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REVISTA TRIMESTRAL DA FUNDAÇA0 PERSEU ARRAMO - ano 13
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- n° 44 - abrimai/jui 2000 - 8,00 '

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Adilson endes Ana Bock • Carrtitftn•
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*14. de Mello • Fernando Novais •
3 Francisco de Oliveira • ilamilton
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ir.cle Souza José Luis Fiori • José
1
Mindlif5 Maria da Conceição Tavares
plga Futemma • Olgaria Matos
Pal Singer Pedro Tierra • Renato
Ortiz Silviano Santiago à Suettinio
Sares Valença Wladimir Pomar ;1!,.•
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4 REPORTAGEM
Brasil 500 anos:
As polêmicas de uma data
histórica
Hamilton Octavio de Souza

10 ECONOMIA
Política e economia na
formação do Brasil
Maria da Conceição Tavares

14 INTERNACIONAL
A globalização e o Brasil no
fim do segundo milênio
Paul Singer

19 ENSAIO
A..
2001: O Brasil no espaço
José Luís Fiori
NACIONAL
31 A ilusão do Estado brasileiro
Francisco de Oliveira

34 As metamorfoses do mesmo
Pedro Tierra

42 A nova estirpe burguesa


Wladimir Pomar

46 Lutas sociais, reforma e


revolução
Daniel Aarão Reis Filho

60 CULTURA
A cultura brasileira hoje
Depoimentos de Ana Bock,
f Evaldo Cabral de Mello, José
,t Mindlin, Olgária Matos, Renato
. Ma Ortiz, Silviano Santiago e
27 SOCIEDADE Suetônio Soares Valença
Entrevista com Carmem
Junqueira 64 Desenredo brasílico
por José Corrêa Leite Chico Alencar
52 ENTREVISTA
A invenção do Brasil
Fernando Novais
por José Corrêa Leite e
Walnice Nogueira Galvão

70 VIDEVIDEO
A expressão da
não-contemporaneidade
Adilson Inácio Mendes e
Olga Futernmá

75 CARTAS

76 Oswald de Andrade
O poeta desta edição

Flávia Ribeiro
A artista desta edição
O poeta desta edição
Entre os feitos da geração modernista figura uma redescoberta do Brasil. Segundo confessa
Oswald de Andrade, a sua ocorreu na Place Clichy, em Paris. Essa foi a geração que,
I I 11'1 '

REViSTA TRIMESTRAL DA FUNDACAO PERS/ u All/t/J10,

além de revolucionar as letras e as artes, procurou mapear o pais e sua herança. Contam- DO Panou DOS TRARAIIIADORES

se entre as tarefas que levou a cabo uma jornada a Minas Gerais, para conhecer o barroco Coordenador Editorial
Ricardo de Azevedo
mineiro, e a excursão de Mário de Andrade à Amazônia, relatada em° turista aprendiz.
Editora -assistente
Oswald seria ainda o criador e teorizador do movimento antropofágico (1928), que Rose Spina
propunha uma relação muito especial com o colonizador, através da devoração dele. O Editora de Arte
lhana Kestenbaum
manifesto do movimento é atrevidamente assinado e datado como do "Ano 374 da Departamento Comercial
deglutição do bispo Sardinha", alçando um evento estudado nos livros escolares. Cizele Santos

A redescoberta implicou uma volta às páginas dos cronistas e viajantes, nossos primeiros Conselho de Redação
Alipio Freire, Ria Pardi, Carlos Nelson
historiadores, leitura que deixou sinais na obra de muitos deles, como em Raizes do Coutinho, Jose Corréa 1.cite. Luiz Diflui,
Brasil de Paulo Prado, em Macunaima de Mário de Andrade e na poesia de Oswald. Maria Rita Kelt', Ozeas Duarte, Paul Sille, •r
Ricardo Azevedo. Rui Falcão. Waln ,
Integra Pau Brasil (1924) um ciclo de pequenos poemas, intitulado "História do Brasil", Nogueira Galvào.1Vladirn ir Pon,...

efetuando recortes naquelas páginas, aproveitando as delícias de sua linguagem e a Conselho Editorial
Adeli Sell, Antonio Albino Rubi'',
cândida percepção dos portentos do Novo Mundo, desde a nudez das índias até o Bernzirdo Kucinski. Carlos Eduardo (,,,,
improvável bicho-preguiça. (coar Benjamin. (:id Benjamin, Clara ,
Daniel riarao teis V", David Capistrai
O poema "Erro de português", de 1925, pertence ao livro Primeiro caderno de poesia Costa Edmilson Rodrigues, Edu:: •
Suplicy, Enunanuel Jose Appel, Emiliann
do aluno Oswald de Andrade (1927). Nele, a aparente espontaneidade coloquial mal Ernainia Alaricato, Fernando I laddad.
encobre a sofisticação da fatura. Expõe aos olhos do leitor, com notável economia de Aguiar. Flavio Koutzii, Francisco José
Teixeira, Gilney Vianna, I lamilton
meios, o confronto entre duas culturas, expresso na oposição entre os verbos vestir/ lacob Gorender, João Antimio de Paul.: ;
despir. Assim, ironicamente, atribui o poder do colonizador de oprimir o colonizado Machado, João Pedro Stedile, Jorge Almeida.
Jorge Biliar, Jorge Mai toso, Jorge Viana.
apenas ao clima - que aliás era tema do grande debate racial que assinalou a época. As Jose Eduardo Dutra. José Graziano da Sin.,
Kabengele Nb:manga, Lauro Campos.
raças inferiores ou misturadas em nossa formação seriam responsáveis pelo atraso, ou Konder, Luis Carlos de Menezes. juiz
também o clima tropical? Era coincidência que todos os países brancos e ricos ficassem Baravelli, 1.11i% I titia, 1.11iti Pilla
Marco Aurelio Garcia, Maria da Con,•'
no hemisfério norte, ou o frio espicaçava a operosidade? A notar ainda o feliz jogo do 'Lavares, Maria Ednalva 'luzerna de I
duplo sentido mobilizado no poema. Primeiro, nas dimensões concreta e abstrata da Marina Silva, Mauricio Segall, Pedro 1,
Guimarães, Raimundo Moacir Lima F.,. 1,,
palavra "pena", exploradas com perícia. Depois, o clichê do significado corrente do Onine Ribeiro, Rogerio Menezes. Ro.,,,;.!
Rocha. Sergio 'essa, Sergio Klamberti.
titulo - em que "português" se refere à língua -, ao ser deslocado para pessoas, se Resende. 'faina Bacelar. Tarso (enro,111:1,1,11.11
metamorfoseia em amplo e ominoso comentário histórico. Palmeira, Wilson Umno, Wolfgang Leo
Walnice Nogueira Gaivão, do Conselho de Redação de TD Fundação Perseu Abram()
Diretoria Executiva
Presidente I.uiz Dulci
Vice-presidente - fila), Abra, ,
A artista desta edição Diretor - Ilamilton Pereir..
Diretor • Ricardo de Azeved,.

Flávia Ribeiro nasceu em São Paulo em 1954. Optou por uma formação não tradicional, ao Conselho Curador
Flávio Rodrigues da Silva (presidente).
freqüentar o curso experimental na "Escola Brasil" nos anos 70, onde passou a conviver Clara AM. Conceição de Maria Nascimento,
Flávio Koutzii, Geraldo Pastana, Gilberto
com artistas como José Resende, Carlos Fajardo, Baravelli, Babinsky, entre outros. Fre- Carvalho, Iria Charão, Jorge Bittar, Marco
qüentou como ouvinte o curso de pós-graduação em gravura na Universidade de Londres. Aurélio Garcia, Maria da Conceição Tavares.
Mónica Valente, Nalu Faria, Obvio Dutra. Ennio
Seja em desenho, gravura, fotografia ou escultura, seus trabalhos tratam de questões de Arruda Sampaio. Ronald Rocha, Rui 1:,,k ,I0,
Selma Rocha. Tânia Bacelar, Vicente)
relativas à passagem do bi para o tridimensional, mais precisamente o limite que Wladirnir Pomar, Zezéu Ribeiro.
define esta passagem. Por meio da observação e exploração minuciosa da natureza, a Jornalista Responsável
artista busca associar corpos e dimensões em uma condição de extrema fragilidade. Rose Spina MT') 15816
Assinaturas
Em seus trabalhos mais recentes, as imagens criadas conquistam o espaço, provocando Marta Coerin, Márcio Machado e Melro
ao mesmo tempo um surpreendente efeito de imaterialidade e levitação, apesar do Esta revista foi composta nas fontes Iltupia,
material utilizado: o estanho. Frutiger e Rotis Sans
Fotolitos
Flávia participou de diversas exposições, individuais e coletivas, não só no país como Graphbox
no exterior, tais como: Redescobrimento + 500, Fundação Bienal de São Paulo, 2000; Impressão
Caran Gráfica
XX e XXIII Bienal Internacional de São Paulo, Fundação Bienal 1989 e 1996;
Rua Francisco Cruz, 234
V Bienal Internacional de Istambul, 1997; Arte Cidade III, 1997; Panorama da Arte CEP 04117-091
Atual Brasileira, Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1990 e 1993. Fone (011) 571-4299 Fax 10111 573-3336
e-mail: td@fpabramo.org.br
Desde 1998 expõe regularmente na Galeria Millan em São Paulo. http://www.fpabramo.org.br

ld * abr/mai/jun2000 76
A invenção do
Entrevista com Fernando Novais
por José Corrêa Leite e Walnice Nogueira Gaivão

A comemoração dos quinhentos anos vención de América, um belíssimo tex- Igreja na América Latina, escritos na
tem como referência á viagem de Pedro to em que diz que não há descobrimen- perspectiva da Teologia da Libertação.
Álvares Cabral, conhecida como de des- to da América porque ela não existia; Mas se essa obra tem contribuições no-
cobrimento do Brasil, da mesma forma havia, sim, um território. A América foi táveis, leni tanilft'm um viés complica-
que a carta de Pero Vaz de Caminha fi- inventada, não descoberta! O Brasil do. A Teologia da Libertação diz, por
cou conhecida como a certidão de batis- também teria que ser inventado. E cer- exemplo, que a verdadeira catequese
mo do Brasil. As primeiras coisas a se tamente não foi Pedro Álvares Cabral tem que preservar a cultura do índio. Eu
discutir são, assim, a viagem de Cabral e quem inventou o Brasil, da mesma for- perguntei num debate: "mas como vo-
a carta de Caminha.
ma que a América não ki inventada por es vão preservar a cultura do índio, se,
A viagem de Cabral suscita, pelo Colombo. nela, a religião é fundamental?" Aí os
menos, dois probleinas: O primeiro, O desdobramento dessa idéia dá, teólogos dessa corrente dizem: "Nós
muito discutido, é que a tradição e a bis- por vezes, lugar a equívocos. Um deles acreditamos que o cristianismo seja
toriogralla deramá sua viagem o nome se desenvolveu nos anos 60 e 70: se essa compatível com qualquer cultura". Ora,
de "descobrimento do Brasil", o que en- é a visão do vencedor, do colonialismo isso é uma matéria de fé, que não pode
volve um claro eu rocentri sino. Se os e do imperialismo, então a nossa histó- ser dum i insulais.
portugueses descobriram os tup I ni ria teria que ser escrita do ponto de vis-
quins, tupinambás etc., foram também ta contrário, isto é, do vencido, dos ín- Por que os historiadores começaram a
descobertos pelos índios. Falar em des- dios. Isso é um delírio, porque não po- ter essa reação depois dos anos 50?
cobrimento do Brasil, como em desco- demos nos converter em índios. Esse Os povos daqui eram iletrados, sua
brimento da América, é a visão do ven- revisionismo - procurar fazer história história era oral, eles não tinham regis-
cedor. Isto tem sido muito discutido. sem etnocentrismo - produziu algumas tros escritos. O que temos de história
Nos anos 50, o historiador mexicano obras interessantes, como, por exemplo, são os escritos europeus, alguns melho-
Edmundo O'Gorman escreveu La in- os novos trabalhos sobre história da res, outros piores. Frei Vicente do Sal-

rl 'I • abr/mai/jun 2000 52


importantes historiadores
brasileiros. Portugal e o Brasil na •:::
crise do antigo sistema colonial
(Hucitec) é uma análise já clássica
da formação nacional, articulando
a colonização e a Independência "
com a dinâmica mundial do
desenvolvimento do capitalismo. :
Recentemente, Novais organizou
História da vida privada no Brasil,
lançada em quatro volumes
Companhia das Letras).

53 tdí * abr/mai/jun 2000


vador, por exemplo, que escreveu a pri-
meira história do Brasil, é um grande
historiador. Criada essa tradição, a his-
Dizer que em 1500 o Brasil foi
tória da reconstituição dos eventos se
apresentou até o século XX como a his- descoberto é atribuir a Cabral
tória, simplesmente, e não como a his-
tória dos europeus. Ao se criticar essa a fundação do Brasil, o que é um
concepção, a análise elaborada do pon-
to de vista dos índios passou a ser apre-
sentada como uma outra história, a ver-
anacronismo evidente
dadeira. Ora, a visão dos índios se ex-
pressa nos estudos de etno-história.
Acho que seria importante lembrar es-
tudos como os de Wachtel sobre o Peru
e de Padden sobre o México, que re-
constituem a visão dos astecas ou dos casos de primeira geração, de mãe nati- numa determinada região, sem esque-
va e pai espanhol. Foi uma primeira ten- cer o que aconteceu depois. O historia-
incas com relação à conquista. Mas,
mesmo ao tentar fazer isso, ele vê o pro- tativa, que resultou em obras interes- dor conhece isso, mas os protagonistas
cesso por intermédio, no mais das ve- santíssimas. não. A tentação de imputar aos prota-
zes, do texto do conquistador, que é o gonistas o conhecimento do que veio
Há alguns casos. Eu até diria que a
registro disponível para pesquisar. Po- depois é muito grande e aí o historia-
partir dos anos 60 os historiadores em dor cai no anacronismo. O problemáti-
demos, assim, entender como a visão geral, mesmo quando fazem a crítica da
do europeu foi apresentada como sen- co na idéia de "descobrimento do Bra-
história como a história dos vencidos, sil" é que o anacronismo está evidente.
do a história tout court Mas, o que se- não o fazem para recair no etnocentris-
ria história? A história seria algo que in- O Brasil é um povo que constituiu
mo. Quero dizer que talvez isso seja im- uma nação que se organizou em Esta-
tegrasse as duas visões, superando-as e possível para determinados momen-
ultrapassando-as, que explicasse por do nacional. Isto existe desde o século
tos da história. Se tomamos o Garcila- XIX. Mas dizer que o Brasil foi descober-
que os índios viviam desse jeito, por que so, o que temos é a visão do conquista-
os europeus viviam dáquele jeito e dis- to em 1500 é atribuir a Cabral a funda-
dor, é a visão da conquista enxertada ção do Brasil, o que é um anacronismo
sesse como foi. Mas talvez isso seja im- com a experiência do conquistado, que
possível. evidente. Esquecer e lembrar não é de-
é descendente da primeira geração dos cisão pessoal de ninguém; não esque-
Gadamer diz que a constituição desse filhos das camadas altas submetidas no cemos e nem lembramos o que quere-
ponto de vista capaz de integrar cultu- processo de conquista. Na realidade, ele mos. Ao contrário, muitas vezes quere-
ras diferentes só pode ser resultado da acabou sendo aculturado, vê a cultura mos esquecer uma coisa, mas não con-
vivência conjunta de duas culturas... dos incas com uma certa exterioridade. seguimos; outras vezes, queremos lem-
É muito difícil.
O problema é se é possível fazer brar outra coisa, e não lembramos. No
isso no discurso. Pode até existir uma A partir dessa visão, faz sentido se falar limite, se absolutizamos isso, o historia-
certa vivência, mas não verbalizada. nos quinhentos anos? dor tem de procurar outro emprego.
Isso é muito difícil. Talvez só a arte pos- Como não somos radicais, o que
O segundo aspecto, que curiosa- temos de fazer é, quando estamos es-
sa fazê-lo.
mente não foi muito discutido, é que crevendo, colocar entre parênteses o
essas designações, "descobrimento do que aconteceu depois e nos esforçar-
Quando você diz que o ideal seria jun- Brasil", "descobrimento da América",
tar a história do vencedor com a histó- mos ao máximo para não reconstituir
não são só etnocêntricas, mas também aquilo como se o outro soubesse o que
ria do vencido, superar ambas e cons-
anacrônicas. E para o historiador, o ana- aconteceu depois. Lucien Febvre falava
truir a história plena, e que isso talvez
cronismo é o pecado capital, aquele que a respeito das leituras do Rabelais: na
só seja possível na arte, lembrei que
não pode ser cometido. O anacronismo França dos ano. 30, lia.sa Rebelais e
existem os casos de Gomiloso de la
é fazer um discurso histórico, isto é, re- começava-se a discutir se ele era ateu
Vega, El Ima, no Peru, e de Hernán de
constituir um ou uma série de eventos ou não —"mais uma glória da França do
Alvarado Tezozómoc, no México. Eram
ocorridos num determinado momento, século XVI: já tínhamos um escritor que

1( i 1 * abr/mai/jun 2000
54
não acreditava em Deus". Ele disse: "vo- re riscos e pode não se constituir por acidente de percurso - e há brasileiros
cês estão lendo Rabelais, como se Ra- causa das revoltas separatistas. O que é que ainda engolem isso. Desaparece o
belais tivesse lido Kant, Freud, Marx, que se cria então? O Instituto Histórico caráter conflituoso da separação. É tudo
Comte, Darwin, que vocês leram e ele e Geográfico Brasileiro. De que uma "ajudado" pela própria história.
não leu! Vocês têm que ver como ele foi nação precisa? Território e passado. Já Dessa forma, quando se fala que a
lido pelos contemporâneos. Algum con- se fez o recorte da história, começando viagem do Cabral é o descobrimento do
temporâneo leu 'tabelais e disse que ele naturalmente por Cabral, porque é o Brasil é preciso fazer as duas críticas, a
era ateu? Não. Então, ele não podia ser que se conhecia, tinha tradição e docu- crítica do etnocentrismo, que está na
ateu. Porque isso é anacronismo". E mentação. Como os índios não tinham palavra "descobrimento", e a crítica do
conclui dizendo o mais importante: "o documentos escritos, não entravam na anacronismo, que está na palavra "Bra-
verdadeiro critério para avaliar o texto história. Com o passar do tempo, vêm
sil". É essa distinção que as pessoas não
de um historiador é saber em que me- as ciências sociais e dizem: "mas isso é percebem. É fazer a história da colônia
dida ele evitou o anacronismo. Quanto muito reacionário, dizer que os índios como se ela estivesse destinada a se tor-
mais consegue evitar, melhor o texto de não têm história". Passa a entrar, então, nar uma nação. Ninguém descobriu
história, quanto menos consegue evitar, tudo que soubermos dos índios brasi-
pior". ninguém e o Brasil só existiria muito
leiros - isto é, índios residentes no Bra- depois.
Ilá, porém, um tipo de história em
sil -, outra loucura completa. Começa-
que o anacronismo é um problema se a procurar o que se sabe dos índios Como o anacronismo se manifesta na
mais grave. É quando o objeto do dis- antes de Cabral... Nada disso é história história do Brasil?
curso h istoriográfico é a nação; aí o ana- do Brasil!
Estuda-se, por exemplo, a história
cronismo é inevitável! Porque uma na-
Quando o país foi colônia isso ain- de Beckmann no Maranhão. Ele virou
ção precisa de um passado para se legi- da é pior. Você pode evitar o anacronis- um herói nacional, antecessor de Tira-
timar. Vamos tomar uma historiografia mo num país que se formou pela jun- dentes e coisas do tipo. Beckmann foi
de ponta, a francesa. Quando começa a ção de feudos; é mais fácil evitar o ana- enforcado realmente, punido pela Co-
história da França? Na Gália romana. cronismo num país que era um feudo e roa porque prendeu o governador e o
Mas isso não tem, rigorosamente, nada virou monarquia, como Portugal. Mas mandou de volta para a metrópole. Mas
a ver. O território da Gália romana esta- numa colônia que vira nação, como en- quais eram suas reivindicações? Primei-
va destinado a ser a França? Seria como tra a história da metrópole? A tendên- ro, reivindicava que a Coroa chamasse
começar a história da Hungila com a cia do metropolitano é dizer que ele é o os jesuítas de volta para Portugal, por-
província romana da Panõriia...
criador do país, e no caso do Brasil, que que eles atrapalhavam o uso dos índi-
Quais são os pressupostos do anacronis- somos criação de Portugal. A questão do os, impedindo sua escravização. Segun-
mo em história? anacronismo em história nacional é do, como não se tinha índios para tra-
uma desgraça; quando a nação foi co- balhar, tinha-se que comprar escravos
É uma inversão na ordem, no re- lônia é uma desgraça maior, e entre as africanos. Mas só se podia comprar da
corte do objeto. Todo objeto histórico nações que foram colônia, nenhuma é
Companhia de Comércio, que colocava
tem três recortes. Primeiro, o recorte tão complicada como o Brasil.
o preço nas nuvens. Logo, as grandes
lógico: qual é o assunto? do que se vai
Há uma desproporção fantástica reivindicações desse herói eram o direi-
tratar? Segundo, o recorte cronológico: entre a pequenez da metrópole e a to de escravizar os índios e de comprar
quando aconteceu? Terceiro, o recorte imensidão da colônia. Isso faz com que escravos africanos a preço baixo.
espacial: onde aconteceu?
os portugueses, muito legitimamente,
Quando e por que a colônia vai se
Mas a seqüência deve seguir essa procurem entender por que é assim.
transformando numa nação? Como a
ordem, porque é o lógico que coman- Mas ai eles querem dizer que tinham nação se gesta dentro da colônia? A In-
da. Não se pode inverter. Quando se re- uma vocação para navegadores, para dependência do Brasil foi um processo
corta o território da nação e entende descobrir o mundo, para semear na- político de extrema complexidade, que
como história da nação tudo que se ções. Dizem: "a colonização portugue- não se resolve com anacronismo.
sabe que aconteceu dentro daquele ter- sa é diferente das outras. As outras vi- É por isso que um político como
ritório, o anacronismo é inevitável. savam à exploração. Nós não, nós so- José Bonifácio é fantástico. Ele merece a
Começa-se a construir a historio- mos criadores de nações." O resultado designação de patriarca. Ele é obrigado
grafia brasileira em 1838, em plena Re- disso é os portugueses quererem expli- a negar a colonização e, ao mesmo tem-
gência, quando o Estado nacional cor- car a Independência do Brasil como um po, não pode deixar de reivindicá-la.

55 1(111 * abr/mai/jun 2000


Tem que negar a colonização para fun- teve nas viagens dos séculos XV e XVI. gurado seu lugar na história. Não é pre-
dar a Nação, o Estado nacional, e reivin- Essas viagens, em conjunto, foram uma ciso ficar dando à carta o nome de certi-
dicar a colonização para assegurar o ter- mudança na história do mundo, porque dão de nascimento ou de batismo do
ritório e manter os escravos. Nega e rei- retiraram as civilizações da insularidade. Brasil. O seu texto prescinde dessas de-
vindica a colonização para se legitimar. A partir dai elas se interpenetram de for- signações anacrônicas.
Fazer isso é uma coisa muito complica- ma conflituosa, em um processo que só Posteriormente, em 1627, Frei Vi-
da. Não é por acaso que o presidente hoje parece adquirir todos os seus con- cente do Salvador escreveu a Historiada
Fernando Henrique Cardoso, depois de tornos. Quer dizer, a história moderna custódia do Brasil. É fantástica a sua vi-
se comparar a Getúlio, se comparou a tem sentido para toda a humanidade. Já são! Ele conseguiu elaborar uma fórmu-
Bonifácio. José Bonifácio também tinha as histórias antiga e medieval só têm sen- la para definir a economia colonial: é
de fazer a abertura do Brasil para o mun- tido para a Europa. É a partir do século uma produção simples de mercadorias
do, mas não podia querer, por exemplo, XVI que começa a ter sentido falar de com acumulação primitiva de capital
abolir a escravidão. José Bonifácio, como, uma história universal. Não é por acaso comercial autônomo. Tudo isso está na
Thomas Jefferson nos Estados Uni- que as primeiras histórias da humanida- obra de Frei Vicente, quando ele diz: "fi-
dos, os dois patriarcas, têm textos clarís- de, de caráter não-religioso, são as dos cavam agarrados ao litoral como caran-
simos sobre isso. cronistas portugueses. guejos. E se ensinassem os papagaios a
Qual foi a grande dificuldade falar, o que primeiro lhes ensinariam
Quais são os cronistas do período
de Bonifácio? seria: 'papagaio real pera Portugal —, e
colonial que melhor captaram essa
acrescenta: "porque tudo querem para
Foi essa contradição: ter de negar a realidade?
lá". Isso em negrito. Acumulação primi-
colonização e ao mesmo tempo reivin- Eu reli recentemente a carta do Pero tiva de capital comercial autônomo!
dicá-la. A história é contraditória. Os Vaz de Caminha para fazer um comen- Não é que a produção seja feita para lá;
portugueses são, sim, os criadores do tário para uma nova edição do texto. A é para acumular lá.
Brasil, mas ao mesmo tempo o Brasil se carta é fantástica. Era um escrivão e, si- O que é curioso, é que o Frei Vicen-
formou contra eles. Nossa tendência, na multaneamente, um escritor. Normal- te tenha, em 1627, essa visão de conjun-
história da Independência, é acentuar o mente os escrivães costumam ser o fim to, essa visão profunda que posterior-
segundo aspecto para afirmar, nossa da picada como escritores, mas ele es- mente regride na historiografia do Bra-
identidade, aquilo em que somos dife- crevia bem. E tinha uma percepção agu- sil. Frei Vicente é muito mais agudo na
rentes, o que provoca ti conflito. A dos da do que acontecia. Quando ele come- sua compreensão, ele tem muito mais
historiadores portugueses é acentuar a ça a narrar os encontros — estou falando percepção da colonização e da estrutu-
continuidade. Eu fico danado quando dos desencontros de culturas —, come- ra da colônia do que, por exemplo, o
vejo meus colegas historiadores embar- tendo conscientemente um anacronis- historiador Sebastião da Rocha Pita que,
carem na onda da continuidade. Um dos mo, eu afirmaria que há dois textos dia- em 1720, escreveu a História da Améri-
princípios da escola da Nova I listória é a logando na sua carta: um é o "fetichis- ca Portuguesa. No fim do século XVIII,
longa duração. Fazer a história da longa mo da mercadoria", de Karl Marx; outro quando está começando a se gestar
duração seria trabalhar aquilo que é mais é o "Ensaio sobre o dom", do Marcel uma certa consciência nacional, todos
significativo. Começa-se, então, a achar Mauss. É a lógica da mercadoria e a nor- os cronistas fazem história regional: Frei
que a Independência, por exemplo, não ma da dádiva. Os portugueses queriam Gaspar da Madre de Deus, em São Pau-
é importante, porque é uma coisa muito trocar coisas com os índios. Os índios lo; Accioly na Bahia; Pizarro, Baltazar da
rápida, que dura alguns anos, no máxi- não entendiam a troca, você dá uma coi- Silva Lisboa, no Rio de Janeiro etc.
mo alguns decênios. Esse diálogo é inte- sa para o outro, o outro lhe dá outra. O Quando não havia essa consciência na-
ressante e precisa ser feito no transcur- português queria dar um colar, ia atrás cional, Frei Vicente fala como se hou-
so dessas comemorações. dos índios, quando eles se retiravam para vesse, percebe que ela está latente.
as aldeias, com o colar. Daqui a pouco
Mas o que significam as comemorações
vinham dois índios, um de cada lado do Quando se pode falar e qual é o sentido
dos quinhentos anos?
português, e acenavam à caravela para de se falar em nação brasileira? Qual é
Significam esse equivoco! Não que viessem buscar porque eles não que- lugar que ocupa, na formação nacio-
quer dizer, por exemplo, que as viagens riam o colar e também não queriam que nal, o processo colonial?
não foram importantes. O significado da sujeito ficasse lá. Que coisa impressio- A própria idéia de sistema colonial
viagem de Cabral é o significado que ela nante! Pero Vaz de Caminha tinha asse- é uma forma de evitar o anacronismo.

l11 • abr/mai/jun 2000


56
Quando iniciei meus estudos sobre o identidade regional. Ao contrário da radoxal: a historiografia brasileira, que
sistema colonial ainda não tinha muita América espanhola, cuja população de começa com Frei Vicente, andou para
clareza a respeito disso, mas nos meus origem européia chamava-se a si mes- trás. No século XVIII as memórias são
últimos trabalhos sobre o tema já esta ma, desde o inicio, de criollos. Criollo é o todas locais, todas são histórias regio-
va bastante consciente desta questão, branco nascido na América espanhola. nais. Não há um que faça história geral.
formulando o problema a partir dos três Aqui no Brasil não há nenhuma palavra Os cronistas se aproximaram da visão
recortes na ordem certa— o lógico, o cro que corresponda a criollo. da metrópole, para a qual a colônia é
nológico e, depois, o espacial. Então, enquanto já no século XVI um conjunto de capitanias que se rela-
Quando fazemos história do Brasil os hispano-americanos têm uma sen- cionam diretamente com Portugal. O
temos o recorte lógico: o Brasil. O que é sação de identidade própria, aqui tínha- vice-rei do Rio de Janeiro tem pouco
o Brasil? É um povo, que se constitui em mos uma identificação negativa: sabía- poder.
uma nação, que se organiza como um mos o que não éramos, "nós não somos
Estado. História do Brasil é contar como reinóis", que era o português nascido no Isso remete para o problema da preser-
isso aconteceu. E o primeiro elemento Reino. É uma coisa terrível, porque o vação da unidade territorial da América
é que isso aconteceu no bojo de um fe- sujeito, que não sabe o que é, é um su- portuguesa e da fragmentação da Amé-
nômeno chamado colonização. Portan- jeito sem identidade. Somos um povo rica espanhola, para a relação entre Es-
to, o recorte correto do ponto de vista de macunaimas! tado e Nação. É a Nação que se expressa
lógico não é Brasil, é colonização. Do No Diálogo das Grandezas do Bra- no Estado ou é o Estado que constitui a
ponto de vista cronológico, não é 1500, sil, de 1618, há um pouco disso. É um Nação?
é 1530, começo da colonização, na área diálogo de um sujeito que está no Reci- A relação entre Nação e Estado é
que depois veio a ser o Brasil. fe, se chama Brandônio, com um ami- sempre complicada. Na Europa, na épo-
A colonização em geral é o recorte go, que está em Lisboa e se chama Alvia-
correto, de onde saio conceito de siste- ca moderna, o principio de unificação do
no. O diálogo inteiro é o Brandônio di- Estado é a realeza e não a nacionalida-
ma colonial. E colonização portuguesa zendo "você não me entende. Só há um
é a amostragem do recorte. Você não de. A monarquia usa a nacionalidade
jeito de você entender isso aqui, vir para como instrumento ideológico para jus-
precisa estudar toda a colonização para cá". Ele está defendendo a nova terra.
estudar a história do Brasil, mas tem tificar guerras e disputar territórios. A
O problema de guando começa o Brasil soberania encarna-se no rei. Quando
que estudar a estrutura da colonização.
é o mesmo de guando começa a histo- Luís XIV invade o Franco Condado, ele
Na medida que se afunila pata a colo-
nização portuguesa, vai se procurando riografia brasileira. As crônicas dos sé- usa o argumento de que ali se fala fran-
culos XVI, XVII e XVIII são parte da his- cês; quando ele invade a Alsácia e a Lo-
ver como essa colônia foi se transfor-
mando numa nação. toriografia portuguesa ou brasileira? rena, usa o argumento ligado à idéia de
Não há como distinguir... fronteiras naturais, já que lá todos são
Antes da segunda metade do século
alemães! Isso mostra o que era o Estado.
XVIII não temos nada. Surge, então, Estou querendo escrever sobre
uma consciência por parte das popula- No caso do Brasil, a Independên-
isso, para chegar a uma conclusão pa- cia ocorre no século XIX, quando o mo-
ções daqui de como elas eram diferen-
tes dos portugueses. Estou falando dos
colonos brancos, claro. O que aparece Enquanto já no século XVI os
primeiro é um mal-estar presente na
idéia de diferença. Só mais tarde é que
começam a perceber o choque de inte-
hispano-americanos tinham uma
resses. Brasileiro, até o século XIX, signi-
ficava comerciante de pau-brasil. A au-
sensação de identidade própria,
todesignação, na América portuguesa, se
dá primeiro regionalmente: no século aqui esse sentimento só aparece na
XVIII se fala em paulistas; no século XVII,
desde a guerra holandesa, se fala em per- segunda metade do século XVIII
nambucanos; se fala em maranhenses,
em fluminenses. A tomada de consciên-
cia da identidade nacional é posterior à

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vimento das nacionalidades procurava Martín e de Bolívar conquistaram o Portanto, ele só quis abranger o territó-
fazer com que os Estados coincidissem país, reuniram-se em Guayaquil e resol- rio em que tinha segurança de que con-
com as nações. Vários acabaram conse- veram impor a independência. Por quê? trolava a mão-de-obra.
guindo. A Polônia virou uma nação. Mas Porque entre 1781 e 1783, 0 conflito tra-
a Suíça até hoje tem quatro nacionali- vado com Tupac Amaru matou milha- E no Brasil em contrapartida não houve
dades e um Estado. res de pessoas. O senhoriato não queria movimentos independentistas fortes...
Na América, a melhor forma para mais ouvir falar de independência. No Brasil houve duas inconfidên-
entender as forças em jogo no processo Quando se começa o processo de inde- cias, a da Bahia e a de Minas. A da Bahia
de independência é assistir ao filme do pendência, tudo vai depender da resis- — a Revolta dos Alfaiates — é muito mais
Gillo Pontecorvo, Queimada. É a crise do tência da metrópole: se for preciso mo- radical. Como resultado, foram enforca-
sistema colonial com tudo: a Inglaterra, bilizar os "de baixo", o que aconteceu na dos quatro inconfidentes. Esta inconfi-
a metrópole, a ilha, a plantation típica, a América espanhola, o risco aumenta. dência da Bahia pôs um tal medo no
elite colonial, os escravos. Só não tem os Mas lá havia mais a servidão de índios senhoriato que eles abandonaram qual-
índios. Ali é possível ter idéia de como a do que a escravidão, que era pouca. E é quer idéia de independência. A de Mi-
coisa funcionava no concreto. possível mobilizar servos, mas não se nas não criou tanto impacto porque não
No Brasil, temos um problema pode mobilizar escravos. Não se pode ameaçou tanto. A da Bahia tinha escra-
complicado. Há uma precedência do dar o fuzil para eles e depois querer ti- vos, tinha negros. Era um movimento
Estado, mas de um certo tipo, o Estado rar. Dentre os fatores importantes da simultaneamente abolicionista. Eram
metropolitano. Este é um Estado cindi- abolição no Brasil encontra-se a Guer- descendentes de escravos. Os quatro
do, porque a relação entre o Estado e a ra do Paraguai. que foram mortos eram mulatos: Ma-
sociedade é uma na colônia e outra na nuel Faustino, João de Deus, Luís Gon-
metrópole. Na colônia, a classe domi- Mas o que levou à divisão da América
zaga das Virgens e Lucas Dantas. O Dan-
nante não é a elite dirigente. A classe espanhola?
tas é o único que destoa, não é uni nome
dominante aqui é o senhoriato colonial, Há certas tendências econômicas, popular, os outros são todos nomes ex-
dos donos de terra e de gentes. Eles têm mas que não explicam tudo. Em primei- tremamente populares. Nenhum virou
ares de senhores, porque receberam as ro lugar, há uma tomada de consciên- herói nacional. Isso é notável. Mesmo a
terras por doação e conquistaram as gen- cia maior da identidade, que vem des- Inconfidência Mineira só começou a ser
tes pela violência e pelo dinheiro. São de o século XVI. Ademais, a Espanha re- tratada depois da Proclamação da Re-
senhores e querem ser nobres. sistiu mais, teve mais força, o conflito foi pública e mesmo esta não incorporou
A Independência representa então, mais radical, e eles tiveram que mobili- esses quatro heróis. Só recentemente a
de certa forma, ajustar a sociedade ao zar os "de baixo". Mobilizaram, mas na bibliografia passou a falar do assunto.
Estado. A Nação funciona para esse hora em que o senhoriato chegou ao po- Em Minas o único sujeito que vi-
ajuste, é inventada para dizer: "nós so- der, ele quis continuar explorando-os. via falando sobre a questão da escravi-
mos o Brasil." Esse "nós" abrange índios,
negros, a plebe urbana e o senhoriato.
Como se para os negros e os índios hou-
vesse alguma diferença entre ser gover-
nado pelo senhorita() ou pela metrópo- A Revolta dos Alfaiates foi muito mais
le. Na verdade, houve diferenças sim,
mas para pior. radical que a Inconfidência Mineira.
Se a força de baixo, os índios servi-
lizados ou negros escravizados, é uma Era abolicionista. Tinha participação de
ameaça muito grande, a tendência do
senhoriato é, no limite, se lançar nos
braços da metrópole. Onde houve rebe-
escravos e negros livres. É notável que a
liões muito fortes, o senhoriato se lança
nos braços da metrópole para conter a historiografia brasileira a ignore
insurgência das camadas de baixo, O
Peru, por exemplo, só se tornou Inde-
pendente porque os exércitos de San

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dão era o Tiradentes. O pessoal se reu- artigo, que tem um título bom: "Será o que a Nação se encontrasse com o Es-
nia, discutia a Constituição, a cor da Bonifácio?" tado. Isso, diz Jefferson, é feito pela Re-
bandeira, e o Tiradentes a perguntar: "e
Então é central tratar do problema da
pública. O José Bonifácio não precisa
os escravos?" Aí eles inventavam uma
escravidão.
dizê-lo, porque é a monarquia que ga-
coisa para aquietar o Tiradentes, que era
rante o encontro da Nação com o Esta-
insistente e obcecado, que só queria fa- Exato. Tanto Jefferson como Boni- do. Os dois achavam que dever-se-ia
lar dos escravos. Não por acaso ele foi fácio perceberam que havia uma con- fazer paulatinamente a abolição. A úni-
enforcado. tradição entre fazer a independência ca diferença entre eles — e um não leu o
Como era a política colonial portuguesa
em nome da liberdade e do liberalismo outro — é sobre o que fazer com os ne-
nesse período? e manter metade da população escra- gros depois da libertação. Bonifácio diz
va. Mas eles perceberam também que que todo brasileiro diz: "Eles vão sen-
A política portuguesa era muito ou mantinham a escravidão e faziam a do integrados na sociedade brasileira
agressiva. O reformismo ilustrado em independência; ou faziam a abolição e aos poucos." Jefferson diz: "Mandamo-
Portugal é um dos movimentos mais perdiam a independência ou a unidade los de volta para África." O calvinista e
brilhantes do fim do século XVIII. É no- territorial. São três termos: unidade ter- jesuíta! Criaram um Estado lá e que-
tável a capacidade daqueles estadistas. ritorial, independência e escravidão. riam mandar os negros de volta. Eles só
Quando havia uma ameaça e o senho- Jefferson disse: "se abolirmos a escravi-
nato ficava com medo da base, a me- não foram porque se recusavam a en-
dão podemos chegar à independência, trar no navio. "Não queríamos vir para
trópole fazia uma política desenvolvi- mas não teremos a unidade, porque cá, agora que viemos vocês nos agüen-
mentista, e eles tendiam a se aproximar nem todos os estados vão ficar unidos". tem". Estão agüentando até hoje!
da metrópole. E quando D. João VI veio Claro, os estados que tinham escravis-
para cá, tivemos um caso curioso em mo não entrariam. Bonifácio é mais ra- Assim, tivemos um Estado unitário, se-
que o Estado foi à frente das demandas dical, disse: "se abolirmos a escravidão nhorial, e uma população que não se re-
da sociedade. D. João VI transformou o não vamos ter independência". A inde- conhecia como nação?
Brasil na sede do Império e foi muito pendência é feita por realismo político. Sim, mas tendencialmente isso foi
além das demandas do senhoriato co- Quem a queria? O senhoriato. Não era sendo alterado, num processo cujo fio
lonial. O Estado deu mais coisas do que possível fazer a independência contra condutor é a vida concreta das pessoas.
a sociedade estava pedindo. Por isso, eles. Por que a reação de Jefferson é ou- Apesar de escravos, eles estavam viven-
eles só começaram a falar eirándepen- tra? Porque lá a escravidão não domi- do, sentindo, constituindo uma cultura
dência quando os portugueses exigiram nava toda a colônia, enquanto aqui comum. E essa consciência hoje existe.
a volta do rei e apareceu o risco de des- abrangia a totalidade. A população se identifica com o Brasil.
manchar o que já estava feito. Por isso, Os americanos adoram vir ao Bra-
a Independência do Brasil é uma revo- sil estudar a abolição; os melhores livros Qual é o sentido, então, dessas come-
lução conservadora. Urna colônia virar sobre a abolição no Brasil são deles. Eles morações dos quinhentos anos em uma
uma nação soberana é uma revolução. mesmo dizem que o seu ponto de par- sociedade com essas raízes?
Mas ela é conservadora porque se fez tida é saber como foi possível aqui re- O sentido das comemorações é o
para conservar algo que já tinha sido solver um problema dessa gravidade sentido que elas sempre têm. Fala-se em
feito no período joanino. sem guerra civil. A razão é óbvia. Como quinhentos anos do descobrimento do
A América espanhola se fragmen- poderia haver uma guerra civil no Bra- Brasil para dar legitimidade à Nação, à
tou porque teve de mobilizar os "de bai- sil se todo o território era uma socieda- pátria, para dizer que ela é uma das mais
xo", radicalizando o movimento. AArné- de escravista? A única guerra que pode- antigas da América. Mas mesmo se pen-
rica portuguesa não se fragmentou por- ria haver era dos escravos contra os se- sarmos em colonização, isso está erra-
que não radleallzou e não teve de mo- nhores de escravos. E para evitar esta é do. Porque a colonização começou em
bilizar para baixo. Aliás, não podia ra- que se fez a Independência e se tratou 1532, com Martim Afonso de Souza.
dicalizar, porque em baixo estavam os de fazer paulatinamente a abolição. Antes disso, o que eles fizeram foi dei-
escravos. Por isso há vinculação entre É curioso que tanto Jefferson como xar uma pedra, um marco.
escravidão e unidade territorial, coisa Bonifácio tenham percebido que não se
que o José Bonifácio percebeu. Quan- podia fugir do problema e que a solu- José Corrêa Leite e Walnice Nogueira
do o Fernando Henrique se comparou ção seria a mesma para os dois, ou seja, Gaivão
ao Bonifácio, um jornalista escreveu um são membros do Conselho de Redação
a promoção paulatina da abolição, para de TD

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