Você está na página 1de 5

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

ALEXANDRE BERÇOTT DA COSTA SODRÉ

ANÁLISE DO PLANO: PROFISSÃO REPÓRTER

NITERÓI/RJ
2023
DO PLANO
O filme Profissão Repórter (Michelangelo Antonioni, 1975) apresenta o plano que é
objeto de análise do presente trabalho. Esse plano, um plano sequência ousado, sobretudo para
a época, termina por revelar a morte do protagonista, após a câmera ultrapassar as grades de
uma janela, girar em 180 graus e mostrar o quarto, agora de fora, mas ainda “presa” pelas
grades. Os recursos usados pelo diretor trazem um mistério para a cena: não sabemos o que
acontece no quarto enquanto a câmera, em zoom-in, sai dele, “atravessa” as grades e, após o
movimento já apontado, se volta para o mesmo quarto, enquadrando a mulher e dois policiais
diante do corpo do homem — que agora é só um corpo.

DA ANÁLISE
Nesta análise, concentrarei o olhar apenas para o plano em si e não para o filme, seu
contexto, etc. Desse modo, tratar-se-á apenas de uma investigação restrita do plano como “obra
isolada”, objetivando expor elementos de acordo com o requerido pelo professor — em ordem
não necessariamente cronológica. É importante pontuar, também, que considerarei as
diferenças temporais e a disponibilidades dos recursos cinematográficos em cada uma das
épocas, fazendo um contraponto entre a contemporaneidade e o período em que a obra foi
realizada (1975). Além disso, ressalto que prosseguirei a análise sobretudo a partir do que
desenvolve Alain Bergala em A Hipótese-Cinema (Alain Bergala, 2008) quanto à análise que
não privilegia significações, mas sim a própria criação.

DA REALIZAÇÃO DO PLANO
Não é preciso uma longa pesquisa — ou mesmo uma atenção máxima ao plano — para
perceber que é um plano-sequência que, embora hoje seja mais possível e simples, fora bastante
ousado para a época e fruto de uma técnica e estudos apurados por parte de toda a equipe.
Assim, discorrerei sobre alguns aspectos de sua realização.
Há algumas “teorias” acerca desse plano, que acabam por caminhar, inclusive, por um
cenário pop de conspiração: há quem diga que, com base no livro de um dos atores do filme, o
diretor Michelangelo Antonioni (1912-2007) havia construído todo o hotel pensando nessa
sequência. No entanto, acredita-se que seja uma informação falsa, sobretudo quando se leva em
conta registros da filmagem.
Outro ponto a se considerar — e agora mais quanto à técnica em si — em relação à
realização do plano é o seguinte: sobre o atravessamento da câmera pela grade. Hoje, quase
certamente, seria considerada a utilização de um drone ou algo equivalente. Entretanto, o que
ocorreu foi o afastamento das barras com o auxílio de dobradiças, dando espaço para a câmera
que seria captada por um gancho. O que, em um ambiente mais contemporâneo e, sobretudo,
independente e brasileiro, chamar-se-ia de gambiarra.
Ressalta-se, também, a direção de toda a equipe durante a gravação. Alfred Hitchcock
(1889-1980) chegou a dizer que poderia dirigir seus filmes por telefone e que o roteiro continha
tudo o que era necessário para sua realização. Nesta afirmação, entra, obviamente, o fato do
diretor, segundo muitas fontes, não gostar muito de sets de gravação e atores, mas levo essa
fala em consideração para expor a forma como Antonioni dirigiu a sequência: afastado, numa
van, assistindo tudo por monitores e coordenando a equipe técnica e os atores por microfones.
Hoje, poderia facilmente dirigir por uma videoconferência à distância, como ocorreu em alguns
projetos durante a pandemia de COVID-19, mas, para a época, também era um fator não muito
presente e até mesmo de causar uma certa surpresa.
Para tratar do último aspecto acerca da gravação que me interessa neste trabalho, trago
o conceito de “acidente controlado”, desenvolvido por Maya Deren (1917-1961). Deren trata
desse conceito a partir da fotografia, mas ele também se aplica ao cinema, uma vez que seria,
em resumo, criar na realidade e, portanto, sujeitando-se à sua imprevisibilidade. É o que ocorre
no caso das filmagens do referido plano. A sequência deveria ser filmada entre 17h e 19h30,
para que não sofresse muita diferença entre a iluminação natural exterior e interior do quarto.
Além disso, houve um esforço em manter a estabilidade da câmera, presa a uma estrutura, uma
vez que a ventania local era um fator estressor. Ou seja: criava-se dentro da realidade e
precisava-se manter, portanto, o controle do acidente que é a própria realidade.

DA ANÁLISE EM SI
O plano-sequência que é nosso objeto se inicia com o quadro fixo que situa o espectador
dentro do quarto do protagonista, que é visto apenas do pescoço para baixo, deitado na cama.
Já nesse enquadramento inicial, vemos uma espécie de “segundo enquadramento”, que é o
quadro obtido a partir do recorte da janela. Nele, vemos a vista do quarto e, logo à frente, parte
da estrutura que seria uma arena de touradas “desativada” — um dos motivos pelo qual o diretor
escolhera a locação —, sua porta vermelha, um homem ao fundo e um cachorro, além de um
pequeno pedaço de céu no canto superior direito do quadro. É interessante perceber, também,
como, conforme a câmera se move, o céu passa a aparecer de forma mais imponente, trazendo
maior espaço e talvez até mesmo liberdade ao quadro. Após alguns segundos, a câmera inicia
um zoom-in extremamente lento, que tira o protagonista inteiro de quadro e se aproxima, cada
vez mais, do que ocorre fora, ainda mantendo o “segundo quadro” com a existência da janela.
Até que a câmera se aproxima de tal modo que temos o quadro todo “preso” pelas grades da
janela. Sob o recorte desse período, aponto dois pontos que me chamam a atenção: um que é
interno à obra e outro, externo. O que é interno à obra é a movimentação que acontece na área
exterior do quarto. A mise-en-scène: a entrada e saída de objetos do quadro são primordialmente
definidas pela ‘borda” da janela e, com o zoom-in lento, ganha um aspecto que pode ser
percebido até como contemplativo. O homem continua ali; outro homem aparece, saído daquela
porta; um carro, inicialmente introduzido por seu som, entra em quadro em um movimento
levemente diagonal, de trás para a frente, e sai pela esquerda; a mulher entra, vira-se para o
quarto, e segue, também em um movimento diagonal, mas da frente para trás do quadro, e
também saindo pela esquerda; com a entrada da mulher, também a entrada de uma música
tradicional, que remete ao épico e a touradas, que segue até sua saída do quadro; a criança —
de vermelho, assim como a porta — passa e brinca, como se destoasse do entorno. Toda essa
mise-en-scène ganha quase um tom de desfecho, uma calmaria após o desastre — este que não
vemos. A sequência segue, outro carro entra em quadro, dois homens saem, olham o quarto.
Um deles fica e o outro vai embora, tirando o carro completamente de quadro. Enquanto isso,
uma mulher de vermelho corre, de uma ponta a outra do quadro, em uma pequena diagonal e
parece chamar a atenção do homem que fica. Ele também sai de quadro e o vemos, de novo,
quase vazio: apenas o homem e o cachorro continuam. A mulher entra em cena novamente, a
partir do mesmo lugar pelo qual saiu. Entra, também, outro homem, que, após olhar o quarto,
vai até ela e eles seguem, até que ele sai de quadro e ela continua, indo mais para o centro, ao
fundo. Nesse momento, a câmera faz o que poderia se chamar de uma pequena panorâmica,
“tirando” um dos lados da janela, até enquadrar, depois apenas a grade sem a moldura. O ponto
externo que gostaria de tratar é, na verdade, uma relação que faço do uso de grades desse plano
com o uso de grades no filme Domésticas (Fernando Meirelles, 2001), que as utiliza em cena
para provocar a sensação de aprisionamento. No entanto, esse uso em Domésticas é óbvio e
acentuado, o que ocorre de modo diferente nessa sequência. Aqui, há uma abertura maior de
interpretação — e agora apontando um pouco para a significação. O que mais parece é que o
uso da grade separa os dois espaços e cria uma linha física para as relações do próprio filme.
Após finalmente todo o quadro “enjaulado pelas grades”, acontece o que se torna, talvez,
mais emblemático nesse plano. A câmera passa pelas grades e vai, então, para o ambiente
exterior. A forma como fora gravada é o fator de maior interesse nesse recorte, sobretudo por
se tratar de uma época onde não havia os recursos de drones, etc., como mencionado
anteriormente, mas também por não ser um “falso corte” no plano-sequência. A seguir, a
câmera continua seu movimento lento e há a volta da música — que retorna, na verdade, um
pouco antes. Assim, o céu passa a ser enquadrado e vemos, a partir de uma panorâmica — que
acompanha o movimento dos objetos em foco — a chegada da polícia, juntamente com a
aglomeração de pessoas curiosas, que são logo afastadas pelos policiais. Exceto a mulher. A
câmera começa a se movimentar em um giro de 180 graus, acompanhando a mulher. Nesse
período, ainda vemos a chegada de outro carro de polícia e a entrada da mulher, acompanhada
dos policiais, no local. A câmera segue em uma panorâmica pelo lado de fora do quadro e agora
vemos o ambiente interno por fora, pelo ambiente externo. Voltado a estar “enjaulado” pelas
grades, o quadro mostra, no momento final, o protagonista morto na cama, em foco pela câmera
que se afasta, em zoom-out, quando, em seguida, a mulher e policiais entram no quarto e a
vemos “contemplação” do que agora é só o corpo.
Dessa forma, a escolha do plano-sequência é fundamental para a existência da narrativa
como um tal: ela permite o acompanhamento quase real — ou até mesmo real — do tempo e,
em consequência, da decorrência dos fatos e reações. Também é um recurso que gera um
pequeno suspense, já apontado neste trabalho, e permite a criação de relações físico-
representacionais dentro da obra. Além disso, talvez seja interessante observar esse plano como
“prova” ou “mostra” de uma capacidade, do que se pode fazer com a linguagem e os recursos
cinematográficos, o que ocorreu em diversos períodos do cinema, como no Primeiro Cinema.

DA CONCLUSÃO
Em suma, esta curta análise se dedicou a observar os recursos técnicos e criativos do
plano, além de, em segunda instância, destacar elementos estéticos e funcionais presentes.
Assim, trata-se de um plano que se utiliza tanto de recursos já existentes no meio, como de
recursos e resoluções oriundas de estudos e da própria criação para a sua concepção. É, portanto,
um grande exemplo da potencialidade do meio audiovisual — sobretudo cinematográfico —
em geral, que cria a partir da realidade e dos “acidentes controlados” uma outra realidade
presente no âmbito de sua dimensionalidade possível.

Você também pode gostar