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1. Introdução
2. Os surdos e as tecnologias
Para que as dimensões dos processos de distribuição sejam identificadas, deve-se realizar
um estudo de campo etnográfico, que tem como objetivo captar o contexto de uso das tecnologias
ou explicar de outra forma como as pessoas utilizam elementos contextuais para realizar ações
inteligentes (ROGERS, 2004). A etnografia proporciona uma análise sensível do trabalho, em que
as configurações do ambiente, as atividades realizadas pelas pessoas, suas interações com os meios
materiais e outros artefatos cognitivos são observados (HUTCHINS, 1995).
A etnografia de sistemas cognitivos distribuídos, além de se interessar pelas
mentes individuais, olha para os meios materiais e sociais de construção de
ações e significados. Ela situa o significado em práticas sociais negociadas e
observa os significados dos silêncios ou da falta de ação no contexto assim
como de palavras e ações (HOLLAN; HUTCHINS; KIRSH, 2000, p. 179-180).
Somente as metodologias etnográficas baseadas em estudo de campo, tal como a etnografia
por observação participante são capazes de oferecer este tipo de compreensão no desenvolvimento
de sistemas colaborativos (BLOOMBERG; BURRELL, 2007), sendo esta metodologia a
selecionada pra o desenvolvimento do framework a ser apresentado na próxima seção.
4. Framework Términus
Esta seção tem como objetivo apresentar o framework Términus. O framework foi nomeado
com inspiração na etimologia da palavra Terminologia, que surgiu como um neologismo híbrido
composto pela palavra terminus, do latim, unida a logia, do grego. Términus, na linguística, tem o
sentido de palavra com um sentido bem definido no discurso, com suas fronteiras léxicas e
semânticas que fazem com que ela não seja confundida com outros conceitos. É exatamente o que
se busca ao estimular o desenvolvimento de neologismos terminológicos em comunidades digitais.
O framework Términus foi desenvolvido com base em um estudo etnográfico por meio de
observação participante realizado em uma comunidade de prática presencial. Os dados foram
coletados ao longo de um período de observação de seis (06) meses e foram analisados utilizando os
preceitos da TCD. O framework apresenta uma proposta em que as CoPV’s são o contexto de
desenvolvimento de atividades que visem a ampliação do repertório terminológico da Língua
Brasileira de Sinais.
Para tal, estabelece as relações entre os membros de uma CoPV, artefatos tecnológicos,
estados representacionais, e atividades envolvidas nos processos de desenvolvimento de
neologismos terminológicos. A inter-relação entre esses componentes é responsável por fomentar o
espaço de negociação entre os membros da comunidade, propiciando a construção de normas,
criação de significados e estabelecimento de outras convenções próprias da comunidade em relação
às práticas a serem desenvolvidas. A este processo de transformação de ideias em elementos
concretos dentro da comunidade se dá o nome de reificação (WENGER, 2000).
A reificação é a transformação de uma vivência prática em algo concreto, que não
necessariamente um objeto material, mas um resultado objetivo. Este resultado pode ser um artefato
intelectual, como uma norma, um método, um procedimento, um símbolo, um termo, ou tantos
outros elementos presentes no cotidiano que compõem o repertório de uma comunidade. Os
produtos da reificação refletem os significados produzidos e compartilhados naquele contexto.
A Figura 1 apresenta a visão geral do framework Términus, o qual, tem as CoPV’s como
contexto para o desenvolvimento de neologismos terminológicos de forma colaborativa. O
framework parte sempre de uma demanda de desenvolvimento de repertório, a qual pode ser
atendida por meio de iniciativas sistematizadas ou não sistematizadas. As iniciativas sistematizadas
são aquelas organizadas pela própria comunidade, em que se estabelece o escopo das práticas a
serem realizadas no domínio de conhecimento da comunidade. Por exemplo: desenvolvimento de
neologismos terminológicos para a área de Desenvolvimento Web em que conceitos relacionados à
web (como a arquitetura cliente-servidor) e linguagens de programação como HTML (HyperText
Markup Language), CSS (Cascading Style Sheets) e JavaScript são constantemente utilizados.
Já as iniciativas não sistematizadas são constituídas por aquelas ações isoladas, em que um
membro da comunidade traz uma proposta de neologismo (pronta) para avaliação pelos membros
da comunidade ou apresenta uma demanda específica de neologismo para um dado conceito, o qual
deverá ser discutido por todos os membros.
O desenvolvimento dos neologismos deve ser sustentado pelas dimensões da estrutura da
CoPV, as quais têm como objetivo suportar as comunidades e as práticas (atividades de
colaboração) em seu espaço de participação. No espaço de participação, as relações de participação
se constroem por meio do diálogo entre as dimensões de Produção Terminológica e da Comunidade
de Prática Virtual. Neles, os membros das comunidades com seus diferentes perfis de conhecimento
podem se engajar à comunidade, assumindo variados níveis de atuação, de papeis mais centrais e
atuantes a atuações mais periféricas e distantes ao longo das práticas.
4.1 Desenvolvimento de neologismos terminológicos
Como dito anteriormente, a Comunidade de Prática Virtual deverá ser capaz de sustentar as
etapas identificadas no processo de desenvolvimento de neologismos terminológicos, sendo o
desenvolvimento distribuído entre as pessoas (e suas representações internas), e a estrutura de
suporte da CoPV (artefatos tecnológicos e mídias representacionais) ao longo do tempo
(distribuição temporal). Nesse sentido, o estudo de observação pelas lentes da Teoria da Cognição
Distribuída possibilitou identificar as formas de externalização de conhecimento que poderiam ser
utilizadas, sua relação com os artefatos tecnológicos, bem como as mídias representacionais
necessárias para a manutenção das comunidades e das práticas compartilhadas.
O resultado deste estudo foi representado em termos de dimensões (tecnológicas) que devem
ser suportadas pela CoPV e os perfis típicos dos participantes das CoPV’s e estão representados na
Fig. 3. Entre os usuários típicos destes ambientes estão surdos, ouvintes com interesse na área,
especialistas no domínio de conhecimento da CoPV, linguistas, Tradutores e Intérpretes da Língua
Brasileira de Sinais (TILS), ouvintes que tenham interesse no desenvolvimento da Libras e outros
stakeholders (que podem ter uma participação temporária na comunidade). Estes são os perfis que
assumirão diferentes papeis e responsabilidades nas comunidades e farão uso das dimensões
descritas a seguir:
• Gerenciamento – proporciona o gerenciamento na plataforma em três níveis:
◦ Individual – gerenciamento das informações de perfil individual, apresentando dados de
contato, perfil linguístico, perfil de conhecimento, entre outras informações que possam
ser cadastradas.
◦ Comunidades – gerenciamento da plataforma no nível de gerenciamento das
comunidades. Possibilita a criação de novas comunidades de prática ou a exclusão de
outras comunidades em que o usuário tenha o poder de exclusão;
◦ Atividades – gerenciamento das atividades desenvolvidas dentro das comunidades que o
usuário participa. Inclui a postagem de conteúdos, bem como a edição e exclusão dessas
postagens.
• Negociação de significados – tanto a plataforma para comunidades quanto as CoPV’s devem
disponibilizar artefatos tecnológicos que deem suporte à negociação de significados tais
como ferramentas de comunicação (síncronas e assíncronas) e ferramentas para o
desenvolvimento de práticas colaborativas.
• Registro – esta dimensão deve prover meios de registro dos conhecimentos gerados e
compartilhados entre os membros. Neste contexto estão inclusos os meios de registro da
Língua de Sinais por meio do ambiente virtual.
• Compartilhamento – esta dimensão diz respeito ao uso de mídias representacionais e
artefatos computacionais que possibilitem o compartilhamento de conhecimentos entre os
membros da comunidade.
• Apoio à decisão – fornecimento de artefatos tecnológicos que auxiliem atividades de tomada
de decisão.
Os módulos apresentados deverão ser utilizados pelos perfis de usuários mapeados pelo
framework Términus, sendo este grupo constituído por pessoas que tenham algum interesse ou
relação com o domínio de conhecimento da comunidade. Por exemplo, podem existir comunidades
da área de Computação, Biologia, Geografia, etc., bem como comunidades relacionadas a sub-
domínios destes domínios de conhecimento.
Para fins de validação do modelo proposto, um protótipo funcional chamado MooBi foi
implementado e está disponível no endereço http://webgd.egc.ufsc.br. O ambiente foi implementado
com base na plataforma Moodle e é de uso gratuito. Em complemento, no intuito de disseminar as
tecnologias desenvolvidas, os módulos desenvolvidos para o ambiente de comunidades de prática
estão disponíveis na plataforma GitHub4 e podem ser localizados para download pelo endereço
https://github.com/MoobiEgc.
Estes módulos podem ser aprimorados pela comunidade de usuários, sendo que as sugestões
de aprimoramento podem ser encaminhadas para este endereço. Desta forma, é possível
acompanhar a evolução das propostas pelo repositório, que disponibiliza funcionalidades para
acompanhamento das alterações realizadas no código, além de ferramentas de revisão e discussão
para aprimorar a comunicação entre os colaboradores dos projetos.
5. Discussão
4 O GitHub é um repositório que compartilha projetos de código-aberto que utilizam o sistema controle de
versionamento de código-fonte Git, sendo o Git também um software livre.
O framework propõe que as Comunidades de Prática Virtuais sejam o contexto para a
realização de práticas colaborativas para o desenvolvimento de neologismos terminológicos em LS.
Para tanto, se alicerça na Teoria da Cognição Distribuída para a sua estruturação. A TCD foi
fundamental para a construção do framework, visto que, por meio dela, foi possível realizar o
mapeamento das práticas envolvidas no desenvolvimento de neologismos terminológicos,
identificar os fluxos das atividades, mapear os tipos de representações externas utilizadas, bem
como a forma de distribuição dos processos cognitivos na realização das tarefas de uma
comunidade.
Esta compreensão sobre as práticas destacou a importância da sintonia entre os artefatos
tecnológicos e representações externas com os objetivos das comunidades de prática virtuais, que
no caso do Framework Términus, estão relacionados ao ciclo de produção de neologismos
terminológicos. A análise pelas lentes da TCD também evidenciou a importância das diversas
categorias de affordances no projeto de um sistema tendo em vista proporcionar uma rápida
apropriação das tecnologias por parte dos membros da CoPV. Uma vez que os surdos constituem o
público principal destas plataformas, para que eles efetivamente se apropriem dos artefatos
selecionados, é necessário que as ferramentas tecnológicas considerem a visualidade do sujeito
surdo, assim como assumam a importância da comunicação em Libras.
No que respeita ao conjunto de dimensões mapeadas para uma CoPV, verifica-se que o
aspecto da discussão, negociação de significados como ponto crucial para a construção e evolução
da língua. Seja na ocorrência de iniciativas assistemáticas ou iniciativas sistematizadas, a
negociação se faz presente e fundamental. Isso porque sem meios de discussão não há compreensão,
internalização de conhecimentos e significados partilhados, ou meios de aprimoramento de
propostas já realizadas aos membros da comunidade, pois qualquer aperfeiçoamento envolve
negociação.
Em relação às plataformas para as CoPV’s, é importante enfatizar a necessidade de
implementar e divulgar amplamente na comunidade surda ambientes que possuam as características
indicadas pelo framework. A construção de plataformas com essas características é um trabalho de
caráter interdisciplinar, e envolve o exercício constante de diálogo e colaboração entre os diversos
envolvidos no processo (entre colaboradores diretos e indiretos). Além disso, é importante que os
membros da comunidade surda se apropriem de tais plataformas para efetivação e aceleração de
iniciativas neste campo no âmbito nacional. Nas palavras de Faria do Nascimento (2009, p. 55):
Conscientizar estudantes surdos, de cursos de graduação, a respeito dos processos
de construção terminológica permitirá o enriquecimento ainda mais acelerado da
LSB (Língua de Sinais Brasileira), e a rápida sistematização e divulgação dos
neologismos terminológicos acarretará o acesso e o domínio mais rápido, também
dos intérpretes para adequarem sua tradução ao contexto emergente.
Assim, da mesma forma que é necessário o estímulo à participação dos estudantes surdos
para acelerar a sistematização dos neologismos, estes, necessitam ser amplamente divulgados para
atingir a comunidade surda e viabilizar a consolidação do repertório. Nesse sentido, é importante
que sejam realizadas pesquisas sobre estratégias que possam ser utilizadas para a validação dos
neologismos por meio de plataformas digitais.
Os recursos de validação devem operar de forma que os pareceres dos membros da
comunidade surda acerca das propostas de neologismos possam retroalimentar as comunidades de
prática virtuais e propiciar o aprimoramento destas. Porém, é importante ter em mente que aspectos
culturais de cada região podem exercer influência sobre o processo e podem tornar a validação ou o
aprimoramento de propostas mais complexos. Como resultado, pode ocorrer a adoção de
concepções diferentes das estabelecidas e difundidas nos artefatos de referência, que são as
variantes linguísticas. Esta hipótese poderá ser comprovada ou refutada a longo prazo.
No que respeita a divulgação do repertório da língua em artefatos de referência, o Relatório
sobre Política Linguística para a Educação Bilíngue - Língua de Sinais e Língua portuguesa (MEC,
2014) recomenda a criação de uma base de dados lexical terminológica nacional no formato
eletrônico. Como tal base ainda não existe, as pesquisadoras também apontam que o ideal é que
sejam desenvolvidas iniciativas de pesquisa para este fim. Considerando a existência de um
conjunto de artefatos já difundidos na web, sugere-se que a plataforma nacional seja capaz de
indexar e apresentar os conteúdos dos artefatos já disponíveis na web assim como outros artefatos
que futuramente sejam desenvolvidos. Assim, além de possibilitar a alimentação da base nacional, a
estratégia possibilitaria identificar as variantes linguísticas (regionalismos) e outros neologismos
emergentes.
Na impossibilidade de criação de uma base unificada, sugere-se que os artefatos de
referência da língua, tais como os dicionários e glossários online, sejam extensamente difundidos
com o objetivo de incentivar a apropriação e popularização desse tipo de plataforma pelos membros
da comunidade surda. É importante que os artefatos tecnológicos utilizados para a disseminação do
repertório da língua assumam um caráter dinâmico, mantendo-se atualizados em relação ao que se
discute em cada domínio de conhecimento. Esse caráter dinâmico é primordial para que a
comunidade surda se sinta motivada a utilizá-los como instrumento de consulta e pesquisa.
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