado, similar ao que é
apresentado no galope em condições naturais. Em outras palavras,
foi observada tanto uma mudança métrica em parâmetros do movi-
mento como uma mudança do próprio padrão motor a partir apenas
de circuitos medulares.
A flexibilidade de controle do GCP ficou ainda mais evidente
quando as esteiras foram rodadas em velocidades diferentes. Nessa
condição, observaram-se também duas estratégias para lidar com as
demandas específicas da tarefa. Para a menor diferença de velocida-
de entre as esteiras (2:1), o contato da pata do animal com a esteira
mais rápida aumentava, enquanto que o contato com a esteira mais
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 189

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 189

lenta diminuía, em comparação com as respectivas condições com


velocidades simétricas. Por meio dessa estratégia, mantinha-se o pa-
drão simétrico alternado, que é naturalmente mais estável para o sis-
tema de controle. Quando a diferença de velocidade entre as esteiras
atingia uma relação de 3:1 ou 4:1, entretanto, os animais passavam a
apresentar movimentos também com essas relações temporais entre
os movimentos dos membros inferiores. Para cada ciclo de movimen-
to feito na esteira lenta eram feitos três ou quatro ciclos na esteira
rápida. A Figura 4.19 mostra um exemplo representativo das caracte-
rísticas cinemáticas da ação dos tornozelos e quadris, além da ativida-
de elétrica nos músculos flexores e extensores para as patas apoiadas
nas esteiras rápida e lenta.
Os resultados relatados anteriormente podem ser sintetizados da
seguinte maneira: (1) os GCPs são estruturas periféricas do SNC, que
possuem grande autonomia no controle de movimentos locomotores
cíclicos; (2) essas estruturas são independentes de especificação de
detalhes por centros superiores e de sinais sensoriais para a ativação
coordenada do sistema muscular; e (3) há grande flexibilidade na
organização do padrão motor, o que permite sua utilização de forma
efetiva mesmo em situações não-habituais. A partir dessas conclu-
sões, concebe-se que a participação do nível consciente de controle
seja necessária apenas para especificar aspectos mais gerais da ação
– como por exemplo momentos de início e término, direção e veloci-

150°
Tornozelo (R)
suporte 90°
150°
Tornozelo (L)
suporte 90°

Quadríceps (R)

Quadríceps (L)

Figura 4.19
Variação angular na articulação do tornozelo e atividade elétrica do quadríceps para os
membros sobre as esteiras rápida (R) e lenta (L). Os traços horizontais indicam os perío-
dos de suporte no solo (Reproduzido de Forssberg et al., 1980).
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 190

190 CONTROLE MOTOR

dade de deslocamento – enquanto que o feedback sensorial periféri-


co possivelmente seja usado apenas para promover ajustes em face
de perturbações inesperadas.
Algo que não foi demonstrado por esses estudos, contudo, é se
essa estrutura está presente unicamente em mamíferos inferiores ou
se faz parte também da estrutura de controle motor de seres huma-
nos. A resposta a essa questão foi oferecida por Thelen et al. (1987)
em um estudo realizado com bebês. Nessa investigação foram ava-
liados bebês de aproximadamente 7 meses de idade, que estavam
prestes a adquirir o andar voluntário. Os movimentos das pernas
nessa idade são fortemente determinados pelos circuitos neurais pré-
formados, em vez de serem resultantes de experiências motoras. Os
bebês eram sustentados pelo tronco e colocados com os pés apoiados
sobre esteiras rolantes motorizadas, com cada perna sobre uma estei-
ra independente. Foram usadas duas velocidades para as esteiras e
quatro condições experimentais: a mesma velocidade para ambas as
pernas (lento ou rápido) ou velocidades distintas: perna direita rápi-
da e esquerda lenta, DR/EL; e vice-versa, DL/ER.
Os resultados dessa investigação mostraram que, de forma simi-
lar ao observado com gatos, deslocamentos simétricos das esteiras
geram um padrão de movimentos coordenados no modo antifase,
com alternância rítmica dos movimentos de flexão e extensão das
pernas. Quando as esteiras tinham velocidades distintas entre si, foi
observada uma modificação das características regulares de movi-
mento de cada perna em relação às condições correspondentes com
velocidades simétricas: o tempo de apoio da perna sobre a esteira rá-
pida aumentava, enquanto que o tempo de apoio na esteira lenta di-
minuía. A fase aérea do movimento, porém, não foi afetada significa-
tivamente. Tal relação temporal é apresentada na Figura 4.20, com
valores iguais a um indicando simetria perfeita entre os tempos de
movimento das pernas, enquanto a redução desse valor é proporcio-
nal à assimetria temporal.
Os achados de Thelen et al. evidenciam a semelhança de estra-
tégias de coordenação entre mamíferos inferiores e seres humanos,
indicando que os GCPs são estruturas neurais que podem ser incor-
poradas ao controle motor com mínima necessidade de regulação
consciente dos detalhes do movimento produzido. Nesses resulta-
dos, algo particularmente notável é a capacidade de adaptação da
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 191

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 191

Balanço
1,0
Apoio
0,8
Relação temporal
0,6

0,4

0,2

0,0
DL/EL DR/ER DL/ER DR/EL

Perna e velocidade

Figura 4.20
Relação temporal entre os movimentos das pernas de bebês colocados sobre esteiras mo-
torizadas. Quanto mais próximo de 1, mais simétricos serão os movimentos. D = perna
direita; E = perna esquerda; L = esteira lenta; e R = esteira rápida (Adaptado de Thelen et
al., 1987).

estrutura de controle sem qualquer envolvimento de funções cere-


brais superiores. A situação de andar sobre esteiras rodando em
velocidades diferentes é inteiramente original, sem experiências
prévias similares e, ainda assim, o sistema de controle encontra for-
mas de solucionar o problema sem fazer uso de estratégias cogniti-
vas. Esse é mais um indicador da flexibilidade dessas sinergias, que
foram demonstradas como as principais responsáveis pela ativação
muscular direta em movimentos locomotores.

RESUMO

A regulação do comportamento motor é feita fundamentalmen-


te pelo disparo de comandos motores pelo SNC, pela transmissão
desses sinais pelas vias eferentes e, finalmente, pela contração dos
músculos-alvo visando a manutenção de determinada posição ou
deslocamento de segmentos corporais. No nível atencional superior
de controle, o sistema especifica diferentes parâmetros de movimen-
to por meio dos programas motores. A participação de programas
motores no controle de movimentos pode ser identificada pelos
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 192

192 CONTROLE MOTOR

seguintes aspectos: (a) incapacidade de correção de movimentos de


curta duração, (b) movimentos controlados na ausência de feedback
sensorial e (c) indicadores de estruturação prévia do movimento. O
conceito original de programa motor, entretanto, tem dificuldade
para explicar a capacidade de controle do complexo sistema senso-
riomotor humano em interação com as forças ambientais. Uma
explicação mais afinada com resultados de pesquisa foi oferecida
pelo conceito de programa motor generalizado. Por essa proposição,
uma parte significativa das especificações dos movimentos é gerada
durante a organização da ação, em vez de ser recuperada direta-
mente da memória. Para explicar a capacidade do sistema para lidar
com uma quantidade elevada de músculos que são regulados simul-
taneamente, é retomado o conceito de organização heterárquica,
com funções distintas para os níveis superior (atencional) e inferior
(subatencional). Enquanto o nível superior é responsável pela espe-
cificação voluntária dos parâmetros de movimento, o nível inferior
se responsabiliza pela organização e ativação dos diferentes grupos
musculares participantes da sinergia de controle. Um modo elemen-
tar para produzir posturas e movimentos é por meio do estabeleci-
mento de pontos de equilíbrio entre músculos antagonistas nas arti-
culações. A participação de estruturas modulares autônomas é
discutida em função de resultados de pesquisa que revelam a im-
portância dos reflexos e de geradores centrais de padrão (GCP) para
a ativação do sistema muscular, e sua modulação adaptativa frente
às exigências da tarefa.

ESTUDO ORIENTADO

Questão 4.1 – Qual o papel do programa motor no controle dos mo-


vimentos voluntários?
Questão 4.2 – De que maneira podemos demonstrar que um deter-
minado movimento é programado?
Questão 4.3 – O que significa desaferentação e qual seu impacto no
controle motor?
Questão 4.4 – Descreva a relação esperada entre complexidade do
programa motor e tempo de reação nas situações de programação e
pré-programação motora.
Questão 4.5 – Indique algumas situações esportivas em que se obser-
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ORGANIZAÇÃO CENTRAL 193

va a necessidade de reprogramar os movimentos e indique o efeito


da reprogramação sobre o desempenho motor.
Questão 4.6 – Explique a maneira pela qual são especificados os pa-
râmetros de movimento pelos programas motores generalizados.
Questão 4.7 – Explique a manutenção da postura ereta estática por
meio da hipótese de ponto de equilíbrio.
Questão 4.8 – Qual o papel das estruturas modulares no controle
motor?
Questão 4.9 – Faça uma análise comparativa entre os conceitos de
programa motor e estrutura coordenativa.
Questão 4.10 – De que maneira os reflexos e geradores centrais de
padrão podem ser integrados ao controle motor voluntário?
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 194

194 CONTROLE MOTOR

LABORATÓRIO 4.1

ESTRUTURA TEMPORAL DOS NADOS CRAWL VERSUS BORBOLETA EM


DIFERENTES VELOCIDADES

Objetivo

O propósito dessa tarefa de laboratório será avaliar se a estrutu-


ra temporal de habilidades motoras permanece invariante frente a
mudanças métricas em um de seus parâmetros de controle, como pro-
posto no conceito de programa motor generalizado. Para tanto, serão
comparadas as estruturas temporais dos estilos crawl e borboleta, na
natação, em diferentes velocidades de execução.

Tarefa e procedimentos

As tarefas motoras que serão avaliadas são o nado crawl e o na-


do borboleta. O nado crawl consiste em movimentos alternados dos
braços e pernas, enquanto no nado borboleta os movimentos de bra-
ços e de pernas são simétricos. Em caso de dúvida, consulte um livro
técnico de natação para conhecer os detalhes de execução.
Deverão ser escolhidos seis nadadores que saibam nadar os dois
estilos com proficiência. Cada um dos nadadores deverá realizar os
nados crawl e borboleta em três velocidades: baixa, média e alta. Para
cada velocidade deverão ser feitas três tentativas. A análise do desem-
penho será feita em função do tempo relativo em diferentes fases da
ação dos braços. Para executar essa análise, faça uma marca (tipo pul-
seira) com fita adesiva ou esparadrapo no punho de um dos braços
do nadador, de forma que ela fique bem visível dentro e fora da água.
Depois que o nadador estiver devidamente aquecido, solicite que
ele execute um dos dois estilos em velocidade baixa, de forma que,
para quem está na borda, a marca de seu braço preferido fique visível
durante todo o ciclo. Use uma câmera filmadora para registrar os
movimentos dos braços. Para isso, posicione a câmera sobre um tripé
na borda da piscina a aproximadamente 10 m do início da ação, a fim
de que a velocidade de movimento já esteja estabilizada no momento
da filmagem. Ajuste a posição da câmera para que um ciclo comple-
to de movimentos fique perfeitamente visível na imagem.
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 195

ORGANIZAÇÃO CENTRAL 195

A velocidade de nado será controlada de forma subjetiva pelos


próprios nadadores. Solicite que eles nadem em velocidade baixa,
em velocidade submáxima (alta) e em uma velocidade intermediária
a essas duas. Metade dos nadadores deverá iniciar as execuções pelo
nado crawl e metade pelo nado borboleta. Inicie a avaliação pela ve-
locidade mais baixa e termine com a velocidade mais alta.

Material

(1) Uma câmera filmadora.


(2) Uma fita para a câmera.
(3) Um tripé para apoio de câmera.
(4) Fita adesiva para fazer o marcador.

Análise

Os resultados serão analisados em função de apenas um ciclo de


movimentos do braço marcado em cada tentativa. O ciclo de movi-
mentos será dividido em quatro fases: (1) flexão submersa, delimitada
pelo ponto extremo de penetração da mão na água até o final da fle-
xão do braço durante o apoio na água; (2) extensão submersa, com
final marcado pelo início da flexão do cotovelo para iniciar a recupe-
ração aérea; (3) flexão aérea, com final marcado pela máxima flexão do
cotovelo durante a recuperação; e (4) extensão aérea, com final marca-
do pelo final da nova penetração da mão na água.
Durante a análise das imagens, deverão ser estimados inicialmen-
te os tempos de movimento em cada fase do ciclo. Essa estimativa será
feita em função do número de quadros filmados. Como a câmera
grava as imagens com uma freqüência de aquisição de 30 Hz, em cada
segundo gravado teremos 30 quadros. Dessa forma, cada quadro cor-
responde a 1000 ms/30 = 33,33 ms. Assim, para estimar o tempo gasto
em cada fase, basta contar o número de quadros correspondentes e
multiplicar por 33,33. O resultado será dado em milissegundos.
Com esse procedimento, serão encontrados os tempos absolutos
de movimento em cada uma das quatro fases. Para encontrar o tem-
po relativo, divida os valores observados pelo tempo de movimento
total (soma dos tempos das quatro fases) e multiplique por 100 para
ter um valor em porcentagem. Aplique esse cálculo para cada tenta-
CONTROLE MOTOR•Cap.04 01/01/1904 1:42 Page 196

196 CONTROLE MOTOR

tiva analisada. Em seguida, calcule as médias das três tentativas indi-


viduais por condição experimental. Por último, calcule as médias e
desvios padrão para o grupo todo em cada condição.

Resultados e conclusões

Elabore um gráfico de linhas, plotando os tempos relativos mé-


dios e os respectivos desvios padrão de cada fase do movimento em
função da velocidade de execução. Coloque os valores relativos aos
dois nados em um único gráfico, de forma que eles possam ser com-
parados (ver Figura 4.9B). Discuta se os resultados estão de acordo
com a concepção de programa motor generalizado.

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