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"COMO DAR UMA AULA?" QUE PERGUNTA É ESTA?

Sandra Mara Corazza

Lacan já disse que toda pergunta não se funda jamais a não ser sobre uma resposta. Caso
aceitemos esta idéia como eu aceito, poderíamos dizer que, no momento em que alguém pergunta
algo, este alguém já tem ao menos indícios para responder aquilo que justamente está perguntando.
Por que será então que a pergunta que dá título a este trabalho, qual seja, "Como dar uma aula?"
vem sendo recorrentemente feita em toda história da pedagogia moderna?

Para descrever algo das condições e possibilidades que tornam enunciável esta pergunta,
cabe trabalhar (embora de forma breve) quatro perguntas-guias:

a) de que lugar(es) fala aquele que formula essa pergunta ("Como dar uma aula?") ou, em
outras palavras, o quê/quem o autoriza/legitima a perguntar tal coisa?
b) a quem/ao que ele formula tal indagação?
c) quem responde, ou a partir de que lugar(es) é produzida uma e qualquer resposta?
d) qual é/quais são as respostas a essa pergunta?

Buscarei indicar alguns argumentos que nos permitam dizer alguma coisa mais acerca dessa
questão e que nos "dê o que pensar" no espaço deste Programa. Como estratégia analítica,
responderei às quatro perguntas-guias que fiz incidir sobre a pergunta-chave deste trabalho, a fim de
ver se, com tal argumentação, poderemos caracterizar a segunda questão do título, que interroga
sobre a pergunta-chave: "Que pergunta é esta?" (Uma coisa ao menos já sabemos até aqui: a de que
são muitas as perguntas!).

Quanto à primeira pergunta-guia, isto é, de que lugar fala aquele que pergunta "Como dar
uma aula?", pode parecer que à primeira vista este seria um lugar de ignorância. Pergunta-se algo
por ignorar as respostas àquilo que constitui a pergunta àquilo que se quer, deseja, ou precisa saber.
Este é o sentido comum, corriqueiro atribuído ao "perguntador", ou seja, de que aquele que
pergunta o faz porque ignora, porque desconhece algo que quer, que precisa ou que deve conhecer.
Tal significado já foi inclinado por aquela formulação de Lacan com a qual iniciei esta fala, e que
me fornece algumas configurações para problematizar, para buscar desnaturalizar este sentido
comumente atribuído ao lugar do qual fala aquele que pergunta. Uma destas configurações
possibilita-me afirmar que este lugar de ignorância é precisamente o lugar de uma presumida
ignorância e de uma ignorância atribuída, sendo ambas a suposição e a atribuição colocadas por
uma estrutura disciplinar específica.

Vejamos um argumento que dá sustentação a esta posição, retirado da prática de formação


das professoras/professores desenvolvida aqui, na Faculdade de Educação: nesta prática,
constatamos que aqueles(as) alunos(as) tanto dos cursos das licenciaturas quanto do próprio curso
de Pedagogia que já exercem uma prática-docente, que já são professores(as), mesmo esses(as)
alunos(as) insistem em perguntar desse jeito, especialmente nas aulas de Didática ou nas disciplinas
metodológicas; assim como perguntam numa variação valorativa: "Como dar uma boa aula?"

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Também é interessante verificar que professores(as) universitários(as) devidamente e, em
geral, rigidamente concursados(as), muitas vezes docentes há algum tempo, fazem esta mesma
pergunta. O lugar de onde perguntam será realmente um lugar de ignorância acerca de como dar
uma aula, se suas próprias práticas docentes não indicariam a mínima necessidade de fazer esta
pergunta? Então, por que a fazem? O que os autoriza a desta maneira perguntar?

Afirmo que não é sua ignorância, e sim sua presumida ignorância que os faz perguntar desta
maneira. Mas por que fica colocada uma autopresumida ignorância sobre um ato que, muitas vezes,
é o ato por excelência de sua profissão e ao qual se dedicam há muito ou há algum tempo? Neste
ponto rumamos para a segunda pergunta-guia estreitamente vinculada à primeira, qual seja, ao quê,
a quem é formulada tal questão, a partir de um lugar de suposta ignorância?

Pode ser que por existir um grupo, uma comunidade, um campo disciplinar, a quem atribuir
este saber. Evidentemente, que estou a falar de nós, ou seja, de todos(as) aqueles(as) que trabalham
na formação de professores(as) e que, de uma ou de outra maneira, estão implicados(as) na e pela
Educação; ou daqueles(as) que efetivamente assumem esta sua implicação, pois escutei um
professor universitário da UFRGS, que dá aulas de História há quase vinte anos afirmar
enfaticamente que ele nunca foi, não é, nem nunca será "um educador".

Deixando este tipo de negação de lado, por mais instigante que me pareça analisá-la, volto
ao ponto central desta argumentação, qual seja, o de que existe um "nicho" de prática discursiva ao
qual alguém se autoriza a formular tal pergunta, mesmo que seja uma pergunta apenas retórica, o
que não importa para esta análise, porque de toda maneira a pergunta é formulada; um domínio
habitado por um tipo de discurso ao qual aquele que pergunta atribui um saber sobre a resposta ou
as respostas possíveis; um nicho que, historicamente, também fez de tudo para que tal saber/poder
lhe fosse atribuído. De forma breve, por ser evidente, afirmo que é ao campo da Pedagogia e, nele,
ao campo da Didática e da Metodologia que tal pergunta vem sendo feita. E que justamente são
estes campos aqueles que, por meio dos regimes de verdade produzidos por suas práticas
discursivas e não-discursivas, potencializaram e continuam a potencializar a enunciação dessa
pergunta. Em assim sendo, vige aí nesta operação a atribuição de um suposto saber. Um saber/poder
de responder à pergunta sobre como dar uma aula, "fabricado" por aqueles que produzem a
discursividade destes campos e pelas relações interdiscursivas formadas por diversos campos de
conhecimento.

Até aqui, argumentei que o lugar daquele que pergunta sobre como dar uma aula não é um
lugar de ignorância, mas de uma autopresumida ignorância, e também de uma ignorância atribuída
por campos conceituais e por práticas disciplinares particulares. Assim, aquele que pergunta é
colocado e se coloca numa condição de atribuir a outros (didatas, metodólogos, pedagogos,
"legítimos" educadores, etc.) um suposto saber sobre a resposta correta a esta questão. Por isto, é a
estes que dirige tal pergunta, presumindo-se ignorante por não deter a resposta àquela pergunta,
mesmo que sempre tenha dado muitas e muitas aulas. Por esta razão é que aqueles –– os outros-
educadores, os outros pedagogos, os outros-didatas, os outros-metodólogos –– costumam prosseguir
acolhendo esta indagação e fazendo questão de continuar a respondê-la.

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Agora, chegamos a uma tentativa de responder à terceira pergunta-guia: quem responde, ou
a partir de que lugares é produzida uma resposta? Depois dela, nos remetemos à quarta pergunta,
isto é, quais são/quais têm sido as respostas enunciadas? Na história institucional da educação de
massas, onde foi constituída a Pedagogia, muitas respostas foram produzidas a esta pergunta e ela –
– a pergunta de "Como dar uma aula?" –– foi intensamente demandada.

As primeiras respostas específicas produzidas a esta questão estavam (continuarão?)


conformadas pelo tríptico religião-ciência-lei. Dentre as fundadoras deste tipo de discursividade
ficaram registradas na Ratio Studiorum da Companhia de Jesus e também a obra que escolhi para
retirar alguns excertos: a didática magna, ou tratado da arte universal de ensinar tudo a todos, do
pastor protestante tcheco Comênio, escrita entre 1627 e 1657.

Em sua "Saudação aos Leitores", Comênio escreve:

Didática significa arte de ensinar. Acerca desta arte, desde há pouco tempo, alguns
homens eminentes, tocados de piedade, pelos alunos condenados a rebolar o
rochedo de Sísifo, puseram-se a fazer investigações, com resultados diferentes. [...]
Nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, um método universal de
ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza, que seja impossível não
conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou seja, sem nenhum enfado
e sem nenhum aborrecimento para os alunos e para os professores, mas antes com
sumo prazer para uns e para outros. E de ensinar solidamente, não superficialmente
e apenas com palavras, mas encaminhando os alunos para uma verdadeira
instrução, para os bons costumes e para a piedade sincera. Enfim, demonstraremos
todas estas coisas a priori, isto é, derivando-as da própria natureza imutável das
coisas, como de uma fonte viva que produz eternos arroios que vão, de novo,
reunir-se num único rio; assim estabelecemos um método universal de fundar
escolas universais.

O próprio Comênio escreve que a promessa que faz "é enorme e corresponde a um desejo
muito vivo", mas pede que o leitor suspenda seu juízo, até que tenha "conhecido a substância
mesma das coisas" que ele tem a mostrar. Para dar um exemplo do conteúdo e da forma destes
escritos, selecionei as nove regras para ensinar as ciências, em geral, apresentadas pelo autor:

1ª Regra - Ensine-se tudo o que se deve saber.


2ª Regra - Tudo o que se ensina, ensine-se como coisa do mundo de hoje, e de utilidade
certa.
3ª Regra - Tudo o que se ensina, ensine-se de uma maneira direta, e não com rodeios.
4ª Regra - Tudo o que se ensina, ensine-se tal qual é e acontece, isto é, pelas suas causas.
5ª Regra - Tudo o que se oferece ao conhecimento, ofereça-se primeiro de modo geral, e
depois por partes.
6ª Regra - Conheçam-se todas as partes da coisa, mesmo as mais pequeninas, sem omitir
nenhuma, respeitando a ordem, a posição e as relações que umas têm com as outras.
7ª Regra - Ensinem-se todas as coisas sucessivamente, e, durante o mesmo tempo, não se
ensine senão uma coisa só.
8ª Regra - Insista-se sobre cada matéria, até que ela seja perfeitamente compreendida.
9ª Regra - Ensinem-se bem as diferenças das coisas, para que o conhecimento de todas as
coisas seja distinto.
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Três séculos depois da Didática Magna, considerado um dos livros fundadores da
discursividade pedagógica moderna, seleciono dentre tantos publicados, o livro Introdução à
Didática Geral, de Imídeo Nérici, que em 1985 estava então em sua 15ª edição, e onde podemos
encontrar algumas "sugestões práticas de ação didática", tais como:

[...] o professor deve ser pontual em suas obrigações didáticas, como: ser
entusiasmado (sem exagero), humano (sem pieguices), sincero e otimista;
apresentar-se discretamente vestido, sem exageros ou modismos. O ideal é que se
apresente, para os trabalhos de classe, envergando guarda-pó. Esta é a vestimenta
mais adequada para o exercício do magistério e para ambos os sexos.

Quanto ao planejamento, é sugerido que "o professor planeje com cuidado todos os
trabalhos escolares, para evitar imprevistos em classe que possam prejudicar o ensino". Além disso,
o professor não deve iniciar a aula "a frio", mas deve primeiramente predispor a classe para os
trabalhos previstos, relacionando o conteúdo das aulas com fatos hodiernos, pensando em formas de
motivação de continuidade para ser posta em prática durante uma aula, quando esta comece a perder
o interesse dos educandos. Caso realize exposição oral da matéria, "esta não deve ultrapassar 1 a 2
minutos sem uma interrupção para uma atividade qualquer, como escrever no quadro-negro,
interrogar, mostrar algo, fazer um exercício, promover uma pequena discussão, lançar mão de
algum recurso audiovisual, etc.".

Ao iniciar sua aula, o professor "deve apagar bem o quadro-negro, para não ficarem restos
de palavras, gráficos ou números". O quadro-negro deve ser dividido mentalmente ou de fato em
duas partes, na proporção de 2/3 e 1/3. Deve ser consignada, na parte maior, a esquematização dos
trabalhos escolares, em ordem lógica e que não devem ser apagada; devem ser consignados, na
parte menor, os dados auxiliares da aula, que podem ser apagados, quando necessários. A letra, no
quadro negro deve ser bem legível. Não bonita, mas legível. Evitar falar, quando se estiver
escrevendo nele.

Tratando-se do material didático, o professor (sempre no masculino) "deve esforçar-se por


desenhar, pois em casos de emergência poderá lançar mão de desenhos e tornar mais claras as idéias
e os conceitos". Deve o professor inspecionar o material didático antes da aula para "evitar os
enguiços de última hora que tanto prejudicam a aula". E assim por diante, até a exaustão de detalhes
quanto às ações didáticas, tais como o "interrogatório", ao qual deve ser dado um "aspecto de
conversa, sem aquele sentido de inquisição policial" – estou citando a "discussão", onde é
recomendado que o professor evite "que, sem motivo justificado o assunto se desvirtue"; bem como
"exercícios e tarefas", "demonstração", "trabalhos de laboratório", "experiências", "relacionamento
do professor com a classe", "avaliação", etc.

Com esses dois exemplos, espero ter conseguido transmitir as espécies de respostas que vêm
sendo produzidas caracterizadas:

a) por sua universalidade, numa repetição associal e a-histórica, sem que aí haja lugar para
qualquer contingenciamento, que é próprio do ato educativo;
b) por sua busca de certezas, como escreveu Comênio, "inabaláveis" quanto aos resultados
deste ato;

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c) por sua narrativa-mestra, ao formular explicações totalizadoras e causas finais, válidas
para todos os tempos e para todos os grupos humanos.

Para concluir, pergunto: o que fariam os indagadores(as) desta pergunta "Como dar uma
aula?" se, contemporaneamente, lhes respondêssemos que nós não sabemos como dar uma aula,
muito menos como dar uma boa aula? Que não existe uma resposta absoluta, possível de ser
universalizada para esta pergunta? Que não há nenhuma ciência objetiva, nenhuma prática
discursiva, nenhum campo conceitual que possibilite essencializar o que seja ou o quê/como deve
ser uma aula, quanto mais uma boa aula.

Além disso, que nós não aceitamos mais, primeiramente, falar da questão nesta generalidade
que a impregna; e, em segundo lugar, que não aceitamos responder a ela afirmativamente, pelo
simples fato de que nós não sabemos e eticamente não devemos mais continuar a repetir o círculo
perfeito daquelas respostas que circunscrevem uma transcendentalidade à Verdade (com V
maiúsculo) da prática educacional.

Na tentativa de disrupção deste círculo perfeito de quase três séculos de vigência, para dele
buscar fazer ao menos uma elipse, em que estamos implicados(as) em nossas pequenas "revoltas
diárias", afirmamos que as aulas –– más e boas, regulares e medíocres, ou nada disso –– são
constituídas na confluência de múltiplos fatores, histórico, cultural, subjetiva e politicamente
produzidos; que o máximo que podemos descrever, para construí-los, são os modelos, os padrões de
aulas, os significados transcendentais de aula, tal como se constituíram em tempos/espaços
histórico-culturais, bem como seus efeitos sociais, políticos e de formas de subjetivação, indicando
algumas daquelas condições de possibilidades que os produziram, não diretamente, mas
contribuindo para suas descontinuidades.

E esta é minha/nossa resposta, por enquanto. A partir dela, pode ser que os perguntadores
obriguem-se a mudar também sua pergunta. E aí, possamos juntos realizar um trabalho bem mais
criticamente produtivo.

REFERÊNCIA DESTE TEXTO:

CORAZZA, Sandra Mara. Como dar uma aula? Que pergunta é esta? Disponível em: http://ifscdidatica2010.blogspot.com.br/2010/10/como-dar-uma-
aula.html. Acesso em: 10/08/2015.

ATIVIDADE:

Como dar uma boa aula? O que podemos definir como uma boa aula?

Que critérios utilizamos para definir uma aula como boa ou não? A que novas questões remete o texto?

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