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REVISTA TRIMESTRAL DA FUNDAÇA0 PERSEU ARRAMO - ano 13
4
- n° 44 - abrimai/jui 2000 - 8,00 '
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Adilson endes Ana Bock • Carrtitftn•
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arão Reis Filho •lMt10 Cabral
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*14. de Mello • Fernando Novais •
3 Francisco de Oliveira • ilamilton
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ir.cle Souza José Luis Fiori • José
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Mindlif5 Maria da Conceição Tavares
plga Futemma • Olgaria Matos
Pal Singer Pedro Tierra • Renato
Ortiz Silviano Santiago à Suettinio
Sares Valença Wladimir Pomar ;1!,.•
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4 REPORTAGEM
Brasil 500 anos:
As polêmicas de uma data
histórica
Hamilton Octavio de Souza
10 ECONOMIA
Política e economia na
formação do Brasil
Maria da Conceição Tavares
14 INTERNACIONAL
A globalização e o Brasil no
fim do segundo milênio
Paul Singer
19 ENSAIO
A..
2001: O Brasil no espaço
José Luís Fiori
NACIONAL
31 A ilusão do Estado brasileiro
Francisco de Oliveira
34 As metamorfoses do mesmo
Pedro Tierra
60 CULTURA
A cultura brasileira hoje
Depoimentos de Ana Bock,
f Evaldo Cabral de Mello, José
,t Mindlin, Olgária Matos, Renato
. Ma Ortiz, Silviano Santiago e
27 SOCIEDADE Suetônio Soares Valença
Entrevista com Carmem
Junqueira 64 Desenredo brasílico
por José Corrêa Leite Chico Alencar
52 ENTREVISTA
A invenção do Brasil
Fernando Novais
por José Corrêa Leite e
Walnice Nogueira Galvão
70 VIDEVIDEO
A expressão da
não-contemporaneidade
Adilson Inácio Mendes e
Olga Futernmá
75 CARTAS
76 Oswald de Andrade
O poeta desta edição
Flávia Ribeiro
A artista desta edição
O poeta desta edição
Entre os feitos da geração modernista figura uma redescoberta do Brasil. Segundo confessa
Oswald de Andrade, a sua ocorreu na Place Clichy, em Paris. Essa foi a geração que,
I I 11'1 '
além de revolucionar as letras e as artes, procurou mapear o pais e sua herança. Contam- DO Panou DOS TRARAIIIADORES
se entre as tarefas que levou a cabo uma jornada a Minas Gerais, para conhecer o barroco Coordenador Editorial
Ricardo de Azevedo
mineiro, e a excursão de Mário de Andrade à Amazônia, relatada em° turista aprendiz.
Editora -assistente
Oswald seria ainda o criador e teorizador do movimento antropofágico (1928), que Rose Spina
propunha uma relação muito especial com o colonizador, através da devoração dele. O Editora de Arte
lhana Kestenbaum
manifesto do movimento é atrevidamente assinado e datado como do "Ano 374 da Departamento Comercial
deglutição do bispo Sardinha", alçando um evento estudado nos livros escolares. Cizele Santos
A redescoberta implicou uma volta às páginas dos cronistas e viajantes, nossos primeiros Conselho de Redação
Alipio Freire, Ria Pardi, Carlos Nelson
historiadores, leitura que deixou sinais na obra de muitos deles, como em Raizes do Coutinho, Jose Corréa 1.cite. Luiz Diflui,
Brasil de Paulo Prado, em Macunaima de Mário de Andrade e na poesia de Oswald. Maria Rita Kelt', Ozeas Duarte, Paul Sille, •r
Ricardo Azevedo. Rui Falcão. Waln ,
Integra Pau Brasil (1924) um ciclo de pequenos poemas, intitulado "História do Brasil", Nogueira Galvào.1Vladirn ir Pon,...
efetuando recortes naquelas páginas, aproveitando as delícias de sua linguagem e a Conselho Editorial
Adeli Sell, Antonio Albino Rubi'',
cândida percepção dos portentos do Novo Mundo, desde a nudez das índias até o Bernzirdo Kucinski. Carlos Eduardo (,,,,
improvável bicho-preguiça. (coar Benjamin. (:id Benjamin, Clara ,
Daniel riarao teis V", David Capistrai
O poema "Erro de português", de 1925, pertence ao livro Primeiro caderno de poesia Costa Edmilson Rodrigues, Edu:: •
Suplicy, Enunanuel Jose Appel, Emiliann
do aluno Oswald de Andrade (1927). Nele, a aparente espontaneidade coloquial mal Ernainia Alaricato, Fernando I laddad.
encobre a sofisticação da fatura. Expõe aos olhos do leitor, com notável economia de Aguiar. Flavio Koutzii, Francisco José
Teixeira, Gilney Vianna, I lamilton
meios, o confronto entre duas culturas, expresso na oposição entre os verbos vestir/ lacob Gorender, João Antimio de Paul.: ;
despir. Assim, ironicamente, atribui o poder do colonizador de oprimir o colonizado Machado, João Pedro Stedile, Jorge Almeida.
Jorge Biliar, Jorge Mai toso, Jorge Viana.
apenas ao clima - que aliás era tema do grande debate racial que assinalou a época. As Jose Eduardo Dutra. José Graziano da Sin.,
Kabengele Nb:manga, Lauro Campos.
raças inferiores ou misturadas em nossa formação seriam responsáveis pelo atraso, ou Konder, Luis Carlos de Menezes. juiz
também o clima tropical? Era coincidência que todos os países brancos e ricos ficassem Baravelli, 1.11i% I titia, 1.11iti Pilla
Marco Aurelio Garcia, Maria da Con,•'
no hemisfério norte, ou o frio espicaçava a operosidade? A notar ainda o feliz jogo do 'Lavares, Maria Ednalva 'luzerna de I
duplo sentido mobilizado no poema. Primeiro, nas dimensões concreta e abstrata da Marina Silva, Mauricio Segall, Pedro 1,
Guimarães, Raimundo Moacir Lima F.,. 1,,
palavra "pena", exploradas com perícia. Depois, o clichê do significado corrente do Onine Ribeiro, Rogerio Menezes. Ro.,,,;.!
Rocha. Sergio 'essa, Sergio Klamberti.
titulo - em que "português" se refere à língua -, ao ser deslocado para pessoas, se Resende. 'faina Bacelar. Tarso (enro,111:1,1,11.11
metamorfoseia em amplo e ominoso comentário histórico. Palmeira, Wilson Umno, Wolfgang Leo
Walnice Nogueira Gaivão, do Conselho de Redação de TD Fundação Perseu Abram()
Diretoria Executiva
Presidente I.uiz Dulci
Vice-presidente - fila), Abra, ,
A artista desta edição Diretor - Ilamilton Pereir..
Diretor • Ricardo de Azeved,.
Flávia Ribeiro nasceu em São Paulo em 1954. Optou por uma formação não tradicional, ao Conselho Curador
Flávio Rodrigues da Silva (presidente).
freqüentar o curso experimental na "Escola Brasil" nos anos 70, onde passou a conviver Clara AM. Conceição de Maria Nascimento,
Flávio Koutzii, Geraldo Pastana, Gilberto
com artistas como José Resende, Carlos Fajardo, Baravelli, Babinsky, entre outros. Fre- Carvalho, Iria Charão, Jorge Bittar, Marco
qüentou como ouvinte o curso de pós-graduação em gravura na Universidade de Londres. Aurélio Garcia, Maria da Conceição Tavares.
Mónica Valente, Nalu Faria, Obvio Dutra. Ennio
Seja em desenho, gravura, fotografia ou escultura, seus trabalhos tratam de questões de Arruda Sampaio. Ronald Rocha, Rui 1:,,k ,I0,
Selma Rocha. Tânia Bacelar, Vicente)
relativas à passagem do bi para o tridimensional, mais precisamente o limite que Wladirnir Pomar, Zezéu Ribeiro.
define esta passagem. Por meio da observação e exploração minuciosa da natureza, a Jornalista Responsável
artista busca associar corpos e dimensões em uma condição de extrema fragilidade. Rose Spina MT') 15816
Assinaturas
Em seus trabalhos mais recentes, as imagens criadas conquistam o espaço, provocando Marta Coerin, Márcio Machado e Melro
ao mesmo tempo um surpreendente efeito de imaterialidade e levitação, apesar do Esta revista foi composta nas fontes Iltupia,
material utilizado: o estanho. Frutiger e Rotis Sans
Fotolitos
Flávia participou de diversas exposições, individuais e coletivas, não só no país como Graphbox
no exterior, tais como: Redescobrimento + 500, Fundação Bienal de São Paulo, 2000; Impressão
Caran Gráfica
XX e XXIII Bienal Internacional de São Paulo, Fundação Bienal 1989 e 1996;
Rua Francisco Cruz, 234
V Bienal Internacional de Istambul, 1997; Arte Cidade III, 1997; Panorama da Arte CEP 04117-091
Atual Brasileira, Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1990 e 1993. Fone (011) 571-4299 Fax 10111 573-3336
e-mail: td@fpabramo.org.br
Desde 1998 expõe regularmente na Galeria Millan em São Paulo. http://www.fpabramo.org.br
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A invenção do
Entrevista com Fernando Novais
por José Corrêa Leite e Walnice Nogueira Gaivão
A comemoração dos quinhentos anos vención de América, um belíssimo tex- Igreja na América Latina, escritos na
tem como referência á viagem de Pedro to em que diz que não há descobrimen- perspectiva da Teologia da Libertação.
Álvares Cabral, conhecida como de des- to da América porque ela não existia; Mas se essa obra tem contribuições no-
cobrimento do Brasil, da mesma forma havia, sim, um território. A América foi táveis, leni tanilft'm um viés complica-
que a carta de Pero Vaz de Caminha fi- inventada, não descoberta! O Brasil do. A Teologia da Libertação diz, por
cou conhecida como a certidão de batis- também teria que ser inventado. E cer- exemplo, que a verdadeira catequese
mo do Brasil. As primeiras coisas a se tamente não foi Pedro Álvares Cabral tem que preservar a cultura do índio. Eu
discutir são, assim, a viagem de Cabral e quem inventou o Brasil, da mesma for- perguntei num debate: "mas como vo-
a carta de Caminha.
ma que a América não ki inventada por es vão preservar a cultura do índio, se,
A viagem de Cabral suscita, pelo Colombo. nela, a religião é fundamental?" Aí os
menos, dois probleinas: O primeiro, O desdobramento dessa idéia dá, teólogos dessa corrente dizem: "Nós
muito discutido, é que a tradição e a bis- por vezes, lugar a equívocos. Um deles acreditamos que o cristianismo seja
toriogralla deramá sua viagem o nome se desenvolveu nos anos 60 e 70: se essa compatível com qualquer cultura". Ora,
de "descobrimento do Brasil", o que en- é a visão do vencedor, do colonialismo isso é uma matéria de fé, que não pode
volve um claro eu rocentri sino. Se os e do imperialismo, então a nossa histó- ser dum i insulais.
portugueses descobriram os tup I ni ria teria que ser escrita do ponto de vis-
quins, tupinambás etc., foram também ta contrário, isto é, do vencido, dos ín- Por que os historiadores começaram a
descobertos pelos índios. Falar em des- dios. Isso é um delírio, porque não po- ter essa reação depois dos anos 50?
cobrimento do Brasil, como em desco- demos nos converter em índios. Esse Os povos daqui eram iletrados, sua
brimento da América, é a visão do ven- revisionismo - procurar fazer história história era oral, eles não tinham regis-
cedor. Isto tem sido muito discutido. sem etnocentrismo - produziu algumas tros escritos. O que temos de história
Nos anos 50, o historiador mexicano obras interessantes, como, por exemplo, são os escritos europeus, alguns melho-
Edmundo O'Gorman escreveu La in- os novos trabalhos sobre história da res, outros piores. Frei Vicente do Sal-
1( i 1 * abr/mai/jun 2000
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não acreditava em Deus". Ele disse: "vo- re riscos e pode não se constituir por acidente de percurso - e há brasileiros
cês estão lendo Rabelais, como se Ra- causa das revoltas separatistas. O que é que ainda engolem isso. Desaparece o
belais tivesse lido Kant, Freud, Marx, que se cria então? O Instituto Histórico caráter conflituoso da separação. É tudo
Comte, Darwin, que vocês leram e ele e Geográfico Brasileiro. De que uma "ajudado" pela própria história.
não leu! Vocês têm que ver como ele foi nação precisa? Território e passado. Já Dessa forma, quando se fala que a
lido pelos contemporâneos. Algum con- se fez o recorte da história, começando viagem do Cabral é o descobrimento do
temporâneo leu 'tabelais e disse que ele naturalmente por Cabral, porque é o Brasil é preciso fazer as duas críticas, a
era ateu? Não. Então, ele não podia ser que se conhecia, tinha tradição e docu- crítica do etnocentrismo, que está na
ateu. Porque isso é anacronismo". E mentação. Como os índios não tinham palavra "descobrimento", e a crítica do
conclui dizendo o mais importante: "o documentos escritos, não entravam na anacronismo, que está na palavra "Bra-
verdadeiro critério para avaliar o texto história. Com o passar do tempo, vêm
sil". É essa distinção que as pessoas não
de um historiador é saber em que me- as ciências sociais e dizem: "mas isso é percebem. É fazer a história da colônia
dida ele evitou o anacronismo. Quanto muito reacionário, dizer que os índios como se ela estivesse destinada a se tor-
mais consegue evitar, melhor o texto de não têm história". Passa a entrar, então, nar uma nação. Ninguém descobriu
história, quanto menos consegue evitar, tudo que soubermos dos índios brasi-
pior". ninguém e o Brasil só existiria muito
leiros - isto é, índios residentes no Bra- depois.
Ilá, porém, um tipo de história em
sil -, outra loucura completa. Começa-
que o anacronismo é um problema se a procurar o que se sabe dos índios Como o anacronismo se manifesta na
mais grave. É quando o objeto do dis- antes de Cabral... Nada disso é história história do Brasil?
curso h istoriográfico é a nação; aí o ana- do Brasil!
Estuda-se, por exemplo, a história
cronismo é inevitável! Porque uma na-
Quando o país foi colônia isso ain- de Beckmann no Maranhão. Ele virou
ção precisa de um passado para se legi- da é pior. Você pode evitar o anacronis- um herói nacional, antecessor de Tira-
timar. Vamos tomar uma historiografia mo num país que se formou pela jun- dentes e coisas do tipo. Beckmann foi
de ponta, a francesa. Quando começa a ção de feudos; é mais fácil evitar o ana- enforcado realmente, punido pela Co-
história da França? Na Gália romana. cronismo num país que era um feudo e roa porque prendeu o governador e o
Mas isso não tem, rigorosamente, nada virou monarquia, como Portugal. Mas mandou de volta para a metrópole. Mas
a ver. O território da Gália romana esta- numa colônia que vira nação, como en- quais eram suas reivindicações? Primei-
va destinado a ser a França? Seria como tra a história da metrópole? A tendên- ro, reivindicava que a Coroa chamasse
começar a história da Hungila com a cia do metropolitano é dizer que ele é o os jesuítas de volta para Portugal, por-
província romana da Panõriia...
criador do país, e no caso do Brasil, que que eles atrapalhavam o uso dos índi-
Quais são os pressupostos do anacronis- somos criação de Portugal. A questão do os, impedindo sua escravização. Segun-
mo em história? anacronismo em história nacional é do, como não se tinha índios para tra-
uma desgraça; quando a nação foi co- balhar, tinha-se que comprar escravos
É uma inversão na ordem, no re- lônia é uma desgraça maior, e entre as africanos. Mas só se podia comprar da
corte do objeto. Todo objeto histórico nações que foram colônia, nenhuma é
Companhia de Comércio, que colocava
tem três recortes. Primeiro, o recorte tão complicada como o Brasil.
o preço nas nuvens. Logo, as grandes
lógico: qual é o assunto? do que se vai
Há uma desproporção fantástica reivindicações desse herói eram o direi-
tratar? Segundo, o recorte cronológico: entre a pequenez da metrópole e a to de escravizar os índios e de comprar
quando aconteceu? Terceiro, o recorte imensidão da colônia. Isso faz com que escravos africanos a preço baixo.
espacial: onde aconteceu?
os portugueses, muito legitimamente,
Quando e por que a colônia vai se
Mas a seqüência deve seguir essa procurem entender por que é assim.
transformando numa nação? Como a
ordem, porque é o lógico que coman- Mas ai eles querem dizer que tinham nação se gesta dentro da colônia? A In-
da. Não se pode inverter. Quando se re- uma vocação para navegadores, para dependência do Brasil foi um processo
corta o território da nação e entende descobrir o mundo, para semear na- político de extrema complexidade, que
como história da nação tudo que se ções. Dizem: "a colonização portugue- não se resolve com anacronismo.
sabe que aconteceu dentro daquele ter- sa é diferente das outras. As outras vi- É por isso que um político como
ritório, o anacronismo é inevitável. savam à exploração. Nós não, nós so- José Bonifácio é fantástico. Ele merece a
Começa-se a construir a historio- mos criadores de nações." O resultado designação de patriarca. Ele é obrigado
grafia brasileira em 1838, em plena Re- disso é os portugueses quererem expli- a negar a colonização e, ao mesmo tem-
gência, quando o Estado nacional cor- car a Independência do Brasil como um po, não pode deixar de reivindicá-la.
59 1d * abr/mai/jun 2000