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Sabemos que preparar uma redação nota 1000 no Enem não é uma das tarefas mais fáceis.

Mas aqui, no Equação


Certa, podemos afirmar que é plenamente POSSÍVEL! E, para alcançar um resultado satisfatório, você precisa dominar
as 5 Competências exigidas pela Matriz de Correção de Redação do Enem, além das diferenças entre os níveis de
avaliação em cada uma delas.
A saber, a Competência II tem como um dos critérios de avaliação das notas mais elevadas a questão da produtiva
utilização do repertório sociocultural, para justificar, defender o ponto de vista e enriquecer a discussão. Por isso, é
importante a mobilização de diversas áreas do conhecimento para explicar, contundentemente, os nossos
posicionamentos . E é isso que define o repertório sociocultural, que consiste na utilização de conceitos e de
conhecimentos pertencentes a outras vertentes, como História, Geografia, Filosofia, Sociologia Educação, Economia,
Cultura etc. Esses princípios vão aparecer como fundamentação das nossas ideias, sendo utilizados para justificar aquilo
de que estamos falando.
Para tanto, esta apostila tem por objetivo ampliar os seus conhecimentos e remodelar sua forma de compreender,
criticamente, o Brasil e o mundo. Aqui, você encontrará textos que abordam variadas temáticas sociais, políticas,
econômicas, culturais, tecnológicas e ambientais. Esperamos que aprecie essa compilação, de maneira significativa, a fim
de possuir subsídios necessários para o perfeito entendimento das eventuais propostas de Redação e para a valorosa
confecção de dissertações.
1 – CADÊ O FUTURO 2
2 – DESIGUALDADE 3
3 – A POPULAÇÃO SE TORNOU ESPECTADORA - TODOS CRIANÇAS 4
4 – A APOSTA NO CAOS 5
5 – TRINTA ANOS DO ECA - VIOLÊNCIA TRAVESTIDA DE EDUCAÇÃO 6
6 – CONTRA O NORMAL NO FUTURO 7
7 – RICO E DESIGUAL: AS PERSISTENTES E VERGONHOSAS CONTRADIÇÕES DO BRASIL 8
8 – APAGÃO DE DADOS E IMUNIZAÇÃO DIGITAL: RASTREAMENTO SÓ PARA O QUE INTERESSA 9

1 – FRÁGIL AMÉRICA LATINA 11


2 – O RACISMO DO BRASIL É DIFERENTE DOS ESTADOS UNIDOS? 12
3 – RELIGIÃO, ÉTICA, MORAL 13
4 – A VITÓRIA DA INTOLERÂNCIA 14
5 – SHAZAM!, REGRESSO À PUREZA DO CORAÇÃO 15
6 – OS MELHORES LIVROS DO SÉCULO XXI 16
7 – A ESTÉTICA VALENTE 17
8 – A DIETA PARA FAZER ‘CORINGA’ QUE QUASE ENLOUQUECEU JOAQUIN PHOENIX 18

1 – AS EMPRESAS E AS INOVAÇÕES AMBIENTAIS 20


2 – DEBATE ABERTO E VIOLÊNCIA 21
3 – O CUSTO DA EVASÃO ESCOLAR 22
4 – O RETRATO DAS MAZELAS EDUCACIONAIS 23
5 – UMA RETOMADA COM MUITAS BAIXAS 24
6 – CONVERSAR POR VÍDEO É ENLOUQUECEDOR; APRENDA COM OS AUTORES DE GRANDES
25
DIÁLOGOS NA LITERATURA
7 – OPERAÇÃO VERDE BRASIL E O COMPROMISSO COM A AMAZÔNIA BRASILEIRA 26
8 – O ABUSO DO PODER RELIGIOSO 27

1 – REFORMAS TARDIAS 29
2 – O SEXO DO ENSINO 30
3 – XAMPU E PICANHA 31
4 – MAIS FOGO 32
5 – BOLSA COM TETO 33
6 – ARMADILHA À VISTA 34
7 – VIOLÊNCIA COM DOR CONTRA CRIANÇAS: UM DESPAUTÉRIO 35
8 – O TOTALITARISMO COMO FORMA DE GOVERNO 36
1 – APPS DE PAQUERA E ROBÔS INVADEM LIVROS DE AMOR 38
2 – NEOPENTECOSTAIS ARMADOS ATORMENTAM MINORIAS RELIGIOSAS BRASILEIRAS 39
3 – RUSSA QUE TEVE MÃOS DECEPADAS PELO MARIDO SE TORNA VOZ CONTRA VIOLÊNCIA
40
DOMÉSTICA
4 – POR DESESPERO, REFUGIADOS NO MÉXICO ENVIAM FILHOS SOZINHOS PARA A FRONTEIRA 41
5 – POSSÍVEL CAUSA DE MORTES LIGADAS A CIGARROS ELETRÔNICOS É IDENTIFICADA 42
6 – CHINA TENTA MANIPULAR O CLIMA PARA TER CÉU AZUL EM FESTA NACIONAL 43
7 – NO JAPÃO, MICROSOFT TESTA SEMANA DE TRABALHO DE QUATRO DIAS E PRODUTIVIDADE
44
AUMENTA 40%
8 – MAIS DE 11 MIL CIENTISTAS DECRETAM 'EMERGÊNCIA CLIMÁTICA' EM NOVO RELATÓRIO 45
EDITORIAIS

EDITORIAIS 1
EDITORIAIS
CADÊ O FUTURO?
Edição 151 | Brasil
por Silvio Caccia Bava
30 de Janeiro de 2020

O que acontece com o indivíduo que não sonha com o futuro? Ele perde o entusiasmo, a vontade de vencer obstáculos, de
transformar o real, se acomoda, se submete, aceita o lugar que a sociedade lhe destina: a servidão voluntária. O futuro de cada
um depende do futuro de sua sociedade. E é aqui que se imbricam os dramas individuais e as questões coletivas.
“A tarefa das políticas sociais é desenhar os modos como vivemos e a estrutura institucional e cultural de nossas vidas, de
modo a favorecer os aspectos benignos e suprimir os aspectos grosseiros e destrutivos de nossa natureza fundamental.”
Se o futuro é a busca de um lucro sempre maior para as empresas, especialmente para o setor financeiro, a sociedade deve
se moldar para atender a esse objetivo. A precarização das relações de trabalho serve a esse propósito, assim como a redução
do valor das aposentadorias.
Se o futuro é a busca do bem-estar de todos, a sociedade deve mobilizar seus recursos, sua produção de riquezas, para a
construção dos bens comuns e a melhoria da qualidade de vida. E usufruir desse patrimônio público!
Quando os dramas individuais são reconhecidos como coletivos – a questão do emprego ou da previdência, por exemplo –
, suas demandas criam atores coletivos que cobram dos governos a solução de seus problemas e expressam as necessidades
daqueles que estão privados do que lhes é essencial.
O drama individual se transforma em drama coletivo, e os atores coletivos mobilizados para pressionar os governos criam
espaços de negociação, ativam o espaço da política e conquistam vitórias!
A mobilização dos coletes amarelos, na França, acaba de conseguir que o governo Macron volte atrás no aumento da idade
para se aposentar. As mobilizações impressionantes no Equador fizeram o presidente cancelar o aumento dos preços dos
combustíveis. As imensas mobilizações chilenas conquistaram um plebiscito para votar a forma de construção de uma nova
Constituição para o país.
É curioso que o que ocorre no Chile tenha sumido das páginas de nossos jornais, ou consiga apenas pequenas notas. O
sucesso das mobilizações cidadãs no Chile e em vários outros países não pode alimentar esperanças no Brasil. Por isso, é
preciso controlar as informações. O que acontece se as maiorias no Brasil se convencerem de que podem mudar as políticas
públicas e a destinação dos recursos públicos?
Esta não é uma crise qualquer, é uma crise do mundo do trabalho, com aprofundamento da desigualdade e da pobreza,
precarização da vida, destruição do meio ambiente e violência se instalando sobre as instituições. É uma crise civilizatória!
Temos de pensar uma nova sociedade, um novo modo de produção, novos padrões de consumo, a sustentabilidade ambiental,
a integração cidadã dos mais pobres a uma vida digna, novas formas de gestão em governos radicalmente democráticos.
Se perdermos o horizonte utópico, uma perspectiva, um desejo, uma ideia, um projeto, ficaremos sem propostas para
defender. Aí jogamos apenas na resistência, paralisados pelas dificuldades. O saudosismo do passado traz uma ideia mítica
de reconstruir uma vida que já não é mais possível. Já não é mais possível ser telegrafista, passar um fax, acreditar na força
dos sindicatos ou comer sem ingerir agrotóxicos. Como dizia um antigo filósofo grego, Heráclito, ninguém se banha duas vezes
no mesmo rio; o tempo não volta atrás.
As demandas sociais muitas vezes esbarram em lógicas de negação de direitos. O argumento de sempre é que não há
dinheiro para atender a essas demandas, embora haja dinheiro para atender a setores do empresariado com isenções
tributárias.
Aí é preciso conhecer o conjunto das ações de governo para poder disputar esses recursos. Mas, mesmo conhecendo as
políticas de governo e podendo fazer sua crítica, a política neoliberal baseada no interesse das grandes corporações não tem
o que propor. O neoliberalismo não se importa com as demandas sociais, não pensa o futuro, quer que o presente se eternize.
A crise é estrutural e se aprofunda. Para superá-la é preciso enfrentar o dogmatismo neoliberal e promover mudanças
qualitativas, buscar novos paradigmas. O ponto de partida é a defesa de direitos inalienáveis: direito à vida, à liberdade, à
felicidade; livre acesso ao que é comum; igualdade na distribuição da riqueza; sustentabilidade do comum; governança
democrática.
Com a Austrália mostrando o impacto do aquecimento global, a questão ambiental se soma aos direitos inalienáveis. O
acesso a comida saudável e água potável se contrapõe às privatizações e é igualmente fundamental. Ao promoverem a defesa
dos direitos, os grupos que se mobilizam enfrentam a ordem instituída, assumem uma condição insurrecional – como vemos
hoje no Chile e em vários outros países –, encaram os riscos de morte, espancamento e prisão, e passam a ser o poder
instituinte de uma nova ordem.
Nem os sindicatos, nem os partidos políticos, nem as organizações da sociedade civil conseguem dialogar com a autonomia
desses novos atores sociais. São esses contrapoderes democráticos surgidos das mobilizações cidadãs que pressionam
corporações e governos a abrir espaço para a construção do comum, de uma nova democracia, de uma nova sociedade.
Na situação atual, segundo Chomsky, temos duas escolhas: “Podemos ser pessimistas, desistir e ajudar a garantir que o
pior ocorra. Ou podemos ser esperançosos, agarrar as oportunidades que certamente existem e, talvez, esperar fazer o mundo
um lugar melhor. Na verdade, não é bem uma escolha…”.

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DESIGUALDADE
Edição 152
por Silvio Caccia Bava
28 de Fevereiro de 2020

Tem sido comum atribuir à desigualdade a situação de pobreza, a violência


e a criminalidade que campeiam no Brasil. Seria a enorme e crescente diferença
entre ricos e pobres uma das principais causas dos males que afligem nossa
sociedade. O diagnóstico não está errado, mas trata a desigualdade como
causa, e não como consequência.
A desigualdade é naturalizada, apresentada como uma herança histórica,
uma característica de nossa sociedade com a qual temos de conviver. Não é
vista como uma construção histórica que se apoia nas próprias políticas públicas
e tem no Estado seu principal promotor.
Pelos economistas neoliberais, a desigualdade tem sido tratada, no plano da
economia, como uma consequência inevitável da lógica concentradora dos
mercados. Para eles, já que o sistema é assim, no máximo é preciso atuar junto
aos mais pobres aliviando seu empobrecimento com políticas compensatórias.
A desigualdade tem sido medida principalmente pelo acesso à renda. A
riqueza acumulada e as propriedades normalmente não são levadas em conta. A narrativa neoliberal é apropriada pela
percepção da população: “O progresso do Brasil está condicionado à redução de desigualdade entre ricos e pobres para 86%
dos brasileiros”.
Além disso, o individualismo, a competição, o empreendedorismo, a superdedicação ao trabalho e a fé religiosa se
apresentam como os caminhos para enfrentar essa desigualdade no plano dos indivíduos.
Na contramão da doutrina neoliberal, que quer privatizar os serviços públicos e reduzir o tamanho do Estado, 84% dos
entrevistados concordam total ou parcialmente com a afirmação de que, “em um país como o Brasil, é obrigação dos governos
diminuir a diferença entre as pessoas muito ricas e as pessoas muito pobres”.
“Ter acesso à saúde” (com 54%), “estudar” (com 50%), “fé religiosa” (com 49%) e “crescer no trabalho” (com 48%) se
apresentam como alternativas para enfrentar a desigualdade.Essa percepção é ainda mais forte se consideradas as
desigualdades regionais: 88% dos entrevistados atribuem aos governos a responsabilidade por diminuir as desigualdades
regionais.
Diferentemente dos economistas neoliberais, os sociais-democratas reconhecem o importante papel do Estado e
demandam a formulação de políticas públicas capazes de reduzir a desigualdade ao oferecer serviços e equipamentos públicos
para todos. Trata-se de enfrentar a desigualdade com a produção de serviços e equipamentos de interesse público, os bens
comuns, que adquirem a qualidade de um tipo de salário indireto, e políticas de inclusão social para os mais discriminados.
O acesso a direitos básicos, como educação e saúde de qualidade; direito à moradia, ao trabalho, à cultura; direito a ter
boas condições de mobilidade e segurança; direito a um meio ambiente saudável e a uma infância feliz são as pautas que se
inspiram na perspectiva de construção do welfare state (Estado de bem-estar social), algo que se implantou efetivamente em
países capitalistas, como os escandinavos, e que esteve em nosso horizonte de expectativas, mas nunca chegou a se
concretizar entre nós.
A desigualdade seria reduzida com a melhora dos salários, a construção dos bens públicos comuns e o combate às
discriminações de toda ordem. Mas nessa perspectiva não cabem o teto dos gastos sociais imposto por emenda constitucional
nem o Estado mínimo proposto pelos neoliberais. A visão da social-democracia não tem vez neste momento autoritário. Ela
não agrega forças políticas suficientes para se impor como política dominante.
Se a economia visa otimizar o lucro das empresas e comanda o Estado, este fica impedido de prover as maiorias com as
políticas sociais. “As políticas sociais não cabem no orçamento público”, como alegaram parlamentares que aprovaram a
Emenda Constitucional n. 95, que impõe o teto dos gastos sociais. Se não dá para sugerir melhoras nas políticas públicas e
correções de rota para as políticas ditas de desenvolvimento – melhor chamá-las de políticas de acumulação –, é preciso
recuperar a dimensão política dessa discussão sobre a desigualdade.
São decisões do Executivo e do Legislativo que promovem a desigualdade. É o modelo de democracia liberal – melhor
dizendo, patronal – que está em xeque. É preciso abrir a discussão sobre como enfrentar esse bloqueio ao combate à
desigualdade.
O desafio é criar uma nova democracia, com um novo desenho institucional e a participação cidadã ocupando núcleos de
poder e participando ativamente das decisões. Afinal, como nos aponta Francisco de Oliveira, a participação ativa da cidadania
é o que pode mudar o jogo. Sua definição de cidadania: ter condições de fazer uma escolha, ter condições de efetivar essa
escolha, ter condições de se beneficiar dessa escolha.

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A POPULAÇÃO SE TORNOU ESPECTADORA - TODOS CRIANÇAS

Edição 154
por Serge Halimi
29 de Abril de 2020

Mais uma vez o mundo deles cai por terra. E não fomos nós que o quebramos. Evocamos
neste momento o programa econômico e social do Conselho Nacional da Resistência, a
conquista dos direitos sindicais e as grandes obras do New Deal. Mas muitos maquisards
[membros da Resistência francesa na Segunda Guerra Mundial] tinham conservado suas
armas e na rua um povo esperava pela passagem da “Resistência à revolução”. Este
inclusive era o lema de jornal clandestino da época chamado Combat. De seu lado, Franklin
Roosevelt soube como fazer alguns patrões norte-americanos entenderem que as revoltas
dos trabalhadores e o caos social arriscavam varrer seu adorado capitalismo. Eles então
tiveram de compor.
Hoje não há nada disso. Confinada, infantilizada, estupefata e ao mesmo tempo
aterrorizada pelas redes de informação 24 horas, a população se tornou espectadora,
passiva, aniquilada. Por força da situação, as ruas ficaram vazias. Não há mais “coletes
amarelos” na França, nem Hirak na Argélia, nem manifestações em Beirute ou em Santiago.
Como uma criança assustada com o estrondo da tempestade, cada um espera para saber o
destino que o poder lhe reserva. Porque os hospitais são ele; as máscaras, os testes, são
ele; as transferências de dinheiro que permitirão aguentar alguns dias a mais são ele;1 o
direito ou não de sair – Quem? Como? Quando? Com quem? – é ele, e sempre ele. O poder
tem todos os poderes. Médico e empregador, ele também é nosso juiz para a aplicação de
penas, é quem decide a duração e a dureza de nosso confinamento. Por que se surpreender com o fato de que 37 milhões de
franceses, um recorde, o dobro da audiência da final da Copa do Mundo de futebol de 2018, tenham ouvido o presidente da
República em 13 de abril, quando ele falou em onze redes ao mesmo tempo? O que mais eles poderiam fazer naquela noite?
A vertigem aumenta quando esse poder não sabe para onde está indo. Suas decisões são ameaçadoras, mesmo quando
se contradizem. As máscaras? Elas eram inúteis, isso era certo, tanto que não as tínhamos. Tornaram-se úteis de novo – ou
seja, potencialmente capazes de salvar vidas –, desde que a tenhamos. Entende-se que o “distanciamento social” é necessário,
mas a distância de segurança aumenta em 50% quando um francês vai para a Bélgica ou atravessa o Reno, e dobra se ele
vier a atravessar o Atlântico. Finalmente, em breve saberemos que idade e quais características físicas nos impedem de sair
de casa. Era melhor ser velho e gordo outrora que “idoso” e “acima do peso” hoje: os primeiros tinham pelo menos domínio
sobre seus passos. E por que as crianças em idade escolar deixariam de ser contagiosas para os professores próximos da
aposentadoria, a quem sempre se recomenda manter distância dos netos?
Um dia nos tornaremos adultos novamente. Capazes de entender e impor outras opções, inclusive econômicas e sociais.
No momento, estamos recebendo golpes sem poder devolvê-los; falamos no vazio e sabemos disso. Daí esse clima pegajoso,
essa raiva sem emprego. Um barril de pólvora no meio de uma sala, esperando o fósforo. Depois da infância, a idade da
rebeldia…

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A APOSTA NO CAOS

Edição 155 | Brasil


por Silvio Caccia Bava
1 de junho de 2020

A situação é desesperadora. Vivemos uma epidemia que já mata mais de mil


pessoas por dia no Brasil, sem que o governo federal tenha adotado uma
estratégia de defesa da vida e mobilizado todos os recursos disponíveis para
controlar a Covid-19. O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, além de todos
os seus desatinos, mostra que o governo nem sequer aborda a pandemia que se
alastra pelo país. Ao contrário, Bolsonaro sabota a proposta de isolamento social
e se choca com as orientações da Organização Mundial da Saúde e de seu
próprio Ministério da Saúde, o que já levou dois ministros a se demitirem em plena
pandemia. Pesa sobre o presidente da República a acusação de estar
promovendo um genocídio dos brasileiros.
Dados recentes, de 14 de maio, nos dizem que, dos R$ 18,9 bilhões
destinados ao combate à Covid-19 no âmbito do Fundo Nacional de Saúde,
apenas R$ 8 bilhões foram pagos. A insuficiência e a lentidão dos repasses aos
fundos estaduais e municipais de saúde merecem destaque num quadro de uma
relação extremamente conflitiva do presidente com governadores de vários
estados, especialmente de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Nordeste do país.1
Os ataques presidenciais à política de isolamento têm a adesão de uma
significativa parcela da população mais pobre, composta de trabalhadores
informais e desempregados, que vivem de bico e de venda de produtos nas ruas
e precisam trabalhar para obter a cada dia os recursos para sobreviver. Esses
brasileiros e brasileiras mais pobres, que somam mais de 80 milhões de pessoas,
se não tiverem recursos públicos para se manter, passarão fome e desespero. Propor o fim do isolamento é uma política
perversa, pois convoca a expansão da pandemia.
Pela falta de políticas públicas capazes de enfrentar a pandemia e com a fome chegando às populações mais empobrecidas,
situação que alguns analistas identificam como deliberada e de responsabilidade do governo federal, é previsível que
entraremos em um período, a curto prazo, de convulsões sociais – e, eventualmente, de saques aos supermercados. Pode-se
repetir no Brasil situações que já ocorrem em outros países. Sem que seja possível enterrar os mortos, como aconteceu em
Guayaquil, no Equador, nem levar comida para filhos e familiares, o desespero vai desencadear a violência e o caos, como
apontam as últimas manifestações populares no Chile.
Essa situação de convulsão social permitiria ao presidente buscar mobilizar as Forças Armadas e implantar um estado de
sítio. Com isso, Jair Bolsonaro e seus filhos resolveriam seus problemas com a Polícia Federal, com o Judiciário e com o
Parlamento, o que parece ser a maior preocupação do presidente do Brasil.
Esse imobilismo do campo democrático abre espaço para Bolsonaro avançar em sua estratégia de golpe. Há uma agenda
de urgências a ser implementada, e o primeiro passo é a conformação de uma frente antifascista. As disputas entre partidos
por força das eleições municipais, que aliás ninguém discute e não sabemos quando vão ocorrer, não podem impedir a formação
dessa frente.
Alguns sinais recentes mostram atos de resistência democrática diante das seguidas manifestações de rua dos
bolsonaristas. No domingo, 24 de maio, um grupo de sindicalistas e das torcidas organizadas do Grêmio e do Inter retomou a
ocupação das ruas e impediu a manifestação dos fascistas, um pequeno e barulhento grupo de pessoas vestidas de verde e
amarelo.

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TRINTA ANOS DO ECA - VIOLÊNCIA TRAVESTIDA DE EDUCAÇÃO

Acervo Online | Brasil


por Raphael Fagundes
17 de julho de 2020

A violência contra a criança sob a justificativa de disciplina ainda é


amplamente utilizada em nossa sociedade. Apesar de haver uma
legislação específica sobre isso, constituindo estes atos como violação
dos direitos básicos e fundamentais da criança e adolescente em prática
criminosa (Constituição de 88 – Artigo 227, ECA – Artigo 17 e Lei 13.010
de 26 de junho de 2014), o discurso “disciplinador” por parte de pais e,
pasmem, “educadores”, ainda é frequente.
As políticas públicas de proteção à infância e adolescência deixam
clara a responsabilidade social e do Estado, não somente familiar, quanto
à proteção das crianças e à garantia de uma vida permeada pelo respeito,
liberdade, dignidade e a salvo de toda negligência, discriminação,
violência, opressão e crueldade. Sendo preciso ainda esclarecer que,
quando falamos de violência nos referimos a todo tipo que esta pode ser
expressa: física, verbal, psicológica – emocional.
Enquanto vivenciamos uma pandemia que, em seu caráter de isolamento social, fez aumentar os índices de violência
infanto-juvenil intrafamiliar por estarem estes grupos muitas vezes em convivência massiva com seus agressores e sem
oportunidades de pedir por socorro, surge a nomeação de um ministro da Educação (o quarto deste governo) que não somente
não aparenta entender nada sobre desenvolvimento infantil, educação e família, como também incentiva o uso de práticas
violentas para educar crianças. “É preciso que elas sintam dor”.
A ideia apresentada pelo ministro pastor vem do Antigo Testamento: “Não evite disciplinar a criança; se você a castigar com
a vara, ela não morrerá. Castigue-a, você mesmo, com a vara, e assim a livrará da sepultura” (Provérbios 23:13-14). Mesmo
com o sacrifício de Cristo, a ideia de infligir dor alheia não se dissipou, pelo contrário. Durante a longa Idade Média, houve uma
banalização da dor. O sacrifício de Cristo, todo o seu sofrimento para salvar a humanidade, fez da dor um caminho para a
verdade. De modo que, para os torturadores da Inquisição, a tortura não era um ato de violência, ou uma maldade. Acreditava-
se que se uma pessoa sofresse como Jesus, mentir seria impossível. A dor de Cristo revelou a verdade, logo, por meio de um
raciocínio indutivo aristotélico que vigorava no mundo medieval, a dor revela a verdade. Foi sofrendo que Cristo morreu e três
dias depois deu-se o milagre que fundamenta o cristianismo: a Ressurreição. Essa ideia legitimou a tortura por muitos anos.
Mas como a criança aprende? É comprovado que o ser humano aprende através dos modelos que tem em seu entorno.
Principalmente, na primeira infância, pelas práticas e modelos parentais. Para desenvolvimento pleno e aprendizagem, John
Bowlby, em sua “Teoria do Apego”. fala da necessidade de vinculação afetiva para que a criança estabeleça nos pais base
sólida e segura para descobrir o mundo e moldar suas relações.
Segundo Siegel &Bryson, nosso cérebro passa por transformações por toda a vida, sendo diretamente moldado pela
experiência que vivenciamos. “Uma disciplina eficaz implica não apenas a interrupção de um comportamento ruim ou a
promoção de um bom, mas também estimular habilidades e fomentar nos cérebros de nossos filhos as conexões que os
ajudarão a tomar melhores decisões e a lidar com suas próprias emoções”,[4] destacam os pesquisadores.
Eles alertam ainda para os malefícios da punição nas relações familiares que interrompem o diálogo, a conexão entre pais
e filhos e impactam na construção interna de partes do cérebro responsáveis por desenvolver habilidades de relacionamentos
interpessoais.
Disciplinar é ensinar e ensinar é carregado de intencionalidade. Há sempre algo por trás do comportamento em si e
enquanto pais e sociedade estamos a serviço de apoiar crianças e adolescentes rumo ao seu desenvolvimento pleno. Atos
violentos como justificativa de educação apenas transmitem a mensagem que a resolução de conflitos se dará pela força
e pelas lutas de poder, e não por cooperação ou compassividade. Práticas punitivas na educação de filhos perpetuam
ciclos de violência, ignoram fases de desenvolvimento infantil, esmagando crianças e adolescentes com expectativas
surreais. Retratam apenas nosso despreparo como adultos que também tiveram suas infâncias violadas e não souberam
o que fazer disso.

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EDITORIAIS
CONTRA O NORMAL NO FUTURO

Acervo Online | Brasil


por Carlos Alberto Dória
13 de julho de 2020

Sob o capitalismo, é necessário que os agentes econômicos ajam


obedecendo a uma visão de futuro, capaz de modular os esforços produtivos
presentes que garantam a sobrevivência do próprio capital. Com a pandemia,
toda a produção voltada para o consumo na esfera pública foi abalada, muito
trabalho se aniquilou e a “riqueza da nação” talvez tenha sido destroçada em
cerca de 10% do PIB. Setores inteiros estão indo para o vinagre. Para eles, a
“visão de futuro” já é catastrófica e, em lugar de “recuperação”, talvez o desafio
seja a reinvenção.
A crise é política, econômica e existencial. O imediatismo da alimentação e
da existência humana que entrou em crise deve ceder lugar para a importância
do amor, da amizade e da solidariedade. Muitos acham isso uma utopia, como
se a busca incessante do lucro fosse a única medida na recuperação do
“normal”, mas populações de países europeus já dão mostra de grande pessimismo, acreditando que a próxima geração terá
uma vida pior do que a atual, ou seja, que a restauração do império do lucro não fundamenta qualquer esperança por dias
melhores.
Por isso mesmo há uma demanda muito forte pelo traçado do cenário que se apelidou de “novo normal”. Trata-se de saber
como o sistema produtivo como um todo absorverá o impacto destrutivo da epidemia e, dando a volta por cima, retomará algum
ritmo sustentável de produção. No entanto, não é possível vislumbrar 2025 se não compreendemos 2020, e se errarmos em
diagnósticos, necessariamente erraremos em prognósticos. Vejamos, a título de exemplo, os dilemas de um só setor: o de
alimentação fora do lar.
Ele é dos mais sensíveis à mudança em curso exatamente porque está ligado a um ciclo muito curto de produção e consumo
no que diz respeito à comida cotidiana, especialmente dos restaurantes, bares e lanchonetes que, pelo apurado pelo IBGE,
consomem cerca de 34% dos gastos familiares com comida, sendo o restante (66%) destinado à alimentação doméstica.
É fácil entender que o confinamento tenha atingido em cheio a alimentação fora do lar, daí a grita generalizada no setor e,
do mesmo modo, o aumento do consumo alimentar do que é oferecido pelos supermercados (15-20%). O dilema é “fechar para
sempre” ou aguentar mais um pouco.
A ampla esterilização de postos de trabalho na economia, impôs novos modos de atividade – o home office – que, alguns
apostam, será em boa medida definitivo. Então, pode-se imaginar que, em alguns meses, avenidas como a Paulista, a Faria
Lima e a Berrini, apresentarão um cenário completamente diferente como “novo normal” e, para os comerciantes ali
estabelecidos, desolador. Vejamos, porém, o que acontece numa escala micro.
”Reerguer-se”, no cenário pós-pandemia, será difícil para os renitentes, impossível para o conjunto. O determinante será o
tamanho da clientela, em função da localização dos restaurantes vis a vis a concentrações de trabalhadores de serviços e a
competição entre si, segundo fatores atrativos (preço, cardápio, serviços acessórios). E há que se considerar a hipótese de
várias empresas recriarem os antigos “refeitórios” internos, ainda que como simples espaço para os funcionários aquecerem
suas marmitas produzidas numa nova jornada de trabalho doméstico. Se com o home office parcela do aluguel, do IPTU e do
condomínio já haviam se convertido em doações dos trabalhadores ao capital, agora é a própria força de trabalho na cozinha
doméstica que se vê empurrada para essa situação.
Outra perspectiva de análise relevante para o desenho do “novo normal” é aquela que se baseia na suposição de que boa
parte das atividades do antigo “normal” seja canalizada para a alimentação “no lar” através de eficientes sistemas de entrega
ou via aumento do take away, mantendo na retaguarda ao menos parte da antiga estrutura produtiva e comercial. É a
perspectiva estratégica dos restaurantes a la carte e tem por base a convicção de que é possível levar até o lar o que não se
come mais à mesa dos restaurantes, substituindo-se garçons por motoboys, que já deram mostras de viver no limite do
suportável, tal o abandono de suas necessidades como trabalhadores.
Antes mesmo da pandemia, moradores da favela Panorama, na Cidade Jardim, na capital paulista, já vinham oferecendo
restaurantes improvisados que configuravam alternativas alimentares, por conta da crescente pauperização das classes média
e baixa de escritórios. Isso indica que já na “velha ordem” existia uma semente de transformação, que nos impede de afirmar
que ela se restabelecerá após o ciclone da pandemia, ou qual será o conteúdo social que desabrochará aos poucos. Até lá –
quando a vacina em massa passar a ser efetiva – talvez só nos reste nos unirmos para resistir à regressão às piores práticas
do passado.

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RICO E DESIGUAL: AS PERSISTENTES E VERGONHOSAS CONTRADIÇÕES DO BRASIL

Acervo Online | Brasil


por Wellington Pereira e William Antonio Borges
25 de junho de 2020

O Brasil foi classificado como o 7º país mais rico do planeta em 2010.


Atualmente, ocupa a 9ª posição nesse ranking. Mas as previsões de
encolhimento do PIB brasileiro, em 2020, já possibilitam projetar que o
país passará a ocupar a 12ª posição na seleta lista das maiores
economias mundiais a partir de 2021. Baseado numa leitura mais
imediatista, alguém poderia dizer que esse resultado refletiria a perda de
dinamismo da economia brasileira devido à crise de saúde pública
ocasionada pela covid-19. Contudo, a economia brasileira já vinha
esmorecida há vários anos, mas sem deixar de figurar entre as dez
maiores do mundo.
Se por um lado tal posição é defendida como sendo um aspecto
positivo da economia brasileira e que atesta seu grande potencial, por
outro lado, os reais beneficiários das riquezas produzidas preferem ignorar
a enorme desigualdade social no Brasil. Enquanto o Brasil é uma das
maiores economias do mundo, também é um dos países mais desiguais do planeta. O povo brasileiro produz essa riqueza,
mas ela é usufruída por poucos. Não é a toa que o país já foi interpretado pelo economista Edmar Bacha, em 1974, como uma
Belíndia (misto de convivência entre Bélgica e Índia). Foi uma crítica ao período da ditadura militar cujo governo privilegiou
medidas que fomentaram o crescimento econômico sem distribuição de renda.
Os analistas econômicos e representantes dos interesses do mercado financeiro têm disseminado pela imprensa suas
previsões pessimistas para o futuro da economia brasileira, sobretudo quando qualquer proposta de aumento de gastos públicos
passa a ser cogitada no debate político. Muitos reafirmam o mantra neoliberal de que o Estado é o problema e não a solução.
Para tal visão, quanto menos espaço houver para o Estado, melhor será para a recuperação da economia no médio e longo
prazo. Mas, claro, o Estado só se torna necessário para os defensores dessa visão de mundo quando ele precisa intervir para
garantir liquidez e solvência do sistema financeiro. Para todo o resto, o Estado seria um estorvo.
Essa visão reproduz, insistentemente e sem qualquer vergonha, interpretações que preferem ignorar como funciona,
realmente, o jogo de interesses na economia capitalista. O fato de o Brasil estar no grupo das 10 maiores economias do planeta,
ao mesmo tempo em que é um dos 10 países mais desiguais do mundo, comprova que muita contradição permeia esse
contexto, permitindo que os mais pobres sejam os prejudicados e os mais ricos os favorecidos. A falaciosa autogestão eficiente
dos mercados, apregoada pelos arautos do neoliberalismo, é o argumento adotado por aqueles que fingem (sem culpas) não
ter qualquer responsabilidade neste processo.
É fundamental destacar que a desigualdade brasileira é amplificada por um sistema tributário que incide fortemente no
consumo (impostos indiretos), penalizando a camada mais pobre da população. E no que concerne aos impostos diretos, tal
estrutura privilegia descaradamente os mais ricos, os quais podem receber grandes fortunas como herança pagando impostos
irrisórios e embolsar lucros e dividendos sem pagar qualquer imposto.
Além de o sistema tributário brasileiro atual intensificar a forte desigualdade já produzida pelo mercado, a questão racial é
outro fator que sedimenta essa realidade perversa. Estudo do IBGE, divulgado em novembro de 2019 e com dados referentes
a 2018, demonstra que a realidade socioeconômica no Brasil é extremamente perversa para pessoas pretas e pardas.
Fica evidente que, embora a abolição formal da escravatura tenha ocorrido em 1888, os negros ainda se encontram
subalternos à estrutura social brasileira, concebida para garantir privilégios à minoria branca. As pessoas pretas e pardas são
a ampla maioria da população brasileira (55,8% do total), mas se concebem como minoria por se encontrarem em um contexto
de racismo estrutural que pauta a opressão e a desigualdade no Brasil. É fundamental destacar que a opressão, o racismo e o
preconceito também recaem aos indígenas e outras minorias, tais como às mulheres, ao público LGBTQI+, e aos refugiados.
Como se verifica, no Brasil, a desigualdade também é concebida de modo interseccional.
A sociedade brasileira chegou à banalização completa a respeito das implicações perversas que essa configuração
socioeconômica acarreta para todos nós. Nada disso pode ser aceito como algo “normal”. Até quando vamos ficar sem negar,
enfaticamente, que essa configuração socioeconômica é inaceitável? Que sociedade é essa onde se produz tanta riqueza, mas
é, ao mesmo tempo, um lugar em que faltam as condições mínimas para uma vida digna a todos aqueles que sofrem a
marginalização diária na sociedade brasileira?

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NECESSIDADE DE CONTROLE SOCIAL - APAGÃO DE DADOS E IMUNIZAÇÃO DIGITAL: RASTREAMENTO
SÓ PARA O QUE INTERESSA

Acervo Online | Alemanha


por Camila Nobrega e Joana Varon
16 de junho de 2020

Em muitas regiões do Brasil, o isolamento e monitoramento do


avanço da Covid-19 tem sido feito por meio de esforços coletivos e
autônomos. Povos indígenas e quilombolas fecham acessos a suas
comunidades, tentando conter invasões e denunciar desmatamentos que,
além de devastar, aumentam a circulação do novo coronavírus.
Comunidades periféricas de zonas urbanas se auto-organizam para
contabilizar perdas de vidas e distribuir auxílio comunitário, já que o federal
muitas vezes não chega. Mais recentemente, com a ameaça da
presidência de fazer um apagão de dados do Ministério da Saúde, primeiro
restringindo acesso, depois mudando a metodologia de publicação de
forma a maquiar o total de mortes por Covid-19, a falta de transparência
chegou a níveis ainda mais absurdos. O único acesso restante foi o cálculo
autônomo de dados das Secretarias de Saúde dos estados e municípios,
e até os poderosos conglomerados da mídia tradicional tiveram que
estabelecer parcerias para esse esforço por conta própria.
Mas, se de um lado há negligência do Estado, de outro, enquanto uma vacina ainda parece realidade distante, governos
de todo o mundo apelam para soluções tecnológicas apresentadas como quase mágicas, em forma de “kits de imunização
digital”, visando a aumentar a resistência ao vírus com apps e “Big Data”. Abre-se espaço para fazer algo que meses atrás seria
inaceitável: rastrear movimentos de todas e todos (que têm celular) para mapear quem esteve próximo de alguém que depois
testou positivo para a Covid-19.
Para pensar como lógicas de contenção da pandemia sob uma ótica global e com implementação de tecnologias pode
impactar países, regiões e territórios em suas peculiaridades, nós, brasileiras pesquisadoras vivendo a quarentena em
diferentes momentos da propagação do vírus em cidades distintas, Rio de Janeiro e Berlim, entrevistamos duas outras
mulheres. A alemã Anne Roth, ativista e conselheira do parlamento alemão, que já foi vítima de vigilância por parte do Estado.
E a brasileira Yasodara Córdova, especialista em tecnologia e inovação em governo. Ambas lançaram o mesmo alerta: o pânico
instaurado com o coronavírus abre terreno para tomada de decisões sem transparência e os danos podem ser irreversíveis.
Recentemente, Google e Apple, empresas que detém o monopólio dos sistema operacionais da maioria dos celulares
ocidentais, numa parceria inédita, anunciaram o lançamento de interfaces de programação de aplicativos (APIs) para apps de
rastreamento de contato. Tentando atenuar questões de privacidade que a palavra rastreamento sugere, essas empresas agora
chamam esses apps de notificação exposição (exposure notification). De acordo com as gigantes de tecnologia, autoridades
de saúde de 23 países de cinco continentes já buscam parceria para desenvolver seus apps com base no sistema.
Visando países latino-americanos e africanos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que em breve lançará
seu próprio app, que também rastreia por bluetooth. Em um mundo em que já se debatem até passaportes de imunidade, é
muito provável que algum tipo de monitoramento de dados de saúde vá acontecer num telefone perto de você (ou no seu). Mas
isso não pode acontecer sem debate público.
Na Alemanha, onde durante a Segunda Guerra Mundial a centralização de dados em parceria com tecnologia da IBM
facilitou a formação de campos de concentração nazistas, depois de receber muitas críticas da sociedade civil, o governo
anunciou que iria adotar o modelo “descentralizado” para desenvolver um app de rastreamento de contatos no país. Depois do
reconhecimento das atrocidades cometidas durante o nazismo, uma cultura de memória (tradução aproximada do termo
¨Erinnerungskultur¨) faz parte de uma movimentação contínua da hoje forte sociedade civil. Se baseia em não esquecer o
passado, de forma que efeitos em outros tempos históricos possam ser levados em consideração e erros não se repitam. Hoje,
privacidade é tema levado muito a sério, assim como liberdades individuais e de organização coletiva.
Não há solução única e global possível para lidar com a pandemia. O vírus é o mesmo, mas os contextos em que se
propaga são completamente desiguais. O contexto pede uma mescla entre iniciativas locais, respeito a modos de vida diversos
e debate público mais transparente, onde a informação esteja aberta para olhares de diferentes pontos de vista e com
possibilidade real de participação da população. Se isso não está garantido, por um lado, mergulhamos em solucionismos
tecnológicos, descolados de realidades onde abismos imperam, em interseções de classe, etnia, raça, gênero, orientação
sexual, condições regionais, entre outras. Por outro, escancaramos as portas para vigilância em massa em um contexto político
em que a defesa da democracia por si só tem sido um desafio.

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FRÁGIL AMÉRICA LATINA

Covid-19 chegou com atraso à região em relação a outros continentes, mas essa vantagem temporária está se
dissolvendo rapidamente

A vantagem temporária que a América Latina podia ter por receber a


pandemia da covid-19 com atraso em relação à Ásia e à Europa está se
dissolvendo rapidamente ao topar com os males endêmicos da região: a
fragilidade dos sistemas sanitários, a fraqueza do conjunto das instituições
e a amplitude da pobreza e da desigualdade. Cabe a isso somar o
comportamento errático –em diferentes graus – de alguns de seus
governantes, entre os quais se destacam Jair Bolsonaro no Brasil, Andrés
Manuel López Obrador no México e Daniel Ortega na Nicarágua. O
continente é nestes dias o epicentro da crise. Já foram registradas 50.000
mortes, mas é preciso levar em conta a clara subnotificação de contágios
e óbitos. Na verdade, ninguém sabe qual é a profundidade da catástrofe.
É inegável que as cifras oficiais estão, atualmente, muito abaixo do que
sofreram sociedades mais desenvolvidas. Mas convém não esquecer que
a América Latina se encontra atualmente no meio da tempestade, sem que Vendedor ambulante na Cidade do México. REBECCA
se aviste com clareza uma mudança de tendência. O México começou BLACKWELL / AP
nesta segunda a relaxar o distanciamento, com todos seus Estados, menos
um, ainda sob máximo risco de transmissão. Seu presidente iniciou no mesmo dia suas turnês políticas, uma péssima
mensagem aos cidadãos de que já se voltou asa normalidade.
O Brasil é o quarto país do mundo com mais mortes. Supera os 500.000 contágios. Apesar disso, Bolsonaro aprofunda a
sabotagem contra suas próprias autoridades sanitárias, a divisão da sociedade e o desprezo às medidas de proteção, um traço
especialmente cruel da sua já complicada personalidade. O Peru atravessa seus piores momentos (antes foi o Equador), a
Venezuela cavalga errante nesta enésima crise, e parte da América Central a compartilha com outras epidemias conhecidas.
No outro extremo, tanto a Argentina como a Colômbia – especialmente Bogotá e sua prefeita, Claudia López – reagiram de
forma imediata e eficiente.
O que está por vir é preocupante: mais contágios e mais mortes, mais desemprego, mais pobreza e mais desigualdade. E
provavelmente, mais instabilidade política. A infraestrutura sanitária ainda não se paralisou como ocorreu em partes da Europa
ou em Nova York, mas aqui também há matizes. O sistema em seu conjunto já é tão precário que, no México, por exemplo, um
número desproporcional de doentes morre sem chegar a uma UTI ou a um leito com ventilador. E a volta à normalidade parece
ser uma quimera quando 20% das escolas no México não têm água potável e 45% carecem de esgoto.

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O RACISMO DO BRASIL É DIFERENTE DOS ESTADOS UNIDOS?

Um filósofo diz que a discriminação dos negros no país é mais social que racial

A questão do racismo se acentuou no Brasil. Ou melhor, a


sociedade está condenando o preconceito e colocando-o em evidência
como nunca o fez. E isso é positivo. Representa uma nova tomada de
consciência social. O que é mais difícil e ao mesmo tempo urgente para
o Brasil, onde o número de negros e pardos supera o de brancos, é
analisar a raiz do racismo que não é vivido igualmente nas diferentes
partes do mundo.
Um negro, um indígena ou um mestiço podem ser alvo de
preconceito por motivos diferentes. Um negro pode ser essa vítima
simplesmente por ser negro. Trataria-se, no fundo, de reconhecer que
ele pertence a uma raça inferior. É o racismo que não tem saída.
Quando nos Estados Unidos os negros não podiam andar de ônibus
ao lado dos brancos nem usar o mesmo banheiro, a discriminação era
de raça. Era como se estivessem deixando os porcos entrarem em
casa.
Quando no Brasil a polícia, na rua, flagra um assalto e um negro e Missa afro em São Paulo em comemoração ao
Dia da Consciência Negra.ROVENA ROSA / AGÊNCIA
um branco saem correndo, o mais certo é que tente deter o negro, que BRASIL
para o policial é o mais provável que seja um bandido. Nesse caso, o
racismo não é necessariamente racial. A noção geral é de que os negros estudam menos, sabem menos, são mais pobres e,
portanto, são mais inclinados ao crime. É um racismo social.
O economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor livro Trópicos Utópicos (Companhia das Letras), defendeu numa entrevista
ao jornal O Globo a seguinte tese: “O racismo no Brasil tem uma natureza social, e não de raças”. Ele acrescenta que se trata
de algo completamente diferente, por exemplo, do racismo norte-americano, onde houve uma “separação monstruosa”.
Giannetti reconhece que o “abismo social” no Brasil – e não só aquele entre brancos e negros – é enorme e permeado de
preconceitos. Mas, ao mesmo tempo, defende que a característica de tal racismo é sobretudo social.
Ele atribui a essa diferença do racismo brasileiro ao fato de que os colonizadores portugueses terem convivido com árabes
durante séculos, o que lhes deu know how em relação às diferenças, “o que não ocorreu com os anglo-saxões”.
Será que isso quer dizer que o racismo vivido no Brasil é menos grave? Não. O fato de ser um racismo social não deixa de
ser monstruoso e deve ser combatido com a mesma força com que Martin Luther King condenou o racismo de segregação nos
Estados Unidos. O lado bom, se é possível usar esse adjetivo em um assunto tão terrivelmente desumano, é que por ser um
racismo bem mais social, é mais fácil combatê-lo através de uma campanha cultural e política.
Para isso, é urgente que se coloquem todas as forças a serviço de uma melhor escolaridade para os brasileiros negros, algo
que castiga os mais pobres, discriminando-os e relegando-os aos trabalhos mais “inferiores”. É urgente que se aprofunde,
desde a escola, o conceito de que não existem raças, mas sim etnias, todas elas igualmente humanas, igualmente ricas e
dignas de respeito.
Se é certa a tese de Giannetti de que o racismo brasileiro é fundamentalmente social, existe até a possibilidade, como ele
afirma em seu livro, de que o Brasil possa ser hoje no mundo uma alternativa e até uma “utopia de civilização”, que poderia ser
oferecida ao mundo em um momento de obscuridade e ameaças de novas barbáries que degradam a Humanidade.

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RELIGIÃO, ÉTICA, MORAL

A religião deveria ser ensinada em casa, pelos pais, e praticada no seio das comunidades confessionais. Nas escolas
públicas, deveria prevalecer a discussão de princípios éticos

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar o ensino


religioso vinculado a uma crença específica em escolas públicas é
mais um indício de que caminhamos velozmente para trás. O Brasil é
um Estado laico e, portanto, deveria incentivar o diálogo entre as mais
diferentes confissões, no intuito de formar cidadãos tolerantes com as
opiniões divergentes. Optando pelo ensino doutrinário de uma religião
exclusivista, afundamos ainda mais no pântano do sectarismo em que
estamos estacionados.
O que a sociedade deveria exigir do Estado é a implantação de um
sistema público de ensino de qualidade que privilegiasse a educação
para a cidadania. E isso se obtém com discussões sobre ética, que
encontra-se no domínio da filosofia, e não sobre moral, submetida a
preceitos religiosos. Embora alicerce as religiões, a ética as suplanta, Fiel segura uma vela em uma cerimônia religiosa pela paz.YE
pois seus princípios são universais, ou seja, valem em qualquer tempo AUNG THU / AFP
e em qualquer lugar – enquanto a moral muda conforme os hábitos e
costumes e interesses característicos do tempo e do lugar.
Um exemplo: a inviolabilidade da vida humana, “não matar”, é um conceito ético, que independente da época e do país em
que se vive e que está presente, acredito, na base de todas as religiões do mundo. No entanto, como as religiões defendem
princípios morais e não éticos, em nome de Deus cristãos matam judeus, muçulmanos matam cristãos, budistas matam
muçulmanos... Deveríamos lutar para que nas escolas públicas se ensinasse o princípio ético “não matar” em geral, ou seja, o
respeito à vida de todos igualmente, e não sua derivação moral, de que a ideia de “não matar” não serve para aqueles que
pensam ou agem diferente de nós.
Recente pesquisa do departamento de Psicologia da Universidade de Chicago (EUA) concluiu que crianças educadas em
lares não religiosos são mais tolerantes e generosas que as criadas segundo princípios religiosos. Os investigadores recrutaram
1.170 crianças de diferentes crenças em seis países (Canadá, China Jordânia, Turquia, EUA e África do Sul) e demonstraram
que há maior coesão entre os membros de grupos religiosos e maior nível de intolerância com quem está de fora. As pessoas
que não têm religião tendem a ser mais solidárias, exatamente por não fazerem distinção entre as diversas crenças religiosas.
Nos últimos tempos, a sociedade brasileira, imersa em denúncias de corrupção e acuada pela incompetência generalizada
da gestão do Poder Público, vem ancorando seu desencanto na falsa segurança do moralismo. Falsa segurança porque o
moralismo – diferente da ética – funda-se em interesses momentâneos de alianças espúrias. Em geral, o moralismo é uma
cortina que esconde a hipocrisia e o cinismo. O moralismo censura obras de arte, persegue confissões divergentes, reprime
opiniões contrárias, e, pior, mata homens e mulheres.
Em nome de moralismo, quatro mulheres morrem por dia devido a complicações provocadas por abortos clandestinos –
mulheres pobres, diga-se de passagem. Em nome do moralismo, todo dia uma pessoa LGBT é assassinada. Em nome do
moralismo, as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé) são cada vez mais hostilizadas, principalmente pela militância
fundamentalista evangélica, a ponto de praticamente desaparecerem em alguns nichos tradicionais, como as comunidades do
Rio de Janeiro. Em nome do moralismo, julgam-se e proíbem-se obras de arte...
A religião deveria ser ensinada em casa, pelos pais, e praticada no seio das comunidades confessionais. Nas escolas
públicas, deveria prevalecer a discussão de princípios éticos, comuns a todas as pessoas, sejam elas ligadas ou não a crenças
religiosas. Só assim poderíamos pleitear uma sociedade mais justa e tolerante. Infelizmente, parece que estamos optando por
trilhar o caminho contrário, de repressão, do obscurantismo, da intransigência.

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A VITÓRIA DA INTOLERÂNCIA

A vitória da extrema-direita no Parlamento alemão é mais um sinal claro de que os que defendem princípios humanistas
estão perdendo espaço no mundo

Embora pareça distante, o trágico resultado das eleições na


Alemanha, que terá, pela primeira vez desde o fim da Segunda
Guerra Mundial, representantes da extrema-direita no Parlamento, é
mais um sinal claro de que os que defendem princípios humanistas
estão perdendo espaço no mundo. E isso, certamente, afeta até
mesmo os países periféricos como o Brasil, onde seus sintomas já
podem ser observados por meio do crescimento das pré-
candidaturas de nomes como o fascista Jair Bolsonaro e o arrivista
João Dória.
A Alternativa para a Alemanha, que ficou em terceiro lugar nas
eleições com 12,9% dos votos, o suficiente para eleger 90 dos 631
parlamentares, baseou sua plataforma em um discurso islamofóbico
e anti-imigração, exaltando valores do passado nazista. Alexander Gauland, um dos líderes do partido, não esconde seu
entusiasmo e admiração pelo presidente norte-americano Donald Trump, colocado no poder por uma parte da população dos
Estados Unidos que já não tem vergonha de sair às ruas para defender ideias de supremacia branca e antissemita.
Uma das várias singularidades da Arte é sua capacidade de antecipar a História. Em outubro de 2015 estreou o longa-
metragem Ele está de volta, de David Wnendt, baseado em um romance de Timur Vermes. O filme, misto de ficção e
documentário, mostra Adolf Hitler acordando em 2014 na Alemanha e, confundido como sósia do ditador nazista, ser usado em
campanhas de publicidade que fazem enorme sucesso na internet. Só que ele aproveita esta visibilidade para divulgar suas
ideias extremistas que, pouco a pouco, conquistam a simpatia da população – o mais catastrófico é que várias imagens
captadas pelo diretor, de exaltação ao nazismo, são reais...
Muito antes, em 2006, o cineasta britânico Sacha Cohen havia mostrado os rincões dos Estados Unidos, no longa-metragem
Borat, o segundo melhor repórter do glorioso Cazaquistão viaja à América”. Ali, sem saber que se tratava de um falso
documentário, o diretor conseguia arrancar de pessoas comuns confissões de antissemitismo, racismo contra negros, latinos e
muçulmanos, e de nostalgia por um Estados Unidos forjado pela intolerância da pregação da Ku Klux Klan. Tudo aquilo, enfim,
que viria à tona dez anos depois com a subida de Trump ao poder.
Mas o autoritarismo não se limita, infelizmente, a esses exemplos. Contrapondo-se a Trump pela paranoica preponderância
política mundial encontram-se o ex-chefe da KGB soviética, o exibicionista presidente russo Vladimir Putin; a discreta burocracia
ditatorial chinesa, hoje representada por Xi Jinping; o radicalismo fundamentalista que não se limita às pregações do Estado
Islâmico, existindo em vários estados constituídos da África e da Ásia; e aqueles vários patéticos regimes de força, chamados
Coreia do Norte “comunista” ou Venezuela “bolivariana” ou Myanmar “budista”.
Os indícios de que o discurso sectário vai se consolidando como preponderante no mundo é um péssimo sinal de que
falhamos como seres humanos. A nossa versão tupiniquim para o autoritarismo alicerça-se sobre os traumas de uma sociedade
assustada com a violência urbana, acossada pelo desemprego, indignada com a corrupção, desprezada pelo Estado e marcada
culturalmente por um viés machista, racista e homofóbico. Um cenário bastante favorável à disseminação de ideias extremistas.

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SHAZAM!, REGRESSO À PUREZA DO CORAÇÃO

O filme que estreou ontem no Brasil é um trabalho que se esforça todo o tempo para defender a própria personalidade singular,
mas não pode evitar totalmente os perigos

Na capa do número 21 de suas aventuras, publicado em 1943, o


super-herói hoje rebatizado como Shazam! –– mas na época ainda
conhecido como Capitão Marvel – enfrentava Adolf Hitler iluminando
sua figura medrosa com uma arma implacável: o Raio da
Honestidade. A capa do número 31, de janeiro de 1944, tinha como
foco um pensativo Capitão Marvel, com suas versões angelical e
demoníaca, encarnações de sua boa e má consciência, sussurrando
conselhos em cada ouvido. O traço caligráfico e arredondado de seu
desenhista C. C. Beck devolve ao leitor contemporâneos ecos muito
distantes da concepção do super-herói pós-moderno: a estética fica a
meio caminho entre a flexibilidade do cartoone a transparência da
linha clara.
O personagem era filho dos anos 1940, uma década em que o
arquétipo do super-herói estava em sua época de inocência, como a cristalização de um idealismo coletivo que se definia na
pureza do coração. A invocação mágica que transformava um menino em super-herói era um acrônimo de valores mitológicos
– Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio –, e a fronteira do lado obscuro era traçada pelos sete pecados capitais.
Embora no suposto comando do filme esteja um David F. Sanberg treinado no cinema de terror, Shazam! rompe com essa
obscuridade dominante no universo cinematográfico D. C – levemente atenuada pelo recente Aquaman (2018) – para
transformar a ingenuidade intrínseca ao personagem em sua clave de sol. O resultado é um trabalho que está constantemente
se esforçando para defender a própria personalidade singular, mas não pode esquivar-se de todo dos perigos redundantes de
contar uma nova história de origem e culminar no perpétuo confronto hiperbólico entre super-herói e vilão; arquétipos que são
vistos, sem cair em complexidades morais, como resultados inversos de uma mesma equação mágica.
Com ocasionais ideias brilhantes, como os vídeos de aprendizagem de super-heróis para YouTube, o filme faz vários acenos
– de Quero Ser Grande (1988) a Contatos Imediatos do Terceiro Grau(1977) – com o desejo neurótico de quem sabe, no fundo,
que nenhuma de suas próprias imagens alcançará esse grau de permanência.

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OS MELHORES LIVROS DO SÉCULO XXI

Um júri de 84 especialistas escolheu os títulos mais relevantes das duas primeiras décadas do milênio

"Fazer listas", escreve Alberto Manguel em seu O Diário de Leituras, "dá origem
a certa arbitrariedade mágica, como se a simples associação pudesse criar sentido".
Pois bem, que sentido se pode encontrar em uma lista que tenta fazer um balanço
das duas primeiras décadas do século XXI? Vamos começar pelo princípio. Naquela
terça-feira de 11 de setembro de 2001 dois aviões de passageiros sequestrados por
terroristas suicidas derrubaram as Torres Gêmeas de Nova York, mataram quase
3.000 pessoas e mudaram o mundo para sempre. De passagem, mandaram para o
quarto de despejo a hipótese hegeliana do fim da história reciclada por Francis
Fukuyama depois da queda do muro de Berlim e resolveram a discussão sobre se o
século XXI começava no ano de 2000 ou em 2001. A guerra das galáxias ficou no
choque de civilizações. O computador passou no teste de efeito 2000, mas seu
usuário –a nova grande palavra– entrou na era do medo, da insegurança, da
precariedade, da intimidade (pública) e da realidade (virtual).
O futuro tinha chegado tão cedo em forma de estilhaços que os cinemas ficaram repletos de remakes; as livrarias, de
cânones, coletâneas e resumos e listas do melhor melhor e dos mais mais (que se deveria ver, ler e escutar... antes de morrer).
Também de escritos com um fundo de história universal e livros de não-ficção ou autoficção que dão tanto valor ao enredo
como a seu making-of. Incapaz de imitar uma realidade presente que parecia de romance, a literatura se voltou para o passado,
a memória (histórica apenas), a investigação jornalística, em primeira pessoa e na própria literatura, que se tornou metatudo.
Daí o triunfo absoluto de 2666, um livro total composto por cinco partes e publicado no segundo semestre de 2004, no ano
seguinte à morte de seu autor. Desde Borges –meticulosamente retratado por Adolfo Bioy Casares em um diário já inevitável -
, nenhum escritor influenciou tanto as novas gerações como Roberto Bolaño. O fato de seus livros começarem a ser publicados
na Espanha pela Anagrama e atualmente pela Alfaguara –as duas editoras espanholas mais presentes na lista da Babelia– é
outro sintoma do peso de alguns selos na criação do gosto contemporâneo.
Talvez por uma mera questão geracional, a literatura canônica das duas primeiras décadas do século XXI se ocupou de
cutucar as feridas do século XX. As guerras mundiais, a guerra civil espanhola, o período pós-guerra, a descolonização, as
migrações, o apartheid, as ditaduras latino-americanas, a queda do império soviético, os feminicídios em Ciudad Juárez ou as
turbulências no Oriente Médio podem ser rastreados na obra do próprio Bolaño e de Ian McEwan, WG Sebald, Javier Marías,
Javier Cercas, Tony Judt, Mario Vargas Llosa, J.M. Coetzee, Zadie Smith, Svetlana Aleksiévich, Emmanuel Carrère, Marjane
Satrapi e Edmund de Waal.
Se esses autores começam a ser canônicos, não é apenas por causa dos tópicos que abordam, mas também pela maneira
como o fazem: misturando realidade e ficção, narração e reflexão, dinamizando os gêneros tradicionais ou deixando que sua
intimidade sem filtros discutia com a história. Universal. Esse eu com vontade de nós é o que produziu, além do mais, títulos
como os de Joan Didion, Lucia Berlin, Anne Carson e Raúl Zurita –que deu à sua obra magna o próprio sobrenome–, e sobretudo
os seis volumes de Karl Ove Knausgård.
A grande história e a intimidade bruta também estão presentes em títulos de sucesso do século XXI, como O Código Da
Vinci, O Menino do Pijama Listrado ou Cinquenta Tons de Cinza. Por que não estão nesta lista? Talvez porque não se encaixem
na definição que o crítico Northrop Frye cunhou para "grande literatura": aquela que é "dona de uma visão sempre mais vasta
do que a de seus melhores leitores". O poeta Wystan Hugh Auden fez a seguinte ponderação: “Existem livros que foram
injustamente esquecidos; ninguém é lembrado injustamente”.
A crise econômica de 2008 acrescentou a indignação à insegurança e deu razão a um romance premonitório publicado na
Espanha um ano antes: Crematorio, de Rafael Chirbes. Por tabela, empoderou –o verbo do século– um gênero e uma geração.
O feminismo e o ambientalismo são, por ora, a resposta mais contundente a uma tendência insustentável que está a caminho
de transformar em realismo puro um romance de, digamos, ficção científica como A Estrada, de Cormac McCarthy.
Protagonizado por dois homens sozinhos –pai e filho– que vagam por um planeta devastado, a distopia do autor norte-
americano inclui em suas páginas algo que se assemelha a uma definição da literatura de hoje: “Deus não existe e nós somos
os seus profetas”.

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A ESTÉTICA VALENTE

As ruas pintadas ou as praias encovadas são atos de valentia contra o poder que controla o espaço público

A palavra mais parece jargão de juristas ou teólogos: parrésia.


Michel Foucault a recuperou para descrever o sentido da “palavra
verdadeira”, a ousadia dos que falam para desafiar os poderes
instituídos. É a coragem da verdade. Há risco para quem assume o
dever da verdade em regimes autoritários, pois falar é arriscar-se. Os
atos de fala verdadeiros são também atos estéticos, como o mural
“Black Lives Matter” pelas ruas da cidade de Martinez, na Califórnia, ou
as cruzes pelos mortos pela pandemia de covid-19 na praia de
Copacabana, no Rio de Janeiro.
“Black Lives Matter” foi escrito em letras garrafais. O amarelo de
cada palavra contrastava ao asfalto escuro, o mesmo chão de um país
de onde George Floyd suplicou respirar. A ousadia dos que instalaram a verdade contra o racismo foi comedida—a prefeitura
da cidade havia autorizado a instalação. A verdade encontrou seu alvo. Com um balde de tinta preta, um homem e uma mulher
brancos lançaram-se a destruir as palavras verdadeiras. Como o patriarcado está entranhado aos racistas, o homem era o
porta-voz de “Make America great again”, enquanto a mulher esfregava o chão. O homem esbravejava: “o racismo é uma
mentira liberal”.
Os autoritários não suportam a verdade. E eles se repetem quando confrontados com a parrésia dos valentes. O Brasil é o
epicentro da pandemia global de covid-19: são mais de 65 mil mortos e um presidente adoecido que contesta o uso da máscara
como quem protege a masculinidade. Quarenta voluntários da ONG Rio de Paz se reuniram para um protesto na praia de
Copacabana: cavaram 100 covas na areia, distribuíram bandeiras do Brasil pelas cruzes. As covas eram simbólicas sobre as
mortes da pandemia. Uma faixa dizia “O Brasil está na contramão do mundo”.
A verdade das covas provocou a fúria de um aliado de presidente Bolsonaro, quem fez de seu corpo o instrumento da
destruição. Enquanto arrancava as cruzes e destruía as covas, um pai em luto rearranjava as cruzes. “Eu estava apenas
passando na praia e vi aquela manifestação em apoio às vítimas. Foi um ato voluntário de um pai que está com uma dor muito
grande aqui”, disse o homem que não fazia parte do ato, mas foi o corpo valente à cena. O luto pelo filho morto o fez um ativista
de um ato público do qual não havia planejado participar. Foi um ativista enlutado pelo direito ao luto público.
O que essas duas cenas têm em comum? Elas desafiam espaços de aparição pública; elas são atos de coragem pela
verdade. As ruas pintadas ou as praias encovadas são atos de valentia contra o poder que controla o espaço público, gente
que se encontra pela experiência do luto. Judith Butler percorre como a parrésia, o “discurso valente”, é uma forma de
resistência e risco: é o corpo que diz a verdade em um jogo em que se arrisca a própria vida, pois a vontade de verdade é mais
forte que o medo. Os que pintam com tinta amarela as ruas onde Floyd foi morto ou levantam as cruzes em uma Copacabana
em cenário de pandemia enunciam com seus corpos: é o luto que vence o medo.

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A DIETA PARA FAZER ‘CORINGA’ QUE QUASE ENLOUQUECEU JOAQUIN PHOENIX

“Comer pouco me afetou psicologicamente", disse o ator, que desmentiu a informação de que só comia uma maçã ao dia

Não, Joaquin Phoenix não perdeu 23 quilos comendo somente uma


maçã por dia.
Há um ditado inglês, “one apple a day keeps the doctor away”, que
afirma que comer uma maçã por dia é um hábito tão saudável que faz
com que você não precise ir ao médico. Mas esse lema anglo-saxão
não diz que essa maçã deve ser o único alimento da dieta. Diferentes
frentes, entretanto (imprensa, algumas sérias, redes sociais, gurus das
dietas express...) afirmaram que Joaquin Phoenix (Porto Rico, 1974)
perdeu 23 quilos para interpretar o Coringa alimentando-se unicamente
de uma maçã diária. Informação na qual, em uma sociedade na qual as
dietas milagrosas e os produtos emagrecedores se transformaram em
uma obsessão, muita gente acreditou sem analisar as consequências.
O próprio ator desmentiu essa notícia rapidamente ao ficar sabendo da perigosa informação que estava sendo divulgada.
“Não me alimentava com só uma maçã por dia. Também comia, entre outras coisas, alface, vagem de feijão verde ao
vapor...”, disse o ator a Access. Phoenix, que ficou quatro meses de dieta para perder os 23 quilos, afirmou à publicação norte-
americana que sempre esteve sob supervisão médica: “Trabalhei com um médico de confiança que me orientava e se
encarregava de controlar todo o processo”.
Álvaro Sánchez, especialista em nutrição da Medicadiet, disse ao ICON que diariamente recebe em consulta pacientes que
pretendem seguir esse tipo de dieta com o objetivo de perder peso rapidamente. “Tanto o jejum intermitente, que consiste em
não comer nada durante 16 horas e comer ao longo das oito horas restantes, como a dieta Keto, que elimina todos os
carboidratos (massa, arroz, pão...), são bem pouco aconselháveis. Nesses regimes a glicose cai muito, se perde massa
muscular em vez de gordura e acaba ocorrendo um efeito sanfona que faz com que recuperemos o peso perdido assim que
acabamos o regime e que da próxima vez que tentarmos fazer regime tenhamos muito mais dificuldade em perder peso”, diz
Sánchez.
Após se afirmar que Joaquin Phoenix emagreceu muito alimentando-se unicamente de uma maçã por dia, o ator deixou
claro que não era verdade e que um médico o supervisionou todo o tempo em que esteve de dieta
Outra complicação que costuma estar ligada às perdas de peso drásticas é a incompatibilidade em manter uma vida social
normal. A nutricionista Judit López diz ao ICON que a ansiedade é um dos efeitos secundários mais comuns, mas não o único.
“Ocorre uma perda da concentração e o ânimo se torna irascível e depressivo”, afirma. Álvaro Sánchez concorda: “Nunca é
recomendável fazer dietas muito restritivas. Além de produzir perda de nutrientes e de massa muscular, aumenta o risco de
sofrer transtornos de conduta”.
O próprio Phoenix reconhece que limitar tanto sua alimentação fez com que durante os meses de filmagem tivesse a
sensação de que perdia o controle de seus atos. “Comer pouco me afetou psicologicamente. Você começa a enlouquecer
quando perde essa quantidade de peso em tão pouco tempo”, confessou Phoenix. Judit López confirma o perigo dessas
mudanças físicas tão drásticas. “As pessoas que se submetem a dietas muito restritivas tendem a se tornar obsessivas e
monotemáticas. Isso dificulta as relações sociais e faz com que fiquem mais introvertidas”, diz a especialista.
Essa introversão aparece entre outras coisas como método de defesa para evitar a tentação, o grande inimigo de qualquer
ser humano de regime. Incluindo Joaquin Phoenix. O ator precisou lutar contra sua paixão pelos pretzels durante toda a
filmagem. “Todd Phillips [diretor de Coringa] trazia pretzels o tempo todo, que adoro, ao estúdio e seu escritório estava cheio
deles. Ele os adora e os levava para as outras pessoas. Foi realmente difícil precisar conter a vontade de comê-los”, confessou
Phoenix, que no começo imaginava seu Coringa como um indivíduo mais forte e teve suas dúvidas na hora de perder tanto
peso.
Joaquin Phoenix passou oito meses criando Arthur Fleck, e para isso não precisou só emagrecer (entrou em dieta no quarto
mês). Phoenix estudou diferentes transtornos de personalidade e praticou a característica risada do Coringa repetidamente.
“As coisas não foram mais fáceis quando cheguei ao peso que queria. Engordar poucos gramas me obcecava. É verdade que
você acaba desenvolvendo uma espécie de transtorno. Quero dizer, é uma loucura”, disse à agência Associated Press.

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AS EMPRESAS E AS INOVAÇÕES AMBIENTAIS

Pandemia acelerou demandas da sociedade e do mercado por empresas sustentáveis

Notas e Informações, O Estado de S.Paulo


13 de julho de 2020

Nos últimos anos o interesse pelo capitalismo sustentável cresceu rapidamente. Em 2018, o setor de investimentos em ESG
(práticas corporativas Ambientais, Sociais e de Governança, na sigla em inglês) foi estimado em cerca de US$ 31 trilhões. Em
fevereiro, fundos focados em ESG atraíram mais de US$ 70 bilhões em ativos. Mas, assim como no início da pandemia falou-
se no dilema entre salvar vidas e salvar empregos, fala-se agora no dilema entre salvar empresas e salvar o meio ambiente.
Mas, tal como aquele, este é um falso dilema.
Muitos previram que o apetite dos investidores por negócios sustentáveis diminuiria com a crise. Mas as evidências apontam
no sentido oposto. Um relatório especial do jornal Financial Times mostra que os títulos verdes e ações ESG tiveram
desempenho acima da média em muitas partes do mundo. A União Europeia, por exemplo, dá sinais de que não retrocederá
em suas ambições climáticas. No primeiro trimestre, fundos focados em sustentabilidade viram um recorde de influxo. Duas em
cada três propostas de acionistas neste ano se referiram a questões ambientais e sociais.
A pandemia “destacou tragicamente o quão conectados à natureza estão os humanos e as sociedades”, disse Jennifer Wu,
chefe de investimentos sustentáveis do JPMorgan. “Se uma parte do ecossistema adoece, a imunidade do sistema é
comprometida.” As respostas à crise de 2008 já haviam mostrado que medidas de curto prazo para a recuperação econômica
são compatíveis com esforços de longo prazo rumo à sustentabilidade. Hoje as condições são ainda melhores: o custo da
energia sustentável caiu drasticamente; as instituições globais estão mais focadas nas mudanças climáticas; e a implementação
do mercado de carbono atingiu um ponto de maturidade.
Trata-se de uma oportunidade de ouro para o Brasil. Primeiro, porque o destino de sua economia está cada vez mais
entranhado à sua condição de guardião do maior bioma tropical do planeta, e se ele não assumir voluntariamente esta
responsabilidade, as pressões internacionais o obrigarão a isso. Depois, porque as empresas, em busca de recuperação após
a pandemia, podem expandir sua atratividade aos investidores, gerando mais lucro e empregos.
Um levantamento do IBGE sobre o biênio 2015-2017 mostra que muito foi feito, mas também que há muito por fazer. De
quase 40 mil empresas inovadoras brasileiras, cerca de 16 mil (40%) realizaram inovações ambientais com impactos positivos.
Dentre elas, 60% indicaram como motivo melhorar sua reputação e 54%, a adequação a boas práticas ambientais.
A indústria foi a atividade com maior porcentual de empresas ecoinovadoras (43%), seguida pelos setores de Eletricidade
e Gás (32%) e Serviços Selecionados (21%). A reciclagem de resíduos, águas ou materiais para venda ou reutilização foi o
impacto ambiental mais comum (para 58% das empresas), seguida pela redução da contaminação do solo e da água (51%).
Estas melhorias foram realizadas sobretudo pelas indústrias. Já medidas de substituição de energias fósseis por fontes
renováveis foram realizadas por 71% das empresas inovadoras de Eletricidade e Gás.
Por outro lado, os números absolutos mostram o tamanho do desafio. Se computadas todas as empresas ecoinovadoras,
apenas 17% implementaram a substituição por energias renováveis. Além disso, apenas 4,1% do total de empresas publicaram
relatórios de sustentabilidade, e mesmo entre as ecoinovadoras esse porcentual é baixo (5,6%). Além disso, a disponibilidade
de
apoio governamental, subsídios e outros incentivos foi a motivação menos indicada pelas empresas inovadoras (11%). De
resto, ainda é pequeno o número total de ecoinovadoras: de quase 117 mil empresas com mais de 10 pessoas, só 33%
implementaram alguma inovação ambiental.
Estes dados sugerem os principais focos de ação: mais investimento em energia renovável; mais apoio governamental;
mais comunicação e mais disseminação da cultura da sustentabilidade. Não há tempo a perder. A pandemia, longe de frear as
demandas da sociedade e do mercado por empresas sustentáveis, as acelerou.

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DEBATE ABERTO E VIOLÊNCIA

Não há construção da justiça onde vige a lei do mais forte, que pode ser quem ataca de forma mais fulminante nas
redes sociais

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo


15 de julho de 2020

Três dias depois do assassinato de George Floyd em Minneapolis, David Shor, um cientista político norteamericano de 28
anos, compartilhou em sua conta no Twitter o resumo de uma pesquisa de Omar Wasow, professor da Universidade de
Princeton, comparando os efeitos de protestos violentos e pacíficos pelos direitos civis na década de 60. Segundo o estudo, as
manifestações não violentas foram mais eficazes na promoção desses direitos.
A postagem de David Shor recebeu inúmeras críticas, sendo acusada de racismo e condescendência com a violência
policial. Entre as reações, houve quem tenha exigido que o cientista político perdesse o emprego. De fato, dias depois, a
empresa Civis Analytics demitiu David Shor.
Infelizmente, o caso acima é apenas mais um entre tantos outros. A chamada “cultura do cancelamento” tem levado a uma
crescente onda de intolerância. Recentemente, mais de 150 professores, escritores e artistas denunciaram, em carta publicada
na revista Harper's, o estreitamento do debate público em nome de uma suposta justiça social.
No caso do tuíte de David Shor, ainda que seu objetivo fosse tornar a causa mais eficaz, a mera reflexão sobre o
comportamento dos ativistas despertou revolta e violência. Tal reação, seja qual for sua inspiração, afronta de forma inequívoca
as liberdades e garantias individuais. Num Estado Democrático de Direito, cada um deve se sentir muito à vontade para dizer
o que pensa, sem medo de ameaça ou represália. O que uma pessoa diz, por mais que contrarie determinados interesses ou
pessoas, não é motivo para que ela seja perseguida por quem foi contrariado.
A liberdade de expressão inclui necessariamente o direito de discordar, questionar e também errar. Uma sociedade que só
deixa falar quem se expressa em termos perfeitos, irrepreensíveis sob todos os pontos de vista, não é uma sociedade livre. Na
verdade, este é o caminho dos regimes autoritários: condicionar a expressão de argumentos e ideias a determinados
parâmetros de
“bem e de virtude”.
Numa sociedade livre e plural, e aqui está um dos seus pontos fortes, não há que falar em erros de expressão. Não há o
certo e o errado a respeito do modo de se expressar. Não há uma cartilha de expressões permitidas e outra de termos proibidos.
Não há temas inquestionáveis. Não há assuntos imunes a críticas.
É preciso respeitar o outro. A lei proíbe, por exemplo, caluniar, injuriar ou difamar. Mas isso não autoriza perseguir pessoas
ou grupos em função de suas falas incômodas, contramajoritárias ou mesmo desajeitadas. A liberdade de expressão deve ser
levada a sério - ou então deve se admitir que não existe liberdade de expressão.
A chamada “cultura do cancelamento” vem se mostrando um tanto contraditória. Ao mesmo tempo que se observa um
aumento da intolerância contra tudo o que não se enquadra em seus cânones - sejam eles progressistas ou reacionários, de
esquerda ou de direita -, os mesmos grupos que desejam impor suas verdades almejam irrestrita tolerância com seus atos,
sejam eles violentos ou pacíficos. Tudo estaria desculpado em função da motivação virtuosa de suas causas. Eventual
questionamento de um ato de vandalismo, por exemplo, seria sinal inequívoco de preconceito ou artimanha para a manutenção
do status quo, suscitando imediato linchamento em praça pública.
Não há liberdade onde impera a violência. Não há construção da justiça onde vige a lei do mais forte. E, nos dias de hoje,
o mais forte pode ser, por exemplo, quem tem mais recursos econômicos ou quem ataca de forma mais fulminante nas redes
sociais. Para que haja liberdade e também para que haja justiça, todos devem estar submetidos à lei. Esse é o grande
aprendizado civilizatório que vem sendo esquecido nos tempos contemporâneos, como se fosse possível promover a igualdade
social dando imunidade para que alguns persigam outros, numa espécie de justiça com as próprias mãos. Assim não se
caminha para a frente. Quando se diminui a liberdade, pode-se ter a certeza de que se está na rota do retrocesso.

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O CUSTO DA EVASÃO ESCOLAR

Levantamento estima que o prejuízo total causado pela evasão escolar seja de R$ 214 bilhões por ano, o que equivale
a 3% do Produto Interno Bruto

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo


16 de julho de 2020

Depois de ter lançado em 2019 uma campanha de mobilização de institutos, empresas, ONGs e entes públicos para definir
pautas para a produção de conteúdo de 81 programas sobre educação no Canal Futura, reunindo mais de 92 parceiros, a
Fundação Roberto Marinho (FRM) concentrou-se nos problemas que prejudicam a permanência de crianças e jovens no ensino
básico e, agora, está divulgando os resultados de sua iniciativa.
Com o objetivo de identificar os fatores responsáveis pelas altas taxas de defasagem e, principalmente, de evasão escolar,
ela atribuiu a um grupo de especialistas a responsabilidade de elaborar um estudo intitulado Consequências da Violação do
Direito à Educação, que foi lançado nesta semana. E, para coordenar o trabalho, convidou o economista Ricardo Paes de
Barros, Ph.D. pela Universidade de Chicago, professor do Insper e consultor do Instituto Ayrton Senna. Depois de cruzar os
dados do Censo Escolar de 2018 e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), segundo os quais 25% dos
estudantes do ensino fundamental estão atrasados em sua formação e 1 em cada 4 alunos do ensino médio abandona o curso,
os pesquisadores chegaram a uma constatação trágica. Se esse ritmo não for detido, 17,5% dos jovens que hoje estão na faixa
etária dos 16 anos não conseguirão concluir a educação básica até os 25 anos.
Na prática, isso representa o ingresso no mercado de trabalho de 575 mil pessoas sem escolaridade completa a cada ano,
justamente num período em que o avanço da tecnologia vem obrigando as empresas a exigir mão de obra cada vez mais
qualificada. Com base em análises e simulações, o levantamento estima que o prejuízo causado pela evasão escolar seja de
R$ 372 mil ao ano, por estudante que abandonou a escola. No total, a perda é de R$ 214 bilhões por ano, o que equivale a 3%
do Produto Interno Bruto.
Esses números atestam a baixa qualidade dos gastos do governo numa área estratégica para o futuro das novas gerações
e, por consequência, do País. “Isso mostra que a máquina pública é ineficiente. Na educação, há problemas diversos, como
formação inadequada dos professores e indicação política de diretores. É difícil quebrar isso, mas não se pode perder R$ 214
bilhões todos os anos em um sistema que não funciona”, diz Wilson Risolia, diretor da FRM.
“É como uma obra inacabada, que, se tivesse sido concluída, teria um tremendo impacto positivo na sociedade”, afirma
Barros. Para ter ideia do alcance dessa afirmação, a evasão escolar influencia a expectativa de vida – quem conclui o ensino
básico, por exemplo, tem, em média, quatro anos a mais de vida do que quem abandonou a sala de aula. A defasagem e a
evasão escolar também têm reflexos no aumento dos índices de violência urbana. Segundo o estudo da FRM, cada ponto
porcentual de redução nos índices de evasão escolar equivale a 550 homicídios a menos por ano.
O mais alarmante, contudo, é que os problemas da defasagem e da evasão escolar devem aumentar ainda mais. Entre
outros motivos, porque as pesquisas em andamento sobre o impacto da pandemia de covid-19 sobre crianças e jovens já
detectaram que 28% pensam em não voltar para a escola quando acabar o confinamento e 49% dos estudantes que planejam
fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) cogitam desistir da prova. Além disso, desde o início do governo Bolsonaro
a área de ensino básico está praticamente abandonada pelo Ministério da Educação (MEC).
Estudos como esse, que envolvem a colaboração de diferentes setores da sociedade, são fundamentais para subsidiar
políticas públicas de qualidade. Mas, para que produzam efeitos concretos, é preciso que os dirigentes governamentais da área
da educação tenham não só um mínimo de seriedade, mas, igualmente, competência para compreender a importância das
colaborações que estão recebendo. Infelizmente, nos últimos 18 meses o MEC não foi chefiado por quem tivesse essas
qualidades.

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O RETRATO DAS MAZELAS EDUCACIONAIS

Dois documentos publicados no mesmo dia dão a medida das mazelas do sistema de ensino do País

Notas e Informações, O Estado de S.Paulo


13 de julho de 2020

Dois documentos publicados no mesmo dia, e na mesma semana em que o Ministério da Educação (MEC) permaneceu
acéfalo e em que a Justiça concedeu liminar suspendendo a impressão da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
inviabilizando sua realização na data prevista, dão a medida das mazelas do sistema de ensino do País.
O primeiro documento é o relatório do 3.º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional da Educação (PNE) até
2024. Divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), ele revela que, no primeiro ano do governo
Bolsonaro, os indicadores relacionados à alfabetização de jovens, alunos de tempo integral, educação profissional e acesso à
universidade permaneceram estagnados. Em 2019, o País tinha 14,9% dos alunos em escolas de tempo integral, ante 14,4%
em 2018. A meta era chegar a 25%. Também tinha 1.874.974 alunos na educação profissional técnica de nível médio em 2019,
ante 1.869.917 no ano anterior. Com relação à alfabetização de jovens com mais de 15 anos, a taxa foi de 93,2%, em 2018, e
de 93,4%, em 2019. No ensino superior, a taxa de matrícula permaneceu em 37,4% tanto em 2018 como em 2019 – a meta
prevista pelo PNE é de 50%.
Além dos números, a tragédia educacional é evidenciada pelas declarações desencontradas do governo. Tentando
encontrar uma desculpa para a inépcia do governo, o secretário executivo do MEC, Antonio Vogel, atribuiu o baixo desempenho
da pasta à falta de recursos orçamentários e a problemas enfrentados na transferência de recursos para Estados e municípios.
“O MEC tem poder indutor e ele se enfraqueceu diante da situação fiscal que o País vive”, disse ele. Contudo, acabou sendo
atropelado pelo próprio presidente da República, que, no mesmo dia, ao conversar com apoiadores no Palácio da Alvorada, foi
taxativo. “A educação está horrível no Brasil”, afirmou, sem reconhecer sua parcela de culpa por esse cenário.
O segundo documento é uma avaliação das propostas do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica (Fundeb), que tem de ser votado até dezembro, para evitar que esse nível de ensino fique sem recursos a partir de
2021. Esse fundo, cujos recursos correspondem a cerca de 6% do Produto Interno Bruto brasileiro, é responsável pelo
financiamento de 60% da educação no Brasil. O estudo foi realizado por pesquisadores das áreas de tecnologia e políticas
públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Com o objetivo de fornecer subsídios ao Congresso,
eles cruzaram 36 variáveis de 197 propostas legislativas apresentadas entre 2004 e 2019. A maioria delas foi apresentada por
parlamentares do Estado da Bahia, seguidos pelas bancadas de São Paulo e Minas Gerais.
O documento revela que, entre os autores dessas propostas, poucos parlamentares se preocuparam com a participação da
sociedade civil no controle e na gestão dos recursos, para propiciar maior transparência e assegurar que os recursos cheguem
às salas de aula, atendendo às demandas da comunidade escolar e não a interesses corporativos e políticos. O trabalho
também mostra que a maioria dos parlamentares apresentou projetos que aumentam os recursos para o ensino básico sem,
contudo, indicar as fontes de financiamento. Revela ainda que, além de não levarem em conta aspectos econômicos,
demográficos e pedagógicos, os autores das propostas legislativas sobre o Fundeb priorizam somente a quantidade de
matrículas, não levando em conta a qualidade do ensino. Apenas três parlamentares fizeram menção ao indicador de Custo
Aluno Qualidade (CAQ).
Os dois documentos não deixam margem a dúvidas. Mostram o preço que o País vem pagando por uma gestão educacional
desastrosa e que os projetos sobre o financiamento do ensino básico carecem de qualidade e foco. Revelam, assim, que o
País continua negando às novas gerações a formação de que necessitam para se emancipar cultural, econômica e socialmente.

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UMA RETOMADA COM MUITAS BAIXAS

Reação e quebradeira coexistem num quadro especialmente difícil para firmas pequenas

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo


16 de julho de 2020

Aumentam as falências, um dos piores efeitos econômicos da pandemia, enquanto a atividade se recupera, ainda
lentamente, do primeiro impacto da nova crise. Também nos mercados, sobreviver é uma vitória para ser comemorada,
especialmente quando falta à maior parte das empresas o acesso ao crédito, respirador reservado a clientes de primeira classe.
O cenário da reativação combina áreas de luminosidade e zonas de escuridão e incertezas. No lado mais claro, a visão da
retomada inicial é enriquecida com novos detalhes. Um dos componentes positivos é o Índice de Atividade Econômica do Banco
Central (IBC-Br). Segundo esse indicador, a produção cresceu 1,31% em maio, depois de ter encolhido 6,14% em março e
9,45% em abril.
A sinalização positiva – a economia volta a se mexer – havia sido antecipada por dois indicadores setoriais. O aumento da
produção industrial em maio (7%) e a expansão das vendas no comércio varejista (13,9%) já haviam sido apontados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um terceiro dado, o de serviços, havia sido negativo (-0,9%). Esses
números, além de uma estimativa da produção agropecuária, foram usados no cálculo do IBC-Br, também conhecido no
mercado como “prévia do PIB”.
Embora animadora, a reação mostrada pelas contas do Banco Central quase desaparece quando se examinam períodos
mais longos. No trimestre ainda houve baixa de 6,94%. Além disso, o IBC-Br de maio foi 15,09% inferior ao de um ano antes.
A comparação dos números de janeiro-maio deste ano e de 2019 apontou um recuo de 4,15%. Em 12 meses a queda ficou em
0,52%.
Os números positivos coexistem com indicadores muito ruins de solvência empresarial e de emprego. Em junho o número
de falências foi 71,3% maior que o de um ano antes, segundo a Boa Vista SCPC. No caso dos pedidos de recuperação judicial,
houve aumento de 4,6% em relação a igual mês de 2019. Os dois dados haviam melhorado no começo do ano e voltaram a
crescer com a nova crise.
Essa onda de insolvências envolve empresas já em dificuldades antes da pandemia, segundo especialistas citados em
reportagem do Estado. A quebradeira, acrescentam essas fontes, deve ainda aumentar, porque muitasempresas enfrentam
graves problemas de caixa. De acordo com os mesmos especialistas, algumas empresas credoras têm sido tolerantes, evitando
aumentar a pressão financeira sobre as companhias em dificuldades.
Problemas de caixa eram previsíveis, principalmente para as micro, pequenas e médias firmas, desde os primeiros sinais
da nova crise. Segundo estudo divulgado na época, só parte das grandes empresas conseguiria atravessar pelo menos dois
meses sem esgotar seus meios financeiros. A profecia se confirma. Os problemas atingiram companhias de todos os tamanhos,
mesmo autorizadas a reduzir temporariamente jornadas e salários.
Empresas grandes e médias puderam recorrer ao crédito para reforço de caixa. O Banco Central estimulou a expansão do
financiamento e a oferta de dinheiro aumentou. Mas o benefício ficou inacessível a grande parte das companhias mais
necessitadas. Entre o início da crise e o fim de junho, a parcela das menores firmas em busca de empréstimo passou de 39%
para 46%, mas o sucesso aumentou muito menos – de 16% para 18%, segundo o Sebrae, o Serviço Brasileiro da Apoio às
Micro e Pequenas Empresas. Apesar das dificuldades, também nesse universo há sinais de reação. Para muitos micro e
pequenos empresários, no entanto, até o dinheiro para as despesas iniciais da reabertura pode faltar, adverte o presidente do
Sebrae, Carlos Melles.
A reativação começou para boa parte das empresas, mas o futuro próximo continua obscurecido por muitas incertezas,
principalmente para as micro e pequenas. Apesar de seu tamanho, essas firmas são importantíssimas fontes de emprego e,
portanto, de renda para o consumo. Não está claro se o governo sabe disso. Mas deveria saber e pensar em como se poderá
garantir a recuperação dessa enorme e preciosa constelação de pequenos astros.

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CONVERSAR POR VÍDEO É ENLOUQUECEDOR; APRENDA COM OS AUTORES DE GRANDES DIÁLOGOS NA
LITERATURA

A interação no ambiente digital se tornou mandatória com a pandemia, mas o diálogo nem sempre é dos mais fluidos em uma
videochamada

Sebastian Smee, The Washington Post


18 de julho de 2020 | 16h00

A coisa que mais me faz falta - só consigo admitir isto agora


porque, devagar, quase aos trancos, ela começa a voltar - é a
conversação. Não aquelas conversas intermináveis e cansativas
pelo Zoom. Sem esperar no 'mute', enquanto sua expressão assume
uma neutralidade forçada, e a sua personalidade vai se tornando
quase descorada e enrugada como os dedos dos pés quando ficam
muito tempo no banho. Sinto falta do tempo real, do espaço real, da
proximidade, das conversas fiadas personalizadas, incrivelmente
longas e divertidas.
Sinto saudade - talvez, você também - da companhia dos meus
amigos mais próximos, James, que me abraça e bate no meu peito
quando me conta alguma coisa que eu preciso saber, em geral
gritando, sempre que nos encontramos, uma vez por mês, em nosso Comunicação se tornou ainda mais ruidosa durante a pandemia Foto:
bar preferido. Sinto saudade também da cara do meu amigo Jeremy Eddie Alvarez/The Washington Post
quando as ironias da história que ele está contando - e ele sabe que
eu percebo sem precisar de explicação - se tornam pesadas, e o monte de desgraças fica tão hilário, que as reações sonoras
o atrapalham ao concluir a história e nós caímos nas maiores gargalhadas.
Ou a expressão de Ben, que tem 82 anos e passa pelos momentos mais difíceis com uma incrível graça, ao lembrar de um
episódio a respeito de um dos seus filhos quando tinham a idade dos meus agora. O rosto de Ben é malandro, carinhoso,
melancólico e cheio de carinho. Tudo isto ele diz com sua expressão perspicaz, com seu corpo, com a relação entre os olhos
lacrimejantes e as sobrancelhas que mudam de posição. Você precisaria estar lá, precisaria sentar ao lado dele, para ver tudo
isto junto.
Neste momento, já percebeu? - a conversação ficou difícil. Parece que as pessoas gritam, falando por slogans. Um lado
afasta o outro. Se você fica mergulhado no efeito feedback da sua fonte de notícias favorita ou em sua bolha de mídia social,
poderia parecer até a sua causa, ou sua ideia de realidade, é reforçada ou mesmo evoluiu. Você pode sentir a confirmação de
que você e o seu lado, estão certos.
E talvez você esteja. Mas é também verdade que estar certo (como o pintor Franz Kline disse certa vez) "é a condição
pessoal mais terrível em que ninguém mais está interessado". Quando os pais brigam diante dos filhos, ambos querem estar
certos. Mas a vitória de um ou de outro não interessa aos filhos, e por uma boa razão. A melhor estratégia, como todos sabem,
é parar de gritar, evitar tuitar em maiúsculas ou escrever cuidadosas mensagens polidas que respingam sarcasmo como o
sangue de uma arma assassina, e tentar encontrar outras maneiras de conversar.
A conversação que me falta é sobre simpatia mútua, acho, mas nem sempre sobre a compreensão perfeita. Porque mesmo
com seus amigos mais queridos, vocês sempre sentem falta um do outro, não é? Vocês não consegue compreender, e entende
mal o que é mais evidente.
Mas talvez isto seja perfeito. Porque mesmo que você entenda errado, acho, está sempre se aproximando de uma
cumplicidade mais profunda. Toni Morrison escreveu em "Amada" a respeito daquelas conversas carinhosas, malucas, cheias
de meias sentenças, fantasias e incompreensões mais emocionantes do que a compreensão em si". E Pushkin parece
comemorar algo semelhante em Eugene Onegin quando sugere que a conversação é mais interessante quando é inquieta,
espasmódica: "Não, a conversa incorreta, descuidada,/ Palavras mal pronunciadas, pensamentos mal expressados/ Evocam o
tamborilar da emoção,/ Agora como antes, dentro do meu peito".

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OPERAÇÃO VERDE BRASIL E O COMPROMISSO COM A AMAZÔNIA BRASILEIRA

O Brasil reconhece a relevância da conservação ambiental para o clima no mundo

Fernando Azevedo e Silva, O Estado de S.Paulo


15 de julho de 2020 | 03h00

A importância da preservação ambiental para a humanidade assumiu um sentimento coletivo em todo o mundo, até mesmo
naqueles países que destruíram suas riquezas naturais e agora cobram do Brasil o dever que não fizeram. A discussão sobre
a Amazônia entra na pauta, fomenta paixões e ativa os mais variados interesses. Alguns, bem-intencionados; outros,
calculados.
A consciência ambiental no nosso país não é retórica. Ela é prática, real e vem de muito tempo. A maior floresta tropical do
mundo foi preservada no seu território. A Amazônia brasileira é um patrimônio que foi mantido pelos brasileiros durante 400
anos. E isso custou a vida de muitos.
Trata-se de região com mais de 12 mil quilômetros de perímetro, que abraça diferentes microrregiões preservadas e de rica
biodiversidade. A Amazônia é uma área extremamente complexa, com a dimensão da Europa Ocidental e dificuldades logísticas
extremas.
A Operação Verde Brasil, lançada pela primeira vez em 2019, é uma iniciativa inédita do governo Jair Bolsonaro, que
determinou o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ambiental na Região Amazônica. A GLO é
uma condição excepcional e temporária que permite às Forças Armadas compartilharem conhecimento e capilaridade na área,
empregando meios para apoiar os órgãos de preservação e controle ambiental. No início deste ano, a nomeação do vice-
presidente da República para a presidência do Conselho Nacional da Amazônia Legal reforçou, de forma ainda mais clara, o
compromisso com a preservação.
Há centenas de anos, a Marinha, o Exército e a Força Aérea fazem parte da Amazônia e de sua história. Ainda hoje, nos
rincões mais longínquos e inóspitos, os militares muitas vezes representam a única presença do Estado. Atualmente, são mais
de 44 mil homens e mulheres empregados na região, assegurando a integridade do território nacional, levando assistência às
populações ribeirinhas e indígenas, preservando os recursos naturais e a soberania brasileira.
Passados dois meses do seu início, a Operação Verde Brasil 2 já apresenta resultados expressivos, superando os da
primeira edição. Salta aos olhos o aumento significativo da repressão aos ilícitos nos Estados de Roraima, Amazonas, Acre,
Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Maranhão, Pará e Amapá.
As Forças Armadas brasileiras engajaram suas unidades operacionais localizadas na Região Amazônica, nos limites das
suas possibilidades, para atuar juntamente com os órgãos ambientais e de segurança pública federais, estaduais e municipais.
É um esforço adicional às missões regulares da Defesa, que continua cuidando da soberania nacional e da vigilância das
nossas fronteiras.
Mesmo dividindo os esforços com o urgente e necessário combate à pandemia da covid-19, as Forças Armadas trabalham
em conjunto com órgãos e agências governamentais. Essa parceria interagências possibilitou, nos últimos 60 dias, a aplicação
de mais de 1.200 multas, no valor total de R$ 407 milhões, e a apreensão de 27.527 metros cúbicos de madeira, 178
embarcações e 112 veículos.
Desde que a Operação Verde Brasil 2 foi deflagrada, em 10 de maio deste ano, suas ações são decididas no âmbito do
Grupo de Integração para Proteção da Amazônia (Gipam), que reúne órgãos de segurança pública e agências ambientais, que
participam ativamente na seleção dos alvos das operações.
Estão presentes à mesa de decisões do Gipam o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Instituto Brasileiro do
Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a Polícia Federal
(PF), a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a Agência Nacional de Mineração (AMN), a Fundação Nacional do Índio (Funai)
e a Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Cada um desses órgãos compartilha suas competências e seus conhecimentos específicos, que multiplicam as capacidades
do conjunto para conter as agressões ao meio ambiente. Um esforço que custa trabalho duro, ininterrupto, mas de grande valor.
O Brasil reconhece a relevância da conservação ambiental para o controle do clima em todo o mundo. O governo federal
entende as pressões de toda ordem que são exercidas sobre a nossa Amazônia e atua exatamente para regular o uso
sustentável da floresta e conter ilícitos.
As Forças Armadas compreendem o momento de dificuldades múltiplas que o País enfrenta, tensionado por uma pandemia
que entra nos lares e desestabiliza a vida das famílias, trazendo consequências sanitárias e, principalmente, sociais. Nesse
cenário, cabe aos militares empenhar energias e capacidades num esforço conjunto com a Nação para fazerem parte das
soluções.
A Amazônia é motivo de atenção justamente por existir até hoje. Por ela ter sido preservada. Esse, sim, é um feito dos
brasileiros.

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O ABUSO DO PODER RELIGIOSO

É mais que hora de a lei ser aplicada, coibindo o abuso do poder religioso. As liberdades política e religiosa não podem ser
manipuladas para fins eleitorais

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo


03 de julho de 2020 | 03h00

Ao proferir voto em recurso que discute a cassação de uma vereadora do município de Luziânia (GO), o ministro Edson
Fachin, relator do caso no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), propôs que, a partir das próximas eleições, “seja assentada a
viabilidade do exame jurídico do abuso de poder de autoridade religiosa em sede de ações de investigação judicial eleitoral”.
Atualíssimo, o tema envolve diretamente as liberdades política e religiosa, merecendo discussão criteriosa à luz dos princípios
constitucionais e da legislação eleitoral. É preciso proteger tanto o caráter laico do Estado como o pleno exercício dos direitos
e garantias fundamentais de todos os cidadãos, professem ou não uma religião.
“O princípio da laicidade estatal supõe a preservação de uma autonomia recíproca entre Estado e igrejas, sem impor a ideia
de que religião e política devem excluir-se mutuamente”, disse Edson Fachin. “As visões religiosas habitam a normalidade
democrática e incidem, legitimamente, sobre a configuração dos sistemas partidários, tendo em vista que, ao lado das miradas
seculares, as concepções religiosas sobre a vida ou o cosmos animam, com especial relevância, o ideário relativo à procura do
bem comum.” Por isso, “o próprio regime inerente ao sufrágio assegura, a cada indivíduo, plena autonomia para a seleção dos
critérios definidores da opção eleitoral”, afirmou o relator.
Se a liberdade política assegura o direito de cada um votar como bem entender (e pelas razões que quiser, seja qual for
sua origem ou motivação), essa mesma liberdade não pode sofrer restrição, seja qual for sua origem ou motivação. “A defesa
da liberdade religiosa (...) não pode servir para acobertar práticas que atrofiem a autodeterminação dos indivíduos”, disse o
ministro Fachin, lembrando que “a intervenção das associações religiosas nos processos eleitorais deve ser observada com
zelo, visto que as igrejas e seus dirigentes possuem um poder com aptidão para enfraquecer a liberdade de voto e debilitar o
equilíbrio entre as chances das forças em disputa”.
Em deferência à liberdade religiosa, as igrejas recebem um tratamento diferenciado do poder público. Por exemplo, a
Constituição veda a criação de impostos sobre os templos. Não há cabimento, portanto, que igrejas aproveitem seu estatuto
diferenciado para fazer proselitismo eleitoral. E, de fato, a Lei 9.504/97 proíbe a veiculação de propaganda eleitoral em templos
religiosos.
A proibição de proselitismo eleitoral em templos religiosos é expressão de um princípio fundamental do regime democrático
– a igualdade de condições entre os candidatos. O regime jurídico especial das igrejas, que existe em função da liberdade
religiosa, não pode ser usado para favorecer candidato político de uma liderança religiosa. Em não poucos casos, são os
próprios líderes religiosos que se lançam candidatos, fazendo do púlpito um palanque eleitoral.
Longe de inventar uma nova regra jurídica, a proposta do ministro Fachin alerta para um fato evidente – as lideranças
religiosas exercem uma autoridade sobre seus fiéis, o que pode ter consequências sobre a liberdade política. “A imposição de
limites às atividades eclesiásticas representa uma medida necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade
do processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade.
Dita interpretação finca pé na necessidade de impedir que qualquer força política possa coagir moral ou espiritualmente os
cidadãos, em ordem a garantir a plena liberdade de consciência dos protagonistas do pleito”, disse o relator. Aos que imaginam
tratar-se de ativismo judicial, sugere-se a leitura do Código Eleitoral, que proíbe propaganda eleitoral destinada “a criar,
artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”. A mesma lei também estabelece que “a
interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos
e punidos”.
É mais que hora de a lei ser aplicada integralmente, coibindo o abuso do poder religioso nas eleições. Fundamentais, as
liberdades política e religiosa não podem ser manipuladas para fins eleitorais.

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REFORMAS TARDIAS

Estados hesitam em mudar previdências, arriscando o futuro de políticas públicas

16.jul.2020

Os presidentes da Câmara e do Senado, deputado Rodrigo Maia (DEM-


RJ) e senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), durante sessão solene para a
promulgação da PEC da Reforma da Previdência - Pedro Ladeira -
12.nov.19/Folhapress
A maior lacuna da reforma da Previdência Social aprovada no ano
passado foi a exclusão dos estados e municípios, cujos servidores
preservaram condições mais favoráveis — e insustentáveis— para a
aposentadoria do que as fixadas para o funcionalismo civil federal.
Os regimes estaduais e municipais saíram do texto por uma combinação
de covardia e oportunismo político. Parte dos governadores hesitou em
apoiar publicamente a proposta, e os congressistas não quiseram arcar
sozinhos com o ônus de contrariar as corporações de suas bases eleitorais.
Determinou-se, ao menos, que os entes federativos deveriam elevar as
alíquotas da contribuição previdenciária de seus funcionários até 31 de julho próximo, sob pena de perderem acesso a verbas.
Desde então, premidos pela implacável realidade orçamentária, governadores e prefeitos de diferentes partidos e
orientações ideológicas trataram de promover reformas locais. O avanço, previsivelmente, tem sido difícil e desigual.
Como noticiou a Folha, 13 dos 26 estados aprovaram mudanças nas regras de aposentadoria —estabelecendo, por
exemplo, idades mínimas iguais ou semelhantes às do regime federal— e elevaram as alíquotas de contribuição.
Outros 7, além do Distrito Federal, apenas majoraram as alíquotas. Seis retardatários —Minas Gerais, Rio Grande do Norte,
Tocantins, Roraima, Rondônia e Tocantins— nem isso fizeram.
De mais positivo, vão caindo tabus em torno do tema, sem dúvida delicado em qualquer contexto. Estados governados pelo
PT, casos de Bahia, Ceará e Piauí, estão entre os reformistas, o que deveria levar o partido a rever seu discurso demagógico
e recalcitrante a respeito dos direitos previdenciários.
Pois o fato é que o crescimento inexorável das despesas e dos déficits com os regimes de aposentadoria vai tomando o
lugar de políticas mais prioritárias. A maioria dos estados já gasta mais com inativos do que com educação.
Em São Paulo, por exemplo, que concluiu sua reforma em março, a Previdência consumiu R$ 34,7 bilhões em 2019, ou
14,5% do Orçamento estadual. O montante supera os destinados ao ensino (R$ 30 bilhões), à saúde (R$ 22 bilhões) e à
segurança pública (R$ 19,8 bilhões).
As resistências corporativas à racionalização dos benefícios são particularmente fortes nos estados, onde categorias
numerosas como policiais e professores gozam de tratamento especial e o Judiciário se vale de inúmeros penduricalhos para
elevar seus ganhos.
Dado que os entes federativos recorrem periodicamente à União em busca de socorro financeiro, cabe ao Executivo e ao
Legislativo federais induzir os ajustes dos regimes previdenciários locais. É impensável, portanto, atender às pressões pelo
relaxamento das exigências mínimas hoje existentes.

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O SEXO DO ENSINO

Supremo age bem ao derrubar normas que restringiam menções a gênero nas escolas

15.jul.2020

Uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal consolida o


entendimento de que são inconstitucionais as tentativas de criar leis que
vedem a abordagem de questões relativas a gênero nas escolas. A pauta
contra a chamada ideologia de gênero, como se sabe, é uma das bandeiras
conservadoras do governo Jair Bolsonaro.
No mais recente desses julgamentos, em 26 de junho, todos os juízes da
corte votaram pela inconstitucionalidade de um artigo do Plano Municipal de
Educação de Cascavel (PR) que proibia a “políticas de ensino que tendam a
aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.
Três outros diplomas municipais de teor semelhante já haviam sido
invalidados pelo STF. Em todos os casos, as decisões foram unânimes.
As ações dos grupos contrários à tal ideologia de gênero se inscrevem na
pauta mais ampla do Escola sem Partido, movimento conservador também Protesto Sesc – Em frente ao Sesc Pompeia, em São Paulo, grupos
conservadores fazem protesto contra a realização de palestra da
apoiado por Bolsonaro que, a pretexto de combater casos de doutrinação filósofa norte-americana Judith Butler, uma das principais teóricas
esquerdista nos bancos escolares, pretende aprovar normas que limitariam o sobre gênero no mundo - Bruno Santos - 7.nov.17/Folhapress
raio de ação de professores.
Pretende-se, entre outras coisas, impedir o ensino de conteúdos que vão contra as convicções morais e religiosas dos pais
das crianças.
Se as decisões do Supremo sobre questões de gênero servem de prévia, as propostas do Escola sem Partido não passarão
incólumes pela corte. Elas ensejam, de todo modo uma interessante discussão sobre a autonomia dos jovens.
Não se discute que cidadãos têm direito de ser conservadores —ou o oposto— e de tentar passar seus valores para os
filhos. Especialmente enquanto as crianças são pequenas, é importante que a escola evite confrontar de forma muito aberta as
convicções dos pais.
À medida que crescem, porém, crianças e adolescentes precisam ser expostos a ideias diferentes, até para que possam
um dia decidir de forma autônoma se vão cultivar os valores aprendidos em casa ou adotar um conjunto diferente de convicções
morais e religiosas.
Cumpre ainda que todos conheçam a ideologia do Estado brasileiro, conformada não por governos, mas pelo texto
constitucional, que propugna por uma sociedade sem preconceitos de raça, gênero ou orientação sexual. A escola é um bom
lugar para esse aprendizado.

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XAMPU E PICANHA

STF toma decisões conflitantes em casos de delitos pequenos

3.jul.2020

A diferença entre uma peça de picanha e um xampu pode ser a liberdade. Na


mesma terça-feira (30), o Supremo Tribunal Federal proferiu duas decisões
conflitantes em casos similares de réus que respondiam por pequenos delitos.
No dia, o ministro Gilmar Mendes absolveu sumariamente uma mulher que
havia furtado um pedaço de carne e outros produtos de valor irrelevante no Rio
de Janeiro. O ministro argumentou que não cabe ao direito penal lidar com
condutas insignificantes, na esteira da jurisprudência da corte.
Já Rosa Weber negou habeas corpus a um jovem que furtara dois frascos de
xampu, no valor de R$ 10 cada um. Sustentou a ministra que o réu, por ter
antecedentes, não poderia viver em sociedade.
Antes se tratasse de meras anedotas judiciais. O assim chamado punitivismo,
em especial contra os mais pobres, é uma constante no Judiciário brasileiro. Sessão solene de abertura dos trabalhos no STF (Supremo
O STF, particularmente, tem relutado em soltar presos não violentos durante a Tirbunal Federal) em fevereiro
Sessão solene de abertura dos trabalhos no STF (Supremo
pandemia. Conforme levantamento da Folha, em apenas 6% dos 1.386 habeas Tirbunal Federal) em fevereiro - Pedro Ladeira -
corpus examinados de março até 15 de maio determinou-se a soltura de presos 3.fev.20/Folhapress

ou sua transferência para o regime domiciliar.


A corte segue na contramão do entendimento do Conselho Nacional de Justiça. Por meio da Recomendação 62/2020,
reeditada em junho por mais 90 dias, o CNJ aconselha os magistrados a mandar para casa os acusados de crimes não violentos
e os pertencentes a grupos vulneráveis à Covid-19 —como idosos, grávidas e lactantes.
A medida se justifica pelo alto risco de contaminação generalizada nas unidades prisionais. A título de exemplo, o complexo
da Papuda, no Distrito Federal, chegou no último mês a mil casos de contaminação entre detentos e agentes. O CNJ apontou
alta de 800% do número de presos infectados de maio (245) para junho (2.212).
No Brasil, prende-se muito e mal; na pandemia, morre-se de forma anunciada e evitável. Juntas, a insensibilidade judicial e
a condição abjeta do sistema prisional brasileiro, no qual 31% das unidades nem sequer possuem assistência médica, são
receita para a tragédia.
Prisões por furtos de xampu não tornam o país mais seguro. O encarceramento insensato e desumano é que cria riscos
para todos.

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MAIS FOGO

Queimadas têm alta na Amazônia após mancharem a imagem do país em 2019

3.jul.2020

Com o advento da estação seca na Amazônia tem início também a


temporada de incêndios na região. Em 2019, devido a sua gravidade, o
problema produziu uma crise internacional e calcinou a imagem ambiental
do Brasil no exterior.
Neste ano, o cenário se apresenta alarmante mais uma vez. O mês de
junho registrou o maior número de queimadas no período desde 2007,
segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Na
comparação com o ano passado, o crescimento foi de quase 20%, com os
focos de calor passando de 1.880 para 2.248.
Trata-se de indício ominoso. As queimadas que assolam o bioma estão
intimamente ligadas ao desmatamento, uma vez que o fogo é utilizado para
Queimada em área desmatada no seringal Albracia, dentro da Reserva
limpar áreas previamente destruídas com o objetivo de convertê-las em Extrativista Chico Mendes, em Xapuri (AC), após o ministro Meio
pastagens ou outros usos —e isso só aumenta. Ambiente, Ricardo Salles, suspender fiscalização da reserva. A área
havia sido embargada pelo ICMBio em uma fiscalização - Lalo de
De agosto de 2018 a julho de 2019, o corte raso atingiu impressionantes Almeida - 27.nov.19/Folhapress
10 mil km² de florestas, a maior cifra registrada em uma década. Como se
não bastasse, a tendência permanece de recrudescimento.
Nos últimos meses, os alertas gerados pelo sistema Deter, do Inpe, vêm mostrando altas consecutivas na comparação com
os períodos correspondentes do ano anterior.
Devido à existência de mais combustível disponível, pesquisadores temem, neste ano, uma temporada de queimadas ainda
mais intensa que a observada em 2019.
Considerando a vegetação derrubada do início do ano passado a abril de 2020, o Instituto de Pesquisa Ambiental da
Amazônia calculou que ainda restam 4.500 km² de mata derrubada, área equivalente a três vezes a da cidade de São Paulo, a
serem incinerados.
Além de contribuírem para o aquecimento global, os incêndios produzem impactos nocivos sobre a saúde das populações
amazônicas. A fumaça empesteia o ar, aumentando a incidência de problemas respiratórios, como se viu no último ano nas
áreas com maiores concentrações de queimadas.
Na região que abriga o menor número de leitos hospitalares do país, a combinação desse cenário com a epidemia do novo
coronavírus, que ora se interioriza, pode levar a um resultado calamitoso.
Após esvaziar as agências ambientais, o governo Jair Bolsonaro transferiu a coordenação das ações de combate ao
desmatamento e às queimadas ao Conselho Nacional da Amazônia, repleto de militares e presidido pelo vice-presidente
Hamilton Mourão.
A mudança, contudo, não logrou até agora modificar a dinâmica de destruição do bioma amazônico.
Apenas uma ação contundente e concertada do poder público evitará o cenário desastroso observado em 2019. A julgar
pela célebre declaração do ministro do setor, no entanto, a administração federal vê a emergência sanitária como oportunidade
para “passar a boiada” sobre o controle ambiental.

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BOLSA COM TETO

Maior ação social, desejável, deve respeitar limite de gasto para ser eficaz
11.jul.2020

Em quase todo o mundo, o enfrentamento da pandemia trouxe


consigo a necessidade de atuação dos governos para proteger os
vulneráveis. No Brasil, o auxílio emergencial de R$ 600 mensais até
agora se mostra crucial para preservar a renda das famílias pobres e
evitar danos sociais ainda maiores.
De outro lado, é preciso considerar o custo para os cofres públicos,
que até agora chega a R$ 250 bilhões com o auxílio, e o dobro disso
se considerados outros gastos.
No agregado, incluindo a queda da receita de impostos ocasionada
pela recessão, o déficit governamental pode superar a marca de R$ 1 Fila para o saque do auxílio emergencial, em São Paulo - Havolene
trilhão neste ano, quase dez vezes o estimado antes da crise, e levar Valinhos/Folhapress

a dívida pública para perto de 100% do Produto Interno Bruto.


Persistir na mesma toada a partir de 2021 seria insustentável. A administração federal precisará sem demora enfrentar o
desafio de racionalizar o Orçamento de forma a manter de pé o teto de despesas inscrito na Constituição —o principal pilar da
solvência do Estado.
Ao contrário do que argumenta boa parte dos adversários do teto, é possível conciliá-lo com o objetivo de ampliar programas
sociais.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que em maio o auxílio emergencial foi suficiente para
compensar 45% da perda de massa salarial ocasionada pela pandemia. No caso das famílias pobres e muito pobres, a
compensação propiciada pelas transferências do governo foi total, algo nunca antes visto.
O benefício também teve papel decisivo em reduzir temporariamente a extrema pobreza em 32% (considerando a renda de
corte equivalente a R$ 304,38 mensais per capita utilizada pela ONU) ou 72% (se for adotada a métrica do governo, de R$ 89
por pessoa).
Esses resultados demonstram as vantagens de ampliar a proteção social por meio de transferências diretas. Não há dinheiro
para um auxílio universal, mas faz sentido expandir a bem-sucedida experiencia do Bolsa Família com foco nos estratos mais
necessitados.
Para tanto será necessário revisar outros programas existentes, que beneficiam em menor proporção os mais pobres. É o
caso, por exemplo, do abono salarial, que chega a famílias na metade superior da distribuição de renda.
O debate decerto será intenso neste segundo semestre, em paralelo à análise do Orçamento de 2021. Simulações da
Instituição Fiscal Independente, ligada ao Senado, indicam que já no próximo ano o teto de gastos poderá ser rompido.
O Congresso precisará fazer escolhas para compatibilizar mais ação social com o limite geral da despesa. Sem isso, o
agravamento da crise econômica elevará a pobreza que se pretende combater.

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ARMADILHA À VISTA
Conflito entre os Estados Unidos e a China ameaça arrastar países como o Brasil
19.jul.2020

Em um livro de 2017, “Destinados à Guerra”, o historiador americano


Graham Allison cunhou o termo “armadilha de Tucídides”.
Era uma referência ao grande cronista grego da Guerra do
Peloponeso, no século 5 a.C., e sua visão de que o conflito se tornou
inevitável quando a potência então estabelecida, Esparta, assistiu
temerosa à ascensão de Atenas.
Allison estudou 16 embates análogos nos últimos 500 anos, e em 12
deles o resultado foi a guerra. A questão agora é o que acontecerá com
os Estados Unidos e a China.
Apesar do sinal trocado, já que Esparta era autoritária, e Atenas, mais
aberta, os papéis estão claros. Washington vê a ascendente China como
uma ameaça.
Desde que se aproximaram, nos anos 1970, ambos lucraram com a
interdependência de suas economias. Só que a percepção ocidental é
O presidente americano, Donald Trump, e o líder chinês, Xi Jinping,
que a ditadura comunista faz sombra à hegemonia pós-Guerra Fria das durante encontro em Pequim no ano de 2017
democracias liberais.
Não que o melhor exemplo esteja em casa: Donald Trump representa
o farol para líderes autoritários do Brasil à Polônia. De todo modo, a prioridade americana está colocada, mesmo que o
presidente seja ejetado em novembro.
A disputa comercial iniciada pelo republicano em 2017 avançou rumo a outros setores.
Só na semana passada, os EUA atacaram interesses do rival asiático na tecnologia do futuro, o 5G, com o banimento da
chinesa Huawei no Reino Unido; na política, com novas sanções devido ao cerco a Hong Kong; na geoestratégia, com a
condenação às pretensões de Pequim no mar do Sul da China.
Tal saraivada mereceu respostas apenas retóricas, mas analistas questionam a sabedoria de alienar a segunda maior
economia do mundo, detentora da maior fatia de fluxo comercial internacional.
Os EUA sabem dos limites chineses nos campos militar e econômico. Pequim também não busca exportar seu modelo único
de país.
Mas, ao adiantarem-se na disputa, os americanos colocam dilemas para o restante das nações, que acabam forçadas a
escolher um lado.
Os britânicos, ao abdicar da independência que defendiam no 5G, foram as primeiras vítimas dessa armadilha subjacente
àquela de Tucídides. O Brasil, sob o guarda-chuva geopolítico dos EUA e com a China como maior parceira comercial, é um
dos próximos na fila.
Com um governo inepto e uma política externa que se choca com a realidade ao alinhar-se incondicionalmente a Trump, o
desafio de manter equidistância é ainda maior. Cumpre buscar tal objetivo, sem sacrificar princípios e interesses.

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VIOLÊNCIA COM DOR CONTRA CRIANÇAS: UM DESPAUTÉRIO

Espanta a defesa do castigo com dor no século 21


18.jul.2020

A violência contra a criança inclui todas formas de violência contra crianças e adolescentes até 18 anos na família, na
escola, no trabalho, nas instituições e na comunidade. Segundo relatório de 2020 da OMS, uma a cada duas crianças, ou um
bilhão, sofre algum tipo de violência a cada ano, e cerca de 300 milhões no mundo todo são alvo de castigo físico e violência
psicológica por seus pais e responsáveis. Quando visitei 65 países para o estudo mundial sobre violência contra a criança da
ONU, em todos eles crianças e adolescentes reclamavam de estar cansadas de apanhar por seus pais e mães.
Além das mortes, centenas de milhões de crianças submetidas à violência requerem tratamento médico de emergência,
com danos como lesões cerebrais, habilidade cognitiva reduzida e doenças mentais e físicas . No Brasil, segundo o DataSUS
de 2017, há registros de 126.230 casos de violência contra a criança e o adolescente, sendo 10% com menores de quatro anos.
Daqueles, 72.498 casos ocorreram na casa da vítima, sendo a mãe algoz em 34.495 e o pai em 25.962. Em 2019, o Ministério
dos Direitos Humanos concluiu que quase 90% da violência sexual acontece no ambiente familiar.
Tudo isso me veio à cabeça ao ver pregação do pastor presbiteriano Milton Ribeiro em abril de 2016, no vídeo “A Vara
da Disciplina”, aconselhando às mães que no castigo os filhos devem “sentir dor”. O pastor toma recomendações de educação
dos hebreus entre 1.800 a.C. e 500 a.C., no Velho Testamento, como se fossem manual para os pais nos trópicos no século
21.
O que espanta é o pastor e ministro da Educação preconizar castigos corporais “com dor” em 2016, em plena vigência
da Lei Menino Bernardo (13.010), de 26 de junho de 2014, projeto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que estabelece o
direito da criança e do adolescente de serem educados sem o uso de castigos físicos. A lei não retira a autoridade nem
criminaliza os pais, mas visa promover formas positivas não violentas e mais eficazes de disciplina.
Hoje não há nenhuma dúvida de que os castigos físicos são uma grave violação dos direitos das crianças, conforme a
convenção da ONU sobre os direitos da criança (ratificada por 192 países) e a legislação interna brasileira, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), comemorando 30 anos. Em 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa
Rica, atendendo consulta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, reafirmou que os 35 Estados do continente devem
proteger os direitos das crianças contra maus tratos e ser obrigados a adotar leis proibindo o castigo corporal.
Nenhuma violência contra as crianças pode ser justificada, e toda violência pode ser sempre prevenida. É deplorável
que cerca de 3 em 10 adultos mundo afora ainda acreditem que o castigo físico seja necessário para cuidar e educar as
crianças. Não importa a cultura, a religião ou o nível de desenvolvimento econômico e social, toda sociedade tem a obrigação
de fazer cessar a violência covarde e nefasta dos adultos contra elas.

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O TOTALITARISMO COMO FORMA DE GOVERNO

Em momento de insegurança, é importante relembrar Hannah Arendt


EDIÇÃO IMPRESSA
19.jul.2020

Vivemos tempos sombrios no Brasil. Temos um governante ex-militar eleito pelas regras do jogo democrático, mas que
simpatiza com regimes autoritários e não perde tempo em elogiar a ditadura militar que vigorou no país durante 21 anos. Em
momento de perplexidade e de insegurança quanto à nossa democracia, talvez seja importante retomar algumas das reflexões
da pensadora judia Hannah Arendt (1906-1975) em sua obra inaugural, “Origens do Totalitarismo”, publicada em 1951, no
tempo da Guerra Fria.
O livro recebeu muitos elogios, mas gerou também grande polêmica, justamente porque a autora igualou o nazismo e o
stalinismo em termos ideológicos, os classificando de regimes totalitários. Arendt foi criticada pela esquerda, que a considerou
conservadora, e pela direita, uma comunista. Sua resposta, que a orientou em todos os seus livros, foi que precisava “pensar
sem corrimão” (“thinking whithout a bannister”), com base nos fatos, postura que sempre registrou em suas análises.
A princípio, seria muito difícil identificar o nazismo com o stalinismo, como definiu Hannah Arendt. Mas Arendt o fez com
base em uma caracterização da ideologia dos dois regimes, que classificou como a ideologia do terror. Segundo ela, esses
dois tipos de governo não se enquadravam apenas na denominação de ditaduras.
Seria mais do que isso, porque se apoiaram em uma ideologia baseada na lógica de uma ideia como se fosse uma lei
natural: a lei da raça pura e a lei da vitória da classe operária, em nome das quais foram praticados todos os crimes. No caso
de Hitler, na necessidade de eliminação dos judeus e outras minorias; e de Stalin, na morte de seus opositores, os bolcheviques.
Essa era a sina de qualquer um que pusesse em risco o objetivo discursivo final desses governantes.
De acordo com Arendt, essas duas experiências históricas pregavam a eliminação do inimigo para que a lei se cumprisse.
E o inimigo objetivo poderia ser transmudado, a qualquer momento, em inimigo invisível, porque na cabeça doentia desses
governantes totalitários poderia ser qualquer pessoa que sonhasse em ameaçar seus planos. Nesses termos, a ideologia
totalitária é compreendida como a lógica das ideias que visa o domínio total.
O totalitarismo não convive com “o outro”, com a vida pública, ressalta Arendt. A obra “Origens do Totalitarismo” se baseia
em uma análise histórica, documentos e discursos da época dos governos de Hitler e de Stalin. Sugere a tese do totalitarismo
como uma ideologia e nova forma de governo, diferente das tiranias e ditaduras que perduram enquanto não abatem os
inimigos.
Nesses termos, o totalitarismo seria uma forma de governo que visa o domínio total, por isso mesmo, um regime
autodestrutivo. Mas não se pode concluir, assevera Arendt, que como uma nova forma de governo esses regimes vão se
reproduzir na história, como as ditaduras e tiranias do passado. Pode ser que sim, pode ser que não, vai depender das escolhas
políticas e ações dos indivíduos.
A valorização diuturna da democracia e da esfera pública como espaços livres da palavra e da ação é uma conquista e um
legado aos quais não se pode renunciar para o próprio bem do ser humano. As características do totalitarismo, ou seja, das
experiências do nazismo e do stalinismo, como analisou Hannah Arendt, são a destruição da esfera pública —a esfera da
política— e da esfera privada —a esfera da família—, produzindo um estado de desconfiança permanente no tecido social. São
situações que podem levar as pessoas ao sentimento da mais profunda solidão. A solidão não como uma condição da vida ou
escolha individual, mas como uma imposição social. A solidão como um sentimento de não pertencimento ao mundo. A solidão
causada pela falta da ação compartilhada entre indivíduos livres e iguais.
Após anos de lutas para consolidação da democracia no Brasil, não deixemos que ações antidemocráticas levem à
desconstrução da nossa liberdade!

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APPS DE PAQUERA E ROBÔS INVADEM LIVROS DE AMOR

Celulares e aplicativos mantém pessoas distantes na vida real, mas oferece possibilidades infinitas de conexão na ficção

Sarah MacLean
14.jan.2020

Na era dos emojis e do Instagram, Snapchat e mensagens de texto, a carta de amor manuscrita pode ser coisa do passado.
Mas em lugar de lamentar sua perda, os romances de amor estão nos fazendo recordar que a intensidade emocional não está
sumindo como a caneta e o papel. A verdade é que muitos romances contemporâneos sublinham a mais fascinante contradição
da tecnologia: aquilo que mantém as pessoas tão distantes na vida real oferece possibilidades infinitas de conexão —mesmo
em uma paisagem infernal de apps de encontros, abandonos sem explicação e fotos não solicitadas de você sabe o quê.
“Not the Girl You Marry”, livro de Andie J. Christopher, combina a ambiciosa planejadora de eventos Hannah Mayfield, que
é cínica em relação ao amor, e o jornalista Jack Nolan; os dois estão tentando impressionar seus chefes. Hannah precisa provar
que que é capaz de manter um relacionamento e Jack está escrevendo um artigo sobre como se livrar de uma namorada. Se
você imaginou uma versão de “Como Perder um Homem em Dez Dias” com o sexo dos personagens invertido, está no caminho
certo.
O que surge disso é uma história hilariante e horripilante que combina os piores aspectos da vida romântica contemporânea
(sim, há fotos do relutante Jack tentando dispensar a firme e determinada Hannah) ao que ela tem de melhor —a química entre
Hannah e Jack é especialmente forte quando eles trocam mensagens de texto. Os melhores autores de livros românticos
contemporâneos sabem que a tecnologia é capaz de injetar uma dose forte de química em um relacionamento —mesmo quando
os parceiros tentam encontrar o equilíbrio entre vida, relacionamento e salvar o planeta.
“American Love Story”, de Adriana Herrera, é um romance entre a professora Patrice Denis, ativista do movimento Black
Lives Matter, e o procurador público Easton Archer, dois personagens cujas vidas e trabalhos tornam um relacionamento quase
impossível. A história é incisiva e moderna, navegando as complexidades do privilégio, propósito e poder e ao mesmo tempo
explorando uma intensa paixão. No livro, Herrera usa a tecnologia para intensificar e personalizar um relacionamento privado
que não pode ser conhecido em público.
Em “The A.I. Who Loved Me”, um audiolivro original, Alyssa Cole explora as possibilidades do amor no futuro próximo —e
do amor por entidades quase humanas.
A heroína Trinity Jordan se vê apaixonada por Li Wei, o sobrinho charmoso mas meio estranho de seu vizinho, até que
descobre que ele é um “humanoide biossintético”, um robô mas não exatamente um robô. Li Wei é capaz de sentir amor e
emoção, e mais que capaz de sentir prazer, mas, o que é magnífico, ele não tem necessidade dos artifícios emocionais que
dão segurança aos seres humanos.
Em dado momento, Trinity aponta que ele está sozinho, que não pode confiar em ninguém. Li responde: “Mentira detectada.
Tenho você”. É um momento maravilhoso para os leitores de romance e de esperança para os céticos em relação à tecnologia.
Talvez a tecnologia esteja nos tornando mais parecidos conosco?
Mas e quanto a um relacionamento construído sobre uma montanha de mentiras tecnológicas —selfies filtrados e tirados
em ângulos favoráveis, posts depurados no Facebook, fotos perfeitamente encenadas no Instagram, que nos forçam a adotar
personas impecáveis que são impossíveis de manter mas igualmente impossíveis de abandonar?
Essa é a questão central de de “Love at First Like”, de Hannah Orenstein. Eliza Roth é parte dona de uma joalheria, parte
influenciadora no Instagram e parte heroína confusa de comédia romântica. Quando ela publica acidentalmente uma foto de
um anel de noivado em sua conta no Instagram, as coisas escapam ao controle e ela se vê forçada a encontrar um falso
namorado para manter sua reputação, seus negócios e sua vida em ordem.
Ainda que o livro de Orenstein se mantenha no fio da navalha entre romance de amor e ficção comercial, sua heroína em
busca de equilíbrio desperta muita empatia, já que a tecnologia onipresente torna muito mais difícil encontrá-lo.
A despeito de todo o tempo que passamos presos às telas, a verdade é que os seres humanos vivem com a tecnologia, e
não nela —pelo menos por enquanto. “Love Lettering”, de Kate Clayborn, é uma representação impecável dessa verdade. A
heroína Meg Mackworth é artesã e escreve cartazes manuscritos, e é apaixonada pelas placas pintadas à mão que estão
desaparecendo rapidamente das ruas de Nova York.
Depois de um convite de casamento e uma cerimônia desastrosos, ela se apanha apaixonada pelo noivo, que não chegou
a se casar (o financista almofadinha Reid Sutherland, que vive num mundo de concreto, aço e vidro).
O que vem a seguir é um romance substancioso e lânguido que combina o passado nostálgico ao presente tecnológico. O
relacionamento de Reid e Meg cresce por meio de um jogo no qual eles trocam mensagens contendo não textos, mas imagens
de cartazes manuscritos encontrados nas ruas. Os dois dizem o que têm a dizer por meio de imagens.
E esse minúsculo, magnifico e romântico detalhe serve para lembrar aos leitores que somos mais nós mesmos ao nos
conectarmos com os outros, não importa qual seja a mídia.

Tradução de Paulo Migliacci

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NEOPENTECOSTAIS ARMADOS ATORMENTAM MINORIAS RELIGIOSAS BRASILEIRAS

Evangélicos ligados a gangues criminosas vêm atacando membros de minorias religiosas

Terrence McCoy
12.dez.2019

Ele ouviu batidas fortes na porta. Estranho, pensou o sacerdote –ele não estava esperando ninguém.
Marcos Figueiredo foi até a entrada do terreiro e abriu a porta.
Armas. Três delas. Todas apontadas para ele.
O “Bonde de Jesus” havia chegado. Eram três membros de uma quadrilha de cristãos evangélicos extremistas que assumiu
o controle do bairro pobre de Parque Paulista, em Duque de Caxias.
Primeiro a quadrilha montou barreiras nas ruas para impedir a entrada da polícia e criar um refúgio seguro para o tráfico a
uma hora de carro do Rio de Janeiro. Agora, estava atacando qualquer pessoa cuja religião não se alinhasse com a sua. Isso
incluía impor o fechamento de templos de religiões de matriz africana, como o terreiro de candomblé de Marcos Figueiredo.
“Ninguém aqui quer saber de macumba”, disse um dos agressores a Figueiredo, segundo o depoimento que ele deu às
autoridades. “Você tem uma semana para acabar com isso daqui tudo.”
Eles foram embora dando tiros no ar e deixando Figueiredo com uma escolha impossível: sua fé ou sua vida.
É uma decisão que mais brasileiros estão sendo forçados a tomar. À medida que o cristianismo evangélico reconfigura o
mapa espiritual do maior país da América Latina, atraindo dezenas de milhões de fiéis, conquistando poder político e
ameaçando a hegemonia histórica da Igreja Católica, seus fiéis mais radicais, em muitos casos filiados a gangues criminosas,
vêm atacando com frequência crescente membros de minorias religiosas não cristãs no Brasil.
Sacerdotes foram mortos. Crianças foram apedrejadas. Uma idosa foi gravemente ferida. Provocações e ameaças de morte
são comuns. As quadrilhas hasteiam a bandeira de Israel, país visto por alguns evangélicos como necessário para assegurar
o retorno de Cristo à terra.
Como a santeria e o vodu, o candomblé tem suas raízes nas crenças trazidas para a América Latina por escravos vindos
da África ocidental. E está desaparecendo de comunidades inteiras.
A violência crescente deixa os evangélicos tradicionais chocados. “Quando vejo esses terreiros, rezo contra eles, porque há
uma influência demoníaca em ação ali”, comentou o missionário americano David Bledsoe, que vive no Brasil há duas décadas.
“Mas eu condenaria esses atos.”
As denúncias de ataques contra adeptos das religiões afro-brasileiras aumentaram de 14 em 2016 para 123 nos dez
primeiros meses deste ano no estado do Rio de Janeiro. As autoridades estaduais dizem que essas cifras são inferiores ao
número real; muitas vítimas teriam medo de abrir a boca. Mais de 200 terreiros foram fechados neste ano em função de
ameaças, segundo a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), sediada no Rio. É o dobro do número do ano
passado. Milhares de pessoas foram privadas de seus locais de culto.
Em uma geração o Brasil passou por uma transformação espiritual como a de poucos outros lugares no planeta. Ainda em
1980, cerca de nove em cada dez brasileiros se identificavam como católicos. Mas essa parcela caiu vertiginosamente, para
50%, e em pouco tempo será superada pela dos evangélicos, que hoje formam um terço da população.
O televangelismo corre solto na TV. A indústria de música evangélica movimenta cerca de US$1 bilhão. Políticos evangélicos
puxaram o país para a direita nas questões sociais. E o sistema carcerário, há anos o maior centro de recrutamento das
quadrilhas criminosas, virou o campo de uma conversão. Pesquisas revelam que 81 das cem organizações religiosas que
trabalham com questões sociais dentro dos presídios são evangélicas. A IURD diz que despachou um exército de 14 mil fiéis
voluntários para converter os detentos.
A professora de sociologia Cristina Vital da Cunha, da Universidade Federal Fluminense, estuda há décadas o evangelismo
nas favelas cariocas. Ela disse: “Alguns pastores e denominações fizeram uma aposta estratégica na conversão dos traficantes
nos locais privilegiados na hierarquia do crime”.
Olhando para o bairro, onde sua religião foi proibida, Figueiredo enxergou o futuro.
“A teocracia”, disse.

Tradução de Clara Allain

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RUSSA QUE TEVE MÃOS DECEPADAS PELO MARIDO SE TORNA VOZ CONTRA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Vladimir Putin abrandou legislação de combate a agressões contra mulheres

Amie Ferris Rotman


6.dez.2019

Em um país onde as vítimas de violência doméstica recebem pouca atenção, é raro que o caso de uma mulher se destaque.
O que dirá então da conversão de uma vítima em um nome que todos conhecem. Talvez seja porque a história de Margarita
Gracheva seja tão cruel, sua resiliência tão extraordinária e a atenção que ela recebeu do Kremlin tão inesperada.
Em dezembro de 2017, o marido de Gracheva a levou para uma floresta, onde decepou suas mãos com um machado. Foi
um ato hediondo final, após meses de agressões. Gracheva utiliza no Instagram a hashtag #TransformerMom, devido à sua
mão direita biônica. A esquerda foi preservada na neve naquele dia fatídico e religada ao braço graças a várias cirurgias
dolorosas.
Agora essa mulher de 27 anos, mãe de dois meninos, virou uma sensação da mídia em toda a Rússia. Fechou um contrato
de livro com uma editora pró-Kremlin e virou presença constante na televisão pública.
A atenção que a mídia apoiada pelo Kremlin lhe está dando é surpreendente por ocorrer num país que quase três anos
atrás descriminalizou algumas formas de violência doméstica e onde as divergências com as posições do governo raramente
são expressas publicamente.
“Quantos casos já não houve desde o meu, quantas mulheres já não foram mortas? E o governo fica sentado, parado, sem
conseguir fazer nada”, disse Gracheva ao jornal The Washington Post em turnê recente para divulgar seu livro, “Happy Without
Hands” (feliz sem mãos).
Os antecedentes do ataque a Gracheva seguiram um padrão que já é fartamente conhecido em um país onde, segundo
entidades de direitos humanos, uma mulher é assassinada por seu companheiro a cada 40 minutos.
Depois de seu marido ameaçá-la com uma faca, Gracheva procurou a polícia de sua cidade, ao sul de Moscou, mas os
policiais a trataram com desdém e desinteresse. “A polícia neste país não nos leva a sério”, disse.
Mas há alguns pequenos sinais de transformação visíveis. Um coro crescente de vozes no governo e na sociedade reivindica
que o país finalmente —e pela primeira vez— promulgue uma lei contra a violência doméstica.
A Rússia é o único país dos 47 que integram o Conselho da Europa que não possui legislação específica para proteger as
mulheres contra a violência doméstica.
Gracheva afirma acreditar que a única razão pela qual seu marido recebeu uma sentença de prisão longa, 14 anos, foi a
atenção que seu caso recebeu da mídia.
Antes da tragédia ela teria evitado chamar a atenção de qualquer maneira, mas agora Gracheva reconhece que a atenção
da imprensa é útil para sua causa. “Se o fato de meu rosto se tornar conhecido aumentar a conscientização do sofrimento das
mulheres, que seja”, comentou.
A violência doméstica vem dominando as manchetes na Rússia de uma maneira que nunca antes aconteceu. Está ficando
cada vez mais difícil para o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, em seu telefonema diário com jornalistas, fugir da preocupação
nacional crescente com essa questão.
A mudança no estado de ânimo público vem sendo acompanhada por protestos de rua e uma explosão de atividades
artísticas e culturais que tratam do assunto, incluindo peças de teatro e videogames. Uma série de casos de violência doméstica
de alto perfil também cativou a atenção do país.
Em outubro, um alto executivo de uma das unidades de um dos maiores bancos russos, o Alfa Capital, foi demitido depois
de sua esposa denunciar que ele a espancara.
Moscou está acompanhando de perto a perspectiva de sentenças de prisão para irmãs que se vingaram de seu pai, Mikhail
Khachaturyan, depois de sofrerem anos de violência sexual e física da parte dele.
Duas irmãs foram declaradas “conscientes de seus atos” e podem ser indiciadas por homicídio premeditado de seu pai,
morto a facadas no ano passado enquanto dormia.
Uma terceira irmã, a mais jovem, não deve ser criminalmente acusada, segundo investigadores.
No mês passado a indignação pública se intensificou diante do caso sinistro de uma jovem acadêmica assassinada e
esquartejada por seu amante e colega em São Petersburgo, que já havia sido acusado de violência contra mulheres no passado.
O caso chegou a suscitar críticas de um dos comentaristas populares mais pró-Kremlin, Dmitry Kiselyov, cujo programa
semanal funciona como uma espécie de barômetro da opinião pública imposta pelo Estado sob a direção do presidente Vladi-mir
Putin.
A Igreja Ortodoxa russa, que sob o governo Putin viu sua influência subir meteoricamente, tradicionalmente se opõe a
qualquer lei de violência doméstica. No mês passado, entidades cristãs organizaram pequenos protestos em vários pontos do
país em que os participantes seguraram faixas dizendo “minha casa é minha fortaleza”. Um dos organizadores dos protestos
disse que uma lei de violência doméstica “levará os homens a não quererem se casar”. Mas é pouco provável que a igreja
resista a qualquer pressão governamental.
“Nossa igreja é influente porque é um departamento do Estado”, comentou a cientista política Ekaterina Schulmann, que
trabalhou no projeto de lei. “Se houver uma vontade política de aprovar a lei, a igreja não se oporá."

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POR DESESPERO, REFUGIADOS NO MÉXICO ENVIAM FILHOS SOZINHOS PARA A FRONTEIRA

Pais apelam para a tática na tentativa de tirar crianças de acampamento improvisado

Kevin Sieff
24.nov.2019

No meio do maior campo de refugiados da fronteira do México com os EUA — tão perto do Texas que os migrantes podem
ver uma bandeira americana tremulando do outro lado do rio Grande — os filhos de Marili adoeceram. Josue tinha cinco anos.
Madeline, três. A pequena família estava reunida em uma barraca de náilon com dois cobertores na última semana, quando a
temperatura desabou para quase 3°C.
As crianças começaram a tossir, disse Marili, e os dedos das mãos e dos pés ficaram vermelhos. Casos de queimaduras
provocadas pelo frio foram identificados pelo médico do acampamento. Como a maioria dos cerca de 1.600 refugiados que
solicitaram asilo no acampamento informal, Marili e seus filhos haviam atravessado a fronteira para os Estados Unidos no verão
do hemisfério Norte, apenas para serem enviados de volta ao México para aguardar o julgamento de seus casos de asilo —
parte de uma política americana implantada há um ano, chamada Protocolos de Proteção a Migrantes.
Muitos decidiram ajudá-los da única maneira que sabiam — enviá-los através da fronteira sozinhos. Quando Josue e
Madeline ficaram mais doentes, foi a vez de Marili tomar uma decisão. Esses casos ilustram o custo humano da política do
governo Trump e sugerem que os Estados Unidos, o México e as Nações Unidas não estavam preparados para lidar com
muitas das consequências inesperadas.
Marili, fugindo da violência das gangues em Honduras, sabia que crianças desacompanhadas eram acolhidas nos Estados
Unidos sem ter que enfrentar a burocracia dos Protocolos de Proteção a Migrantes e a espera de meses.
A mãe de 29 anos —que, como outras pessoas, pediu para não ser identificada pelo sobrenome, por temer que isso pudesse
afetar seu pedido de asilo— afirmava acreditar que voltar para casa seria suicídio.
Então, ela agasalhou seus filhos com todas as roupas de inverno que lhe foram doadas e rabiscou uma carta para as
autoridades de imigração dos EUA em um pedaço de papel rasgado.
"Meus filhos estão muito doentes e expostos a muitos riscos no México", escreveu ela. "Não tenho outra maneira de colocá-
los em segurança."
Ela espremeu a carta na mão de Josue, disse ela, e indicou para as crianças três agentes alfandegários e de proteção de
fronteiras dos EUA no meio da Gateway International Bridge, a ponte que se estende sobre o rio Grande, ligando Matamoros a
Brownsville, no Texas.
"Ficamos sabendo da situação, mas não tínhamos capacidade suficiente para ajudar", disse Dora Giusti, chefe de proteção
infantil da Unicef no México. "E o governo mexicano continuou dizendo que [os migrantes] seriam retirados do estado, então
ficamos esperando para ver se poderíamos ajudar lá." A agência de refugiados da ONU diz que as cidades fronteiriças do
estado de Tamaulipas, onde está localizada Matamoros, "estão entre as mais precárias e perigosas do país, o que limita nossas
ações na área".
Todos os dias, o governo dos EUA envia dezenas de migrantes para Matamoros no âmbito dos Protocolos de Proteção a
Migrantes. Eles são levados diretamente para o acampamento e costumam dormir do lado de fora até encontrar uma barraca.
O acampamento é formado por centenas de barracas agrupadas em uma estreita calçada e um trecho de matagal ao longo do
rio Grande. Existem poucos chuveiros, muitas pessoas tomam banho e lavam suas roupas no rio. Uma vez, uma vaca morta
passou flutuando e ficou presa ao lado do acampamento. Outra vez, um cadáver de um homem sem cabeça foi arrastado pela
água até a margem.
A Global Response Management, uma organização sem fins lucrativos da Flórida que administra a pequena clínica médica
sob a lona azul, viu um aumento no número de pacientes, a maioria crianças. Os casos mais comuns foram doenças
respiratórias, disse Megan Algeo, a médica de plantão no momento. Em um caso, Algeo disse, ela convenceu os agentes de
imigração dos EUA a aceitar uma criança para atendimento emergencial.
Para muitas famílias no acampamento, as crianças —e as ameaças contra elas— foram a razão pela qual fugiram de seus
países em primeiro lugar.
Os advogados que trabalham no acampamento tomaram conhecimento recentemente dos muitos pais que optam por
mandar seus filhos sozinhos.
"Esses pais foram forçados a considerar uma escolha impensável —salvar seus filhos enviando-os para os EUA sozinhos
ou mantê-los no norte do México, onde serão expostos a doenças graves, sequestros, torturas e estupros", disse Rochelle
Garza da União Americana de Liberdades Civis do Texas.

Tradução de AGFox

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POSSÍVEL CAUSA DE MORTES LIGADAS A CIGARROS ELETRÔNICOS É IDENTIFICADA

Acetato de vitamina E foi encontrado nos fluidos pulmonares de pessoas que adoeceram

Lena H. Sun
9.nov.2019

Autoridades federais de saúde dos Estados Unidos identificaram o acetato de vitamina E nos fluidos pulmonares de 29
pessoas que adoeceram ou morreram com lesões relacionadas ao fumo de cigarros eletrônicos. O óleo é, então, apontado
como provável culpado pela epidemia que atingiu mais de 2.000 pessoas e matou pelo menos 39.
“As descobertas oferecem provas diretas da presença de acetato de vitamina E nos locais primários de lesão dentro dos
pulmões”, disse Anne Schuchat, diretora assistente do Centro de Controle e Prevenção de Doenças americano (CDC, na sigla
em inglês). As mais recentes informações revelam indícios cada vez mais fortes de que o acetato de vitamina E é um forte
culpado pelas mortes e lesões, e causa de preocupação, disse Schuchat.
As descobertas anunciadas na sexta-feira (8) não descartam que outros possíveis compostos ou ingredientes estejam entre
as causas de lesões pulmonares. Mas Schuchat descreveu os resultados dos testes de laboratório como um salto na
investigação. O CDC conduziu testes para detectar a presença de uma ampla gama de substâncias que podem ser encontradas
no fluido pulmonar de pacientes, entre as quais óleos de plantas e destilados de petróleo, como o óleo mineral.
Técnicos do CDC encontraram acetato de vitamina E, um óleo derivado da vitamina, em todas as 29 amostras de fluidos
pulmonares recolhidas de pacientes que adoeceram ou morreram por conta de lesões pulmonares. O THC, o componente
psicoativo da maconha, também foi identificado em 23 pacientes, entre os quais três que disseram não usar produtos de THC.
A presença de nicotina foi detectada em 16 de 26 pacientes. A maioria dos pacientes que adoeceram durante o surto consumiu
THC em cigarros eletrônicos, segundo as autoridades.
O acetato de vitamina E já havia sido detectado em testes anteriores conduzidos pela Food and Drug Administration (FDA),
agência americana de fiscalização e regulamentação de alimentos e remédios, e por laboratórios estaduais de análises, em
produtos que continham THC.
O laboratório do Wadsworth Center, do estado de Nova York, foi o primeiro a descobrir o composto, cerca de dois meses
atrás, em amostras extraídas de pacientes atingidos pelo surto. Das 595 amostras de produtos ligadas a pacientes que foram
analisados pela FDA, 70% continham THC. Metade dos produtos que continham THC também continha acetato de vitamina E,
com concentrações de até 88%.
Muitos dos produtos que continham THC foram obtidos no mercado ilícito, disseram as autoridades. O acetato de vitamina
E vinha sendo usado nos últimos meses como mistura ou aditivo, no mercado negro de maconha, a fim de aumentar a presença
de THC nos cartuchos de cigarros eletrônicos. O acetato de vitamina E é um aditivo popular porque é incolor e inodoro, tem
viscosidade semelhante à do óleo de THC, e é muito mais barato.
As descobertas são importantes porque pela primeira vez cientistas conseguiram conectar resultados de testes de produtos
a espécimes clínicos obtidos de pacientes, disse Schuchat. Os 29 pacientes vêm de 10 estados, e representam uma área
geográfica diversificada, o que torna as descobertas “muito mais robustas” do que se os pacientes estivessem concentrados
em um só local. A maior parte dos pacientes são homens, e sua idade média é de 23 anos. As descobertas “nos ajudam a
compreender melhor os potenciais compostos” que podem contribuir para lesões, segundo Schuchat. “Isso nos diz o que entrou
nos pulmões de alguns desses pacientes”.
O acetato de vitamina E está presente em muitos alimentos e cosméticos, especialmente produtos para a pele. Não está
associado a danos quando engolido ou aplicado na pele, disse Schuchat. Mas, quando é aquecido e inalado, pode interferir
com as funções pulmonares normais. Suas propriedades podem estar associadas ao tipo de sintoma respiratório que muitos
pacientes reportaram, como tosse, respiração curta e dores no peito.
A professora de química Michelle Francl descreveu o acetato de vitamina E como basicamente graxa. Sua estrutura
molecular significa que é preciso aquecê-lo muito para que se vaporize. O ponto de ebulição da substância é de 184 graus,
bem acima do ponto de ebulição de 100 graus da água. Assim que o óleo é aquecido a ponto de ser vaporizado, ele tem o
potencial de se decompor, e “nesse caso a pessoa estará respirando sabe-se lá o quê’, disse Francl.
No entanto, as autoridades ainda precisam testar a substância em outras pessoas que fumaram cigarros eletrônicos sem
passar por lesões parecidas e em uma gama mais ampla de amostras de fluidos pulmonares, de pacientes em diferentes locais.
Especialistas em saúde pública receberam a notícia positivamente, mas disseram que testes mais completos precisam ser
realizados. “Embora esse seja um grande passo para nos ajudar a compreender o que pode estar causando essas lesões, as
constatações não descartam o fato de que outros compostos ou ingredientes possam contribuir para o surto”, disse Scott
Becker, diretor executivo da Associação de Laboratórios de Saúde Pública dos Estados Unidos. “Pode haver mais de uma
causa para o surto”.
As descobertas, detalhadas em um relatório do CDC divulgado na sexta-feira, também reforçam os alertas oficiais de saúde
contra o uso de cigarros eletrônicos e produtos que contenham THC, especialmente os comprados nas ruas.
O CDC vai manter sua recomendação de que os consumidores deveriam tentar se abster completamente dos cigarros
eletrônicos, o que inclui aqueles que contêm nicotina.

Tradução de Paulo Migliacci

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CHINA TENTA MANIPULAR O CLIMA PARA TER CÉU AZUL EM FESTA NACIONAL

Partido comunista suspende atividades poluidoras às vésperas de aniversário da revolução comunista

Anna Fifield
29.set.2019

Há muitas coisas que o Partido Comunista Chinês pode controlar enquanto se prepara para comemorar o 70º aniversário
da República Popular na terça-feira (1º). Pode ditar o que as pessoas leem e dizem na internet. Pode dizer onde as pessoas
dormem, comem e bebem. Ele decide se elas empinam pipas ou cantam karaokê. Mas nem mesmo o Partido Comunista Chinês
pode controlar o clima —embora esteja tentando.
Nas semanas que antecedem os eventos do aniversário na terça-feira, as autoridades recorreram ao manual de instruções
habitual para garantir que o céu frequentemente enfumaçado da capital fique azul para o enorme desfile militar pela praça
Tiananmen, que incluirá jatos de combate soltando trilhas de fumaça multicoloridas.
Os caminhões foram proibidos de rodar em Pequim desde 20 de agosto, e todas as obras na região central foram obrigadas
a parar antes de 1º de setembro. As empresas industriais a até 480 km de Pequim foram solicitadas a "voluntariamente"
controlar as emissões ou interromper a produção. As atividades de mineração, especialmente perfuração e detonação, foram
suspensas até 7 de outubro, e ninguém em Pequim tem permissão para disparar fogos de artifício.
O vice-primeiro-ministro, Hu Chunhua, chegou a visitar a Administração Meteorológica da China e pediu "apoio
meteorológico para garantir o sucesso das atividades" ligadas ao aniversário. Os meteorologistas devem fornecer "serviços
direcionados" para as comemorações e ter "planos de resposta" para lidar com o clima adverso, disse Hu.
Mesmo com a rápida deterioração da qualidade do ar em Pequim nas últimas décadas, o partido tentou eliminar a poluição
antes dos grandes eventos e criar a aparência de ar puro, ordenando que as fábricas ao redor de Pequim parassem e caminhões
pesados deixassem de circular. A capacidade de limpar o céu a pedidos deu origem ao termo "azul Apec" para descrever um
dia particularmente brilhante.
É uma referência à reunião da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico que Pequim sediou em 2014, criando um céu azul para
o evento depois de meses de poluição pesada que frequentemente elevava os níveis do Índice de Qualidade do Ar.
Durante um fórum China-África no ano passado, alguns moradores de Pequim começaram a brincar dizendo que tinham
pago US$ 60 bilhões para desfrutar do céu azul. Foi o quanto a China prometeu em ajuda aos países africanos.
Uma frente de baixa pressão está empurrando as emissões industriais e de veículos das províncias vizinhas para a capital,
e a umidade lá a transforma em poluição moderada a grave. Como resultado, há previsão de forte poluição atmosférica na
próxima semana.
O governo local emitiu o primeiro alerta "laranja" do outono sobre forte poluição do ar, levando as escolas da capital a
cancelar atividades externas e manter as crianças dentro das salas na quinta-feira (26). Onze vias expressas em Pequim ou
nos arredores foram fechadas total ou parcialmente devido à baixa visibilidade na sexta, e muitos voos do aeroporto de Pequim
foram cancelados ou atrasados.
O Centro de Monitoramento de Proteção Ambiental da cidade previu na sexta que a qualidade do ar no centro da capital
estará em níveis "insalubres" —acima de 150 no Índice de Qualidade do Ar— na próxima semana, níveis frequentemente
associados a céus nublados.
Em 2015, a principal agência econômica da China anunciou um plano de construir vários laboratórios de modificação do
clima em Pequim. Até 2020, ela queria "sistemas sofisticados de modificação do clima, capazes de aumentar as chuvas
artificiais e a queda de neve" e dar mais controle sobre o meio ambiente. Ela não deu atualização sobre seu progresso.
Outras capitais propensas à poluição, como Bancoc e a capital da Malásia, Kuala Lumpur, também usam semeadura de
nuvens para tentar dispersar partículas perigosas, e áreas afetadas pela seca em países como Austrália e Estados Unidos às
vezes também tentam induzir a chuva dessa maneira.
Mas Pequim poderá ter de enfrentar um outro dilema. Talvez não haja nuvens suficientes para semear a chuva.
"O problema é que o outono em Pequim está bastante seco, e talvez não tenhamos nuvens suficientes para fazer chuva",
disse Huang Binxiang, pesquisador de poluição do ar da Universidade de Agricultura da China.
Isso significaria que os meteorologistas precisariam tentar imitar a chuva pulverizando água das aeronaves para tentar lavar
as pequenas partículas do ar.
"Também ouvi algumas propostas malucas de usar ventiladores gigantes para acabar com a poluição", disse Huang. "Eu
não diria que é impossível, mas até hoje não funcionou, que eu saiba."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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NO JAPÃO, MICROSOFT TESTA SEMANA DE TRABALHO DE QUATRO DIAS E PRODUTIVIDADE AUMENTA 40%

Número de páginas impressas caiu 59% e 94% dos funcionários ficaram satisfeitos

EDIÇÃO IMPRESSA
4.nov.2019

A Microsoft realizou uma experiência de semana de trabalho com apenas quatro dias no início deste ano em um dos lugares
mais improváveis: o Japão. Mas mesmo em um país conhecido pela cultura de muito trabalho a semana mais curta teve um
grande impulso na produtividade, afirmou a unidade de negócios da empresa em um post em seu site.
O teste, que ocorreu em agosto e deu aos funcionários folga em cinco sextas-feiras consecutivas, aumentou as vendas por
funcionário em 40% em comparação com o mesmo mês do ano anterior, segundo a postagem. O número de páginas impressas
no escritório caiu 59%, o consumo de eletricidade diminuiu 23% e 94% dos funcionários ficaram satisfeitos com o programa.
O teste de um mês foi anunciado como parte de uma estratégia de "opção de vida profissional", que visa ajudar os
funcionários a trabalhar com mais flexibilidade e ocorre em meio a reformas trabalhistas em todo o país. O primeiro-ministro
Shinzo Abe adotou limites para as horas extras e aumentou a renda dos trabalhadores temporários e de meio período como
parte de suas reformas trabalhistas, que às vezes causaram polêmica.
No entanto, é também o exemplo mais recente de um movimento global crescente para se experimentar o conceito de
semana de trabalho de quatro dias, à medida que as condições do mercado de trabalho continuam duras, a tecnologia oferece
maior flexibilidade e proliferam relatos de que alguns locais tiveram resultados benéficos ao se trabalhar quatro dias e depois
tirar três de descanso.
Nos Estados Unidos, a rede de hambúrgueres Shake Shack disse que está testando a ideia. No Reino Unido, a semana de
quatro dias foi apoiada por alguns dos maiores sindicatos da Irlanda e da Grã-Bretanha, e o Partido Trabalhista encomendou
um estudo sobre a ideia. (Ele concluiu que um limite para a duração da semana de trabalho seria irreal.)
Na Nova Zelândia, uma empresa de consultoria de investimentos e fundos chamada Perpetual Guardian iniciou um teste de
8 semanas em toda a empresa, em que os funcionários trabalhavam 30 horas por semana, mas eram pagos por 37,5 horas.
Desde então, ela disse que a mudança será permanente, em base opcional, depois de informar que o desempenho no trabalho
se manteve e os níveis de estresse e engajamento do pessoal melhoraram.
Algumas empresas menores que testaram a ideia aplaudem seus benefícios, de maior equilíbrio entre vida pessoal e
trabalho e maior produtividade dos funcionários. Mas elas também disseram que isso pode levar os trabalhadores a forçar os
limites na programação do fim de semana prolongado e resultar em dias de maior pressão quando as pessoas estão
trabalhando. Alguns observadores alertaram que o esforço pode reduzir os salários dos trabalhadores e prejudicar a
competitividade, e que é mais desejável um "esforço" para reduzir os horários, em vez de leis que definam limites.
Até agora, de acordo com uma reportagem em julho de The Washington Post, a ideia não recebeu muita força do movimento
trabalhista americano. Na época, o Post informou que nenhum dos candidatos a presidente democrata de 2020 adotou a
semana de trabalho de quatro dias, mesmo tendo apoiado outras ideias ambiciosas, como renda básica universal ou garantia
federal de emprego.
Na Microsoft Japão, o projeto "Work Life Choice Challenge 2019 Summer" [Concurso Opção da Vida Profissional verão
2019] concedeu aos funcionários férias especiais remuneradas, fechando os escritórios em todas as sextas-feiras de agosto.
A ideia era promover um trabalho mais eficiente em menos tempo, instando os funcionários a "trabalhar um tempo curto,
descansar e aprender bem" para melhorar a produtividade e a criatividade, de acordo com a versão traduzida de um post no
site da empresa.
O programa pediu aos funcionários que limitassem as reuniões a 30 minutos e "fizessem pleno uso da ferramenta de
colaboração Microsoft Teams", realizando mais bate-papos informais ou reuniões online, em vez de pessoalmente. Noventa e
quatro por cento dos funcionários disseram estar satisfeitos com o programa.
A postagem no site disse que haverá outro "Desafio de Opção da Vida Profissional" no inverno, mas não concederá licença
remunerada especial aos funcionários. (As perguntas feitas sobre os planos do programa a um porta-voz da Microsoft não
foram respondidas imediatamente.) Em vez disso, ele os incentivará a trabalhar de forma independente com mais flexibilidade
e a utilizar reuniões mais curtas e ferramentas de colaboração, além de usar suas férias pagas e feriados de fim de ano.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

44 EDITORIAIS
EDITORIAIS
MAIS DE 11 MIL CIENTISTAS DECRETAM 'EMERGÊNCIA CLIMÁTICA' EM NOVO RELATÓRIO

Estudo indica seis passos importantes que poderiam resolver a situação

Andrew Freedman
5.nov.2019

Um novo estudo realizado por 11.258 cientistas das mais variadas disciplinas, em 153 países, alerta que o planeta “enfrenta
uma emergência climática clara e inequívoca”, e delineia seis objetivos amplos de política pública que precisam ser atingidos
para enfrenta-la.
O relatório se afasta consideravelmente das avaliações científicas mais recentes sobre o aquecimento global, como a do
Painel Intergovernamental sobre a Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), por expressar suas conclusões como certezas
e por recomendar políticas.
O estudo "Alerta dos Cientistas Mundiais sobre a Emergência Climática” representa a primeira ocasião em que um grande
grupo de cientistas apoiou formalmente a classificação como “emergência” da mudança no clima, que o estudo aponta ser
causada por muitas tendências humanas que, somadas, elevam as emissões dos gases causadores do efeito estufa.
Publicado na terça-feira pela revista acadêmica Bioscience, o estudo foi liderado pelos ecologistas Bill Ripple e Christopher
Wolf, da Universidade Estadual do Oregon, e por William Moomaw, cientista do clima na Universidade Tufts, bem como por
pesquisadores da Austrália e África do Sul.
As conclusões são embasadas por um conjunto de indicadores fáceis de compreender que mostram a influência humana
sobre o clima, como 40 anos de dados sobre emissões de gases causadores do efeito estufa, estatísticas de crescimento
populacional. produção per capita de carne, perda mundial de cobertura por árvores, bem como as consequências disso tudo,
como as tendências mundiais de temperatura e o teor de calor no oceano.
Os resultados são gráficos que, ao menos comparados aos apresentados pelo IPCC, surpreendem pela simplicidade, e
ajudam a revelar a direção perturbadora em que o planeta está avançando.
O estudo também se afasta de outras avaliações importantes sobre o clima ao tratar diretamente do assunto do crescimento
populacional, que é politicamente controverso. O estudo aponta que o declínio nos índices de natalidade “se desacelerou
substancialmente” nos últimos 20 anos e pede por “mudanças ousadas e drásticas” nas políticas populacionais e de crescimento
econômico a fim de reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa. Essas medidas podem incluir políticas que
reforcem os direitos humanos, especialmente os das mulheres e meninas, e que tornem serviços de planejamento familiar
“disponíveis para todos”.
Quanto à energia, o estudo apela pela “implementação de um grande programas de eficiência energética e práticas de
conservação”, e pela eliminação do consumo de combustíveis fósseis em favor de fontes renováveis de energia, uma tendência
que segundo o relatório não está avançando tão rápido quanto deveria. Além disso, a pesquisa também pede que os recursos
restantes de combustível fóssil, como carvão e petróleo, não sejam extraídos ou queimados para gerar energia, o que
representa um dos objetivos essenciais de muitos ativistas do clima.
Outros itens na lista de prioridades políticas oferecida pelo estudo incluem um corte rápido nas emissões de poluentes de
baixa duração que afetam o clima, como fuligem e metano, o que pode desacelerar o aquecimento em curto prazo. O estudo
também sugere a mudança para uma dieta baseada principalmente em vegetais, e pela instituição de práticas agrícolas que
elevem a quantidade de carbono absorvido pelo solo.
Quanto à economia, segundo os autores, melhorar a sustentabilidade em longo prazo e reduzir a desigualdade deveriam
ser prioridades, em lugar da ampliação da riqueza, tal como medida pelo PIB (Produto Interno Bruto). Os autores também
advogam políticas que reduziriam a perda de biodiversidade e a destruição de florestas, e recomendam priorizar a preservação
das florestas intactas, que armazenam carbono, em companhia de outras terras capazes de absorvê-lo rapidamente, assim
reduzindo o aquecimento global.
Ripple, da Universidade Estadual do Oregon, tem experiência na organização de apelos científicos à ação, tendo fundado
a Aliança Mundial de Cientistas e organizado o “Alerta à Humanidade: Segunda Notificação”, divulgado pela organização em
2017 e também publicado pela Bioscience, que tinha por foco a necessidade urgente de resolver uma ampla gama de problemas
ambientais, entre os quais a mudança no clima e a perda de biodiversidade.
O termo “emergência climática” vem sendo defendido pelos ativistas do clima e pelos políticos que defendem ação quanto
à mudança climática como forma de acrescentar urgência à maneira pela qual respondemos a um problema de longo prazo. O
grupo ativista Climate Mobilization quer mobilizar governos nos Estados Unidos e em outros países e conseguir que declarem
uma emergência climática, decretando medidas de resposta comensuráveis com esse tipo de declaração.
Phil Duffy, pesquisador do clima e presidente do Woods Hole Research Center, que assinou o relatório na segunda-feira,
disse considerar o termo apropriado, considerada a escala do problema e a falta de ação até o momento.
“O termo ‘emergência climática’... devo dizer que o considero refrescante, na verdade, porque eu fico muito impaciente com
os cientistas que vivem vacilando e resmungando sobre incerteza, aquele papo furado, e essa nova postura com certeza é
muito mais ousada do que isso”, ele disse. “Creio que seja a coisa certa a se fazer”.

Tradução de Paulo Migliacci

EDITORIAIS 45

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