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Universidade federal de Alfenas

História 7° Período

Prática de Pesquisa Histórica

Rodolpho Ferreira Borges

Paul Ricoer, em seu texto, “O perdão pode curar?”, apresenta uma importante
reflexão acerca dos fenômenos que se dão no âmbito da memória e sua relação com as
lembranças e os esquecimentos. Sobre o alicerce oferecido pelo filósofo alemão R.
Koselleck, a partir da adoção de dois termos de seu vocabulário, “espaço de experiência” e
“horizonte de espera”, e da retenção alguns de seus axiomas; o autor apresenta conceitos
freudianos a fim de explicar a relação entre as carências e excessos de memória, o
esquecimento e, por conseguinte, o perdão, tanto como fenômeno sensível como político.

O caminho para se entender como tanto a memória em excesso quanto a falta dela
compõem a mesma memória, perpassa a compreensão do fenômeno que causa essas
aparentes dissensões. Pra isso, utiliza-se uma constatação freudiana: a compulsão pela
repetição impede o trabalho de lembrança. Esclarecendo o paradoxo inicial: “É com a
mesma obsessão do passado que se comprazem os povos, as culturas, as comunidades
acerca das quais se pode dizer que sofrem de um excesso de memória. Mas é a mesma
compulsão que conduz outros a fugir do seu passado (...)”. (p.3) Ou seja, na perspectiva da
memória histórica, tanto o excesso quanto a falta possui, na essência, o mesmo problema.

O que liga tudo isto exposto acima às constatações adotadas de Koselleck é o


trabalho de lembrança, que na perspectiva do historiador, seria o uso crítico da memória. O
que faz necessária a utilização do filósofo é a existência de uma “crença fortemente
enraizada de que unicamente o futuro é indeterminado e aberto e o passado determinado e
fechado.” (p.4) Pois, segundo os axiomas de Koseleck:

“Primeiro, não existe espaço de experiência que não seja


polarmente oposto a um horizonte de espera, o qual, em compensação,
permanece irredutível ao primeiro. Em segundo lugar, o presente vivo tem
o papel de permutador entre o espaço de experiência e o horizonte de
espera, o que o distingue do instante pontual, que é apenas um corte virtual
sobre uma linha indefinida” (p.2-3)
No entanto, obviamente, não se pode mudar o passado em seus fatos. Mas o que
nos importa aqui é a mudança de sua carga moral, o seu peso de dívida, para que se possa
alcançar, enfim, o perdão. Voltando às constatações freudianas, não se pode realizar tal
mudança sem um verdadeiro trabalho de lembrança, oposto a repetição. “É exatamente
deste modo que o trabalho de lembrança nos impele para a via do perdão, na medida em
que este abre a perspectiva de uma libertação da dívida, por conversão do próprio sentido
do passado.” (p.5)

Passamos agora para outro âmbito da memória, o domínio do esquecimento, uma


vez que “não existe memória sem esquecimento” (p. 6) Esse domínio, por sua vez, tem
problemas específicos, que não se resumem em sua inclusão na memória. O que nos
importa é a sua relação com as constatações de Freud. Sobre a compulsão de repetição, o
esquecimento toma forma de uma estratégia de escusa, uma tarefa de má fé, o que torna-o
um empreendimento perverso. Em contrapartida, a sua relação com o trabalho de
lembrança, toma a forma de esquecimento ativo, libertador. O perdão estaria localizado,
então, na convergência entre o trabalho de lembrança e o “trabalho de luto” (outro temo
freudiano que se refere ao esforço de se desligar do objeto de ódio ou amor para que se
possa interioriza-lo novamente). Enfim:

“Por um lado, o perdão é o contrário do esquecimento de fuga; não


se pode perdoar o que foi esquecido; o que deve ser destruído é a dívida,
não a lembrança (...). Mas, por outro lado, o perdão acompanha o
esquecimento ativo, aquele que ligamos ao trabalho de luto, e é neste
sentido que ele cura. Porque o perdão dirige-se não aos acontecimentos
cujas marcas devem ser protegidas, mas à dívida cuja carga paralisa a
memória e, por extensão, a capacidade de se projetar de forma criadora no
porvir.” (p.6-7)

Há no perdão, além de uma grandeza sensível e sentimental, um importante papel


na dimensão do político. “Em virtude da sua própria generosidade, esta poética da
existência emprega os seus efeitos na região do político (...)” (p. 8) Nessa dimensão, pelas
suas características conciliadoras e de generosidade, o perdão revela-se também como o
cimento entre o trabalho de memória e o trabalho de luto.

É importante perfilhar os aspectos mais psicológicos e individuais das relações


sociais e, por conseguinte, da memória. O texto apresenta uma relação nesse sentido a
partir de uma reflexão filosófica de conceitos, constatações e axiomas, sob a ótica da
história e do historiador. Por filosofar sobre o perdão, a memória, o esquecimento, numa
relação presente-passado, o texto oferece bases para um estudo sobre como se da a
interiorização e a consequência histórica do perdão a partir de um âmbito mais científico.
Deve-se estar atendo também à utilização do perdão como ferramenta política de
conciliação, uma vez que a conciliação, como estamos (historiadores) fartos de constatar e
defender, pode ser uma perversa ferramenta de alienação e, consequente, manutenção da
opressão. Desse modo, se maneira ligeira, penso que a busca pelo perdão deve ser seguida
de um movimento de resistência que não busque a adequação nos moldes dominantes de
poder, mas numa inserção das concepções de poder do oprimido (emancipação). O que
torna ainda mais importante a constatação de Ricoer sobre a não destruição da lembrança,
mas da dívida. E, a destruição da dívida perpassa medidas políticas mais intensas do que
simples discursos conciliadores que não fazem mais do que praticar uma opressão velada;
senão a utópica emancipação, as políticas compensatórias e as legislações mais severas em
relação à atos que, violentamente, neguem a memória de opressão sobre o dominado.

17/06/14 – RICOUER, Paul. O perdão pode curar? [s.d.] Disponível em:


<http://www.lusosofia.net/textos/ paul_ricoeur_o_perdao_pode_curar.pdf>. Acesso em: 29 nov.
2013.

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