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http://dx.doi.org/10.15601/2237-955X/dih.v14n14p22-33
I n t r od uç ã o
Em certas circunstâncias, a pessoa vai precisar defender-se ou a outros, incidindo em
condutas tipificadas pelo Código Penal como sendo crimes, ou que, em algumas
oportunidades, no cumprimento de normas legais expressas, certos agentes públicos
ou particulares imbuídos de algum múnus público também se vejam obrigados a
praticar condutas que correspondam à fatos típicos, o legislador previu, de antemão,
certas circunstâncias – objetivas e subjetivas – que terão o condão de afastar a
ilicitude (ou antijuridicidade) do ato. Ocorre que, para alguns autores determinadas
condutas tidas como crimes, nem chegariam a ser típicas (tipicidade conglobante).
Diante dessa discussão jurídica, pretende-se com a presente pesquisa estudar o
assunto, para compreender o significado de uma das tradicionais causas de
justificação: o estrito cumprimento do dever legal.
Sem a menor pretensão de esgotar o tema, mas apenas de estimular a discussão
acadêmica sobre o assunto, apresenta-se um estudo apoiado na pesquisa teórico-
descritiva, com base em pesquisa bibliográfica e de caráter dedutivo acerca do
instituto do estrito cumprimento do dever legal em sua configuração tradicional e sob
o ponto de vista da tipicidade conglobante. Para tanto, foram utilizados livros de
doutrina, periódicos e artigos científicos diversos.
Discente do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. bernardes.pcmg@gmail.com
Docente do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. guilherme.vasconcelos@izabelahendrix.edu.br
Direito Izabela Hendrix – vol. 14 nº 14, maio de 2015 22
Do Crime
O ser humano age e interage o tempo todo. Algumas ações são gerais e corriqueiras,
outras condutas poderão ser condenadas pelo organismo social. Matar ou ferir
alguém, poluir um rio, são apenas alguns exemplos de ações que conturbam a
harmonia social e, por isso mesmo, não são toleradas, merecendo uma resposta
punitiva adequada.
Contudo, dependendo da sociedade e do tempo, condutas que antes eram
desaprovadas, passam a ser aceitas apenas como desvios morais, enquanto outras
são mais firmemente combatidas. O senso comum chamará a todos esses tipos de
ações intoleráveis de crime. Contudo, para o Direito, a expressão “crime” precisa ser
entendida de forma técnica e precisa, pois a sanção normalmente aplicada para tais
condutas vai afetar direitos e garantias individuais que representam conquistas
históricas para o ser humano, como a liberdade e, em alguns países, até mesmo a
vida. Por isso, a importância de se definir o que é crime torna-se essencial para a
presente pesquisa.
Os doutrinadores concordam com o fato de que a lei não oferece um conceito de
crime, cabendo à doutrina esse papel. Assim, segundo Mirabete e Fabbrini (2009), o
crime não possui um significado único e para conceituá-lo, faz-se necessário dividir
sua definição pelos vários prismas pelo qual pode ser encarado.
Dessa forma, o crime vai possuir um conceito formal, um conceito material e um
conceito analítico. Para Bitencourt (2015, p. 273) o conceito formal de crime é “toda
ação ou omissão proibida por lei, sob a ameaça de pena”; o conceito material de
crime é “ação ou omissão que contraria os valores ou interesses do corpo social,
exigindo sua proibição com a ameaça da pena”; e o conceito analítico de crime é
“ação típica, antijurídica e culpável” (BITENCOURT, 2015, p. 278).
É sobre o conceito analítico de crime que repousam as maiores concordâncias e
divergências entre os autores, pois alguns discordam dessa teoria tripartida, preferindo
a teoria bipartida, na qual o crime (ou delito) seria apenas a ação ou omissão típica
e antijurídica (ou ilícita).
Ainda há um terceiro grupo de doutrinadores que preferem uma teoria quadripartida,
na qual, além de definirem crime como ação/omissão típica, antijurídica e culpável,
ainda acrescentam o elemento punível. Dentre esses, destacam-se – segundo relação
de Nucci (2014, p. 266) – os juristas, Basileu Garcia, Muñoz Conde, Hassemer,
Battaglini, Giorgio Marinucci e Emilio Dolcini. No Brasil, o conceito analítico tripartido
de crime, que é dividido em conduta (ação/omissão) típica, antijurídica e culpável, é o
que será adotado neste trabalho.
O primeiro elemento do conceito tripartite de crime é a ação/omissão, que, para
Capez (2012), podem ser sintetizados no conceito de conduta. Assim, conduta pode
ser definida como “a ação ou omissão humana, consciente e voluntária, dirigida a
uma finalidade” (CAPEZ, 2012, p. 127). Contudo, essa definição não é unânime. Rogério
Greco (2014), por exemplo, defende explicitamente que ação é sinônimo de conduta,
já Bitencourt (2015), parece alinhado à ideia de Capez, uma vez que tratará em sua
obra, dentro do capítulo dedicado a análise da conduta punível, a teoria da ação e
da omissão.
A partir dos conceitos apresentados, entende-se que a expressão conduta deve
representar tanto a ação como a omissão humana, que, em Direito Penal, será uma
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ação/omissão que corresponderão ou não a uma descrição abstrata, em uma norma
jurídica, de certo comportamento indesejado pela sociedade, que é o tipo penal.
Assim, a conduta (ação/omissão) típica representa uma conduta que corresponde a
um determinado tipo penal, descrito em lei. Bitencourt (2015, p. 344) define tipo penal
como “um modelo abstrato que descreve um comportamento proibido”; já Greco
(2014, p. 163) defende que o tipo penal “é o modelo, o padrão de conduta que o
Estado, por meio de seu único instrumento – a lei – visa impedir que seja praticada,
ou determina que seja levada a efeito por todos nós”. Em Mirabete e Fabbrini (2009,
p. 86) encontra-se a etimologia da expressão com os elementos para formulação de
um conceito para tipo. Esclarecem os autores que a origem da palavra vem do
alemão Tatbestand, o qual “exprime a ideia de ‘modelo’, ‘esquema’ e é uma figura
puramente conceitual”.
Desse modo, a conduta típica pode ser entendida com aquela ação/omissão que
corresponda a certa descrição punível na lei penal. Subdivide-se em fato: típico formal
e típico material. O fato típico formal configura-se ao enquadramento do fato ao tipo
penal, ou seja, a ação ou omissão descrita em lei (Ex. matar alguém, art.121 CP -
ação encontra-se tipificada no normativo jurídico).
Não basta, porém, observar tão somente a tipicidade formal, a conduta tem que
ofender bem jurídico alheio, sendo esta a tipicidade material. Em não havendo tal
ofensa, o fato será considerado atípico, assim sendo, não se configura em crime. Os
requisitos da tipicidade material são: mínima ofensividade jurídica; nenhuma
periculosidade; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; inexpressividade
da lesão jurídica.
Desta maneira, exemplifica-se o Princípio da Insignificância, ou Crime de Bagatela . Tal
fato é tutelado através da doutrina e jurisprudência, assim como a análise do bem
jurídico para a vítima, conforme os tribunais estaduais e federais e os princípios acima
elencados.
O segundo elemento do crime é a antijuridicidade da ação típica, que “é a
contradição entre uma conduta e o ordenamento jurídico” (MIRABETE e FABBRINI,
2009, p. 159). Para Bitencourt (2015, p. 388), “o operador jurídico realiza um juízo de
valor para determinar se o indício de antijuridicidade se confirma, ante a ausência de
causas de justificação, ou se pode ser desconstituído, pela presença de uma dessas
causas”.
Percebe-se, assim, que se trata de mais um elemento objetivo do tipo penal, pois
representa, na prática, que a ação do agente, apesar de se conformar ao tipo penal
descrito pela lei (ou seja, típica), não será antijurídica, pois há outra norma que o
autoriza a agir daquela forma tipificada.
Exemplo clássico de ação típica que não será antijurídica – e portanto não se
constituirá em crime – é aquela que foi realizada pelo agente em “estado de
necessidade” (art. 23, I, CP), em “legítima defesa” (art. 23, II, CP), ou no “estrito
cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito” (art. 23, III, CP), que é o
objeto de analise desse trabalho. Concretiza-se o tipo, mas não a antijuridicidade do
Segundo o Glossário Jurídico do STF, o crime de bagatela seria: “o princípio da insignificância tem o
sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como
um crime, por isso, sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição e substituição
da pena ou não sua não aplicação.
Tipicidade Conglobante
Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2015, p. 413), “a tipicidade conglobante é um corretivo
da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que
apenas aparentemente estão proibidas [...]”.
Para Capez (2009) o fato típico tem como pressuposto a proibição da conduta pelo
ordenamento jurídico como um todo. Assim, quando algum ramo do direito, seja o
civil, o trabalhista, o administrativo, o processual ou qualquer outro, permitir o
comportamento, o fato será considerado atípico.
Nesse sentido, o exemplo clássico dado para aclarar o instituto seria a ordem dada a
Oficial de Justiça para sequestrar um quadro de valor penhorado de certo devedor
em processo de execução civil. Olhada isoladamente, a conduta do Oficial de Justiça
corresponderia ao fato típico previsto no art. 155, caput, do CP: “Subtrair, para si ou
para outrem, coisa alheia móvel” (BRASIL, 1940), uma vez que, na prática, é isso o
que ele faz. Contudo, por representar uma ordem judicial, com base em lei (ordem
normativa), não ocorrerá o fato típico.
Por esse entendimento, a tipicidade conglobante se refere a um tipo penal cuja
conduta típica não seja proibida pela norma penal, mas autorizada por norma de
outra esfera (civil, constitucional, etc.). A tipicidade conglobante, portanto, não se
confunde com as causas de justificação, ou excludentes de ilicitude, apesar de
também servirem a propósito similar.
D a s E xc l ud e n te s d e Il i c i t ud e
Prioritariamente, deve-se deixar claro que a expressão excludente de ilicitude é tratada
como sinônimo de exclusão de antijuridicidade, conforme posicionamento de Mirabete
e Fabbrini (2009, p. 161):
Bitencourt (2015) também vai tratar o assunto sob o título de causas de justificação.
Crê-se que tamanho leque terminológico não seja recomendável, de forma alguma.
Conforme o próprio Bitencourt (2015), esse problema conceitual deriva do fato de o
CP, em sua redação original, referir-se à antijuridicidade, enquanto a reforma penal,
levada a efeito em 1984, ter preferido a expressão ilicitude. Percebe-se que, a partir
daí, os juristas se dividiram entre aqueles para quem não há diferença substancial
Estado de necessidade
De acordo com a teoria acima aludida, o fato típico pressupõe que a conduta esteja
proibida pelo ordenamento jurídico como um todo, globalmente considerado. Além da
previsão geral, o CP, no art. 24, define o que se deve entender por “Estado de
Necessidade”. Bitencourt (2012, p. 349) afirma que: “O estado de necessidade
caracteriza-se pela colisão de interesses juridicamente protegidos, devendo um deles
ser sacrificado em prol do interesse social”.
Mirabete e Fabbrini (2009, p. 163), por sua vez, listam os que eles consideram ser os
requisitos para a configuração do estado de necessidade, perante a lei brasileira: a
ameaça a direito próprio ou alheio; a existência de um perigo atual e inevitável; a
inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado; uma situação não provocada
voluntariamente pelo agente; a inexistência de dever legal de enfrentar o perigo; e o
conhecimento da situação de fato justificante.
De qualquer forma, na ocorrência do estado de necessidade o agente irá pesar dois
bens jurídicos, optando por um: matar o cachorro bravo do vizinho que ameaçava
atacar uma criança; invadir a propriedade de alguém para salvar um animal de
estimação preso; furtar um carro ou dirigir desabilitado para salvar alguém que estava
passando mal, etc.
O e st r it o c u mp ri me n to d o d ev e r le g al e a ti pi c id ad e c o ngl o b an t e
Conforme demonstrado acima, a tipicidade conglobante, para alguns autores, como
Rogério Greco (2014), tem o poder de esvaziar esta causa de justificação. Como se
viu, para que se tenha uma tipicidade penal, necessário que haja a soma da tipicidade
formal com a tipicidade conglobante. Desse modo, se a norma civil determina que o
Oficial de Justiça sequestre o bem de um devedor, adentrando a residência do
mesmo, não há tipicidade no fato do pernas legis ter “entrado e permanecido contra
a vontade expressa do morador/devedor na casa do mesmo” (art. 150, CP) ou de lhe
ter “subtraído coisa alheia móvel” (art. 155, CP).
Para que ocorra a tipicidade, necessário se faz que a tipicidade formal dos artigos do
CP acima citados estejam de acordo com todo o universo de normas do ordenamento
jurídico. Greco (2014, p. 372) apresenta explicação que consegue sintetizar de forma
bastante abrangente a controversa tese da tipicidade conglobante de Zaffaroni e
Pierangeli, pela qual, o estrito cumprimento do dever legal, deixa de integrar o rol das
causas de justificação, por lhe faltar, a priori, a própria tipicidade penal. Desse modo,
não sendo típico, não há porque de se questionar a ilicitude do ato e uma possível
excludente.
Conclusão
Para o presente estudo, foi necessário realizar a pesquisa pelo conceito de crime,
uma vez que o delito se configura pela ação típica, antijurídica e culpável, sendo que
o estrito cumprimento do dever legal se enquadra, na maioria da doutrina, como
causa excludente de antijuricidade (ou ilicitude, ou causa de justificação).
Destacou-se do levantamento bibliográfico a tese da tipicidade conglobante, cuja ideia
principal se concentra na impossibilidade de uma norma, dentro de um vasto
ordenamento jurídico, mandar fazer alguma coisa, enquanto outra proíbe aquela
mesma conduta.
Para os autores e defensores dessa tese, a tipicidade penal só é caracterizada após a
verificação da tipicidade formal (subsunção entre fato concreto e norma penal em
abstrato) e a confirmação de seu comando (ou de uma não proibição de sua
execução) dentro do restante do ordenamento jurídico (tipicidade normativa).
Desse modo, o estrito cumprimento do dever legal representaria exemplo típico de
caso em que a tipicidade conglobante se aplicaria, desviando o foco da antijuricidade
– que nesse caso nem seria apreciada – para a própria tipicidade, isto é, os casos
que se enquadram no estrito cumprimento do dever legal não seriam típicos.
Conclui-se, porém, que a tipicidade conglobante, ainda que bem fundamentada em
suas premissas e bem desenvolvida por seus criadores e defensores, ainda precisa de
maior sistematização para ser bem compreendida e praticada com sucesso pelos
operadores do Direito.
Observou-se ainda que a falta de definição formal quanto ao instituto do Estrito
Cumprimento do Dever Legal, aponta para a linha tênue existente entre o referido
R ef e rê nc i as
BITENCOURT, Cézar Roberto. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo: Saraiva,
2014.
_________. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.