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Prefácio
A presente obra foi escrita em Londres durante o verão
de 1850, sob a impressão direta da contrarrevolução que
acabava de ocorrer. Apareceu, naquele mesmo ano, nos
números 5 e 6 da Nova Gazeta do Reno, revista
econômico-política dirigida por Karl Marx, em Hamburgo.
Meus amigos políticos na Alemanha desejam reimprimi-
la e eu concordo com esse pedido porque, infelizmente,
é ainda hoje, um trabalho de grande atualidade.
Não pretendo fornecer documentação pessoal inédita;
ao contrário, todo o material referente aos levantes
camponeses e a Tomás Münzer foi tomado de
empréstimo a Zimmermann cujo livro, apesar de
apresentar algumas lacunas, continua sendo a melhor
coleção de fatos sobre a matéria. Acima de tudo, o velho
Zimmermann ama seu assunto com ardor. Esse mesmo
instinto revolucionário que em tudo aqui se manifesta a
favor da classe oprimida, fez dele um dos melhores
representantes da extrema esquerda de Frankfurt.
Se é verdade que falta a Zimmermann coesão interna
em sua exposição, se é verdade que não chega a
apresentar as questões religiosas e políticas debatidas
na época como a imagem fiel das lutas de classe
contemporâneas, que não vê nessas lutas senão
oprimidos e opressores, bons e maus e finalmente o
triunfo destes últimos, e que sua concepção dos
acontecimentos sociais que de fato determinaram a
explosão e o resultado da luta é extremamente
defeituosa, todas essas faltas cabem à época em que
seu livro apareceu. Pode-se mesmo dizer que, em seu
tempo, foi um livro muito realista constituindo louvável
exceção entre as obras históricas dos idealistas alemães.
Traçando o curso histórico da luta apenas em suas
linhas gerais, minha exposição procura mostrar, como
consequências necessárias da vida social das classes, a
origem da guerra dos camponeses, as posições tomadas
pelos diversos partidos que dela participaram, as teorias
políticas e religiosas através das quais esses partidos
procuraram explicar sua atitude e, enfim, o resultado da
luta. Em outras palavras, empenho-me em provar que o
regime político da Alemanha, os levantes contra esse
regime, as teorias políticas e religiosas da época não
eram causas, mas resultados do grau do
desenvolvimento a que tinham chegado, naquele país, a
agricultura, a indústria, as vias de comunicação, as
finanças e o comércio. Tal concepção, que é a única
concepção materialista da história, provém de Marx; não
é minha. Vamos encontrá-la em seus trabalhos sobre a
revolução francesa de 1848-1849, publicados na referida
revista e no 18 Brumário de Luís Bonaparte.
O paralelo entre as revoluções alemãs de 1525 e
1848-1849 era por demais flagrante para que eu não
fosse tentado a estabelecê-lo, à época em que escrevi a
presente obra. Não obstante, ao lado da semelhança do
curso geral dos acontecimentos, notadamente a de que,
em ambos os movimentos, tivessem sido os exércitos
dos príncipes os repressores de todas as insurreições
locais e ao lado da semelhança, às vezes levada ao
ridículo, da conduta da burguesia urbana, persistem
ainda, nos dois casos, diferenças claras e sensíveis:
“A quem aproveitou a revolução de 1525? Aos
príncipes. A quem aproveitou a revolução de
1848? Aos grandes soberanos, o da Áustria e o
da Prússia. Por trás dos pequenos príncipes de
1525, estavam, ligados a eles pelo pagamento dos
impostos, os pequenos burgueses; por trás dos
grandes monarcas de 1850 e dos soberanos da
Áustria e da Prússia, estavam os grandes
burgueses modernos que os submeteram
rapidamente por meio da dívida do Estado. E,
finalmente, por trás dos grandes burgueses
encontrava-se o proletariado”.
Lamento ter de dizer que nesta frase se faz muita
honra à grande burguesia alemã, que bem teve
oportunidade, tanto na Áustria como na Prússia “de
submeter rapidamente” a monarquia “por meio da
dívida de Estado”, mas que, nunca, em parte nenhuma,
disso soube aproveitar-se inteligentemente.
Com a guerra de 1866 a Áustria caiu, como um fruto
maduro nas mãos da burguesia que, entretanto, não
soube se prevalecer, pois é impotente e incapaz do que
quer que seja. Só sabe fazer uma coisa: castigar os
trabalhadores que protestam. Ainda está no governo
porque os húngaros precisam dela.
E na Prússia? É verdade que a dívida cresceu
desmedidamente; os deficits orçamentários são
constantes; as despesas públicas aumentam de ano
para ano; os burgueses têm a maioria da Câmara; sem
eles não se pode nem aumentar os impostos nem obter
novos empréstimos, — mas onde está então seu poder
sobre o Estado? Há apenas alguns meses, quando o
orçamento novamente apresentou deficit, sua posição
era excelente. Fossem apenas um pouco mais enérgicos
e teriam arrancado muitas concessões. Ora, que fizeram
então? Consideraram concessão suficiente o fato do
governo dignar-se a permitir-lhes depositar a seus
pés 9 milhões e isto não apenas este ano, como também
todos os anos próximos.
Não desejo queixar-me desses pobres "nacionais-
liberais” da Câmara mais do que eles merecem. Digo
que foram abandonados pelos que estão por trás deles,
pela massa da burguesia; esta não quer reinar: a
lembrança de 1848 ainda está muito viva nela.
Mostraremos mais adiante porque a burguesia alemã
demonstrou uma covardia tão extraordinária.
Quanto ao resto, a frase citada linhas acima se
encontra inteiramente confirmada. Depois de 1850,
vemos que os pequenos estados que servem apenas de
instrumentos das intrigas prussianas e austríacas, vão
decisivamente caindo para um plano cada vez mais
secundário; que as lutas pela hegemonia se processam
cada vez mais violentamente entre a Áustria e a Prússia,
lutas essas que encontram enfim a solução violenta de
1866, em virtude da qual a Áustria conserva suas
próprias províncias; que a Prússia submete, direta, ou
indiretamente, todo o Norte já que os três Estados do
Sudoeste se acham momentaneamente eliminados.
Para a classe operária alemã todos esses grandes
acontecimentos de estado apresentam apenas a
importância seguinte:
• Primeiro, graças ao sufrágio universal os operários
obtiveram a possibilidade de se fazer representar
diretamente na Assembleia legislativa.
• Segundo, a Prússia deu à Áustria o bom exemplo,
escamoteando mais três coroas pela graça de Deus.
Os próprios nacionais-liberais não creem mais, depois
desse procedimento, que ela possua a mesma corôa
imaculada pela graça de Deus que antes se lhe
atribuía.
• Terceiro, na Alemanha não há mais do que um
adversário sério da revolução: o governo prussiano.
• Quarto, os austro-alemães têm de dizer, de uma
vez por todas, o que desejam ser: alemães ou
austríacos? Preferem a Alemanha ou suas anexações
transleitanas? Já há muito que se tornou evidente que
eles devem decidir-se a fazer a escolha, mas a
democracia pequeno-burguesa nisso sempre se
dissimulava.
No que se refere aos outros litígios importantes do ano
de 1866, e depois discutidos com exasperação entre os
“nacionais-liberais” de um lado, e os “populistas”, do
outro, a história dos anos seguintes provou que esses
dois pontos de vista se combatiam com tanta violência
apenas porque são os polos opostos de um mesmo
espírito tacanho.
No ano de 1866, em quase nada mudavam as relações
sociais na Alemanha. As raras reformas burguesas —
sistema uniforme de pesos, liberdade de circular,
liberdade profissional, etc., tudo isso restrito a limites
burocráticos, — não atingem, mesmo, ao nível
conquistado já havia muito tempo pela burguesia de
outros países da Europa ocidental, e deixa, além disso
intacto, o principal flagelo, isto é, o sistema de
autorizações burocráticas. De resto, para o proletariado
todas estas leis sobre a liberdade de circular, sobre o
direito de cidadania, sobre a supressão dos passaportes,
etc., tornaram-se perfeitamente ilusórias pelas práticas
policiais correntes.
Muito mais importante do que os acontecimentos de
Estado de 1866, é o desenvolvimento, na Alemanha,
depois de 1848, da indústria e do comércio, dos
caminhos de ferro, dos telégrafos e da navegação
transoceânica a vapor. Se bem que tais progressos, no
mesmo lapso de tempo fossem ultrapassados pelos da
Inglaterra e mesmo da França, são contudo, inéditos
para a Alemanha e deram-lhe, no curso desses vinte
anos, mais do que lhe deu qualquer século de outro
período. Somente nos dias atuais acha-se a Alemanha
entrosada de maneira irrevogável e verdadeira, no
comércio mundial. Os capitais dos industriais
acumularam-se rapidamente, aumentando
consequentemente a importância social da burguesia. O
sintoma mais certo da prosperidade industrial, a
especulação, florescia abundantemente e os condes e
duques acorrentavam-se a seu carro triunfal. O capital
alemão, — que a terra lhe seja leve, — constrói agora
estradas de ferro russas e romenas, enquanto que, há
apenas quinze anos, as estradas de ferro alemãs
mendigavam o apoio das empresas inglesas. Como é
então possível que a burguesia não haja também
conquistado o domínio político e se conduza tão
covardemente em face do governo?
A burguesia alemã, tem a infelicidade, — o que está
bem de acordo com o procedimento favorito dos
alemães, — de chegar sempre tarde demais. Sua
prosperidade coincide com um período em que a
burguesia dos outros países da Europa ocidental está
politicamente em declínio. Na Inglaterra a burguesia não
pôde fazer seu próprio representante, Bright, entrar no
governo senão ao preço de uma extensão do direito
eleitoral, fato que, por suas consequências, porá
necessariamente termo a todo domínio burguês.
Na França, onde a burguesia como classe governou
apenas dois anos, de 1849 a 1850, sob a república não
pôde prolongar sua existência social senão colocando
sua dominação política e seu exército nas mãos de Luís
Bonaparte. E dada a influência recíproca, infinitamente
ampliada dos três países europeus mais adiantados não
é mais possível hoje que a burguesia possa
tranquilamente instaurar seu poder político na Alemanha
enquanto que em França e na Inglaterra mal consegue
sobreviver. Uma particularidade que distingue a
burguesia de todas as classes que governaram antes
dela é que, em seu desenvolvimento, há um retrocesso a
partir do qual todo acréscimo de seus meios de poder,
principalmente, de seus capitais apenas contribui, a
torná-la cada vez mais inapta ao domínio político.
Por trás dos grandes burgueses estão os
proletários. A burguesia engendra o proletariado à
medida que desenvolve sua indústria, seu comércio e
seus meios de comunicação. E em certo momento, que
não é necessariamente o mesmo em toda parte e não
deve, de maneira absoluta atingir o mesmo grau de
desenvolvimento, começa a perceber que seu
companheiro de viagem, o proletariado, a sobrepuja a
passos largos. A partir desse momento perde a força de
manter exclusivamente seu domínio político; procura
aliados com que dividir seu poder ou a quem ceder
completamente, conforme as circunstâncias.
Na Alemanha, esse ponto de retrocesso tinha sido
atingido pela burguesia já em 1848 e nesse momento a
burguesia alemã amedrontou-se mais com o proletariado
francês do que com o proletariado alemão. Os combates
de junho de 1848 mostraram-lhe o que a esperava. A
agitação do proletariado alemão servia para provar-lhe
que lá também a semente fora lançada para a mesma
colheita e a partir desse dia o ponto de ação política da
burguesia ficou enfraquecido. Procurou aliados; vendeu-
se a eles por todo preço, e hoje, não está nem mais um
passo à frente.
Esses aliados são todos de caráter reacionário: a
realeza com seu exército e sua burocracia, a grande
aristocracia feudal, os pequenos proprietários rurais sem
importância e mesmo a padraria. A burguesia pactuou e
uniu-se com toda essa gente somente para salvar a sua
preciosa pele até que não lhe restou mais nada com que
traficar. E quanto mais o proletariado se desenvolvia
mais começava a sentir seu caráter de classe e a agir
com sua consciência de classe, mais os burgueses se
tornavam pusilânimes. Quando a prodigiosamente má
estratégia dos prussianos, triunfou em Sadowa sobre a
estratégia ainda pior dos austríacos, foi muito difícil dizer
qual dos dois respirou com mais alívio e alegria: se o
burguês prussiano, também batido em Sadowa, se o
austríaco.
Nossos grandes burgueses agiram, em 1870,
exatamente como os burgueses médios de 1525. Quanto
aos pequenos burgueses, artesãos e botiqueiros,
permaneceram os mesmos. Esperam elevar-se às fileiras
da grande burguesia; temem ser lançados no
proletariado. Entre o medo e a esperança, salvarão a
pele durante a luta, e depois se juntarão ao vencedor:
tal a sua natureza.
A ação política e social do proletariado seguiu o ritmo
do impulso industrial depois de 1848. O papel hoje
desempenhado pelos trabalhadores alemães em seus
sindicatos, cooperativas, organizações e reuniões
políticas, nas eleições e no pseudo Reichstag, já mostra
que transformação sofreu a Alemanha,
imperceptivelmente, nestes últimos vinte anos. A maior
honra dos operários alemães foi enviar ao Parlamento,
por si sós, operários e representantes operários,
enquanto que nem os franceses nem os ingleses ainda o
conseguiram.
Mas o proletariado não se encontra mais em nível que
permita o paralelo com o ano de 1525. A classe, vivendo
do salário exclusivamente e durante toda sua vida, está
ainda longe de constituir a maioria do povo alemão,
Consequentemente também está obrigada a procurar
aliados. E estes não podem ser encontrados senão entre
os pequeno-burgueses, entre o Lumpenproletariat das
cidades e os pequenos camponeses e assalariados
agrícolas.
Já falamos dos pequenos burgueses. São vacilantes,
salvo após a vitória e então soltam gritos de triunfo
ensurdecedores, nas tabernas. Contudo, há entre eles
alguns ótimos elementos que se juntam
espontaneamente aos trabalhadores.
O Lumpenproletariat representa elementos
corrompidos de todas as classes sociais e tem seu
quartel-general nas grandes cidades, sendo, de todos os
aliados possíveis, o pior. Esse grupo é absolutamente
venal e impudente. Quando os operários franceses
inscreveram o dístico, “Morte aos ladrões!”, nas casas,
durante as revoluções, chegando mesmo a fuzilar mais
de um assaltante, não o fizeram certamente por
entusiasmo pela propriedade e sim com a consciência de
que era, antes de tudo preciso livrar-se desse bando.
Todo chefe operário que emprega esses vagabundos
como defensores, ou que se apoia neles prova que não
passa de um traidor do movimento.
Os pequenos camponeses, — isso porque os
grandes fazem parte da grande burguesia, — são de
diversas categorias.
Ou são camponeses feudais que prestam ainda
serviços pessoais ao seu nobre senhor. Depois que a
burguesia faltou à sua obrigação de libertar essas
criaturas da servidão, não será difícil persuadi-los de que
só da classe operária podem esperar sua libertação.
Ou são os rendeiros. Nesse caso as condições são as
mesmas da Irlanda. A renda é tão elevada que, quando a
colheita é média, o camponês e sua família mal podem
subsistir, e quando é má ficam quase famintos; o
rendeiro não se encontra mais em condições de pagar a
renda e cai totalmente sob a dependência do
proprietário feudal ficando à sua mercê. Por essas
criaturas a burguesia nada faz senão aquilo a que é
forçada a fazer. De quem então, senão dos operários,
podem elas esperar seu bem-estar?
Restam ainda os camponeses que cultivam seu próprio
pequeno pedaço de terra. Esses estão
frequentemente tão carregados de hipotecas que ficam
dependendo do usurário na mesma extensão que o
rendeiro do proprietário da terra. A eles também nada
resta além de seu miserável salário, muitas vezes
incerto porque depende da boa ou má colheita. Podem
menos que todas as outras categorias esperar qualquer
coisa da burguesia porque são precisamente os mais
premidos pelo burguês e pelo capitalista usurário.
Contudo são frequentemente muito apegados à sua
propriedade se bem que na realidade ela não lhes
pertença, e sim ao usurário. Pode-se, não obstante,
persuadi-los de que serão libertos do usurário quando
um governo dependente do povo transforme todas as
dívidas hipotecárias em uma dívida universal ao Estado
e reduzir assim as taxas de juros. Ora, só a classe
trabalhadora pode realizar isto.
Em toda parte onde dominam a grande propriedade e
a propriedade média os operários agrícolas
assalariados constituem a classe mais numerosa do
campo. É o caso de toda a Alemanha do Norte e do Este
e é lá que os operários industriais da cidade encontram
seu aliado natural mais numeroso.
Entre o grande proprietário de terra ou o grande
agricultor e o trabalhador agrícola há as mesmas
relações que entre o capitalista industrial e o trabalhador
industrial. As mesmas medidas que ajudam um devem
também ajudar o outro. Os operários industriais não
podem se libertar senão transformando o capital dos
burgueses, isto é, as matérias primas, as máquinas e
ferramentas, e os víveres necessários à produção, em
propriedade social, o que quer dizer em propriedade por
eles utilizada em comum. Do mesmo modo os
trabalhadores agrícolas não se libertarão de sua terrível
miséria sem antes de tudo ser o objeto de seu trabalho,
a terra, arrancada da propriedade privada dos grandes
camponeses, dos grandes senhores feudais,
transformada em propriedade social e cultivada
coletivamente pelas cooperativas de trabalhadores
agrícolas. Aqui encontramos de novo a célebre decisão
do congresso operário internacional de Basileia1
proclamando que a sociedade tem interesse na
transformação da propriedade feudal em propriedade
coletiva, nacional. Esta decisão se referia sobretudo aos
países onde existe a grande propriedade feudal e a
exploração de vastos domínios com um único senhor e
muitos assalariados. Ora, tal situação predomina
sempre, em geral, na Alemanha e é por isso que a
decisão em questão era particularmente oportuna
para esse país, depois da Inglaterra. O proletariado
dos campos, — os assalariados agrícolas, — constitui a
classe onde se recrutam, em sua grande massa, os
exércitos dos soberanos. É a classe que, em virtude do
sufrágio universal, envia agora ao Parlamento toda esta
cambada de senhores feudais e de proprietários rurais;
mas é também a classe mais aproximada dos operários
industriais urbanos, que participa com eles das mesmas
condições de existência, sendo ainda mais miserável.
Essa classe é impotente porque se acha esmagada e
dispersa, mas o governo e a aristocracia conhecem bem
sua força oculta, deixando deliberadamente as escolas
no marasmo a fim de que ela permaneça ignorante. A
tarefa mais importante do movimento operário alemão é
vivificar essa classe e arrastá-la consigo. No dia em que
a massa dos trabalhadores agrícolas compreender seus
próprios interesses será impossível à Alemanha ter um
governo reacionário, feudal, burocrático ou burguês.
***
As linhas precedentes foram escritas há mais de
quatro anos, mas conservam ainda hoje toda a sua
significação. O que era verdade depois de Sadowa e da
partilha da Alemanha confirmou-se depois de Sedan e da
fundação do Santo-Império alemão “da nação
prussiana”. Quão ínfimas são as transformações que
podem imprimir ao curso do movimento histórico os
acontecimentos dramáticos, “capazes de abalar o
mundo”, da chamada grande política!
O que esses movimentos dramáticos podem, ao
contrário é acelerar a rapidez desse movimento, e, a
esse respeito, os autores dos “acontecimentos
dramáticos” acima narrados tiveram, involuntariamente,
sucesso que certamente não desejaram de maneira
nenhuma, mas aos quais, por bem ou por mal, são
obrigados a se resignar.
A guerra de 1866 já sacudira a velha Prússia em suas
bases mais profundas. Custou-lhe muito manter presos à
velha disciplina, depois de 1848, os elementos
industriais rebeldes, tanto burgueses quanto proletários,
das províncias ocidentais; mas o conseguiu, e mais uma
vez predominaram no Estado os interesses dos
latifundiários das províncias orientais e os do exército.
Em 1866, quase toda a Alemanha do Noroeste tornou-
se prussiana. Omitindo-se a falta moral, irreparável, que
a corôa prussiana, pela graça de Deus, cometeu
engolindo três outras corôas também pela graça de
Deus, esse acontecimento foi de extrema importância,
pelo deslocamento considerável em direção ao Oeste, do
centro de gravidade da monarquia. Os cinco milhões de
renanos e de westfalianos foram reforçados, primeiro
diretamente, pelos quatro milhões, — e depois
indiretamente pelos seis milhões, — de alemães
anexados pela aliança da Alemanha do Norte. E em 1870
se lhes juntaram ainda os oito milhões de alemães do
Sudoeste, de sorte que desde então, no “novo Império’,
aos catorze milhões e meio de velhos prussianos (das
seis províncias do Elba oriental nas quais havia dois
milhões de poloneses) opunham-se os vinte e cinco
milhões que tinham, depois de muito tempo, deixado o
estado de feudalismo velho- prussiano dos senhores
rurais. Foi assim que as vitórias do exército prussiano
abalaram todos os fundamentos do edifício do estado
prussiano; a dominação dos senhores rurais tornava-se
cada vez mais intolerável, mesmo para o governo.
Porém, ao mesmo tempo, o desenvolvimento industrial
extremamente rápido tinha substituído a luta entre
senhores rurais e burgueses, pela luta entre burgueses e
operários, de sorte que em sua estrutura interna, as
bases sociais do velho Estado sofreram uma
transformação total. A monarquia, que se decompunha
lentamente depois de 1840, teve, como condição
fundamental de existência, a luta entre a aristocracia e a
burguesia, luta na qual mantinha o equilíbrio; a partir do
momento em que ela veio proteger, não mais a
aristocracia contra a pressão da burguesia, mas, todas
as classes proprietárias contra a pressão da classe
trabalhadora, a velha monarquia absolutista teve de
passar completamente à forma de estado elaborada
especialmente nesse momento: a monarquia
bonapartista. Analisei antes (A questão da residência,
2.° fasc., p. 26 e seguintes) essa passagem da Prússia ao
bonapartismo. O que não cabia fazer ressaltar ali, mas
que é essencial aqui, é que essa transição foi o maior
passo à frente que a Prússia deu a partir de 1848; até
então a Prússia tinha ficado à retaguarda do
desenvolvimento moderno. Ainda hoje é um estado
semifeudal enquanto que o bonapartismo é, de certo
modo uma forma moderna do Estado que implica na
supressão do feudalismo. A Prússia deve, portanto,
decidir-se a liquidar seus restos feudais e a sacrificar
seus proprietários rurais, em suas características
principais. Naturalmente isso ocorre sob as formas mais
atenuadas e, como diz o provérbio, “Quem vai devagar,
vai sem parar”. Isso aconteceu por exemplo com a
famosa organização das regiões. Suprimiram-se os
privilégios feudais do proprietário rural sobre sua terra
apenas para se restabelecerem privilégios da união de
todos os grandes proprietários feudais sobre toda região.
A coisa subsiste; apenas se traduz do dialeto feudal para
o idioma burguês. Transforma-se pela força o velho
proprietário rural prussiano em alguma coisa semelhante
ao squice inglês e ele não precisa resistir tanto pois
cada um é mais tolo do que o outro.
Foi assim então que o estranho destino da Prússia quis
que ela atingisse, em fins deste século XIX, sob a forma
agradável do bonapartismo, sua revolução burguesa
começada em 1808-1813 e que se prolongou um pouco
até 1848. E se tudo for bem, se o mundo permanecer
sereno e tranquilo, quando todos nós já formos muito
velhos, poderemos talvez ver, em 1900, o governo da
Prússia suprimir todas as instituições feudais e a própria
Prússia atingir enfim o ponto em que se encontrava a
França em 1792.
A supressão do feudalismo, se queremos ser positivos,
significa a instauração do regime burguês. À medida que
caem os privilégios aristocráticos, a legislação se torna
burguesa. E aqui nos encontramos no próprio âmago das
relações da burguesia com o governo. Vemos que o
governo foi constrangido a introduzir essas reformas
lentas e medíocres. Mas, à burguesia ele apresentou
cada uma dessas pequenas concessões como um
sacrifício feito aos burgueses, como uma concessão
arrancada à, corôa, e a muito custo, concessão em troca
da qual os burgueses deviam, por sua vez, ceder um
pouco ao governo.
E os burgueses, mesmo sabendo muito bem quem se
encontrava por trás de tudo isso, se deixaram enganar.
Daí esse convênio tácito que se encontra à base de
todos os debates da Câmara: de um lado o governo, a
passos de tartaruga, reforma as leis no sentido do
interesse burguês; afasta os obstáculos ao
desenvolvimento da indústria criados pelo feudalismo e
o particularismo dos pequenos Estados; estabelece a
unidade da moeda, dos pesos e medidas; introduz a
liberdade profissional e de circulação, pondo à completa
e ilimitada disposição do capital a mão de obra da
Alemanha; favorece o comércio e a especulação; por
outro lado a burguesia abandona ao governo todo o
poder político efetivo; vota os impostos e os
empréstimos; cede-lhe soldados e ajuda-o a dar às
novas reformas tal aparência legal que o velho poder
policial mantém toda sua força ante os indivíduos
recalcitrantes; a burguesia compra sua emancipação
social gradual ao preço de uma renúncia imediata de seu
próprio poder político. Naturalmente o motivo principal
de semelhante convênio, aceitável por parte da
burguesia, não é o medo ao governo, mas ao
proletariado.
Por mais lamentáveis que sejam as manifestações da
nossa burguesia no domínio político, é inegável que sob
a relação industrial e comercial nada faz senão cumprir
com seu dever. O desenvolvimento da indústria e do
comércio que assinalamos na introdução da segunda
edição da presente obra, aumentou depois, com ainda
maior ímpeto. O que se produziu nesse sentido depois
de 1869, na região industrial renano-westfaliana é
verdadeiramente inédito para a Alemanha e faz lembrar
o surto dos distritos fabris ingleses ao começo do século.
O mesmo acontece no Saxe e na Alta Silésia, em Berlim
e Hanôver e nas cidades marítimas. Afinal temos um
comércio mundial, uma indústria verdadeiramente
grande, uma burguesia verdadeiramente moderna; por
outro lado, sofremos igualmente um verdadeiro krach2 e
temos também um proletariado verdadeiro, poderoso.
Para o historiador do futuro, o troar dos canhões de
Spichern, Mars-la-Tour e Sedan e tudo o que se seguiu
terá muito menos importância na história da Alemanha
de 1869-1874 que o desenvolvimento sem pretensões,
calmo, mas ininterrupto, do proletariado alemão.
Já em 1870, os operários alemães deveriam sofrer
uma rude prova: a provocação guerreira bonapartista e
seu efeito natural: o entusiasmo nacional geral da
Alemanha. Os operários socialistas alemães não se
deixaram iludir um instante. Não manifestaram o menor
chauvinismo nacional. Em meio à mais louca torrente de
vitórias, permaneceram frios, exigiram uma “paz
aceitável com a república francesa e sem anexações”; e
o próprio estado de sítio não pôde reduzi-los ao silêncio.
Não se deixaram influenciar nem pela glória dos
combates, nem pelos hinos à “magnificência do império
alemão”; sua única finalidade ficou sendo a libertação de
todo o proletariado europeu. Pode-se bem dizer: os
operários de nenhum outro país foram jamais, até a
presente data, submetidos a uma prova tão pesada e tão
brilhantemente suportada.
Ao estado de sítio do tempo de guerra seguiu-se o
processo de alta traição, lesa-majestade e ofensa aos
funcionários do governo, depois as perseguições policiais
incessantes de tempo de paz. O Volkstaat3 tinha, regra
geral, três ou quatro de seus redatores constantemente
na prisão; os outros jornais estavam mais ou menos na
mesma situação. Todo orador do partido um pouco
conhecido tinha de, pelo menos uma vez por ano,
comparecer ante os tribunais que, com grande
regularidade, o condenavam. Banimentos, confiscos,
dissoluções de reuniões caíam como saraiva, mas tudo
em vão. Cada militante preso ou expulso era substituído
por outro; por cada reunião dissolvida convocavam-se
duas outras; triunfou-se sobre a arbitrariedade policial,
por meio da exaustão, pelo sangue frio e pela estrita
observância das leis. Todas as perseguições produziram
efeito contraproducente; longe de debilitar e liquidar o
partido operário, trouxeram-lhe sem cessar novos
elementos, novos militantes, reforçaram sua
organização. Em sua luta contra as autoridades, tanto
quanto contra os burgueses individualmente, os
operários se mostraram em toda parte, intelectual e
moralmente, superiores a eles e provaram, notadamente
em seus conflitos com os “empregadores”, que eram os
operários, os homens cultos da época, enquanto que os
capitalistas eram os ignorantes. E assim conduziam suas
lutas com um bom humor que prova quanto estavam
certos de sua causa e conscientes de sua superioridade.
Uma luta assim conduzida, sobre terreno historicamente
preparado, deve dar grandes resultados. Os sucessos
obtidos nas eleições de janeiro4 permanecem únicos no
moderno movimento operário até esta data e a
estupefação que suscitaram em toda Europa era
perfeitamente justificada.
Os operários alemães têm, sobre os do resto da
Europa, duas vantagens fundamentais. Primeiro,
pertencem ao povo mais teórico da Europa; além disso
conservaram o senso teórico que desapareceu de
maneira tão completa da Alemanha chamada “culta”. Se
não houvesse existido anteriormente a filosofia alemã,
particularmente a de Hegel, o socialismo científico
alemão, o único socialismo científico que até hoje
existiu, não teria sido jamais fundado. Sem o senso
teórico dos operários eles não assimilariam jamais o
socialismo científico na escala em que o fizeram. E o que
prova a vantagem infinita disto é, de um lado, a
verificação de que a indiferença em relação a toda teoria
é uma das causas principais do pequeno progresso do
movimento operário inglês, apesar da excelente
organização dos sindicatos e, por outro lado, a desordem
e a confusão provocadas pelo proudhonismo em sua
forma inicial, entre os franceses e os belgas, e a seguir,
na caricatura de Bakunin, entre os espanhóis e os
italianos.
A segunda vantagem é o atraso com que os alemães
apareceram no movimento operário; foram quase os
últimos. Assim como o socialismo teórico alemão não
esquecerá jamais que se ergueu sobre os ombros de
Saint-Simon, Fourier e Owen, — três homens que, apesar
de toda a fantasia e utopia de suas doutrinas, aparecem
entre os maiores cérebros de todos os tempos,
antecipando-se genialmente a todas as ideias cuja
justeza hoje demonstramos cientificamente, — o
movimento operário prático alemão também não deve
nunca se esquecer de que se desenvolveu sobre os
ombros dos movimentos operários inglês e francês, e
que pôde aproveitar as experiências tao custosamente
obtidas, e evitar no presente seus erros, no passado
inevitáveis, em sua minoria. Sem a experiência das
trade-unions inglesas e das lutas políticas do
proletariado francês, sem o impulso gigantesco dado
particularmente pela Comuna de Paris, onde nos
encontraríamos hoje?
Deve-se reconhecer que os trabalhadores alemães
souberam aproveitar-se das vantagens de sua situação
com rara inteligência. Pela primeira vez, depois de se
formar o movimento operário, a luta se conduz em suas
três direções: teórica, política e econômico-prática
(resistência contra os capitalistas), com tanto método e
coesão. É nesse ataque concêntrico, por assim dizer, que
reside a força invencível do movimento alemão.
De um lado, em virtude de sua posição vantajosa, de
outro, por obra das particularidades insulares do
movimento inglês e da violenta repressão do movimento
francês, os operários alemães, estão no momento, na
vanguarda da luta proletária. É impossível predizer-se
porquanto tempo se manterão nesse posto de honra.
Mas enquanto o ocuparem, cumprirão seu dever
convenientemente, é de esperar-se... Para isso devem
redobrar seus esforços em todos os domínios da luta e
da agitação. Será principalmente dever dos chefes se
esclarecerem cada vez mais sobre todas as questões
teóricas; libertarem-se cada vez mais da influência das
frases tradicionais, pertencentes a concepções
antiquadas do mundo e de jamais esquecer que o
socialismo, após tornar-se uma ciência, quer ser tratado,
isto é, estudado como uma ciência. A tarefa consistirá,
em seguida, em difundir com carinho crescente, entre as
massas operárias, as concepções sempre mais claras
que desse modo adquirir e a consolidar cada vez mais
poderosamente a organização do partido e dos
sindicatos. Se bem que os votos socialistas manifestados
em janeiro representem já um belo exército estão ainda
muito longe de constituir a maioria da classe
trabalhadora alemã; e quanto mais encorajadores forem
os sucessos alcançados com a propaganda entre a
população rural, restará ainda muito o que fazer nesse
terreno.
Faz-se mister, pois, não relaxar o combate; é preciso
arrancar do inimigo, uma cidade, uma circunscrição
eleitoral após outra; mas, antes de tudo, trata-se de
manter o verdadeiro espírito internacional que não
admite nenhum chauvinismo patriótico e que saúda com
alegria todo novo progresso do movimento operário,
qualquer que seja a nação de onde provenha. Se os
operários alemães continuam a agir assim, não digo que
marcharão à frente do movimento, — não interessa ao
movimento que os operários de uma nação qualquer
marchem à sua frente, — mas ocuparão um lugar
honroso no campo de luta; estarão armados e prontos
quando pesadas e imprevisíveis provas, ou grandes
acontecimentos exigirem deles muito mais coragem,
decisão e ação.

Londres, 1.° de julho de 1874.


Friedrich Engels
Antelóquio
Também o povo alemão tem sua tradição
revolucionária. Tempo houve em que a Alemanha
produzia homens que se podem comparar aos melhores
revolucionários de outros países, em que o povo alemão
mostrava uma perseverança e energia que, em uma
nação centralizada, haveriam produzido os resultados
mais grandiosos. Naquela época os camponeses e
plebeus alemães acariciavam projetos que ainda hoje
causam espanto a seus descendentes.
Diante do cansaço momentâneo que quase em toda
parte se nota ao cabo de dois anos de lutas, é oportuno
apresentar de novo ao povo alemão as figuras rudes,
fortes e tenazes da grande guerra camponesa.
Transcorreram três séculos e as coisas mudaram
muito; não obstante, a guerra dos camponeses não se
encontra tão distante de nossas lutas atuais e muitas
vezes temos de combater os mesmos adversários de
então. As mesmas classes e frações de classes que
traíram o movimento de 1848 e 1849 são as que
encontramos como traidoras em 1525 se bem que em
etapa inferior de desenvolvimento. E, se no movimento
dos últimos anos o vandalismo vigoroso da guerra
camponesa não se manifestou senão em algumas partes
do Odenwald, da Floresta Negra e da Silésia, isso não
constitui, precisamente um patrimônio da insurreição
moderna.
1. Situação Econômica e Estrutura
Social da Alemanha
Examinemos, em síntese, a situação da Alemanha em
princípios do século XVI.
A indústria alemã adquirira notável desenvolvimento,
nos séculos XIV e XV. A indústria artesã das cidades
tinha substituído a indústria feudal do campo que passou
a ter uma importância puramente local; produzia para
um círculo mais amplo, inclusive para mercados
distantes. A arte de tecer a lã e o linho se generalizara e,
em Augsburgo, se manufaturavam panos e tecidos dos
mais finos. Ao lado dos teares crescera aquela indústria
vizinha da arte, cujo sustentáculo era o luxo eclesiástico
e secular dos fins da Idade Média: a dos joalheiros,
ourives, escultores, entalhadores, gravadores, armeiros,
medalheiros, torneiros, etc.
Uma série de invenções mais ou menos importantes,
das quais as mais notáveis foram a da pólvora e a da
imprensa, tinha contribuído para o aumento da
produção. Com a indústria, desenvolvia-se o comércio.
Graças ao monopólio secular da navegação, exercido
pela Liga Hanseática, toda a Alemanha do Norte lograra
emancipar-se da barbárie medieval se bem que tivesse
de retroceder, a partir de fins do século XV, ante a
concorrência de ingleses e holandeses. A grande rota
comercial da Índia para o norte continuava atravessando
a Alemanha. Apesar das descobertas de Vasco da Gama,
Augsburgo continuava a ser o grande empório de tecidos
de seda italianos, das especiarias da Índia e de todos os
demais produtos do Oriente. As cidades do Sul,
principalmente Augsburgo e Nuremberg, ostentavam
uma riqueza e um luxo consideráveis para a época.
Na produção de matérias primas, também grandes
progressos tinham sido realizados. No século XV, os
mineiros alemães tinham a fama de ser os mais hábeis
do mundo e o florescimento das cidades retirara da
agricultura sua primitiva barbárie medieval. Grandes
extensões de terra foram preparadas para o plantio,
cultivavam-se plantas para tinturaria e outras plantas
importadas, cujo cultivo diligente produziu ótimos efeitos
sobre a agricultura em geral.
Entretanto, o desenvolvimento da produção nacional
da Alemanha não pudera alcançar o de outros países. A
agricultura era muito inferior à da Inglaterra e Países
Baixos e a indústria, à da Itália, Flandres e Inglaterra. A
competição dos navegadores ingleses e, sobretudo, dos
holandeses, começava a fazer sentir seus efeitos. A
população ainda era, além disso, muito escassa. Na
Alemanha a civilização existia apenas em estado
esporádico, agrupada em tomo de alguns centros
industriais e comerciais; os interesses desses centros
eram divergentes: faltavam os pontos de contacto. O sul
tinha vias de comunicação e mercados muito diversos
dos do norte; o este e o oeste mal se comunicavam.
Nenhuma cidade pudera chegar a ser o centro
econômico do país, como Londres já o era na Inglaterra.
O tráfego interior dispunha tão somente da navegação
costeira e fluvial e de umas quantas vias comerciais que,
de Augsburgo e Nuremberg, iam, por Colônia, aos Países
Baixos e que, por Erfurt, seguiam em direção ao norte.
Afastadas dos rios e estradas, havia grande número de
cidades pequenas que, excluídas das grandes
comunicações, continuavam vegetando nas condições
de vida da Idade Média, sem consumir mercadorias de
fora e sem exportar seus produtos. Entre a população
rural, apenas a aristocracia tinha algum conhecimento
do mundo exterior e dos novos costumes e
necessidades; a massa camponesa não tinha mais do
que relações puramente locais e, por conseguinte, um
horizonte bastante limitado.
Enquanto que na França e na Inglaterra o
desenvolvimento do comércio e da indústria acarretou a
criação de interesses gerais no país inteiro e com isso, a
centralização política, a Alemanha não passou do
agrupamento de interesses por províncias, em torno de
centros puramente locais o que trouxe consigo a
fragmentação política que logo se estabilizou pela
exclusão da Alemanha do comércio mundial. A medida
que decaía o Império puramente feudal, decompunha-se
a união dos países e os grandes vassalos se
transformavam em príncipes quase independentes. As
cidades livres e os cavaleiros do Império formavam
alianças e guerreavam-se entre si, ou contra os príncipes
e o imperador. O poder imperial começou a duvidar de
sua própria missão e vacilava entre os diferentes
elementos constitutivos do Império, perdendo
paulatinamente toda a sua autoridade. Seu intento de
centralização à maneira de Luís XI, por muita intriga e
violência que empregasse, não pôde fazer nada mais do
que salvar os domínios imperiais da Áustria. Quem saiu
ganhando com esta confusão, nessa inumerável série de
conflitos contraditórios, foram os representantes da
centralização dentro da fragmentação, isto é os
partidários da centralização local e provincial: os
príncipes, em comparação com quem, o próprio
imperador era apenas um príncipe a mais.
Nessas circunstâncias a situação das classes sociais da
Idade Média se transformara por completo e novas
classes se formaram ao lado das antigas.
Os príncipes haviam saído da alta nobreza. Eram
quase independentes do imperador e desfrutavam de
todos os direitos de soberania. Declaravam a guerra e
concluíam a paz a seu bel-prazer. Mantinham exércitos
permanentes, convocavam as dietas, decretavam os
impostos. Já mandavam sobre uma parte da pequena
nobreza e das cidades e se valiam de todos os meios
para incorporar as cidades e baronatos restantes e que
ainda dependiam do Império. Diante destes agiram
como centralistas, mostrando-se, ao contrário,
anticentralistas em relação ao poder imperial. Seus
métodos de governo eram bastante autoritários. Não
convocavam os Estados senão quando não lhes restava
outra saída. Decretavam impostos e negociavam
empréstimos. O direito de aprovação dos impostos pelos
estados era raramente reconhecido e, ainda mais
raramente aplicado. Ainda assim o príncipe quase
sempre obtinha a maioria graças ao apoio dos dois
estados que, livres de tributos, desfrutavam do produto
dos impostos: os cavaleiros e o clero. As necessidades
dos príncipes aumentavam com o luxo e importância da
vida cortesã, com exércitos permanentes e com os
crescentes gastos de governo. A carga tributária se fez
mais pesada. Grande parte das cidades estava protegida
por seus privilégios e toda carga recaía em cheio sobre
os camponeses; tanto sobre os dos domínios dos
príncipes, como sobre os servos de seus cavaleiros.
Quando não bastava o imposto direto, acrescentava-se o
indireto. Recorreram às manobras mais engenhosas da
arte financeira para encher os vazios do erário. Quando
já não restava outro caminho, tendo se empenhado o
que era possível empenhar, quando todas as cidades
livres imperiais se recusavam a conceder mais crédito,
os príncipes recorriam a operações monetárias das mais
sujas: cunhavam moeda falsa e lhe impunham curso
forçado, alto ou baixo, conforme as conveniências do
fisco. O tráfico com toda a sorte de privilégios citadinos
que se anulavam depois de vendidos para que
pudessem ser revendidos mais caros, o aproveitamento
de toda a intenção de oposição como pretexto para toda
classe de incêndios e saques, etc. Essas eram as fontes
de renda seguras e cômodas a que recorriam os
príncipes daquela época. Também a justiça era um
negócio permanente muito lucrativo. Os súditos
daqueles tempos que por cima de tudo tinham de
satisfazer a cobiça pessoal dos corregedores e
funcionários dos príncipes, gozavam de todos os
benefícios daquele sistema de governo “paternal”.
A nobreza média havia desaparecido por completo da
hierarquia feudal da Idade Média; seus representantes,
se não haviam conquistado dos pequenos príncipes a
sua independência, tinham sido forçados a engrossar as
fileiras da pequena nobreza. A pequena nobreza, — os
cavaleiros, — decaíam rapidamente. Uma grande parte
já estava completamente empobrecida. Seus membros
viviam a serviço dos príncipes como funcionários civis ou
militares; outros subsistiam como vassalos submetidos
aos príncipes e somente uma minoria dependia
diretamente do poder imperial. O desenvolvimento da
técnica militar, a importância crescente da infantaria, e o
aperfeiçoamento das armas de fogo, aniquilaram seu
poder guerreiro reduzindo a eficácia da cavalaria pesada
e acabando com a fortaleza inexpugnável de seus
castelos. O progresso da indústria tornava/ inúteis os
cavaleiros como fizera com os artesãos de Nuremberg.
Suas pretensões e necessidades econômicas
contribuíram para a própria ruína. O luxo que reinava em
seus castelos, suntuosidade dos torneios e festas, os
preços das armas e cavalos, aumentavam com os
progressos da civilização, enquanto que as rendas dos
cavaleiros e barões mal variavam. Com o decorrer dos
tempos, as guerrilhas seguidas dos inevitáveis saques e
incêndios, assim como os assaltos e outras ocupações
da aristocracia tornaram-se demasiado perigosas. As
contribuições e os serviços dos súditos não produziam
mais que antes Para cobrir seus gastos crescentes, os
senhores tiveram de recorrer aos mesmos métodos que
os príncipes. A opressão exercida pela nobreza crescia
de ano para ano. Os servos eram explorados até a última
gota de sangue, os nobres se valiam de todos os
pretextos para impor novos tributos e serviços a seus
vassalos. Contra tudo o que se estabelecera,
aumentavam a servidão pessoal, as peitas, os censos,
laudêmios, direito em caí o de morte, tributos de
domicílio, etc. A justiça era ou negada ou vendida e
quando os cavaleiros não podiam deste modo apanhar o
dinheiro dos camponeses, atiravam-nos, sem mais nem
menos, ao calabouço, exigindo-lhes resgate.
As demais classes tampouco simpatizavam com a
pequena nobreza. Os nobres sujeitos à vassalagem
queriam depender diretamente do Império, enquanto
que a nobreza independente procurava conservar sua
liberdade. Daí os litígios com os príncipes tornarem-se
mais frequentes. O clero carregado de riquezas, parecia
aos cavaleiros uma classe inútil. Invejavam-lhe a enorme
quantidade de bens, seus tesouros acumulados graças
ao celibato e à constituição eclesiástica. Lutavam
constantemente contra as cidades; tomavam-lhe
dinheiro emprestado e se sustentavam do saque de seu
território, despojando seus mercadores e exigindo
resgate dos prisioneiros. A luta da nobreza contra todas
essas classes tomou maior violência à medida que suas
dificuldades financeiras iam se tornando mais agudas.
O clero, como representante ideológico do feudalismo
medieval, sofreu por sua vez as consequências da
mudança histórica. A imprensa e as necessidades de um
comércio mais intenso haviam liquidado seu monopólio
não somente da instrução elementar como também da
superior. Também no terreno intelectual se produziu a
divisão do trabalho. Os juristas, — profissão recém-
criada, — tiraram do clero uma série de posições de
grande importância. A maior parte dele se tornou inútil
confirmando isto com sua preguiça e ignorância
crescentes.
Porém, a par de sua inutilidade, cresceu em número de
clérigos atraídos pelas enormes riquezas da Igreja, que
aumentavam continuamente graças a toda sorte de
manobras.
O clero compunha-se de duas classes completamente
diferentes. Sua hierarquia feudal formava a aristocracia
dos bispos, arcebispos, abades, priores e demais
prelados. Estes altos dignitários da Igreja, quando não
eram, ao mesmo tempo, príncipes do Império,
dominavam como senhores feudais, sob a soberania de
outros príncipes, grandes territórios com numerosos
servo; e vassalos. Eles exploravam os seus súditos com
a mesma ou maior ganância do que a nobreza e os
príncipes, como agiam de maneira mais
desavergonhada. À violência, acrescentaram todas as
sutilezas da religião; ao horror das torturas, o horror da
excomunhão, valendo-se de todas as intrigas do
confessionário para arrancar dos súditos até o último
vintém e aumentar a participação da Igreja nas
heranças. A falsificação de documentos era o meio
preferido por esses dignos homens em suas explorações.
Porém, apesar de receber o dizimo, além dos direitos
feudais e censos correntes não lhes bastavam todas
estas rendas. Para arrancar mais tributos ao povo
recorreram à fabricação de imagens e relíquias
milagrosas, à comercialização das peregrinações e à
venda de bulas, o que com muito êxito, conseguiram
durante algum tempo.
Nesses prelados e em sua numerosa polícia de
monges fortalecida por inúmeras campanhas de
excitação política e religiosa, se objetivou a ira popular
assim como o ódio da nobreza. Quando eram soberanos
independentes, sua presença incomodava os príncipes.
A vida alegre dos ventripotentes bispos e abades e de
seu exército de frades, despertava a inveja da nobreza e
a indignação do povo que tinha de custear seus gastos;
essa indignação era tanto maior quanto a vida destes
senhores estava em contradição manifesta com suas
prédicas.
Os pregadores do campo e das cidades constituíam a
fração plebeia do clero. Achavam-se à margem da
hierarquia feudal da Igreja e eram excluídos do gozo de
suas riquezas. Seu trabalho era menos controlado e, —
apesar de sua importância para a Igreja, — era menos
indispensável, naquele momento, do que os serviços
policiais dos monges aquartelados. Eram, portanto,
muito mais mal pagos; em sua maioria com prebendas
exíguas. Graças à sua origem burguesa ou plebeia
conservaram o contato com as massas e o
conhecimento de suas condições de vida, o que os fazia,
apesar de seu ofício, simpatizar com as causas burguesa
e plebeia. Os monges, salvo contadas exceções, não
tomaram parte nos movimentos da época; os
pregadores, em troca, lhes deram teóricos e ideólogos e
não poucos morreram no cadafalso. O ódio do povo
contra os frades raramente se voltava contra eles.
Se o imperador era o chefe dos príncipes e da nobreza,
o papa o era de todos os padres. O imperador cobrava o
“vintém comum”, os impostos imperiais; o papa, os
impostos eclesiásticos com que custeava os gastos da
suntuosa corte romana. Em nenhum outro país esses
impostos eram arrecadados com tanto capricho e tanta
severidade como na Alemanha, graças ao número e à
influência dos frades. Mostravam interesse especial na
cobrança das anatas ao atravessar um bispado.
Crescendo as necessidades, encontraram novos meios
de arrancar dinheiro: o comércio de relíquias, de
absolvições, a organização de jubileus, etc. Todos os
anos grandes somas de dinheiro saíam da Alemanha
para Roma. A opressão crescente impulsionou o ódio
contra os frades, despertando o sentimento patriótico,
sobretudo da nobreza, que era a classe mais
nacionalista. Ao iniciar-se o florescimento comercial e
industrial, os habitantes das primitivas cidades
medievais dividiram-se em três ramos inteiramente
diferentes.
As famílias patrícias, da chamada “Honorabilidade”,
(“Ehrbarkeit”) mandavam nas cidades. Eram os mais
ricos. Sozinhas formavam o Conselho e desempenhavam
os cargos públicos. Não se contentavam, porém, com a
administração das rendas das cidades: consumiam-nas
também.
Fortes por sua riqueza e por sua condição aristocrática
havia muito reconhecida pelo poder imperial, podiam
despojar seus concidadãos e os camponeses que
dependiam da cidade. Praticavam o açambarcamento do
trigo e a usura, apropriando-se de toda a sorte de
monopólios e paulatinamente chegaram a privar a
comunidade de todos os direitos sobre os bosques e
pastagens comunais, explorando-os em seu próprio
proveito; impunham arbitrariamente novas peagens e
taxas de passagem e traficavam com os privilégios
corporativos e direitos mestrais. Aos camponeses que
viviam sob sua jurisdição, tratavam pior que a própria
nobreza e os curas; os corregedores e funcionários
municipais, nas aldeias, acrescentaram à dureza e à
cobiça dos aristocratas, certo pedantismo e rigor
burocrático na arrecadação. A fazenda municipal assim
unida era administrada com a maior arbitrariedade; a
contabilidade dos livros municipais era puramente
formal e feita do modo mais descuidado e confuso
possível. As malversações eram frequentes. É fácil de
compreender a facilidade com que uma casta fortalecida
por seus privilégios e vinculada pelo parentesco e pelo
interesse pôde enriquecer-se com os dinheiros públicos,
quando se levam em conta as numerosas defraudações
que se revelaram no ano de 1848.
Os patrícios tinham procurado consumir, pouco a
pouco, os direitos da comunidade, sobretudo no que
tocava à fazenda. Mais tarde quando as extorsões
desses senhores se tornaram intoleráveis, as
comunidades se mobilizaram finalmente para
reconquistar o controle sobre a administração municipal,
o que efetivamente lograram na maioria das cidades.
Porém, graças às constantes lutas entre as corporações,
graças à obstinação dos patrícios e à proteção que
encontraram perto do poder imperial e nos governos das
cidades amigas, os conselheiros patrícios puderam
prontamente restaurar seu regime, quer por astúcia,
quer por violência. Em princípios do século XVI as
comunidades encontravam-se novamente na oposição.
Esta se dividia em dois ramos que se manifestam
claramente na guerra camponesa.
A Oposição burguesa, precursora do liberalismo de
nossos dias que compreendia tanto os burgueses médios
e ricos, como também uma parte da pequena burguesia
que segundo as circunstâncias locais era mais ou menos
numerosa.
Suas reivindicações não ultrapassavam o estritamente
constitucional. Pediam o controle da administração
municipal e uma representação no poder legislativo por
meio da assembleia comunal, ou da representação
municipal (Câmara, Municipalidade), queriam limitar o
favoritismo praticado com crescente desenvoltura por
algumas famílias patrícias, em prejuízo do próprio
patriciado. Finalmente, reivindicavam alguns cargos do
Conselho para seus homens de confiança. Este partido
de vez em quando reforçado pela facção descontente
dos patrícios decaídos, tinha maioria esmagadora em
todas as assembleias comunais ordinárias e nas
corporações.
Os partidários da Câmara, junto à oposição extrema,
não constituíam mais do que uma ínfima minoria da
verdadeira burguesia.
Veremos como no movimento do século XVI esta
oposição “moderada”, “legal”, de gente “acomodada’ e
inteligente desempenha o mesmo papel, com resultado
igual ao de seu herdeiro, o partido constitucional de
1848 e 1849.
Esta oposição burguesa atacava violentamente os
frades, cujos hábitos dissolutos a escandalizavam. Exigia
medidas contra a vida escandalosa desses dignos
homens. Queria acabar com a jurisdição própria e a
isenção tributária dos curas e pedia a restrição do
número de monjas.
A oposição plebeia se compunha de burgueses
arruinados e da massa citadina excluída do direito de
cidadania: trabalhadores, assalariados e numerosos
representantes do “lumpemproletariado” que se
encontrava até nas etapas inferiores do
desenvolvimento urbano. O “lumpemproletariado” em
suas formas mais ou menos desenvolvidas constitui
fenômeno comum a todas as etapas da civilização.
Naquele tempo, o número de pessoas sem profissão
definida e sem residência fixa ia em crescimento, pois ao
decompôr-se o feudalismo ainda reinava uma sociedade
que, com inúmeros privilégios, dificultava o acesso a
todas as profissões e esferas de atividade. Nos países
civilizados, jamais o número de desocupados tinha sido
maior do que na primeira metade do século XVI. Uma
parte desses vagabundos se alistava no exército em
tempo de guerra, outros mendigavam pelas estradas e
os restantes ganhavam sua vida mísera realizando
trabalhos como diaristas e em outras profissões não
regulamentadas pelas corporações. Esses três grupos
participaram da guerra camponesa: o primeiro, nos
exércitos dos príncipes que aniquilaram os camponeses;
o segundo nas conspirações e nos grupos de
camponeses armados, onde sua influência
desmoralizadora se manifesta a cada momento; o
terceiro, na luta entre partidos no interior das cidades.
Quanto ao mais, não se deve esquecer que uma grande
parte dessa classe, sobretudo a que vivia nas cidades,
conservara um fundo de robustez camponesa e se
achava muito afastada da venalidade e degeneração de
nosso moderno “lumpemproletariado”.
Observa-se que a oposição plebeia nas cidades reunia
os elementos mais diversos. Ao lado dos restos
degenerados da velha sociedade feudal e corporativa,
começou a manifestar-se o elemento proletário, — ainda
pouco desenvolvido, — da sociedade burguesa nascente.
Uns eram arruinados sócios de grêmios e a quem
somente os privilégios ligavam à ordem vigente; outros
eram camponeses desesperados e criados despedidos
que ainda não podiam ser proletários. Entre ambos se
encontravam os funcionários que, excluídos da
sociedade de então, encontravam- se em situação
idêntica à do proletariado atual, tendo em conta a
diferença entre a indústria de hoje e a que era regida
pelo privilégio das corporações. Porém, ao mesmo
tempo, e em virtude desse privilégio, quase todos se
consideravam futuros amos burgueses. A posição
política dessa mescla de elementos tinha de ser muito
vacilante, variando segundo o lugar. Antes da guerra
camponesa, a oposição plebeia não toma parte nas lutas
políticas como partido autônomo. Aparece como
apêndice da oposição burguesa, como um bando de
desordeiros dedicados à pilhagem, cuja atuação ou
silêncio se compra com algumas pipas de vinho. Foi
durante as insurreições camponesas que essa oposição
se organizou por fim, em partido independente, porém,
mesmo assim, continuou ligada aos camponeses em
suas reivindicações e em sua ação o que mostra até que
ponto a cidade ainda dependia do campo. Quando age
em seu próprio nome, fá-lo para pedir a criação, no
campo, do monopólio industrial da cidade; opõe-se a
toda redução das rendas da municipalidade pela
abolição dos encargos feudais em seu território; em tudo
isso se mostra reacionária e se submete a seus próprios
elementos pequeno-burgueses, o que constitui um
prelúdio característico da tragicomédia que, sob o nome
de democracia, vem representando, há três anos, a atual
pequena burguesia.
Apenas na Turíngia, sob a influência direta de Münzer e
em outras partes, graças a seus discípulos, a fração
plebeia das cidades foi arrastada pela tempestade geral
e o proletariado embrionário pôde momentaneamente
impôr-se a todos os demais elementos em luta. Este
episódio, que constitui o ponto culminante da guerra
camponesa, simbolizado pela figura gloriosa de Tomás
Münzer, é também o mais curto. Compreende-se o
rápido fracasso desse movimento, as formas fantásticas
de que se revestiu e a falta de precisão de suas
reivindicações: não pôde encontrar uma base firme
naquela época.
Todas essas classes, exceto a última, oprimiam a
grande massa da nação: os camponeses. O camponês
suportava o peso total de todo o edifício social:
príncipes, funcionários, nobreza, clero, patrícios e
burgueses. O príncipe e o barão; o mosteiro e a cidade,
todos o tratavam como simples objeto, pior que às
bestas de carga. Como servo, era entregue a seu senhor
atado de pés e mãos. Vassalo, os serviços a que o
obrigava a lei eram já suficientes para aniquilá-lo;
porém, seu número aumentava continuamente. A maior
parte do tempo devia trabalhar nas terras do senhor;
com o que ganhava em suas tarefas livres, tinha que
pagar os dízimos, censos, peitas, o viático, e impostos
regionais e imperiais. Não podia casar-se, nem morrer,
sem que o seu senhor lhe não cobrasse alguma coisa.
Além dos serviços regulares, tinha de apanhar palha,
colher morangos e bagas, pegar caracóis, ajudar na
casa, cortar lenha, etc., tudo para o senhor. A pesca e a
caça pertenciam ao senhor; o camponês tinha de calar-
se resignado enquanto a caça do amo destruía sua
colheita. Os senhores se haviam apropriado de quase
todas as pastagens e bosques comunais dos
camponeses. O que ocorria com a propriedade, ocorria
também com as pessoas do camponês, e de sua mulher
e filhas, de que o senhor dispunha arbitrariamente.
Tinha o direito de pernada. Quando queria, mandava
prender seus servos em calabouços onde os esperava a
tortura, tão certo quanto o juiz de instrução os espera
hoje. Matava-os ou mandava-os degolar quando queria.
Não há capítulo daquela edificante “Carolina”,5
“desorelhamento”, da “amputação de nariz”, do
“vazamento dos olhos”, da “amputação dos dedos e das
mãos”, da “decapitação”, do “suplício da roda”, da
“fogueira”, do “suplício das tenazes”, do
“esquartejamento”, etc., que os senhores não hajam
aplicado a seus camponeses. Quem iria protegê-los? Os
tribunais eram compostos de barões, frades, patrícios ou
juristas, que não ignoravam a razão pela qual eram
pagos, pois todas as classes altas do império viviam da
exploração do camponês.
Sob tão intolerável opressão, eles rangiam os dentes.
Contudo, era difícil decidir-se pela insurreição. Sua
divisão dificultava ao extremo todo acordo para uma
ação coletiva. O costume secular da submissão,
transmitido de geração em geração e, em muitas
regiões, a perda do hábito de usar armas, a dureza
maior ou menor da exploração, que variava conforme o
senhor, contribuíam para mantê-los imobilizados. Na
Idade Média, deparamo-nos com uma imensidão de
pequenas insurreições locais, porém, — pelo menos na
Alemanha — antes da guerra camponesa não houve
nenhuma insurreição geral dos camponeses. Enquanto
se lhes opôs o poder organizado dos príncipes, da
nobreza e das cidades unidas, os camponeses não foram
capazes de se lançar sozinhos a uma revolução. Sua
única oportunidade de vencer seria a aliança com outras
classes; mas como fazê-lo se todas os exploravam com
igual encarniçamento?
Vimos que no começo do século XVI as diferentes
classes do Império, os príncipes, a nobreza, os prelados,
os patrícios, os burgueses, os plebeus e os camponeses
formavam uma massa sumamente confusa, com
interesses divergentes e inteiramente contraditórios.
Cada classe constituía um estorvo para a outra e todas
se encontravam em luta contínua. Aquela divisão de
uma nação inteira em dois campos, que existiu na
França ao estalar a primeira revolução e que hoje se
manifesta em uma etapa superior nos países
adiantados, era completamente impossível nessas
circunstâncias. Semelhante divisão não se podia produzir
senão por meio da sublevação da camada inferior da
nação, explorada por todas as outras: os camponeses e
plebeus. A confusão que reinava nos interesses, opiniões
e tendências daquela época será facilmente
compreendida se tivermos em mente a confusão que
acarretou a divisão atual, muito mais simples, da nação
alemã, em aristocracia, burguesia, pequena burguesia,
campesinato e proletariado.
2. Os Grandes Grupos da Oposição
e suas Ideologias: Lutero e Münzer
A descentralização, a autonomia local e regional, a
diversidade comercial e industrial das províncias e a
insuficiência das comunicações tornaram impossível o
agrupamento, em um conjunto único, dessas classes tão
diversas, o que só veio a realizar-se ao se difundirem as
ideias revolucionárias político-religiosas da Reforma. As
classes que adotam essas ideias e as que a elas se
opõem, conseguem, — se bem que lenta e
penosamente, — a concentração de toda a nação em
três campos: o católico, ou reacionário; o luterano,
burguês-reformista; e o revolucionário. O fato dessa
divisão ser pouco consequente, achando-se nos dois
primeiros campos elementos em parte semelhantes,
explica-se pelo estado de decomposição em que se
encontravam as classes feudais e pela descentralização
que em diversas regiões fez uma mesma classe reagir
de maneiras diversas. Durante os últimos anos
apreciamos na Alemanha tantos acontecimentos
idênticos que não nos pode surpreender esta aparente
confusão de classes e subclasses, nas condições muito
mais confusas do século XVI.
Apesar das experiências feitas em data mais recente,
a ideologia alemã quer ver nas lutas que deram cabo da
Idade Média apenas uma ardorosa disputa teológica.
Segundo dizem nossos mestres de história pátria e
nossos sábios de gabinete, as pessoas daqueles tempos
não teriam motivo de lutar por coisas deste mundo se
tivessem podido concordar sobre assuntos celestiais.
Tais ideólogos são bastante crédulos para aceitar como
incontestáveis todas as ilusões que uma época tem
sobre si mesma ou que eles, ideólogos, têm sobre ela.
Na revolução de 1789 esses indivíduos nada veem senão
uma discussão um tanto acalorada a respeito das
vantagens da monarquia constitucional sobre a
monarquia absoluta; na revolução de julho, veem uma
controvérsia prática sobre a insustentabilidade do direito
divino; na de fevereiro, uma tentativa de resolver a
questão: república ou monarquia?, etc. Nossos ideólogos
não querem saber da luta de classes que se decide
naqueles movimentos e que não faz mais do que
expressar-se superficialmente nas reivindicações
políticas que lhes servem de bandeira. Continuam a
ignorar esse fato hoje em dia quando a notícia de tal luta
nos chega clara e insofismável, não apenas do
estrangeiro como também por intermédio de milhares de
vozes proletárias de nosso país.
Igualmente nas chamadas guerras religiosas do século
XVI tratava-se sobretudo de interesses materiais e de
classe muito positivos e estas guerras foram lutas de
classe, do mesmo modo que os conflitos internos
ocorridos posteriormente na França e na Inglaterra. O
fato dessas lutas de classe se travarem com pretexto
religioso e dos interesses, reivindicações e necessidades
das diversas classes se ocultarem sob o manto da
religião, em nada muda os seus fundamentos e se
explica facilmente pelas circunstâncias da época.
A Idade Média emergira inteiramente da barbárie;
fizera tábua rasa da civilização antiga e de sua filosofia,
política e jurisprudência para começar tudo de novo. Do
mundo antigo, herdara apenas o cristianismo e certo
número de cidades em ruínas, despojadas de toda a sua
civilização. A consequência foi que os padres obtiveram
o monopólio da instrução, conforme costuma acontecer
com toda civilização primitiva, e que a própria instrução
tivesse acentuado caráter teológico. Nas mãos dos
sacerdotes, a política, a jurisprudência e todas as outras
ciências não passavam de simples ramos da teologia a
que se aplicavam os princípios da teologia. O dogma da
Igreja era também axioma político e os textos sagrados
tinham força de lei em todos os tribunais. Mesmo após a
criação da profissão independente dos juristas a
jurisprudência permaneceu sob a tutela da teologia. Tal
supremacia da teologia em todos os ramos da atividade
intelectual era devida também à posição peculiar da
Igreja como símbolo e sanção da ordem feudal. Toma-se
evidente que qualquer ataque geral contra o feudalismo
devia primeiramente dirigir-se contra a Igreja e que
todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas
deveriam ser, em primeiro lugar, heresias teológicas.
Para atingir-se a ordem social existente era preciso
despojá-la de sua auréola.
A oposição revolucionária contra o feudalismo
manifesta-se através de toda a Idade Média. Segundo as
circunstâncias, aparece como misticismo, heresia aberta
ou insurreição armada. No que se refere ao misticismo já
se conhece até que ponto os reformadores do século XVI
sofreram sua influência. Também Münzer muito lhes
deveu.
Por um lado, as heresias refletiam as reações dos
pastores patriarcais dos Alpes contra o feudalismo
invasor (Valdenses); por outro, a oposição das cidades
emancipadas do feudalismo (Albigenses, Arnaldo de
Bréscia, etc.) e finalmente a insurreição aberta dos
camponeses (João Bali), etc. Deixamos de lado a heresia
patriarcal dos valdenses e a insurreição dos cantões
suíços, como tentativas de conteúdo e forma
reacionários para embargar o passo à evolução histórica,
e que tiveram importância puramente local.
Nas restantes heresias medievais encontramos, a
partir do século XII, vestígios das divergências que
separavam a oposição burguesa da camponesa ou
plebeia e que levaram ao malogro das guerras
camponesas. Tais divergências subsistiram durante toda
a segunda parte da Idade Média.
A heresia das cidades — que é de certo modo a
heresia oficial da Idade Média — dirigia-se
principalmente contra os padres, atacando-os por sua
riqueza e influência política. Do mesmo modo que a
burguesia de hoje pede um “gouvernement a bon
marché”, um governo barato, os burgueses da Idade
Média pediam uma “église a bon marché” uma igreja
barata. A heresia burguesa tinha a forma reacionária de
toda heresia que, na evolução da Igreja e de sua
doutrina, não quer ver senão uma degenerescência.
Exigia a restauração do cristianismo primitivo como seu
aparelho eclesiástico simplificado e a supressão do
sacerdócio profissional. Esta reforma teria acabado com
os monges, os prelados, a cúria romana, numa palavra,
com tudo o que a Igreja tinha de custoso. Se bem que
protegidas por monarcas, as cidades eram republicanas;
em seus ataques contra o papado, expressaram pela
primeira vez que a república é a forma do domínio
burguês.
Sua inimizade contra uma série de dogmas e preceitos
da Igreja explica em parte os fatos que já enumeramos e
por suas condições de vida em geral. O próprio
Boccaccio6 dá-nos a conhecer as razões que levaram as
cidades a impugnar o celibato de maneira tão veemente.
Arnaldo de Bréscia, na Itália e Alemanha, os Albigenses
no sul da França, João Wycliffe na Inglaterra, João Huss e
os calixtinos, na Boêmia, foram os principais
representantes dessa tendência. O fato de nesses casos
a oposição contra o feudalismo não se manifestar senão
como oposição ao feudalismo eclesiástico, encontra sua
explicação na independência que já haviam conquistado
as cidades, que possuíam suas armas e Assembleias de
estado, gozavam privilégios e podiam muito bem resistir
pela força ao feudalismo secular caso o decidissem.
Aqui, como no sul da França, na Inglaterra e Boêmia, a
maior parte da pequena nobreza se solidariza com a
heresia das cidades na luta contra os padres, o que
revela a dependência em que as cidades mantinham a
pequena nobreza e a comunhão de interesses ante
príncipes e os prelados. Essa aliança ressurgirá na
guerra camponesa.
A heresia que expressava os anelos de plebeus e
camponeses e que quase sempre dava origem a uma
sublevação tinha caráter muito diferente. Não apenas
fazia suas todas as reivindicações da heresia burguesa
que se referiam aos padres, ao papado e à restauração
da constituição da igreja primitiva, como ia muito além.
Pedia o estabelecimento da igualdade cristã entre todos
os membros da comunidade e seu reconhecimento como
norma para a sociedade inteira. A igualdade dos filhos
de Deus devia traduzir-se pela igualdade civil e mesmo
social de todos os cidadãos. A nobreza devia pôr-se no
mesmo nível dos camponeses; os patrícios e burgueses
privilegiados no mesmo nível dos plebeus. A supressão
dos serviços pessoais, censos, tributos, privilégios,
nivelação das diferenças mais escandalosas na
propriedade, eram reivindicações formuladas com mais
ou menos energia e consideradas como consequências
necessárias da doutrina cristã quando o feudalismo
estava no auge. Esta heresia plebeia e camponesa (p.e.
a dos Albigenses) não se separava da burguesa, porém
durante os séculos XIV e XV transforma-se em programa
de partido, bem definido, independente da heresia
burguesa. Assim João Bali, o pregador da sublevação de
Wat Tyler na Inglaterra, aparece à margem do
movimento de Wycliffe, como os Taboristas em relação
aos calixtinos na Boêmia. No movimento taborista já
manifesta-se sob as roupagens teocráticas, essa
tendência republicana que em fins do século XV e em
princípios do século XVI adquiriu tanta importância entre
os representantes dos plebeus alemães.
Junto a essa forma de heresia existe a exaltação das
seitas místicas: flagelantes, lollardistas etc., que nos
tempos da opressão mantinham viva a tradição
revolucionária.
Os plebeus eram a única classe que então se achava
inteiramente à margem da sociedade existente.
Achavam-se fora da comunidade feudal e da
comunidade burguesa. Não tinham privilégios nem bens;
não tinham nem sequer a propriedade carregada de
impostos esmagadores dos camponeses e pequenos
burgueses. Não tinham nada, nem direitos; em sua vida
normal nem sequer entravam em contato com as
instituições de um Estado que lhes ignorava até a
existência. Eram um símbolo vivo da dissolução da
sociedade feudal e corporativa e ao mesmo tempo eram
os primeiros precursores da moderna sociedade
burguesa.
Assim se explica que já então a fração plebeia não
podia contentar-se apenas com o combate ao feudalismo
e à burguesia privilegiada, mas que tinha de ir, pelo
menos em imaginação, além da própria sociedade
burguesa apenas no nascedouro. Explica-se igualmente
porque essa fração desprovida de bens teve de renegar
ideias e conceitos comuns a todas as sociedades
baseadas no antagonismo de classes. As fantasias
quiliásticas7 do cristianismo primitivo ofereciam o ponto
de referência oportuno. Porém a superação, não só do
presente como também do futuro, não podia ser senão
forçada e imaginária; à primeira tentativa de realização
teria de retornar aos estreitos limites que permitiam as
circunstâncias de então. O ataque contra a propriedade
privada, as reivindicações referentes ao estabelecimento
da comunidade de bens não podiam dar mais resultados
do que simples organização da caridade; a confusa
igualdade cristã podia no máximo traduzir-se pela
igualdade burguesa ante a lei; a supressão de toda
autoridade, por fim, se transforma no estabelecimento
de governos republicanos eleitos pelo povo. A
antecipação do comunismo, na imaginação, conduziu na
realidade a unia antecipação da nova sociedade
burguesa.
Essa forçada antecipação da história posterior é muito
explicável nas condições da fração proletária. Na
Alemanha foram Tomás Münzer e seu partido os que
primeiro a levaram a cabo. Os taboristas haviam tido
certa comunidade quiliástica de bens, mas como medida
puramente militar. Porém, no caso de Münzer esses
brotos do comunismo expressavam as aspirações de
toda uma fração da sociedade; desde que ele os
formulou pela primeira vez com certa clareza,
encontramo-los em todos os grandes movimentos
populares, até que, por fim, se uniram ao movimento
proletário moderno; tal como na Idade Média, as lutas
dos camponeses contra a dominação feudal, cada vez
mais ameaçadora, uniu-se com a luta dos vassalos e
servos pela destruição total dessa dominação.
Enquanto no campo católico conservador se
agruparam todos os elementos interessados na
conservação do que existia, quer dizer, do poder
imperial, dos príncipes eclesiásticos e parte dos
seculares, dos nobres ricos, dos prelados e do
patriarcado das cidades, a reforma luterana
burguesa e moderada agrupa os elementos opositores
bem instalados na vida: a massa da pequena nobreza, a
burguesia e até uma parte dos príncipes seculares que
queriam enriquecer arrebatando os bens do clero e que
aproveitaram esta oportunidade para conseguir
independência maior do poder imperial. Os camponeses
e plebeus, por fim, formaram o partido revolucionário,
cujo porta-voz mais ardente foi Tomás Münzer.
Por suas doutrinas, seu caráter e sua conduta Lutero e
Münzer foram os perfeitos representantes de seus
partidos.
De 1517 a 1525, Lutero mudou de maneira idêntica à
dos constitucionalistas alemães de 1846 a 1849 e da
mesma maneira que todos os partidos burgueses
colocados momentaneamente à frente do movimento se
vêem deslocados pelo partido proletário ou plebeu que
forma em sua retaguarda.
Quando em 1517 Lutero atacou pela primeira vez o
dogma e as instituições da Igreja católica, sua oposição
não tinha caráter bem definido. Sem passar da antiga
heresia burguesa, não excluía tampouco, nem podia
excluir, as tendências mais radicais. No primeiro
momento era preciso reunir todos os elementos da
oposição, tinha de demonstrar a energia revolucionária
mais decidida, era preciso se representar a totalidade
das heresias em face da ortodoxia católica. Nisto se
parece com nossos burgueses liberais de 1847, que
eram revolucionários, diziam-se socialistas e comunistas
e se entusiasmavam com a emancipação da classe
trabalhadora. Nesse primeiro período, Lutero deu livre
curso a toda a veemência de seu temperamento de
camponês vigoroso.
“Se sua fúria (a dos padres romanos) tivesse de
continuar, parece-me que seria o melhor conselho
e remédio esmagá-la pela violência, armando-se
reis e príncipes para atacar essa gente daninha
que envenena o mundo inteiro e com ela acabar
pelas armas e não por palavras. Não castigamos
os ladrões com a espada, os assassinos com o
garrote e os hereges com o fogo? Por que então
não atacamos esses mestres da perdição que são
os papas, cardeais, bispos e toda a gentalha da
Sodoma romana? Por que não os atacamos com
toda a classe de armas e lavamos nossas mãos
em seu sangue?”
Porém essa fúria revolucionária do princípio não durou
muito. O raio que Lutero lançara caiu no paiol de
pólvora. O povo alemão se pôs em movimentei. De um
lado os camponeses e plebeus viram em seus apelos
contra os padres no sermão sobre a liberdade cristã, o
sinal da sublevação; por outro lado os burgueses
moderados e grande parte da pequena nobreza a ele se
uniram; e até alguns príncipes foram arrastados pela
tormenta. Uns acreditavam que tinha chegado o dia do
ajuste de contas com seus opressores, outras só queriam
destruir o poder dos curas, a hegemonia romana e
enriquecer-se pelo arrebatamento dos bens
eclesiásticos. Os partidos se separaram e escolheram
seus representantes. Lutero teve de escolher. O
protegido do eleitor da Saxônia, o respeitável professor
da Universidade de Wittenberg que da noite para o dia
se tornara célebre e poderoso, o grande homem rodeado
de lacaios e aduladores, não vadiou nem um momento.
Deixou para trás os elementos populares do movimento
para unir-se ao séquito burguês, aristocrático e
monárquico. Silenciaram os apelos à guerra de
extermínio contra Roma. Agora Lutero recomendava a
evolução pacífica e a resistência passiva (veja-se p.
e. “Apelo à Nobreza Alemã” de 1520, etc.). Quando
Hutton convidou-o a encontrar-se com ele e Sickingen no
castelo de Ebernburg que era o centro da conspiração da
nobreza contra os padres e os príncipes, Lutero
respondeu:
“Não quero que o Evangelho se imponha pela
violência, vertendo sangue. O mundo foi
conquistado pela palavra, a Igreja foi instituída
pela palavra e pela palavra renascerá e o
Anticristo cairá sem violência uma vez que tudo
isso foi conseguido sem violência”.
Desde que se realizou esta transformação, ou melhor,
desde que se definiu a tendência de Lutero, começou 0
debate sobre se se deviam conservar ou reformar tais
dogmas e instituições, principalmente aqueles
repugnantes conciliábulos, concessões, intrigas e
convênios que deram em resultado a “confissão de
Augsburgo”, o estatuto da igreja burguesa reformada,
conseguida depois de muita intriga. É exatamente o
mesmo processo que ultimamente se tem repetido até a
exaustão nas assembleias nacionais alemãs, as
“assembleias de convênio”, “câmaras de revisão” e
“parlamentos” de Erfurt. Nas tais negociações
manifestou-se às escâncaras o caráter eminentemente
burguês da reforma oficial. Lutero, como representante
declarado da reforma burguesa, tinha razões muito
sérias para pregar o progresso legal. A maioria das
cidades aceitara a reforma; o mesmo acontecera com a
pequena nobreza; uma parte dos príncipes também; os
outros permaneciam indecisos. O êxito estava quase
assegurado pelo menos em grande parte da Alemanha.
Se o desenvolvimento pacífico prosseguisse, as outras
regiões, por fim, não poderiam mais resistir ao embate
da oposição moderada. Porém toda agitação violenta
faria estalar o conflito entre o partido moderado e os
extremistas plebeus e camponeses; os príncipes, a
nobreza e muitas cidades se separariam do movimento e
o partido burguês seria derrubado pelos camponeses e
plebeus ou a reação católica destruiria todos os partidos
do movimento. Ultimamente vemos bastantes exemplos
de como os partidos burgueses, ao conseguir um
pequeno êxito, se empenham em conservar, por meio do
progresso legal, o equilíbrio entre o Cila da Revolução e
Caríbdis da Restauração.
Dadas as circunstâncias políticas e sociais daquela
época, qualquer transformação devia necessariamente
redundar em proveito dos príncipes e aumentar seu
poder; quanto mais se separava dos elementos plebeus
e camponeses mais tendia a reforma burguesa a cair sob
o domínio dos príncipes que com ela concordavam. O
próprio Lutero acabou sendo seu servo e o povo sabia
perfeitamente o que fazia quando disse que Lutero se
tinha convertido em lacaio dos príncipes, e quando o
apedrejou em Orlamünde.
Ao estourar a guerra camponesa em regiões onde os
príncipes e a nobreza eram na maioria católicos, Lutero
logo assumiu uma atitude conciliadora. Arremeteu
contra os governos atribuindo-lhes a culpa da insurreição
que, segundo ele, era devida à opressão que exerciam.
Para ele, não eram os camponeses que opunham
resistência: era o próprio Deus. Por outro lado, a
sublevação era também ímpia e contrária ao Evangelho.
Finalmente aconselhou a ambas as facções a fazerem
concessões mútuas e se reconciliarem.
Porém, apesar dessa mediação benévola, a insurreição
estendeu-se rapidamente nas regiões protestantes
governadas por príncipes e senhores ou nas cidades
luteranas a sublevação levou de roldão a Reforma
burguesa “razoável”. Na própria Turíngia, onde vivia
Lutero, estabeleceram seu quartel-general os mais
decididos insurretos, chefiados por Münzer. Mais alguns
êxitos e a Alemanha inteira arderia em chamas. Lutero
seria preso e talvez “passado na vara” como traidor. A
Reforma burguesa era arrastada pela maré da revolução
camponesa e plebeia. Não havia tempo para vacilações.
Ante a revolução esqueceram-se os velhos rancores;
comparados aos bandos camponeses, os servidores da
Sodoma romana eram mansos cordeiros, inocentes filhos
de Deus. Burgueses e príncipes, nobres e sacerdotes,
Lutero e o Papa aliaram-se “contra as hordas assassinas
de camponeses ladrões”.
“Temos que despedaçá-los, degolá-los e
apunhalá-los em segredo e em público: e que os
matem todos os que possam matá-los, como se
mata a um cão furioso!”, gritava Lutero. “Por isso,
queridos senhores, ouvi-me e matai, degolai sem
piedade: e se morrerdes, — como serieis ditosos!
— pois jamais poderíeis ter morte mais feliz”.
Nada de falsa piedade com os camponeses. São iguais
aos insurretos os que deles se apiedam porque Deus não
lhes tem misericórdia; quer vê-los antes, castigados e
perdidos. Depois os próprios camponeses darão graças
ao Senhor por terem que entregar uma vaca para poder
desfrutar em paz a que lhe fica: por essa rebeldia os
príncipes conhecerão o espírito da plebe que não podem
governar senão pela violência.
Diz o sábio:
“cibus onus et virgam asino,8 ao camponês
palha de aveia; se são insensatos e não querem
obedecer à palavra que obedeçam à “virga”, ao
arcabuz e será para o bem deles. Deveríamos
rezar para que obedeçam; mas nada de
comiseração. Deixai que lhes falem os arcabuzes,
senão será mil vezes pior”.
De maneira exatamente igual falavam nossos
filantropos burgueses e ex-socialistas quando o
proletariado lhes foi reclamar a sua parte depois da
vitória.
Com sua tradução da Bíblia, Lutero dera um poderoso
instrumento ao movimento plebeu. Na Bíblia, aparecia o
cristianismo primitivo e simples dos primeiros séculos
em oposição ao cristianismo feudal da época. Numa
sociedade feudal em decadência, descrevia uma
sociedade que desconhecera a hierarquia feudal
complexa e artificiosa. Tal instrumento foi usado a fundo
pelos camponeses contra os príncipes, a nobreza e o
clero. Mais tarde usou-o Lutero contra os camponeses
lançando mão da Bíblia para louvar as autoridades
constituídas “pela graça de Deus”, como nenhum lacaio
da monarquia absoluta jamais o fizera. Serviu-lhe a
Bíblia para justificar a monarquia pela graça de Deus, a
obediência passiva e até a servidão. Foi a negação não
apenas da insurreição camponesa como da rebeldia do
próprio Lutero contra a autoridade espiritual e secular.
Traição, não só da rebeldia popular como também do
movimento burguês, em benefício dos príncipes.
(Não é necessário citar a burguesia que ultimamente
nos vem dando novos exemplos dessa traição de seu
próprio passado).
A Lutero, reformador burguês, oponhamos Münzer,
revolucionário plebeu.
Tomás Münzer nasceu em Stolberg, na montanha do
Harz, aí por 1498. Parece que seu pai morreu enforcado,
vítima da arbitrariedade dos condes de Stolberg. Com a
idade de 15 anos, aluno da escola de Halle, fundou uma
liga secreta contra o arcebispo de Magdeburgo e a Igreja
romana. Sua erudição teológica geral, cedo lhe valeu o
título de doutor e o lugar de capelão em convento de
monjas. Já então tratava com o maior desprezo os
dogmas e ritos da Igreja. Dizendo missa, omitia as
palavras da transubstanciação e, como diz Lutero, comia
os Deuses sem consagrar. Estudava sobretudo os
místicos medievais e particularmente os escritos
quiliásticos de Joaquim, o Calabrês. Na Reforma e
agitação da época, Münzer via o princípio do novo reino
milenário, o juízo de Deus sobre a igreja degenerada e o
mundo corrompido que havia descrito o Calabrês. Seus
sermões lograram grandes aplausos na região. Em 1520
foi para Zwickau como primeiro pregador evangélico. Ali
encontrou uma daquelas seitas de quiliastas exaltados
que continuavam existindo em muitas regiões e sob cuja
humildade e retraimento momentâneos escondia-se a
crescente oposição das camadas inferiores da sociedade
contra o estado de coisas dominante. Agora, ao
aumentar a agitação, saíram à luz manifestando-se com
maior firmeza. Era a seita dos anabatistas, a cuja frente
marchava Nicolau Storch. Anunciavam o juízo final e o
reino do milênio; tinham “visões, êxtases e o dom da
profecia”. Imediatamente entraram em conflito com o
Conselho de Zwickau; Münzer, apesar de não se
identificar com eles, defendeu-os e conseguiu tê-los sob
sua influência. O Conselho iniciou uma repressão
enérgica e os anabatistas, e com eles Münzer, tiveram
de abandonar a cidade. Isso ocorreu em fins de 1521.
Estabeleceu-se em Praga onde tentou ganhar terreno
em contato com os restos do movimento hussita. Porém
seus apelos não produziram outro efeito senão forçarem-
no também a fugir da Boêmia. Em 1522 fez-se pregador
em Altstadt. Ali começou a reformar o culto. Suprimiu
completamente o uso do latim, antes de Lutero se
atrever a fazê-lo, deixando que se lesse a Bíblia inteira e
não somente as epístolas e evangelhos de rigor no culto
dominical. Ao mesmo tempo organizava a propaganda
na região. O povo acudia de toda parte e Altstadt veio a
ser o centro do movimento anticlerical popular em toda
a Turíngia.
Münzer continuava sendo o teólogo; seus ataques
dirigiam-se quase exclusivamente contra o clero. Porém
não propugnava a discussão pacífica e o progresso legal
como já o fazia Lutero. Saiu, pelo contrário, pregando a
violência, conclamando os príncipes saxões e o povo à
intervenção armada contra os padres romanos.
“Não disse Cristo, ‘Vim trazer-vos não a paz,
porém a espada? E que deveis fazer com ela?
Nada, senão afastar e separar a gente má que se
opõe ao Evangelho. Cristo ordenou com grande
severidade: (Lucas 19:27). Quanto, porém, a esses
meus inimigos, que não quiseram que eu os
governasse, trazei-os aqui e matai-os diante de
mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o
braço de Deus deve jazê-lo sem ajuda de vossa
espada que bem poderia enferrujar-se na bainha.
Os que se oponham à revelação divina que sejam
aniquilados sem piedade, como Ezequiel, Ciro,
Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de
Baal; de outro modo a Igreja cristã não pode
retornar à sua origem. Na época da vindima,
temos que arrancar a erva daninha das vinhas do
Senhor. Deus disse (Deu. 7:5): ‘.. .nem terás
piedade delas;... deitarás abaixo seus altares... e
queimarás a fogo as suas imagens de escultura...
Porque tu és um povo santo e Jeová teu Deus...’”
Porém esses apelos aos príncipes não tiveram êxito;
nesse ínterim crescia continuamente a agitação
revolucionária. As ideias de Münzer tornaram-se mais
precisas e mais audazes e Münzer separou-se da
Reforma burguesa fazendo-se agitador político.
Sua doutrina teológica e filosófica não somente
atacava os princípios do catolicismo como também se
voltava contra o cristianismo em geral. Sob as formas
cristãs, Münzer ensinava um panteísmo que se
assemelha estranhamente às modernas teorias
especulativas, avizinhando-se algumas vezes do
ateísmo. Negava à Bíblia o caráter de revelação única e
infalível. A verdadeira revelação, a revelação viva, é a
razão humana que existiu e existe em todos os povos.
Opor a Bíblia à razão significa matar o espírito pela letra.
O Espírito Santo, de que tanto nos fala a Bíblia, não
existe fora de nós; o Espírito é a própria razão. A fé não
é mais que o despertar da razão no homem e por isso os
pagãos podem ter fé. A fé, a razão chamada à vida,
diviniza e santifica o homem. O céu não é coisa do além.
Temos que procurá-lo mesmo nesta vida; ao crente
compete a missão de estabelecer esse céu, o reino de
Deus sobre a terra. Assim, depois da morte não há céu
nem tampouco inferno ou condenação eterna. E não há
outro diabo senão a cobiça e concupiscência dos
homens.
Cristo foi homem como nós, um profeta e mestre, cuja
ceia não é mais do que um banquete comemorativo
onde se toma pão e vinho sem nenhum adorno místico.
Essa foi a doutrina de Münzer, dissimulada sob uma
fraseologia cristã atrás da qual teve de esconder-se
durante algum tempo. Porém, através de seus escritos,
aparecem seus pensamentos arqui-heréticos e se vê que
o adorno bíblico era muito menos importante para ele do
que para certos discípulos de Hegel em tempos
recentes; não obstante, três séculos os separam.
Sua doutrina política procede diretamente de seu
pensamento religioso revolucionário e adiantava-se à
situação social e política de sua época da mesma
maneira que sua teologia às ideias e conceitos
correntes. Se a filosofia religiosa de Münzer se
aproximava do ateísmo, seu programa político tinha
afinidade com o comunismo. Muitas seitas comunistas
modernas, em vésperas da revolução de fevereiro, não
dispunham de arsenal teórico tão rico como “os de
Münzer” do século XVI. Em seu programa, o resumo das
reivindicações plebeias aparece menos importante do
que a antecipação genial das condições de emancipação
do elemento proletário que apenas acabava de fazer sua
aparição entre os plebeus. Tal programa exigia o
estabelecimento imediato do reino de Deus, do reino
milenário de felicidade, tantas vezes anunciado pela
volta da Igreja à sua origem e pela supressão de todas
as instituições que se achassem em contradição com
esse cristianismo que se dizia primitivo e que em
realidade era altamente moderno. Porém, segundo
Münzer, esse reino de Deus não significava outra coisa
senão uma sociedade sem diferenças de classe, sem
propriedade privada e sem poder estatal independente e
alheio aos membros da sociedade. Todos os poderes
existentes que não se conformarem e se opuserem à
revolução, serão destruídos; os trabalhos e bens serão
comuns e se estabelecerá a igualdade completa. Para
isso, fundar-se-á uma liga que compreenderá, não só a
Alemanha inteira mas toda a cristandade; os príncipes e
grão-senhores serão convidados a fazer parte; quando
se negarem, a liga (de armas na mão) os destronará ou
matará na primeira oportunidade. Imediatamente
Münzer se pôs a organizar a liga; suas pregações
tomaram caráter mais revolucionário e violento; com a
mesma paixão que mostrava ao condenar o clero, troava
agora contra os príncipes, a nobreza e o patriciado e
descrevia em cores sombrias a opressão presente
comparando-a com o quadro fantástico de seu reino
milenário de igualdade social republicana. Além disso
publicava, um após outro, panfletos revolucionários e
enviava emissários a toda parte, enquanto ele próprio
organizava a liga em Altstadt e arredores.
O primeiro fruto dessa campanha foi a destruição da
capela de Santa Maria em Mellerbach perto de Altstadt,
com o que se cumpriu o mandamento: “deitareis abaixo
os seus altares, quebrareis as suas colunas e queimareis
a fogo suas imagens de escultura, porque sois um povo
santo”. (Deut. 7, 5). Os príncipes saxões se transladaram
pessoalmente a Altstadt e chamaram Münzer ao castelo.
Este pronunciou então um sermão como nunca se ouvira
de Lutero, essa “carne plácida de Wittenberg” como o
chamava Münzer. Baseando-se no Novo Testamento,
insistiu sobre a necessidade de matar os governantes
desapiedados, especialmente os frades e padres que
tratavam o evangelho como uma heresia. Os ímpios não
têm direito de viver se não pela misericórdia dos eleitos.
Se os príncipes não destroem os ímpios, Deus lhes tirará
a espada pois o poder sobre a espada pertence à
comunidade. Os príncipes e os senhores são a essência
da usura, do roubo e do banditismo; apropriam-se de
toda criação; dos peixes na água, das aves no ar e das
plantas sobre a terra. E além de tudo isto pregam aos
pobres: “não roubarás”, enquanto eles roubam tudo o
que podem e exploram o camponês e o artesão; quando
cometem a menor falta mandam-nos enforcar e ainda
por cima virá o doutor Mentiras9 para dar sua bênção e
dizer: “Amem”.
“Os próprios senhores fazem com que os pobres
os odeiem. Não querem eliminar a causa da
rebeldia. Como poderia isto, por fim, melhorar? Ai,
senhores, como tudo ficará bem quando o Senhor
andar entre os velhos jarros brandindo barra de
ferro! E, se por isso me chamam rebelde, vá lá,
sou rebelde!” (Compare-se com Zimmermann,
“Bauernkrieg” II (pág. 75).
Esse sermão, Münzer mandou imprimir. O duque João
da Saxônia desterrou o impressor e impôs a censura do
governo ducal de Weimar a todos os escritos de Münzer,
que, entretanto nem fez caso dessa ordem. Na cidade
livre de Mühlhausen mandou imprimir um panfleto
sumamente violento. Pedia que o povo se manifestasse
“para que todos vejam e entendam como são nossos
caciques, esses sacrílegos que de Deus fizeram um
homenzinho pintado”; e terminava com as seguintes
palavras: o mundo inteiro terá que sofrer uma grande
catástrofe; haverá tamanha reviravolta que os sacrílegos
serão precipitados de suas posições e os humildes serão
enaltecidos”. Sob o lema “Tomás Münzer com o martelo”
escreveu na capa:
“Escuta: coloquei minhas palavras em tua boca
e hoje te ergui sobre as pessoas e os impérios
para que arranques, quebres, disperses e destruas
e para que plantes e construas. Uma muralha de
ferro levantou-se entre os reis, príncipes, padres e
povo. Que lutem e a vitória milagrosa será o ocaso
dos tiranos ímpios e brutais”.
Havia já muito tempo que era fato consumado o
rompimento com Lutero e seu partido. O próprio Lutero
tivera de aceitar muitas reformas de culto que Münzer
introduzira sem consultá-lo. Observava a atividade de
Münzer com o receio desconfiado que sentem os
reformadores moderados ante o embate de um partido
revolucionário. Na primavera de 1524 Münzer escrevera
a Melanchton, este protótipo de filisteu e burocrata
tísico, que ele e Lutero nada entendiam do movimento,
que buscavam afogá-lo na beatice e no pedantismo
bíblico e que toda sua doutrina estava apodrecida. Dizia-
lhes:
“Queridos irmãos, deixai a espera e as dúvidas:
o tempo urge, o verão está à porta. Não façais
amizade com os ímpios pois eles impedem que a
palavra aja com toda a sua força. Não aduleis a
vossos príncipes se não quereis perecer com eles.
Ó! sutis doutores! Não vos enfadeis que de outra
maneira não posso agir”.
Várias vezes Lutero desafiou Münzer a discutir em
debate público; Münzer porém, embora disposto à luta
aberta diante do povo, não tinha o menor desejo de
iniciar uma luta teológica ante o público parcial da
Universidade de Wittenberg. Não queria “reservar à alta
escola o produto espiritual”. Se Lutero era sincero por
que não empregava sua influência para fazer cessar as
medidas arbitrárias contra o impressor de Münzer e a
censura de seus escritos para poder decidir a luta
livremente, por meio da imprensa?
Depois de publicado aquele folheto revolucionário de
Münzer, Lutero o denunciou publicamente. Em sua carta
aberta “aos príncipes da Saxônia contra o espírito
rebelde”, declarou Münzer instrumento de Satã e
convidou os príncipes a intervir e expulsar os
instigadores da rebelião que se não contentavam em
propagar suas doutrinas maléficas como ainda
pregavam a insurreição e a resistência violenta às
autoridades.
A primeiro de agosto Münzer, acusado de fomentar
manobras subversivas, teve de justificar-se diante dos
príncipes reunidos no palácio de Weimar. Tinham-se
verificado fatos sumamente graves; haviam descoberto
sua liga secreta, conheciam sua intervenção nas
associações dos mineiros e camponeses. Ameaçaram-no
com o desterro. De regresso em Altstadt, soube que o
duque Jorge da Saxônia pedia sua extradição; tinham
sido interceptadas cartas escritas por ele e nas quais
clamava os súditos de Jorge à resistência armada contra
os inimigos do Evangelho. Se não tivesse abandonado a
cidade o Conselho tê-lo-ia entregue.
Entretanto a agitação crescente que reinava entre os
camponeses e plebeus facilitara enormemente a
propaganda de Münzer. Havia encontrado agentes
inestimáveis na pessoa dos anabatistas. Esta seita não
tinha um dogma positivo, bem definido; era aglutinada
pela oposição contra todas as castas dominantes e o
símbolo do segundo batismo. Levavam uma vida severa
e ascética; incansáveis, fanáticos e impávidos na
agitação, cerraram firmes suas fileiras em torno de
Münzer. Excluídos de qualquer residência fixa pelas
perseguições, percorriam a Alemanha propagando por
toda parte a nova doutrina de Münzer, na qual
encontravam a explicação de suas próprias
necessidades e desejos. Muitos foram torturados,
queimados ou executados, porém a valentia e a
perseverança desses lutadores não conheciam limites e
dada a crescente excitação do povo, sua atuação teve
imenso êxito. Ao fugir da Turíngia, Münzer encontrou o
terreno preparado, qualquer que fosse sua rota.
Perto de Nuremberg, para onde se dirigiu
imediatamente, acabava de ser afogada no berço uma
revolta camponesa. Münzer fez uma agitação
subterrânea e logo apareceram homens que defenderam
suas teorias mais atrevidas sobre a desimportância da
Bíblia e a inutilidade dos sacramentos e declaravam que
Cristo não era mais do que um homem e que a
autoridade secular era contrária a Deus. “Ali anda
Satanás, o espírito de Altstadt!” bradou Lutero. Em
Nuremberg, Münzer fez imprimir sua resposta a Lutero.
Não vacilou em acusá-lo de adular os príncipes e de
apoiar a reação com sua atitude ambígua. “Não
obstante, o povo conquistará a liberdade e ao doutor
Lutero sucederá o mesmo que a uma raposa capturada”.
O Conselho mandou apreender a panfleto e Münzer teve
de abandonar a cidade.
Atravessando a Suábia, transportou-se à Alsácia e à
Suíça, regressando depois à Floresta Negra, onde a
insurreição já havia estalado havia alguns meses,
acelerada, em grande parte, pelo trabalho de seus
emissários anabatistas. Esta viagem de propaganda
efetuada por Münzer contribuiu grandemente para a
organização do partido popular, para a clara definição de
suas reivindicações e para a insurreição geral de abril de
1525. Então se manifesta claramente a dupla eficácia de
Münzer ante o povo, ao qual encorajava com as frases
dos profetas religiosos, as únicas que todos
compreendiam, e ante os iniciados com quem podia falar
abertamente de sua tendência final. Antes, na Turíngia,
reunira um grupo de homens decididos que pertenciam
ao povo ou às camadas inferiores do clero e os colocara
à frente das associações clandestinas mas depois, no
sudoeste da Alemanha, ele próprio se transformou no
eixo de todo o movimento revolucionário. Estabelece
relações entre a Saxônia e Turíngia, a Francônia e a
Suábia até a Alsácia e a fronteira suíça; entre seus
discípulos e chefes de sua liga encontram-se agitadores
como Hubmaier em Waldshut, Conrado Grebe em
Zurique, Francisco Rabmann em Griessen, Schappelar
em Memmingen, Jacob Wehe em Leipheim, o doutor
Mantel em Stuttgart; eram em sua maioria sacerdotes
revolucionários.
Münzer permanecia em Griessen, perto da fronteira
Suíça, e dali percorria o Hegau e Klettgau, etc. As
perseguições sangrentas de que os príncipes e senhores
assustados fizeram vítima essa nova heresia plebeia,
contribuíram para incendiar o espírito de rebeldia e a
fortalecer a unidade.
Depois de cinco meses de agitação na Alemanha do
sul, quando a insurreição era iminente, Münzer
regressou à Turíngia de onde queria dirigir pessoalmente
as operações e onde o encontraremos mais tarde.
Veremos como o caráter e a atuação de ambos os
chefes refletirá fielmente a atitude de seus respectivos
partidos. Se a indecisão, o medo ante a potência cada
vez maior do movimento e o servilismo covarde de
Lutero correspondiam exatamente à política vacilante e
ambígua da burguesia, a decisão, a energia
revolucionária de Münzer eram reflexo da fração mais
avançada dos plebeus e camponeses. Porém, enquanto
Lutero se contentava em expressar o pensamento e os
anelos da maioria de sua classe para conquistar uma
popularidade barata, Münzer, por outro lado, em tudo se
adiantou às ideias e reivindicações que em sua época
alimentavam os camponeses e plebeus. Com a elite dos
elementos revolucionários existentes constituiu um
partido que, pela altura de suas ideias e sua energia,
não constituía senão uma parte ínfima da massa
sublevada.
3. Os Movimentos de 1476-1517:
Precursores da Grande Guerra
Camponesa
Cinquenta anos antes de haver sido esmagado o
movimento hussita, começaram a manifestar-se os
primeiros sintomas do espírito revolucionário dos
camponeses alemães. A primeira conspiração dos
camponeses originou-se em 1476, no bispado de
Würtzburg, região empobrecida em consequência das
guerras hussitas, “do mau governo, dos numerosos
tributos e prestações, inimizades, guerras, incêndios,
matanças, prisões, etc.” e que continuava sendo vítima
da pilhagem mais vergonhosa por parte dos bispos,
padres e nobres.
Um jovem pastor e músico, Hans Böheim de
Niklashausen, também chamado “timbaleiro” e
“Pfeiferhänslein”,10 fez-se profeta no vale do Tauber.
Contava que a virgem Maria lhe aparecera e ordenara
que queimasse os tímbalos e deixasse a dança e os
prazeres sensuais para exortar o povo à penitência.
Todos deviam renunciar a seus pecados e aos prazeres
vãos deste mundo, desfazer-se de joias e adornos e
empreender uma peregrinação à virgem de
Niklashausen para obter o perdão dos pecados.
Nesse primeiro precursor do movimento encontramos
o mesmo ascetismo que caracteriza todas as
insurreições medievais, de tipo religioso, e que também,
em tempos recentes, tem caracterizado o começo de
todo movimento proletário. Esta austeridade ascética,
este postulado de renúncia a todos os prazeres e
diversões, estabelece, ante as classes dominantes, o
princípio da igualdade espartana e constitui uma etapa
de transição necessária, sem a qual a camada inferior da
sociedade nunca se poderá pôr em marcha. Para
desencadear sua energia revolucionária, para ter a
consciência de sua posição hostil ante os demais
elementos da sociedade, para se constituir como classe,
essa camada inferior deve começar por desfazer-se de
tudo o que possa reconciliá-la com a ordem estabelecida
e renunciar aos poucos prazeres que ainda lhe tornam
suportável a vida mísera e que nem a opressão mais
dura lhe pudera arrebatar. Por sua forma fanática e
violenta, assim como por seu conteúdo, esse ascetismo
plebeu e proletário se distingue fundamentalmente do
ascetismo burguês, tal como o pregavam a moral
burguesa luterana e os puritanos ingleses (que diferem
dos Independentes e outras seitas mais avançadas) e
que no fundo não é mais do que uma manifestação da
parcimônia burguesa. É claro que esse ascetismo
plebeu e proletário perde seu caráter revolucionário à
medida que aumenta o desenvolvimento das forças
produtivas modernas – até o infinito, — e o material de
uso, tornando assim supérflua a igualdade espartana;
compreende-se assim a posição do proletariado na vida
social, assim como seu caráter cada vez mais
revolucionário. O ascetismo desaparece «das massas e
vai refugiar-se entre os sectários que continuam a
exaltá-lo, seja diretamente sob a forma de sovinice
burguesa, seja sob a de um virtuosismo hipócrita que na
prática não passa da conhecida avareza dos artesãos
gremiais e burgueses pedantes. Não é necessário pregar
desprendimento à massa proletária pois ela quase nada
mais tem do que se desprender.
A exortação à penitência, que fez Pfeiferhänslein,
conseguiu grandes aplausos; todos os profetas da
insurreição começavam por recitá-la e, com efeito, só o
esforço violento, e a renúncia repentina e total aos
hábitos de vida a que se acostumaram, eram capazes de
galvanizar aquela massa camponesa dividida e dispersa
que crescera num ambiente de obediência cega. As
peregrinações a Niklashausen começaram e
aumentaram rapidamente. Quanto maior era a afluência
do povo, mais abertamente o jovem rebelde se
pronunciava sobre seus projetos. A mãe de Deus
anunciara-lhe que daquela data em diante não devia
haver imperador, nem príncipe, nem papa, nem outra
autoridade espiritual ou secular. Todos os homens
deviam considerar-se irmãos, ganhar seu pão com o
trabalho de suas próprias mãos e ninguém devia possuir
mais do que outrem. Era imprescindível a supressão
radical dos censos, peitas, serviços, peagens e outros
tributos e garantir em toda parte o livre desfrute dos
bosques, da água e dos pastos.
O povo acolheu com simpatia esse novo evangelho.
Estendeu-se rapidamente a fama do profeta da
“mensagem de Nossa Senhora”. Os peregrinos afluíram
do Odenwald, do Meno, do Kocher e do Saxe e até da
Baviera, da Suábia e do Reno. Relatavam os milagres
que, diziam, Pfeiferhänslein fizera, ajoelhavam-se diante
dele, veneravam-no como a um santo; lutavam para
obter as franjas de seu gorro como se fossem relíquias e
amuletos. Os padres debalde se voltaram contra ele,
qualificando sua história de fraude diabólica e seus
milagres de engôdo infernal. A massa dos crentes
aumentava rapidamente, a seita revolucionária começou
a formar-se, os sermões dominicais do pastor rebelde
congregavam 40.000 pessoas, ou mais.
Durante vários meses, Pfeiferhänslein doutrinou as
massas. Mas não pensava em limitar-se a pregar. Tinha
relações secretas com o vigário de Niklashausen e com
dois cavaleiros: Kunz de Thunfeld e seu filho, partidários
da nova doutrina e futuros chefes militares da projetada
insurreição. Por fim, no domingo que precedeu à festa de
S. Kilian, e quando acreditou ter forças suficientes, deu o
sinal esperado. “E agora, ide a vossas casas e pensai no
que anunciou a santíssima Mãe de Deus; no próximo
domingo deixai que as mulheres, crianças e anciães
permaneçam em casa, porém, vós, os homens, vireis a
Niklashausen, no dia de santa Margarida que é o
próximo sábado, trazendo vossos irmãos e amigos,
qualquer que seja o seu número. Porém não venhais com
o bastão dos peregrinos e sim com as armas; a vela dos
peregrinos em uma mão e na outra a espada ou a
alabarda: então a Santa Virgem comunicar-vos-á sua
vontade”.
Porém antes que chegassem as massas de
camponeses, os ginetes do bispo foram de noite
procurar o profeta insurreto e levaram-no ao castelo de
Würtzburg. No dia convencionado chegaram cerca de
34.000 camponeses armados, porém a prisão do seu
chefe os desanimou. A maior parte se dispersou; os
iniciados, capitaneados por Kunz de Thunfeld e seu filho
Miguel, reuniram cerca de 16.000 homens e marcharam
para o castelo. O bispo intimou-os a retirar-se fazendo-
lhes grandes promessas; porém, mal começavam a
debandar quando foram surpreendidos pelos cavaleiros
do bispo, que fizeram vários prisioneiros. Dois deles
foram decapitados e Pfeiferhänslein foi queimado na
fogueira. Kunz de Thunfeld fugiu e só foi readmitido no
país depois de ceder todos os seus bens ao bispado. As
peregrinações a Niklashausen prosseguiram durante
algum tempo até que finalmente foram proibidas.
Depois desta primeira tentativa a Alemanha
permaneceu tranquila durante muito tempo. Só nos fins
do século XV começaram outra vez as conspirações e
insurreições camponesas.
Não falaremos aqui da insurreição dos camponeses
holandeses de 1491 e 1492, finalmente esmagada pelo
duque Alberto de Saxe na batalha de Heemskerk;
tampouco nos ocuparemos da sublevação dos
camponeses na abadia de Kempten na alta Suábia, nem
da insurreição de 1497 na Frísia encabeçada por Syaard
Sylva e também reprimida por Alberto de Saxe. Estas
sublevações já se produzem em regiões muito distantes
do teatro da verdadeira guerra camponesa; já não são
senão lutas de camponeses livres que resistem aos que
querem impôr-lhes a dominação feudal. Passaremos
diretamente às grandes conspirações que foram o
prelúdio da guerra camponesa: o Bundschuh e o Pobre
Conrado. A mesma carestia que provocou a insurreição
dos camponeses dos Países Baixos foi que, em 1493,
determinou a formação, na Alsácia, de uma liga secreta
de camponeses e plebeus à qual pertenciam também
elementos da oposição burguesa e que foi encarada com
simpatia até por alguns setores da pequena nobreza. O
centro da conspiração estava localizado na região de
Schlettstadt, Sulz Dambach, Rossheim, Scherweiler, etc.
Os conjurados queriam a introdução de um ano jubilar
em que todas as dívidas fossem anuladas; a supressão
dos direitos alfandegários e outros impostos fiscais e da
justiça eclesiástica e imperial; o direito de votar os
impostos; a redução dos benefícios dos padres a 50 ou
60 “gulden”; a supressão da confissão e o direito de
cada comunidade eleger seu próprio tribunal.
O plano da conspiração era tomar de surpresa a
fortaleza de Schlettstadt quando houvesse forças
suficientes e pensavam apoderar-se dos dinheiros do
município e dos conventos, organizando então a
insurreição em toda a Alsácia. A bandeira que iam
desfraldar no momento da insurreição levava bordada
uma bota de camponês com correias longas, o
Bundschuh, que durante os 20 anos seguintes ia ser o
símbolo das conspirações camponesas.
Os conspiradores celebravam suas reuniões de noite,
num ermo, no monte Hungerberg. A admissão de novos
membros era seguida de cerimônias misteriosas,
ameaçando os traidores com penas severíssimas. Não
obstante, o plano foi descoberta precisamente às
vésperas do golpe contra Schlettstadt, na semana santa
de 1493. As autoridades intervieram rapidamente de
tendo muitos conjurados que foram torturados e
esquartejados ou decapitados; os restantes foram
desterrados do território depois de sofrer a amputação
dos dedos das mãos. Muitos fugiram para a Suíça.
Mas esta primeira dispersão não liquidaria o
Bundschuh. Ao contrário, continuou existindo em
segredo e os numerosos fugitivos que se espalharam
pela Suíça e Alemanha do sul tornaram-se outros tantos
propagandistas que, encontrando em toda parte a
mesma opressão e o mesmo afã de sublevar-se,
popularizaram o Bundschuh na região atualmente de
Baden.
Foram verdadeiramente admiráveis a fortaleza de
ânimo e de perseverança que mostraram os
camponeses da Alemanha do sul conspirando desde
1493, durante cerca de 30 anos, e removendo todos os
obstáculos que a vida dos campos opunha a maior
centralização, a constância que os moveu a continuar
conspirando depois de tantas dispersões, derrotas e
execuções de chefes até, por fim, chegar o momento da
insurreição geral.
Em 1502 houve indícios de agitação secreta entre os
camponeses do bispado de Spira que compreendia,
então, também a região de Bruchsal. Lá o Bundschuh se
reorganizara com notável êxito. Havia 7.000 homens na
liga cujo centro se achava em Untergrombach, entre
Bruchsal e Weingarten e cujas ramificações se
estendiam até as margens do Reno e do Meno por todo o
margraviado de Baden. Exigiam que não se pagassem
censos nem dízimos, nem tributo, nem peagem aos
príncipes, nobres e sacerdotes; que se suprimisse a
servidão; que se confiscassem os conventos e outros
bens eclesiásticos para reparti-los entre o povo e que se
não reconhecesse outro senhor além do imperador.
Pela primeira vez os camponeses exigem a
secularização dos bens eclesiásticos, em benefício do
povo e o estabelecimento de uma monarquia alemã
única e indivisível; reivindicações que a fração avançada
dos camponeses e plebeus apresentará periodicamente,
a partir daquele momento, até Tomás Münzer
transformar a repartição dos bens eclesiásticos em
expropriação em benefício da comunidade e a
monarquia alemã unida, em República una e indivisível.
Do mesmo modo que o antigo Bundschuh, o novo
tinha seu local para a realização das reuniões
clandestinas, seu juramento de guardar o segredo, seu
cerimonial de admissão e sua bandeira, na qual, ao lado
da bota, figurava a inscrição: “Não pedimos senão a
justiça de Deus”. O plano de ação se parecia com o dos
alsacianos. Num golpe de surpresa, iam tomar a cidade
de Bruchsal, onde a maioria dos habitantes pertencia à
liga; aí organizariam um exército que seria enviado aos
principados vizinhos, como centro de recrutamento
ambulante.
O plano foi denunciado por um sacerdote a quem um
dos conspiradores revelara o segredo em confissão.
Imediatamente os governos tomaram suas medidas.
Concentraram tropas e se efetuaram prisões em massa.
O imperador Maximiliano, o “último cavaleiro”, ditou os
mais sanguinários dos decretos contra as “manobras
criminosas” dos camponeses. Em alguns lugares houve
distúrbios e tentativas de resistência armada; porém os
grupos isolados de camponeses não resistiram por muito
tempo. Alguns conspiradores foram executados, outros
fugiram; porém o segredo foi conservado com tanto
cuidado que a maioria, até dos próprios chefes, pôde
com toda tranquilidade permanecer em suas próprias
aldeias ou, pelo menos, nos territórios vizinhos.
Depois dessa nova derrota, houve outro espaço de
tranquilidade aparente na luta de classes. Nos primeiros
anos do século XVI formou-se na Suábia a liga do
“pobre Conrado”, em provável relação com os
membros dispersos do Bundschuh; na Floresta Negra, o
Bundschuh subsistiu em alguns pequenos círculos;
passaram-se dez anos até que um chefe camponês
enérgico lograsse reunir numa grande conspiração esses
fios dispersos. Os dois movimentos se produziram
sucessivamente durante os anos agitados de 1513 e
1515, época das grandes insurreições dos camponeses
suíços, húngaros e eslovenos.
Foi Joss Fritz de Untergrombach, fugitivo da
conspiração de 1502, antigo soldado e personalidade
notável sob todos os pontos de vista, que restabeleceu o
Bundschuh na região do alto Reno.
Depois de sua fuga, vivera em vários lugares entre o
lago de Constança e a Floresta Negra, e finalmente se
estabelecera em Lehen perto de Friburgo, na Brisgóvia,
onde se fizera guarda-floresta. Os autos do processo
contêm detalhes interessantíssimos sobre a atividade
que ele desenvolveu reorganizando a liga, dali de onde
se achava, obrando com grande acerto para fazer
ingressar nela gente a mais diversa. Graças aos dons
diplomáticos e à extraordinária perseverança desse
conspirador exemplar, foi-lhe possível conquistar um
sem-número de pessoas de todas as classes: cavaleiros,
padres, burgueses, plebeus e camponeses, e parece
certo que organizou ao mesmo tempo várias
conspirações.
Utilizava com grande habilidade e acerto todos os
elementos aproveitáveis. Além dos emissários iniciados
empregava vagabundos e mendigos para as missões de
menor importância. Joss Fritz estava em contato direto
com os reis dos mendigos e através destes era dono de
toda a massa de vagabundos. Esses reis dos mendigos
desempenham papel importante em sua conspiração.
Foram tipos altamente originais: Um percorria o país
com uma moça que dizia ter feridas nos pés, e pedia
esmolas para ela. Levava no chapéu mais de oito
medalhas, os “catorze apotropeanos”, “Santa Odília”,
“Nossa Senhora”, etc.; usava ama grande barba
vermelha e uma enorme bengala de castão e ponteira.
Outro, que pedia em nome de São Valentim, vendia
substâncias aromáticas, vermífugos e sanguessugas e
vestia um gibão comprido cor de ferro, boina vermelha
com o “Menino de Trento”, uma espada e, no cinturão,
grande número de navalhas e um punhal. Outros tinham
feridas que conservavam abertas artificialmente e
usavam roupas igualmente extravagantes. Eram pelo
menos dez que, por uma recompensa de 2.000 florins,
iam acender as chamas da insurreição simultaneamente
na Alsácia, no margraviado de Baden e na Brisgóvia. No
dia da festa do padroeiro de Saverna iam encontrar-se
em Rosen com 2.000 homens dos seus para colocar-se
sob o comando de Jorge Schneider, ex-capitão de
lansquenés que ia dirigir a tomada da cidade. Entre os
verdadeiros membros da liga organizou-se um serviço de
estafetas. Joss Fritz e Cristóvão de Friburgo, seu principal
emissário, iam a cavalo de um lugar para outro, e
passavam à noite em revista os novos recrutas. Os autos
do processo dão prova mais do que suficiente da enorme
difusão da liga nas margens do Reno superior e na
Floresta Negra. Citam uma infinidade de lugares, dos
mais diversos daquela região. Em sua maioria eram
artesãos; os demais eram camponeses, alguns
taberneiros, nobres e padres como o de Lehen e ainda
alguns lansquenés sem trabalho. Tal composição mostra
o grande desenvolvimento alcançado pelo Bundschuh
sob a direção de Joss Fritz. O elemento plebeu das
cidades começava a impôr-se cada vez mais. As
ramificações da conspiração estendiam-se por toda a
Alsácia e Baden até Würtemberg e às margens do Meno.
De vez em quando se convocavam grandes assembleias
sobre montes distantes como o Khiebis, etc., para
deliberar sobre assuntos da liga. Os chefes se reuniam
no campo de Hartmatte, perto de Lehen, assistindo à
reunião filiados do lugar, assim como os delegados de
outras aldeias; ali se aprovaram os dez artigos da liga.
Não se reconheceria nenhum soberano além do
imperador e (segundo queriam alguns) do Papa; a
supressão da justiça imperial, a limitação da jurisdição
eclesiástica aos assuntos eclesiásticos; a suspensão do
pagamento de juros, quando os pagamentos efetuados
chegassem a cobrir o capital; a limitação do juro a cinco
por cento; a liberdade de caça, pesca, pasto e corte de
lenha; a proibição dos padres terem mais de uma
prebenda; a expropriação dos bens eclesiásticos e
tesouros dos mosteiros em benefício da caixa militar da
liga; a supressão de todos os tributos e taxas injustas; a
paz eterna em toda a cristandade; a intervenção
enérgica contra todos os adversários da liga; o
estabelecimento de um imposto em favor da liga; a
obtenção da praça forte de Friburgo, para servir de
centro à liga; o estabelecimento de negociações com o
imperador, logo que estivessem reunidas as tropas da
liga, ou com a Suíça, caso o imperador se negasse a
ouvi-los. Esses foram os pontos combinados. Neles se
manifesta claramente a forma cada vez mais precisa e
concreta das reivindicações camponesas e plebeias e
nota-se como, ao mesmo tempo, foi necessário fazer
concessões de igual importância aos moderados e
tímidos.
A ofensiva estava anunciada para o outono de 1513.
Nada faltava além da bandeira e, para encomendá-la,
Joss Fritz encaminhou-se para Heilbronn. Ao lado de uma
porção de emblemas e imagens a bandeira ostentava o
Bundschuh e uma inscrição que dizia: “Senhor, ajuda
tua justiça divina”. Na ausência de Joss, porém,
tentaram prematuramente tomar de surpresa a ‘cidade
de Friburgo. A tentativa foi descoberta a tempo; algumas
indiscrições da propaganda ajudaram o Conselho e o
margrave de Baden a descobrir a trama, e a traição de
dois dos conspiradores completou a série de revelações.
O margrave, o Conselho e o governo imperial de
Ensisheim mobilizaram esbirros e soldados. Vários
membros da liga foram detidos, torturados e
executados; porém ainda desta vez, os outros
escaparam e, entre eles, o próprio Joss Fritz. Os governos
da Suíça desta vez perseguiram com grande violência os
fugitivos chegando mesmo a executar alguns; porém,
aconteceu-lhes o mesmo que a seus vizinhos: não
puderam impedir que a maioria dos fugitivos
permanecesse próximo as suas residências antigas e a
elas voltasse depois de algum tempo. O que mais se
destacou na perseguição foi o governo alsaciano de
Ensisheim que mandou degolar, torturar na roda e
esquartejar grande número de fugitivos. Joss Fritz
estabeleceu-se na margem suíça do Reno, fazendo
frequentes excursões à Floresta Negra sem que fosse
possível capturá-lo.
Os suíços tiveram sérias razões desta vez para se
aliarem aos governos vizinhos contra os membros do
Bundschuh; demonstra-o a sublevação camponesa que
estalou no ano seguinte, em 1514, em Berna, Solura11
e Lucerna e que teve como consequência a depuração
dos governos aristocráticos e do patriciado. Os
camponeses lograram conquistar bastantes direitos. O
êxito dessas insurreições locais deveu-se unicamente à
falta de centralização que na Suíça era ainda maior do
que na Alemanha. Também em 1525 os camponeses
puderam liquidar seus senhores locais, porém
sucumbiram ante os grandes exércitos organizados dos
príncipes, o que não existia na Suíça.
Ao mesmo tempo que se organizava o Bundschuh de
Baden, – e, segundo parece, em relação direta com ele,
— tramava-se outra conspiração no Würtemberg.
Segundo os autos, essa conspiração existia desde 1503.
Com a dissolução do Bundschuh de Untergrombach,
esse nome se tornara muito perigoso; por isso tomaram
o de “pobre Conrado”. Sua sede central era o vale de
Rems nas faldas do monte Hohenstaufen. Sua existência
já não era segredo, pelo menos para o povo. Graças à
opressão vergonhosa que exercia o governo do duque
Ulrico e em consequência dos anos de fome que
provocaram o levante 1513-1514 o número de membros
crescera rapidamente; as novas contribuições sobre o
vinho, a carne e o pão e o imposto sobre o capital que
era de um pfennig anual por florim, fizeram estalar a
revolta. Em primeiro lugar ia ser tomada a cidade de
Schorndorf, onde os cabeças do “complot” costumavam
reunir-se, na casa do cuteleiro Gaspar Pregizer. A
insurreição estourou na primavera de 1514. Três mil
camponeses, — segundo alguns, 5.000, — cercaram a
cidade, porém os servidores do duque fizeram-lhes
promessas de toda sorte e os induziram a retirar-se. O
duque Ulrico acudiu com 80 ginetes e, como também
prometera abolir os novos impostos, encontrou tudo
tranquilo. Prometeu convocar a dieta para examinar
todas as reclamações. Porém os chefes da liga sabiam
muito bem que Ulrico queria apenas aproveitar-se da
tranquilidade momentânea para levantar e concentrar
as tropas suficientes para poder faltar à sua palavra e
arrecadar os impostos à força.
Em vista disto, os chefes da liga enviaram, da casa de
Gaspar Pregizer, a chancelaria do “pobre Conrado”, os
convites para um congresso da liga, encontrando em
toda parte o apoio dos emissários. O êxito da primeira
sublevação no vale do Reims contribuirá para
popularizar ainda mais o movimento; os convites e os
emissários encontraram terreno favorável e ao
congresso que se celebrou a 28 de maio em
Untertürkheim assistiram numerosos delegados de todo
o Würtemberg. Decidiram ativar a agitação e, na
primeira ocasião, dar a batalha no vale do Rems para
dali propagar a insurreição. Nesse interim, João Bantel
de Dettingen, antigo soldado, e João Singer, de
Würtingen, agricultor muito estimado entre os seus,
levaram à liga a representação da montanha da Suábia.
A sublevação se desencadeou por toda parte. Se bem
que João Singer fosse surpreendido e capturado, as
cidades de Backnang, Winnenden e Markgroenningen
caíram nas mãos dos camponeses aliados aos plebeus, e
todo o país, de Weinsberg até Blaubeuren e dali até a
fronteira de Baden encontrou-se em plena insurreição;
Ulrico teve de ceder. Porém ao mesmo tempo que
convocava a dieta, (Landtag), para o dia 25 de junho,
escrevia às cidades livres e príncipes vizinhos pedindo
auxílio contra a insurreição que punha em perigo todos
os príncipes, autoridades e patrícios do império e que
tinha “tão estranha semelhança com o Bundschuh!”
Entrementes a dieta, ou seja, os representantes das
cidades e grande número de camponeses que por sua
vez exigiam representação, foram se reunindo em
Stuttgart, desde 18 de junho. Os prelados ainda não
haviam chegado, os cavaleiros nem sequer haviam sido
convocados. Os grupos da oposição na cidade de
Stuttgart e dois bandos de camponeses que ameaçavam
de Léinsberg e do vale do Rems, apoiavam as
reivindicações camponesas. Seus delegados foram
admitidos; ficou combinado destituir e castigar os
odiados conselheiros do duque, Lamparter, Thumb e
Lorcher, e decidiu-se pôr-se ao lado do duque um
conselho composto de quatro cavaleiros, quatro
cidadãos e quatro camponeses, concedendo-se uma
renda fixa à casa ducal e expropriando-se conventos e
abadias em benefício do erário público.
A esses acordos revolucionários, o duque Ulrico opôs
um golpe de estado. No dia 21 de junho, marchou contra
Tübingen com seus cavaleiros e conselheiros, seguido
pelos prelados; ordenou aos cidadãos que também o
seguissem e foi obedecido. Continuaram as sessões da
dieta, porém sem os camponeses. Sob a pressão do
terrorismo militar os burgueses traíram seus aliados
camponeses. A 8 de julho, firmou-se o tratado de
Tübingen que impôs ao país o pagamento de cerca de
um milhão de dívidas ducais e ao duque umas tantas
restrições das quais nunca fez caso, enquanto os
camponeses tiveram de se contentar com meia dúzia de
promessas imprecisas e platônicas e uma lei contra as
associações secretas e a rebeldia que, — esta sim, — era
bastante positiva. Naturalmente já não se voltou a falar
da representação camponesa na dieta. As massas rurais
se agitaram indignadíssimas por causa da traição. Porém
o duque reconquistara o crédito fazendo com que o
estado se encarregasse do pagamento de suas dívidas;
pôde levantar tropas e também seus vizinhos, sobretudo
o eleitor do Palatinado, lhe enviaram corpos auxiliares;
antes de terminar o mês de julho, o tratado de Tübingen
foi aceito por todo país, que não tardou em prestar
juramento. Só o vale do Rems resistiu; o pobre
Conrado, esteve a ponto de matar o duque que outra
vez lá apareceu pessoalmente. Os camponeses,
continuando sua oposição, estabeleceram acampamento
no monte Kappelberg.
Porém, prolongando-se essa situação, a maioria dos
insurretos se dispersou por falta de víveres e os
restantes também terminaram por dirigir-se a suas
aldeias enganados por um convênio ambíguo que
fizeram com alguns delegados da dieta. A despeito do
convênio, Ulrico, a cujo exército haviam se incorporado
as companhias voluntárias postas a sua disposição pelas
cidades — que agora, depois de conseguidas suas
reivindicações, se voltavam fanaticamente contra os
camponeses, — atacou o vale de Rems, saqueando
cidades e aldeias. Mil e seiscentos camponeses foram
detidos; dezesseis foram decapitados imediatamente e
aos restantes foram aplicadas fortes multas, em
beneficio do tesouro ducal. Muitos tiveram de
permanecer no cárcere por longo tempo. Ditaram-se leis
severíssimas para impedir a reorganização da liga e
todas as reuniões de camponeses; a nobreza da Suábia
formou uma liga com o único fim de reprimir todo
intento de sublevação. Contudo, os líderes do “pobre
Conrado” puderam refugiar-se na Suíça, de onde
retornaram, um a um, passados alguns anos.
Simultaneamente com o movimento do Würtenberg,
apresentaram-se sintomas de novas perturbações
devidas ao Bundschuh, em Brisgau e no margraviado de
Baden. Em junho tentou-se uma sublevação perto de
Bühl; foi sufocada no nascedouro pelo margrave Felipe e
Sebastião Gugel, seu chefe, foi detido em Friburgo e
decapitado.
Na mesma primavera de 1514, estalou a guerra dos
camponeses de toda a Hungria. Tinham sido feitos
apelos à cruzada contra os turcos, como sempre
prometendo-se liberdade para os servos e vassalos que
se oferecessem. Reuniram-se 60.000 camponeses sob as
ordens de Jorge Dosza, que se distinguira nas guerras
anteriores contra os turcos e a quem haviam concedido
um título de nobreza. Porém os cavaleiros e magnatas
húngaros viram com muito maus olhos essa cruzada que
ia despojá-los de sua propriedade, isto é, de seus
servidores. Perseguiram os grupos de camponeses e
fizeram voltar à força os seus servos, maltratando-os. Ao
se inteirarem os cruzados do sucedido, estourou a ira
entre os camponeses oprimidos. Lourenço e Barnabé, os
mais ardentes pregadores da cruzada, atiçaram com
seus discursos inflamados o ódio do exército contra a
nobreza. O próprio Dosza deixou-se arrastar pela ira de
suas tropas contra a nobreza traidora. Os cruzados se
constituíram em exército da revolução e Dosza pôs-se à
frente desse novo movimento.
Os camponeses acamparam no campo de Rakos perto
de Pest. Começaram as hostilidades, produzindo-se
escaramuças com os partidários da nobreza nas aldeias
próximas e nos subúrbios de Pest; cedo travaram-se
combates e sobreveio a matança geral de todos os
nobres que caíam nas mãos dos camponeses,
queimando-se grande número de castelos. Debalde a
corte fez ameaças. Após cumprirem-se as primeiras
sentenças da justiça popular contra os nobres ao pé das
muralhas da própria capital, Dosza realizou novas
operações. Dividiu seu exército em cinco colunas. Duas
foram enviadas às montanhas da alta Hungria para
sublevar o povo e exterminar a nobreza. A terceira
coluna, sob o comando de Ambrósio de Szaleves,
cidadão de Pest, ficou em Rakos para vigiar a capital, a
quarta e quinta colunas marcharam contra Szegedin,
conduzidas por Dosza e seu irmão Gregório.
Nesse ínterim, a nobreza reuniu-se em Pest e pediu
auxílio a João Zapolya, voivode da Transilvânia.
Unida aos cidadãos de Budapeste, a nobreza derrotou
e aniquilou o corpo que ficara acampado no Rakos,
depois de Szaleves se passar para o inimigo com alguns
elementos burgueses do exército camponês. Um sem
número de prisioneiros foi executado de maneira cruel e
os restantes devolvidos a suas povoações com os
narizes e orelhas cortados.
Dosza fracassou em Szegedin e marchou contra
Csanad que ocupou depois de derrotar um exército da
nobreza comandado por Batory Istvan e pelo bispo
Csakyi. Pelas crueldades cometidas em Rakos, tomou
represálias sangrentas sobre os prisioneiros, entre os
quais se encontravam o bispo e o tesoureiro real Teleki.
Em Csanad, proclamou a república, a supressão da
nobreza, a igualdade da cidadania e a soberania do
povo. Logo marchou sobre Temesvar onde Batory se
fortificara. Mas enquanto sitiava essa fortaleza, durante
dois meses, recebendo como reforço um novo exército
comandado por Antônio Hosza. as duas colunas que
operavam na alta Hungria sucumbiram ante a nobreza
em várias batalhas e João Zapolya marchou contra ele
com as tropas da Transilvânia. Zapolya atacou e
dispersou os camponeses; Dosza foi aprisionado e
assado em um trono de ferro candente, e os seus
próprios homens foram obrigados a comê-lo vivo. Essa
foi a condição do perdão. Os camponeses dispersos se
refizeram sob o comando de Lourenço e Hosza, porém
sofreram outra derrota e todos os que caíram em mãos
do inimigo foram enforcados ou empalados. Milhares de
cadáveres de camponeses pendiam às margens das
estradas e à entrada das aldeias incendiadas. Dizem que
sobe a cerca de 60.000 o número dos que caíram nas
lutas e, mais tarde, nas matanças. Na reunião seguinte
da dieta, a nobreza teve o cuidado todo especial de fazer
reconhecer, mais uma vez, a escravidão dos
camponeses, como a lei básica do país.
Na origem da insurreição camponesa da Caríntia e
Estíria que estalou ao mesmo tempo, havia uma
conspiração semelhante à do Bundschuh que nasceu
no ano de 1503. Então já se havia provocado uma
insurreição nessa terra espoliada pela nobreza e pelos
funcionários imperiais, devastada pelas invasões dos
turcos e atormentada pela fome. Em 1513, os
camponeses eslovenos, unidos aos alemães da região,
levantaram de novo a bandeira da stara prava,
(direitos antigos), porém naquele ano ainda foi possível
apaziguá-los; em 1514 já se congregavam grandes
massas, porém a promessa do imperador Maximiliano de
restabelecer os antigos privilégios moveu-os a dispersar-
se outra vez. Mas violenta, porém, foi a explosão da
primavera de 1515 quando o povo, tantas vezes
enganado, procurou a vingança pelas armas. Como na
Hungria, destruíram todos os castelos e conventos e os
tribunais camponeses julgaram e executaram os nobres
capturados. Na Estíria e Caríntia, o capitão imperial
Dietrichstein conseguiu apaziguar os sublevados, porém
em Carniola só foi possível dominá-los após a conquista
de Krain, tomada de surpresa; as inúmeras atrocidades
dos austríacos constituíram digno complemento às
infâmias da nobreza húngara.
Bem se compreende que depois de uma série de
derrotas decisivas e em vista de tantas atrocidades
cometidas pela nobreza, os camponeses alemães
permanecessem tranquilos durante longo espaço de
tempo. Contudo não cessaram as conspirações e as
sublevações locais. Em 1516, a maioria dos refugiados
filiados ao Bundschuh e ao pobre Conrado regressou
à Suábia e aos territórios do alto Reno e em 1517, o
Bundschuh estendera-se novamente pela Floresta
Negra. O próprio Joss Fritz, que ainda levava a velha
bandeira de 1513 escondida sobre seu peito, percorria a
Floresta Negra desenvolvendo grande atividade. A
conspiração de novo se organizou. Novamente foram
convocadas assembleias no monte Kniebis. Porém o
segredo não foi guardado; os governos inteiraram-se do
que ocorria e intervieram. Alguns dos conspiradores
foram capturados; os membros mais ativos e
inteligentes tiveram de fugir e com eles Joss Fritz que
mais uma vez conseguiu escapar. Deve ter morrido na
Suíça pouco tempo depois, porque seu nome não torna
mais a aparecer.
4. A Sublevação da Nobreza
Enquanto perdurava na Floresta Negra a repressão à
quarta conspiração do Bundschuh, Lutero deu, em
Wittenberg, o sinal para o movimento que ia arrastar
todas as classes, comovendo o império em suas bases
mais profundas. As “teses” do monge agostinho da
Turíngia caíram como um raio num paiol de pólvora. As
múltiplas e divergentes tendências dos cavaleiros e dos
burgueses, dos camponeses e dos plebeus, dos príncipes
que anelavam a plena soberania e das camadas
inferiores do clero, das seitas místicas clandestinas e da
oposição intelectual formadas pelos escritores eruditos e
satírico-burlescos, acharam nessas teses urna expressão
comum em torno da qual se agruparam com
surpreendente rapidez. Por pouco que durasse essa
aliança de todos os elementos da oposição, formada do
dia para a noite, revelou, de um só golpe, a enorme
pujança do movimento e o ajudou a progredir
rapidamente.
Mas, precisamente esse progresso do movimento
devia desenvolver cedo os germes da discórdia, que
trazia latentes em seu seio, dividindo em dois campos
antagônicos as diferentes fações diametralmente
opostas uma à outra, por sua posição social. A
concentração dessa massa policrômica de oposição em
torno de duas figuras centrais não tardou a produzir-se:
a nobreza e os burgueses estavam incondicionalmente
ao lado de Lutero; os camponeses e os plebeus, sem
considerar Lutero um inimigo direito, formavam, como
dantes, seu próprio partido de oposição revolucionária.
Porém agora o movimento era geral e muito mais
potente do que antes de Lutero; já existia a necessidade
de uma luta direta entre ambos partidos, que se
enfrentavam abertamente. Tal inimizade não tardou a
manifestar-se; Lutero e Münzer se combatiam
mutuamente na imprensa e no púlpito, do mesmo modo
que os exércitos dos príncipes, cavaleiros e cidades,
compostos em sua maioria por forças luteranas, ou que,
pelo menos, simpatizavam com o luteranismo,
dispersavam os bandos de camponeses e plebeus.
Até que ponto divergiam os interesses e necessidades
dos diferentes elementos que aceitaram a reforma, é o
que demonstra, já antes da guerra camponesa, a
tentativa da nobreza de conseguir seus objetivos ante os
príncipes e o clero.
Já é nossa conhecida a posição que ocupava a nobreza
alemã em começos do século XVI.
Estava a ponto de perder sua independência para os
príncipes de sangue e espirituais, cada dia mais
poderosos. Na mesma medida em que decaía a nobreza,
decaía também o poder imperial, e o império se dissolvia
em vários principados autônomos. Segundo pensava a
nobreza, sua decadência ia coincidir com a destruição da
Alemanha como nação. A nobreza, e especialmente a
nobreza independente, era a classe que mais
diretamente representava o império e o poder imperial,
quer por seu ofício militar quer por sua posição diante
dos príncipes. Era a classe do maior espírito nacional;
poderosa quando também o era o império, quando os
príncipes eram débeis e pouco numerosos e quando a
Alemanha estava unida. Por isso a indignação dos
cavaleiros ante a lamentável situação política da
Alemanha e ante a impotência do império em face do
estrangeiro, o que se acentuava à medida em que a
casa imperial incorporava ao império, uma após outra,
as províncias que herdara. As intrigas das potências
estrangeiras no interior da Alemanha, as conspirações
que os príncipes alemães tramavam contra o poder
imperial com a ajuda do estrangeiro, tudo isso indignava
grandemente os cavaleiros. A primeira reivindicação da
nobreza tinha forçosamente de ser a reforma do império
sacrificando os príncipes e o alto clero. Esta
reivindicação foi formulada por Ulrico de Hutten, o
representante teórico da nobreza alemã, unido a
Francisco Sickingen, seu representante militar e
político.
Essa reforma do império, que se exigia em nome da
nobreza, foi por Hutten formulada de maneira muito
enérgica e radical. Pedia nada menos que a supressão
radical dos príncipes, a secularização de todos os
principados e bens eclesiásticos e o estabelecimento de
uma democracia aristocrática chefiada por um
monarca. Isso é, aproximadamente, o que fora em seus
melhores dias a defunta república polaca. Hutten e
Sickingen acreditavam que o governo da nobreza, classe
eminentemente militar, a supressão dos príncipes,
representantes da divisão, o aniquilamento do poder
sacerdotal e a libertação da Alemanha do jugo espiritual
de Roma, devolveriam ao império sua unidade, liberdade
e força.
A democracia aristocrática, baseada na servidão, tal
como existiu na Polônia e, de forma um pouco
modificada, nos primeiros séculos nos reinos
conquistados pelos germanos, é uma das formas mais
primitivas da sociedade que, no curso normal da
evolução, se transforma na hierarquia feudal perfeita, o
que caracteriza uma etapa muito superior. Essa
democracia de nobres era impossível na Alemanha do
século XVI. Impossível porque já existiam na Alemanha
grandes e poderosas cidades. Por outro lado não era
possível aquela aliança da pequena nobreza com as
cidades, que na Inglaterra logrou a transformação da
monarquia feudal hierárquica em monarquia burguesa
constitucional. Na Alemanha subsistia a nobreza antiga,
que na Inglaterra já havia sido destruída nas guerras das
Duas Rosas e substituída por uma nova nobreza de
origem e tendências burguesas. Na Alemanha subsistia a
servidão, as fontes de renda da nobreza tinham caráter
feudal enquanto que na Inglaterra já estavam quase
abolidas. Além Mancha a nobreza desfrutava da
propriedade burguesa do solo; sua fonte de renda era a
renda burguesa. Finalmente a centralização da
monarquia absoluta que na França existia desde os
tempos de Luís XI, acentuando-se progressivamente
graças sobretudo ao antagonismo entre a nobreza e a
burguesia, era totalmente impossível na Alemanha, por
não existir quase nenhuma das condições para a
centralização nacional.
Quanto mais se empenhava Hutten em realizar seu
ideal, mais concessões tinha de fazer e mais imprecisa
se tornava a sua reforma do império. Por si só a nobreza
não era suficientemente poderosa para conseguir seus
fins, o que é demonstrado por sua crescente debilidade
ante os príncipes. Era preciso conseguir aliados e os
únicos possíveis eram as cidades, os camponeses e os
teóricos influentes da Reforma. Porém as cidades
conheciam a nobreza suficientemente para não confiar
nela e para negar-se a todo e qualquer compromisso. Os
camponeses com muita razão consideravam como seu
maior inimigo a nobreza que os explorava e maltratava.
E os grandes teóricos da Reforma estavam ao lado dos
burgueses, dos príncipes, ou dos camponeses. Que
promessa positiva podia fazer a nobreza aos burgueses
e camponeses no que se referia a uma reforma do
império, cujo principal objetivo constituía em melhorar
as condições da própria nobreza? Em seus escritos de
propaganda, Hutten não teve outro remédio senão
silenciar sobre tudo o que se referia às relações entre a
nobreza, as cidades e os camponeses, deitando a culpa
de todos os males sobre os príncipes, padres e a
influência de Roma, e tratando de convencer os
burgueses que era de interesse deles permanecerem
pelo menos neutros na luta iminente entre os príncipes e
a nobreza. Hutten não tocava na abolição da servidão e
dos tributos que o camponês devia à nobreza.
Naquele tempo, a posição da nobreza alemã perante
os camponeses era idêntica à dos nobres polacos em
relação aos seus camponeses, nas insurreições ocorridas
desde 1830. Da mesma maneira que nas recentes
insurreições polonesas, na Alemanha de então o
movimento não podia vencer a não ser por uma aliança
de todos os partidos da oposição e sobretudo da nobreza
com os camponeses. Precisamente essa aliança era
impossível em ambos os casos. A nobreza não se via
tentada a renunciar a seus privilégios políticos, a seus
foros feudais e a sua jurisdição sobre os camponeses; e
os camponeses não podiam, com perspectivas tão
incertas, aventurar-se a concluir uma aliança com a
nobreza que precisamente era a classe que mais os
oprimia. Assim como na Polônia em 1830, já na
Alemanha de 1522 a nobreza não podia atrair os
camponeses. Apenas a abolição da servidão e da
vassalagem, a renúncia a todos os privilégios feudais
teriam tornado possível a união da população rural com
a nobreza; porém a nobreza, como toda classe
privilegiada, não tinha o menor desejo de renunciar
voluntariamente a suas vantagens, à sua superioridade
e à maior parte de suas rendas.
Ao começar a luta, os nobres se encontravam sós
contra os príncipes. Era evidente que os príncipes, que
durante dois séculos tinham continuamente ganho
terreno, iam destruí-los ainda desta vez com grande
facilidade.
O desenvolvimento da luta é conhecido. Hutten e
Sickingen, que já era o chefe militar e político
reconhecido dos nobres da Alemanha central, lograram
constituir em 1522, em Landau, uma aliança de seis
anos da nobreza da Renânia, Suábia e Francônia visando
a autodefesa, como diziam. Com seus próprios meios e
com a ajuda dos cavaleiros vizinhos, Sickingen
concentrou um exército e organizou o recrutamento na
Francônia, nas margens do baixo Reno, nos Países Baixos
e na Westfália: Em setembro de 1522 iniciou as
hostilidades desafiando o eleitor-arcebispo de Trèves.
Porém, enquanto sitiava esta cidade, os príncipes
intervieram rapidamente, interceptando-lhe os
aprovisionamentos. O landgrave de Hessen e o eleitor do
Palatinado correram em auxílio do arcebispo e Sickingen
teve que refugiar-se em seu castelo de Landstuhl.
Apesar dos esforços de Hutten e de seus amigos, os
nobres aliados abandonaram-no atemorizados pela ação
rápida e eficaz dos príncipes. Sickingen, gravemente
ferido, entregou Landstuhl, morrendo pouco depois.
Hutten teve que fugir para a Suíça e morreu poucos
meses depois na ilha de Ufnau, no lago de Zurique.
Essa derrota aniquilou o poder da nobreza como
corporação independente dos príncipes. A partir de
então a nobreza não aparece senão a serviço e sob a
direção destes últimos. A guerra dos camponeses, que
estalou pouco depois, obrigou-a entretanto a colocar-se
ainda mais sob a proteção dos príncipes e ao mesmo
tempo demonstrou que a nobreza alemã preferia
continuar explorando os camponeses, mesmo
dependente, do que vencer príncipes e padres, fazendo
causa comum com os camponeses emancipados.
5. A Guerra dos Camponeses na
Suábia e Francônia
Depois que Lutero mobilizou todos os elementos da
oposição na Alemanha com sua declaração, de guerra
contra a hierarquia católica, não houve ano em que os
camponeses não agitassem suas antigas reivindicações.
A partir de 1518 e até 1523, amiudaram-se as
insurreições locais dos camponeses da Floresta Negra e
da alta Suábia. Depois da primavera de 1524, essas
sublevações adquiriram caráter sistemático. Em abril
daquele ano os camponeses da abadia de Marchthal
negaram-se a prestar os serviços pessoais; no mês de
maio, os camponeses de Santa Blasa suspenderam o
pagamento dos tributos feudais; em junho, os
camponeses de Steinheim, perto de Memmingen,
declararam que não pagariam o dízimo nem os outros
tributos; em julho e agosto, sublevaram-se os
camponeses de Turgóvia e foram pacificados, em parte,
graças à mediação dos cidadãos de Zurique e em parte
pela brutalidade da confederação suíça que mandou
executar vários chefes. Por fim se produziu uma
sublevação decisiva no landgraviado de Stühlingen, o
que marca o princípio da guerra dos camponeses.
Do dia para a noite os camponeses de Stühlingen
negaram-se a prestar seus serviços ao landgrave;
concentraram-se em fortes bandos que, conduzidos por
João Müller de Bulgenbach, marcharam para
Waldshut, no dia 24 de outubro de 1524. A fundaram
uma irmandade evangélica, unidos aos habitantes da
cidade. Os cidadãos não tardaram em ingressar na
aliança pois já se encontravam em conflito com o
governo austríaco devido à perseguição religiosa movida
ao pregador Baltazar Hubmaier amigo e discípulo de
Tomás Münzer. Foi-lhes imposta uma contribuição de três
kreuzers semanais, uma soma enorme naquele tempo.
Enviaram-se emissários à Alsácia, às margens do
Mosela, do alto Reno e à Francônia, para fazer ingressar
na aliança todos os camponeses, proclamando-se como
principal objetivo a supressão do domínio feudal, a
destruição de todos os castelos e conventos e a
supressão de toda soberania além da imperial. A
bandeira da aliança era a tricolor alemã.
A insurreição estendeu-se rapidamente por toda parte
alta da atual região de Baden. O pânico apoderou-se da
nobreza da Suábia, cujas forças militares se achavam
quase todas ocupadas na Itália, lutando contra Francisco
I de França. Não lhe restou outra saída que postergar a
decisão, entabulando longas negociações para ter tempo
de levantar o dinheiro necessário para armar tropas até
disporem de força suficiente para castigar os insolentes
camponeses com “saque, fogo e sangue”. Então
começou aquela traição sistemática, a falta contínua da
palavra empenhada, a perfídia consequente com que os
príncipes e a nobreza se distinguiram durante toda
guerra camponesa e que foi sua arma mais eficaz ante
os camponeses descentralizados e de organização difícil.
A Liga da Suábia, que compreendia os príncipes, a
nobreza e as cidades imperiais do sudoeste da
Alemanha, se interpôs, porém sem dar garantias
positivas aos camponeses. Estes continuaram no
movimento. De 30 de setembro a meados de outubro,
João Müller de Bulgenbach atravessou a Floresta Negra
até Urach e Furtwangen, aumentando seus efetivos até
3.500 homens, com os quais tomou posição perto de
Eratingen (não longe de Stühlingen). A nobreza apenas
dispunha de 1.700 homens, mesmo assim dispersos.
Viu-se forçada a negociar uma trégua que por fim se
concluiu no acampamento de Eratingen.
Prometeram aos camponeses a conclusão de um
tratado diretamente entre as partes ou pela intervenção
de um árbitro e o exame de suas queixas pelo tribunal
de Stockbach.
Os camponeses puseram-se de acordo sobre 16
artigos cuja sanção iam pedir ao tribunal de Stockbach.
Eram sumamente moderados. A supressão do direito de
caça, dos serviços pessoais, dos tributos mais pesados e
dos privilégios senhoriais em geral, a proteção contra as
detenções arbitrárias e contra os tribunais facciosos, era
tudo o que pediam.
Porém, mal voltaram os camponeses a seus lares já a
nobreza exigiu o pagamento de todos os direitos em
litígio, até que o tribunal se pronunciasse. Como era
natural, os camponeses se negaram a efetuar o
pagamento, reportando o caso ao tribunal. O conflito se
reproduziu; os camponeses reuniram-se de novo, os
príncipes e senhores concentraram suas tropas. Desta
vez o movimento se estendeu à Brisgóvia e até a uma
grande parte do Würtemberg. As tropas encabeçadas
por Jorge Truchsess de Waldburg, o duque de Alba da
guerra camponesa, observavam os camponeses e
derrotaram alguns grupos isolados que chegavam como
reforços, porém sem se arriscar a um ataque em
conjunto. Jorge Truchsess negociou com os chefes
camponeses conseguindo firmar alguns convênios.
Em fins de dezembro tiveram início as deliberações do
tribunal de Stockbach. Os camponeses protestaram
contra a composição do tribunal, exclusivamente
formado por nobres. Em resposta, leram-lhes a ata de
nomeação imperial. As deliberações se prolongaram,
enquanto se armavam a nobreza, os príncipes, e as
autoridades da liga da Suábia. O arquiduque, que além
dos seus reinos hereditários da Áustria atual, governava
o Würtemberg, a Floresta Negra e a Alsácia do sul,
ordenou que se procedesse com a maior severidade
contra os camponeses rebeldes. Era mister capturá-los e
matá-los sem piedade, era preciso prendê-los como
fosse, queimando e devastando seus bens, expulsando
do país os filhos e mulheres. Já se vê como os príncipes e
senhores guardavam a trégua e o que entendiam por
“mediação amistosa” e “exame das queixas”. O
arquiduque Fernando, a quem a casa Welser, de
Augsburgo, havia outorgado um empréstimo, armou-se a
toda pressa; a liga da Suábia decretou novos impostos e
alistamentos de tropa dando três breves prazos para o
cumprimento dessa ordem.
Todas estas sublevações coincidem com os cinco
meses da estada de Tomás Münzer no sul. Ainda que não
existam provas diretas de sua intervenção no
desencadeamento e marcha do movimento, isso pode
ser comprovado indiretamente. Seus discípulos eram a
maioria dos revolucionários camponeses mais decididos
e compartilhavam de suas ideias. A ele eram atribuídos
os doze artigos, assim como a carta dos artigos dos
camponeses do sul, se bem que por certo não fosse ele
o redator dos primeiros. Quando já regressava à Turíngia,
publicou um folheto revolucionário, dirigido aos
camponeses rebeldes. Ao mesmo tempo o duque Ulrico,
expulso de Würtemberg desde 1519, estava procurando
entrar de novo na posse de seu país com a ajuda dos
camponeses. Desde sua expulsão, tratava de utilizar o
partido revolucionário, o qual ajudava
extraordinariamente. Encontra-se seu nome em quase
todas as revoltas locais que se produziram entre 1520 e
1524 na Floresta Negra e no Würtemberg; agora, no seu
castelo de Hohentwiel, se preparava abertamente para
invadir o Würtemberg. Porém os camponeses não
fizeram mais do que dele se aproveitar sem permitir-lhe
jamais a menor influência e, ainda menos, lhe dedicarem
a menor confiança.
Assim passou o inverno sem que se registrassem fatos
decisivos. Os grandes senhores esconderam-se e a
sublevação dos camponeses ganhou em extensão. Em
janeiro de 1525 o país inteiro, desde o Reno até o
Danúbio e o Lech, estava em plena efervescência e, em
fevereiro, desencadeou-se a tormenta.
Enquanto os bandos da Floresta Negra e do Hegau,
chefiados por João Müller de Bulgenbach conspiravam
com Ulrico de Würtemberg, participando alguns em sua
fracassada expedição contra Stuttgart (fevereiro e março
de 1525), os camponeses do Ried, perto de Ulm,
sublevaram-se a 9 de fevereiro e reuniram-se perto de
Baltringen num acampamento rodeado de terrenos
pantanosos. Içaram a bandeira vermelha e formaram
a coluna de Baltringen conduzida por Ulrico Schmidt que
tinha 10 ou 12.000 homens.
Nos primeiros dias do mês de março havia, nos seis
acampamentos, entre 30.000 e 40.000 camponeses
armados, procedentes da Alta Suábia. Os destacamentos
se compunham de elementos muito diversos. Em toda
parte o partido revolucionário de Münzer estava em
minoria. Contudo, constituía o eixo e sustentáculo
principal dos bandos camponeses. A grande massa
estava sempre disposta a aceitar compromissos com os
senhores, desde que fizessem as concessões que
esperavam obter pela coação ao assumirem sua atitude
ameaçadora. Ao prolongar-se a luta e quando se
aproximavam os exércitos dos príncipes, os camponeses
estavam fartos de guerra e a maior parte dos que ainda
tinham o que perder foi para casa. Grandes massas de
lumpemproletários vagabundos haviam-se agregado aos
destacamentos; sua presença dificultava a manutenção
da disciplina e suas deserções frequentes
desmoralizavam os camponeses. Assim se explica
porque, no princípio, os camponeses não saíram de sua
atitude puramente defensiva; a desmoralização
grassava entre eles de modo que, mesmo livres de sua
tática insuficiente e da escassez de chefes
experimentados, não teriam podido estar à altura dos
exércitos regulares.
Ainda antes da concentração dos destacamentos, o
duque Ulrico, partindo do Hohentwiel, invadiu o
Würtemberg com tropas mercenárias e alguns
camponeses do Hegau. A Liga da Suábia teria sido
derrotada se, de outro lado os camponeses tivessem
atacado as tropas de Truchsess. Porém, graças à atitude
puramente defensiva dos bandos, Truchsess conseguiu
concluir rapidamente um armistício com os camponeses
de Baltringen, do Allgäu e do Lago, entabulando
negociações e prometendo submeter o litígio aos
tribunais, no domingo de Júdica12 (2 de abril). Entretanto
pôde ocupar Stuttgart, marchar contra o duque Ulrico e
obrigá-lo a abandonar de novo o território do
Würtemberg, a 17 de março. Logo se voltou contra os
camponeses. Porém os lansquenés de seu próprio
exército insubordinaram-se, negando-se a marchar
contra aqueles. Por fim conseguiu pacificar os
amotinados e transladar-se a Ulm, onde se
concentraram novos reforços, não sem antes haver
estabelecido um posto de observação de Kirchheim.
A Liga da Suábia, que, por fim, tinha as mãos livres
depois de concentrar as primeiras tropas, deixou cair a
máscara, declarando estar decidida a “resistir pelas
armas e com a ajuda de Deus aos intentos arbitrários
dos camponeses”.
Nesse ínterim os camponeses observavam
escrupulosamente o armistício. Para a sessão do tribunal
anunciada para o domingo da Júdica haviam redigido os
famosos doze artigos que continham suas
reivindicações. Pediam a livre eleição e destituição dos
sacerdotes pela comunidade, a supressão do pequeno
dízimo e a utilização do grande dizimo para fins públicos,
depois de pagos os honorários dos padres; ademais,
pediam a redução dos serviços pessoais, tributos e
hipotecas, a restituição dos pastos e bosques comunais
e ocupados arbitrariamente, o restabelecimento de seus
privilégios suprimidos e a cessação das arbitrariedades
da justiça e da administração. Vê-se que nos bandos
camponeses prevalecia o critério conciliador do partido
moderado.
O partido revolucionário já havia estabelecido seu
programa na carta de artigos. Nessa carta-aberta
eram todos os camponeses convidados a ingressar na
“união e irmandade cristã” para acabar com todos os
tributos, ou por bem, — “o que não parece possível”, —
ou pela violência; ao mesmo tempo ameaçava os
recalcitrantes com a “excomunhão secular”, quer dizer
com sua exclusão da sociedade e de todas as relações
com os membros da união. Também deviam incluir-se na
excomunhão secular todos os castelos, conventos e
fundações religiosas, caso os nobres, padres e frades
não os abandonassem voluntariamente para viver em
casas comuns, como os outros homens, ingressando na
união cristã. Esse manifesto tão radical certamente
redigido antes da insurreição, que estalou na primavera
de 1525, trata sobretudo da revolução, do aniquilamento
das classes até então dominantes; a “excomunhão
secular” marca todos os opressores e traidores que
deviam perecer; os castelos que deviam ser queimados,
os conventos e fundações que deviam ser confiscados e
cujos tesouros deviam ser vendidos.
Porém antes que os camponeses pudessem submeter
seus doze artigos aos árbitros, receberam a notícia da
traição da Liga da Suábia e da próxima chegada das
tropas. Sem perda de tempo, tomaram suas
providências. Em Geisbeuren promoveram uma
assembleia geral dos camponeses do Allgäu, Baltringen
e do Lago. Os quatro destacamentos entrelaçaram-se,
organizando-se quatro colunas novas. Concordou-se na
expropriação dos bens eclesiásticos, na venda das joias
em benefício da caixa militar, e no incêndio dos castelos.
Assim se impôs, ao lado dos doze artigos, a carta dos
artigos, como regra de conduta dos beligerantes e o
domingo da Júdica, dia em que se ia firmar a paz,
tornou-se a data da sublevação geral.
A excitação crescente, os incessantes conflitos locais
entre camponeses e a nobreza, as notícias da
insurreição da Floresta Negra que crescia
continuamente, estendendo-se até o Danúbio e o Lech,
bastam amplamente para explicar a rapidez com que se
processaram as sublevações camponesas em dois terços
da Alemanha. Porém a simultaneidade de todos esses
movimentos locais demonstra que, à frente de todos
eles se encontravam pessoas que os organizaram por
meio de emissários, anabatistas e outros. Nos últimos
dias de março, produziram-se distúrbios no Würtemberg,
às margens do Neckar e na Alta Francônia; porém já
antes se havia fixado em toda parte a data de 2 de abril
para o levante geral, o golpe decisivo; a insurreição das
massas produziu-se na primeira semana de abril. No dia
primeiro daquele mês, os camponeses de Allgäu, Hegau
e do Lago fizeram soar os sinos a rebate, convocando
assembleias de massa e chamando ao acampamento
todos os homens capazes de manejar armas, ao mesmo
tempo que os camponeses de Baltringen iniciaram as
hostilidades contra castelos e conventos.
Na Francônia, onde o movimento se agrupava em
torno de seis centros, a insurreição estalou nos primeiros
dias de abril. Perto de Nördlingen, os camponeses
estabeleceram dois acampamentos; com sua ajuda
triunfou na cidade o partido revolucionário, cujo chefe
era Antonio Forner, que foi nomeado alcaide; Nördlingen
passou para o lado dos camponeses. No território de
Anspach, os camponeses se sublevaram entre 1.° e 7 de
abril; daí a insurreição se estendeu à Baviera. Perto de
Rotemburgo, os camponeses estavam em armas desde
22 de março; na cidade propriamente dita os pequenos
burgueses e plebeus, acaudilhados por Estêvão
Menzingen, derrubaram o governo dos “honoráveis” a
27 de março, porém como as prestações dos
camponeses constituíam a principal renda da cidade, o
novo governo por sua vez adotou para com eles uma
posição vacilante e ambígua. No bispado de Würzburg
todos os camponeses e as pequenas cidades se
sublevaram em princípios do mês e no bispado de
Bamberg a insurreição geral foi tão poderosa que em
cinco dias obrigou o bispo a transigir. No norte na
fronteira da Turíngia formou-se o grande acampamento
de Bildhauser.
No Odenwald, onde o aristocrata Wendel Hipler, ex-
chanceler dos condes de Hohenlohe, e o taberneiro
Jorge Metzler, de Ballenberg, perto de Krautheim, se
haviam posto à frente do partido revolucionário, o
movimento começou a 26 de março.
De toda parte afluíram os camponeses às margens do
Tauber. A eles se uniram uns 2.000 homens que
procediam do acampamento de Rotemburgo. Jorge
Metzler assumiu o comando e, a 4 de abril, depois de
chegarem os reforços, marchou sobre o mosteiro de
Schöntal onde se lhes uniram os de Neckar chefiados
por Jäcklein Rohrbach, taberneiro de Böckingen, perto
de Heilbronn. No domingo da Júdica proclamaram a
insurreição em Fleim, Sontheim, etc., enquanto Wendel
Hipler, com alguns conjurados, tomava de surpresa a
aldeia de Oehringen, arrastando ao movimento os
camponeses da região. Em Schönthal, ambas as colunas
reunidas no “destacamento branco” aceitaram os
doze artigos, organizando expedições contra os castelos
e conventos. O destacamento branco tinha oito mil
homens e dispunha de canhões e de três mil fuzis.
Florian Geyer, cavaleiro da Francônia, juntou-se a eles,
formou o “destacamento negro”, corpo de elite
recrutado sobretudo entre as milícias de Rotemburgo e
Oehringen. O conde Luís de Helfenstein, governador de
Neckarsulm, enviado pelo governo de Würtemberg,
começou a luta. Mandou passar pelas armas todos os
camponeses que caíram em suas mãos. O destacamento
branco marchou contra ele. Essas matanças, como
também a notícia da derrota do grupo de Leipheim, e da
morte de Jacob Wehe, vitimado pelas crueldades de
Truchsess, exacerbaram os camponeses. O conde de
Helfenstein fortificara-se em Weinsberg e ali foi atacado.
Florian Geyer assaltou o castelo, a cidade foi ocupada
depois de prolongada luta e o conde Luís e mais vários
cavaleiros foram aprisionados. No dia seguinte, Jäcklein
Rohrbach e os mais decididos de seus homens julgaram
os prisioneiros. O conde e catorze de seus homens foram
sentenciados a “passar pelas varas”, a morte mais
ignominiosa que se lhes podia dar. A tomada de
Weinsberg e a vingança terrorista de Jäcklein contra o
conde exerceram o devido efeito sobre a nobreza. Os
condes de Löwenstein aderiram à causa camponesa e os
de Tohenlohe, que já o haviam feito, porém que não
haviam mandado os auxílios prometidos, enviaram
imediatamente a artilharia e a pólvora exigidas. Os
chefes deliberaram sobre a oportunidade de nomear
Götz de Berlickingen chefe porque “podia conquistar a
nobreza”. A proposta agradou. Mas Florian Geyer, que
nesse estado de ânimo dos chefes e camponeses via o
começo da reação, separou-se do destacamento e com
sua quadrilha negra percorreu a região do Neckar e
depois a de Wutzburg, queimando todos os castelos e
destruindo os ninhos dos frades.
O resto do destacamento dirigiu-se a Heilbronn. Nessa
poderosa cidade livre existia, — ante os honoráveis, —
uma oposição burguesa e outra revolucionária. Em
cumprimento de um acordo secreto com os camponeses,
esta última abriu, no meio do tumulto, as portas da
cidade a Jorge Metzler e a Jäcklein Rohrbach. Os chefes
camponeses ocuparam a praça com seus homens e
fizeram-na membro da irmandade, recebendo 1.200
florins em dinheiro e uma companhia de voluntários.
Limitaram-se a saquear as propriedades do clero e as da
ordem teutônica. No dia 22, os camponeses puseram-se
em marcha outra vez, deixando uma pequena guarnição.
Heilbronn ia tornar-se o centro dos diferentes
destacamentos que enviaram seus delegados para
deliberar sobre a ação e as reivindicações comuns dos
camponeses. Porém a oposição burguesa, que desde a
entrada dos camponeses se havia aliado aos honoráveis,
predominava outra vez na cidade, impedindo que se
tomassem medidas enérgicas e aguardando a chegada
dos exércitos monárquicos para trair definitivamente os
camponeses.
Os camponeses se aproximaram de Odenwald. A 24 de
abril, Götz de Berlickingen, que poucos dias antes se
oferecera ao eleitor do Palatinado e logo depois aos
camponeses, para voltar mais uma vez a oferecer-se ao
eleitor, teve que ingressar na irmandade evangélica e
assumir o comando do destacamento branco (em
contraposição ao negro de Florian Geyer). Porém, ao
mesmo tempo, era prisioneiro dos camponeses que
desconfiavam dele, vigiavam-no e não permitiam que
tomasse decisões sem autorização prévia dos chefes.
Passando por Buehen, Götz e Metzler marcharam para
Amorbach, onde permaneceram de 30 de abril a 5 de
maio, propagando a insurreição por toda a região de
Moguncia. Obrigaram a nobreza a seguir o movimento
para salvar seus castelos e unicamente os conventos
foram saqueados e incendiados. O destacamento se
desmoralizara progressivamente; os mais enérgicos
haviam seguido com Florian Geyer ou com Jäcklein
Rohrbach, que também se separara após a tomada de
Heilbronn, provavelmente porque o julgador do conde de
Helfenstein já não podia tomar parte em um
destacamento que queria chegar a um acordo com a
nobreza. Esse afã de reconciliar-se com a nobreza já era,
em si, uma prova de desmoralização. Pouco depois,
Wendel Hipler propôs uma reorganização muito
eficiente: deviam ser alistados os lansquenés que se
apresentavam voluntariamente todos os dias e renunciar
a renovar os efetivos como se vinha fazendo até então,
recrutando novos contingentes todos os meses e
licenciando os antigos. Ao contrário, era preciso guardar
os homens com bastante experiência que já estavam
fazendo seu serviço. Porém a assembleia repeliu ambas
as propostas. Os camponeses, envaidecidos pelos êxitos,
consideravam a guerra uma mera expedição de
pilhagem e a concorrência dos lansquenés não os
agradava. Em compensação queriam reservar-se o
direito de voltar para casa depois de já terem enchido os
bolsos. Em Amorbach, o conselheiro João Berlin chegou,
inclusive, a fazer aprovar pelos chefes e conselheiros do
destacamento a chamada “declaração dos doze artigos”,
documento em que se haviam suavizado todas as
asperezas dos doze artigos, atribuindo aos camponeses
uma linguagem humilde de súplica: porém desta vez, a
coisa foi muito forte; em meio a grande escândalo os
camponeses recusaram a declaração, conservando seus
artigos primitivos.
Enquanto isso, se produzia decisiva mudança no
bispado de Wurtzburgo. O bispo, quando da primeira
insurreição se recolhera à cidadela de Frananberg,
pedindo auxílio, — se bem que debalde, — a todos os
vizinhos. Por fim se vira forçado a transigir
momentaneamente. A dois de maio, reuniu-se a Dieta,
na qual tinham representantes os camponeses; porém,
antes de chegar a qualquer acordo, interceptaram-se
algumas cartas que revelaram as manobras e a traição
episcopal. A Dieta dissolveu-se imediatamente e
entabulou-se a luta entre as cidades sublevadas, os
camponeses e as tropas do bispo. A 5 de maio o bispo
fugiu para Heidelberg; no dia seguinte, Florian Geyer
chegou a Wurtzburgo com o destacamento negro e,
com ele, o destacamento da Francônia, vindo do
Tauber e formado por camponeses de Mergentheim,
Rotemburgo e Anspach. No dia 7, chegou Götz,
Berlickingen, com o destacamento branco; em seguida,
começou o sítio de Frauenberg.
Desde fins de março e começo de abril que se formara
outro destacamento na região de Limpurg, Elhvangen e
Hall. O de Gaildorf, o destacamento branco, comum,
manifestou-se com grande violência, sublevando a
região inteira e queimando muitos conventos e castelos,
entre eles o de Hobenstaufen. Obrigou todos os
camponeses a se unir e forçou todos os nobres a
ingressar na irmandade cristã. Em princípios de maio,
fez uma incursão ao Würtemberg, sendo rechaçado.
Então, como em 1848, o particularismo dos pequenos
estados da Alemanha não permitia uma ação
concentrada de revolucionários que pertenciam a
diferentes estados. Limitados a um território reduzido, os
camponeses de Gaildorf tiveram forçosamente que
desagregar-se, uma vez vencidos todos os obstáculos
nesse território.
Puseram-se de acordo com a cidade de Gmünd e se
dispersaram, deixando apenas 500 homens armados.
Em fins de abril, tinham-se formado bandos de
camponeses no Palatinado, em ambas as margens do
Reno. Destruíram muitos castelos e conventos; a
primeiro de maio, tomaram Neustadt sobre o Hardt; os
de Buchrain, que haviam atravessado o Reno,
impuseram um tratado à cidade de Spira. Com as
escassas tropas do eleitor, o marechal de Saverna nada
pôde contra eles e, a dez de maio, o eleitor teve de
firmar um tratado com os insurretos, prometendo-lhes
que a dieta acabaria com os motivos de suas queixas.
Em algumas regiões do Würtemberg, a insurreição
estalara cedo. Em fevereiro os camponeses dos Alpes do
Urach haviam formado uma aliança contra os padres e
grandes proprietários; em fins de março, sublevaram-se
os camponeses de Blaubeuren, Urach, Münsingen,
Balingen e Rosenfeld. Os bandos de Gaildorf invadiram o
território do Würtemberg, perto de Göppingen; os de
Jäcklein Rohrbach, perto de Brackenheim e os restos do
destacamento de Leipheim, derrotado perto de
Pfullingen, penetraram em território wurtemburguês,
sublevando a população camponesa. Em outras regiões
produziram-se também sérios distúrbios. A 5 de abril,
Pfullingen teve de capitular ante os camponeses. O
governo do arquiduque austríaco estava em situação
muito comprometida. Precisava muito de dinheiro; suas
tropas eram escassas. As cidades e aldeias achavam-se
em péssimas condições; não tinham tropas nem
munições. A própria fortaleza de Asperg estava quase
desamparada.
O intento do governo de mobilizar os contingentes das
cidades contra os camponeses foi a causa de sua derrota
momentânea. A 16 de abril, o contingente de Bottwar
negou-se a sair, e em vez de ir para Stuttgart, marchou
para o monte Wunnenstein, perto de Bottwar, onde
formou o núcleo de acampamento de camponeses e
cidadãos que cresceu rapidamente. No mesmo dia
estalou a sublevação do Zabergau; o mosteiro de
Maulbronn foi saqueado e um grande número de
conventos e castelos caíram totalmente destroçados. Os
camponeses do Zabergau receberam reforços do
povoado próximo Buchrain.
À frente dos bandos de Wunnenstein, pôs-se Matern
Feuerbacher, conselheiro de Bottwar, um dos chefes da
oposição burguesa, que estava suficientemente
comprometido para ver-se obrigado a seguir com os
camponeses. Não obstante nunca abandonou sua
atitude sumamente moderada, impedindo a aplicação da
carta dos artigos no que se referia aos castelos e
buscando sempre a conciliação dos camponeses com a
burguesia moderada. Impediu a união dos camponeses
de Würtemberg com o destacamento branco;
determinou aos homens de Gaildorf que abandonassem
o território.
No dia 19 de abril foi destituído por suas tendências
burguesas porém no dia seguinte voltaram a nomeá-lo
capitão. Era insubstituível e o próprio Jäcklein Rohrbach,
quando no dia 22, se uniu aos de Würtemberg com dois
mil homens decididos, não teve outro remédio senão
deixá-lo em seu posto, limitando-se a vigiar
estreitamente sua atuação.
A 18 de abril, o governo tentou negociar com os
camponeses do Wunnenstein. Os camponeses insistiram
em fazê-lo aceitar os doze artigos, mas com isso não
puderam concordar os delegados. O destacamento se
pôs em marcha. A 20, chegou a Laufen onde repeliu,
pela última vez, as propostas do governo. A 22, os 6.000
homens haviam chegado a Bietigheim, ameaçando
Stuttgart. Quase todos os membros do Conselho dessa
cidade tinham fugido, sendo substituídos por urna
comissão de cidadãos. Entre estes, existiam as
divergências de sempre entre o patriciado, a oposição
burguesa e os plebeus revolucionários. A 25 de abril,
estes últimos abriram as portas de Stuttgart, que foi
imediatamente ocupada pelos camponeses. Aí se levou
a cabo a organização do destacamento branco
cristão, — que foi o nome que tomaram os camponeses
würtemburgueses — e se fixaram as regras para o
pagamento dos combatentes e a repartição dos despojos
e do rancho. Também juntou-se aos camponeses uma
companhia de burgueses de Stuttgart, comandados por
Theuss Gerber.
A 29 de abril, Feuerbacher marchou com todo o
destacamento contra os camponeses de Gaildorff; fez
ingressarem na União todos os habitantes da região e,
assim, obrigou os homens de Gaildorff a retirar-se. Desse
modo impediu que os elementos revolucionários de seu
destacamento, acaudilhados por Rohrbach, se
reforçassem com a incorporação dos perigosos
extremistas de Gaildorff. Havendo recebido notícias que
anunciavam a chegada de Truchsess, Feuerbacher
marchou contra ele e a 1.° de maio, acampou em
Kirchheim do Teck.
Acabamos de nos referir à origem e desenvolvimento
da sublevação na parte da Alemanha que devemos
considerar como terreno de ação do primeiro grupo dos
bandos camponeses. Antes de passar aos demais grupos
(Turíngia, Hessen, Alsácia, Áustria e os Alpes), teremos
de dizer alguma coisa sobre a campanha de Truchsess
que conseguiu esmagar esse primeiro grupo de
insurretos, a princípio com seus próprios meios e,
depois, com o apoio de vários príncipes e cidades. Não
nos ocupamos de Truchsess desde que chegou a Ulm em
fins de março, deixando em Kirchheim um posto de
observação sob o comando de Dietrich Spät. As tropas
de Truchsess, depois de receberem em Ulm os reforços
enviados pela Liga Suábia, que compreendiam pouco
menos de 10.000 homens entre os quais 7.200 infantes,
formavam o único exército disponível para atacar os
camponeses. Os reforços chegaram muito lentamente a
Ulm. devido às dificuldades com que tropeçava o
recrutamento nos países sublevados, pela penúria dos
governos e porque em toda parte as escassas tropas que
havia eram absolutamente indispensáveis para
guarnecer fortalezas e castelos. Já sabemos o quanto
eram escassas as tropas de que dispunham os príncipes
e cidades que não pertenciam à Liga Suábia. Tudo
dependia pois, das vitórias que Jorge Truchsess
alcançasse com seu exército da Liga. Truchsess voltou-se
primevo contra o destacamento de Baltringen, que
nesse ínterim começara a destruir castelos e conventos
nas proximidades do Ried; os rebeldes, porém, vendo-se
envolvidos, tiveram de abandonar os pântanos,
atravessaram o Danúbio e se fortificaram nos precipícios
e bosques da montanha Suábia. Ali estavam a salvo da
artilharia e cavalaria que constituíam a força principal do
exército da Liga e Truchsess deixou de persegui-los.
Marchou contra os de Leipheim que tinham 5.000
homens em Leipheim, 4.000 no vale do Mindel e outros
6.000 em Illertissen, sublevando a região inteira,
destruindo castelos e conventos e preparando suas três
colunas para empreender a marcha sobre Ulm. Parece
que ali também reinava certa desmoralização entre os
camponeses, o que diminuía o valor guerreiro do
destacamento; porque Jacob Wehe quis logo entrar em
negociações com Truchsess. Porém agora era este quem
não lhe dava importância, já que contava com suficiente
força militar. A 4 de abril, atacou a coluna principal perto
de Leipheim, dispersando-a completamente. Jacob
Wehe, Ulrico Schön e outros dois chefes foram
capturados e decapitados. A praça de Leipheim rendeu-
se a Truchsess que, depois de batidas pela região,
submeteu todo o distrito.
Uma rebelião de seus lansquenés, que exigiam maior
despojo e o pagamento de soldo extra deteve Truchsess
até o dia 1 de abril. Depois voltou-se para o sul, contra
os de Baltringen que, enquanto isso, invadiam os
domínios de Waldburgo, Zeil e Wolferg sitiando seus
castelos. Outra vez encontrou os camponeses divididos e
a 11 e 12 de abril venceu-os separadamente, em vários
combates, dispersando também esse destacamento. O
resto, sob o comando do padre Florian, retirou-se para o
lago de Constança.
Nesse ínterim, o destacamento do Lago dera
numerosas batidas e até fizera ingressar na irmandade
as cidades de Buchhorn (hoje Friedrichshafen) e
Wollmatingen. A 14 de abril celebrou-se um grande
conselho de guerra no mosteiro de Salém, concordando-
se em sair ao encontro de Truchsess. Imediatamente os
sinos soaram a rebate e 10.000 homens, aos quais logo
se incorporaram os derrotados de Baltringen, reuniram-
se no acampamento de Bermatingen. A 15 de abril,
deram combate a Truchsess, com sucesso pois ele, ainda
não queria expor seu exército a uma batalha decisiva,
preferindo entabular negociações, porque, além de tudo,
se inteirara de que se aproximavam os camponeses de
Hegau e Allgäu. A 17 de abril, firmou com os
camponeses do Lago e de Baltringen o convênio de
Weingarten, que acharam vantajoso e que aceitaram
sem vacilar. Além do mais, conseguiu dos delegados do
alto e baixo Allgäu que aceitassem também o convênio,
marchando depois para Würtemberg.
A astúcia salvou-o da catástrofe segura. Se não tivesse
sabido enganar esses camponeses débeis, curtos de
entendimento e em maioria já desmoralizados e a seus
chefes quase todos incapazes, medrosos e corruptíveis,
ele e seu pequeno exército teriam sido cercados e se
veriam irremediavelmente perdidos, no meio de quatro
colunas que, pelo menos, somavam de 25.000 a 30.000
homens; porém a pouca inteligência de seus inimigos, —
este é, fatalmente, o defeito das massas camponesas, —
tornou-lhe possível escapar no momento preciso em que
podiam acabar com a guerra de um só golpe, pelo
menos na Suábia e Francônia. Os camponeses do Lago
mostraram tal empenho em cumprir esse convênio que
era, evidentemente, um engôdo, que chegaram inclusive
a pegar em armas contra os seus próprios, aliados do
Hegau. Os camponeses do Allgäu, quando souberam da
traição de seus chefes, declararam-se contra o convênio;
mas já Truchsess se salvara do perigo.
Os camponeses do Hegau que não estavam incluídos
no convênio de Weingarten, deram pouco depois, outra
prova desse particularismo estúpido, desse regionalismo
cabeçudo que acabou por derrotar todo o movimento.
Quando Truchsess seguiu para Würtemberg sem que as
negociações com os camponeses de Hegau houvessem
surtido efeito, estes o seguiram, mantendo-se em seus
flancos sem contudo ocorrer-lhes unir-se com o
destacamento branco cristão de Würtemberg, pela
simples razão de os de Würtemberg e dos do vale de
Neckar também terem se negado a auxiliá-los em certa
ocasião. Por isso, quando Truchsess se distanciou o
suficiente, voltaram tranquilamente e marcharam para
Friburgo.
Quando Matern Feuerbacher e os camponeses de
Würtemberg entraram em Kirchheim, o corpo de
observação que Truchsess deixara retirou-se para Urach.
Depois de tentar apoderar-se de Urach, Feuerbacher
dirigiu-se a Nürtingen pedindo auxílio a todos os
insurgentes da região para travar a batalha decisiva.
Realmente, chegaram grandes reforços, tanto do baixo
Würtemberg, como do Gau; sobretudo os camponeses
do Gau; agrupados em torno dos restos do grupo de
Leipheim, que se tinha retirado para a parte ocidental do
Würtemberg propagando a insurreição nos vales do alto
Neckar e Nagold até Böblingen e Leonberg, acudiram em
duas fortes colunas e, a 5 de maio, uniram-se a
Feuerbacher em Nârtingen. Encontraram Truchsess perto
de Bötlingen. Seu número, sua posição e a artilharia de
que dispunham surpreenderam Truchsess. Segundo seu
método costumeiro, não tardou em iniciar as
negociações chegando a um armistício com os
camponeses. Quando estes se sentiram seguros,
Truchsess atacou-os, a 12 de maio, de surpresa, em
plena trégua, obrigando-os a travar a batalha decisiva.
Os camponeses opuseram uma resistência desesperada
até que por fim a cidade de Bötlingen caiu em mãos de
Truchsess pela traição da burguesia da cidade. Assim, a
ala esquerda dos camponeses encontrou-se privada de
seu ponto de apoio, desorganizada e cercada. A batalha
estava decidida. A desordem espalhou-se entre os
camponeses pouco acostumados à disciplina; cedo
debandavam; os que não morreram ou foram
aprisionados pelos cavaleiros da Liga, jogaram as armas
fora, apressando-se a regressar a suas aldeias. O
destacamento branco cristão e com ele a insurreição de
Würtemberg estavam completamente destroçados.
Theus Gerber conseguiu fugir para Esslingen,
Feuerbacher fugiu para a Suíça, Jäcklein Rohrbach foi
aprisionado, acorrentado e levado para Néckargartach
onde Truchsess mandou atá-lo a um poste amontoando
lenha em torno e assando-o vivo enquanto ele se
banqueteava com seus cavaleiros gozando tão nobre
espetáculo.
De Néckargartach, Truchsess fez uma incursão ao
Kraichgau para apoiar as operações que o eleitor do
Palatinado estava realizando. Quando este recebeu a
notícia dos êxitos de Truchsess, rompeu a trégua com os
camponeses e atacou Buchrain a 23 de maio, tomando e
incendiando Molch após encarniçada resistência e,
depois de saquear várias aldeias, ocupou Bruchsal. Ao
mesmo tempo, Truchsess atacou Eppingen, capturando
Antônio Eisenhut, chefe local do movimento, que o
eleitor mandou executar imediatamente em companhia
de outros doze cabeças. Desse modo submeteu Buchrain
e Kraichgau que tiveram de pagar perto de 40.000
florins de indenização. O exército de Truchsess, que em
consequência das últimas batalhas se achava reduzido a
6.000 homens, e o do eleitor, que tinha 6.500, uniram-se
para marchar contra os camponeses de Odenwald.
A notícia da derrota de Bötlingen, encheu de terror os
insurretos. As cidades livres que haviam caído em mãos
dos camponeses respiraram pela primeira vez. Heilbronn
deu o primeiro passo no sentido da reconciliação com a
Liga Suábia. Em Heilbronn, achava-se situada a
chancelaria dos camponeses e lá se reuniam os
delegados dos diferentes destacamentos para deliberar
sobre as propostas que, em nome de todos os
camponeses insurretos, iam dirigir ao imperador e ao
Reich. Dessas negociações, que tinham por fim criar um
direito comum vigente em toda a Alemanha ressaltou
mais uma vez que nem os camponeses, nem outra
qualquer classe, estavam suficientemente desenvolvidas
para reorganizar a vida da nação inteira segundo seus
interesses. Desde o primeiro instante se viu que, para
esse fim, era imprescindível ganhar a nobreza e
sobretudo a burguesia. A direção das negociações veio
parar nas mãos de Wendel Hipler. De todos os chefes do
movimento, Wendel Hipler foi quem melhor se deu conta
da situação. Não era um revolucionário de grandes
ideias, como Münzer, nem um representante dos
camponeses, como Metzler ou Rohrbach. Sua grande
experiência, seu conhecimento prático das relações
entre as diferentes classes impediam-no de representar
exclusivamente uma só classe contra as demais que
participavam do movimento. Do mesmo modo que
Münzer que representava uma classe que se encontrava
totalmente à margem da sociedade oficial, isto é, o
embrião do proletariado, pressentiu o comunismo, assim
Wendel Hipler, como representante do conjunto de todos
os elementos progressistas da nação, chegou a
pressentir a sociedade burguesa moderna. Apesar
dos princípios que defendia e das reivindicações que
formulava não serem imediatamente realizáveis, eram
não obstante o resultado um tanto idealizado porém
necessário da dissolução que se processava na
sociedade feudal; e quando os camponeses se puseram
a elaborar projetos de leis para todo o império tiveram
de levá-lo em consideração. Assim pois, a centralização
que exigiam os camponeses adquiriu, em Heilbronn,
uma forma mais positiva, porém muito diferente do
conceito, que dela tinham antes. Assim por exemplo se
propôs a unificação das moedas, pesos e medidas, a
supressão das Carreiras alfandegárias interiores, quer
dizer: formularem-se reivindicações de acordo com os
interesses da burguesia das cidades muito mais que no
interesse dos camponeses. À nobreza fizeram-se
concessões que se parecem muito com as atuais leis de
amortização e cuja finalidade era a transformação da
propriedade feudal em propriedade burguesa do solo. No
momento, pois, em que as reivindicações dos
camponeses se resumiram em “reforma do Império”,
tiveram de se subordinar não às reivindicações
momentâneas dos burgueses, mas a seus interesses
definitivos.
Enquanto em Heilbronn duravam as discussões sobre
essas reformas, João Berlim, o autor da “declaração dos
doze artigos”, saiu a receber Truchsess para com ele
negociar, em nome do patriciado, a rendição da cidade.
Os movimentos reacionários que se produziram na
cidade facilitaram a traição e Wendel Hipler teve de fugir
com os camponeses. Foi para Weinsberg, onde tratou de
reunir os restos dos camponeses de Würtemberg e os
escassos efetivos móveis de Gaildorf, porém dali
também teve de sair, ao aproximarem-se Truchsess e o
eleitor do Palatinado; dirigiu-se a Wurtzburgo para tentar
mobilizar o destacamento branco. Nesse ínterim as
tropas do eleitor e as da Liga submeteram toda a região
do Neckar; obrigaram os camponeses a prestar de novo
o juramento de fidelidade e queimaram muitas aldeias,
degolando e enforcando todos os camponeses fugitivos
que caíram em suas mãos. A cidade de Weinsberg foi
incendiada para vingar a morte do conde de Helíenstein.
Enquanto isso, os destacamentos reunidos perto de
Wurtzburgo sitiavam a Frauenberg; a 15 de maio, ainda
antes de abrir brecha, tentaram com grande valentia
assaltar a fortaleza; debalde porém. Quatrocentos
homens dos mais valentes, na maioria pertencentes ao
destacamento de Florian Geyer, caíram mortos ou
feridos, nas trincheiras. Dois dias depois, chegava
Wendel Hipler. Propôs não deixar mais de 4.000 homens
para sitiar a Frauenberg e levar o grosso do exército, que
compreendia cerca de 20.000 homens, a um
acampamento perto de Krautheim, sobre o Jat, onde,
ante os olhos de Truchsess, poderiam concentrar-se
todos os reforços. O plano era excelente; apenas pela
coesão absoluta das massas e por sua superioridade
numérica, poder-se-ia derrotar o exército dos príncipes
que tinha agora cerca de 13.000 homens. Porém, a
desmoralização e o desânimo dos camponeses já eram
grandes demais para permitir qualquer ação enérgica.
Também Götz de Berlichingen, — que pouco depois
trairia abertamente, — parece haver contribuído para
opôr entraves ao movimento e, assim, o plano de Hipler
nunca chegou a se realizar. Ao contrário, as colunas
dividiram-se como de costume. Por fim, o destacamento
branco pôs-se em movimento a 23 de maio, prometendo
os homens da Francônia segui-los imediatamente. A 26,
as companhias do margraviado de Anspach, que se
achavam em Wurtzburgo, empreenderam o regresso a
sua terra ao receberem a notícia de que o margrave
atacara os camponeses. O resto do exército que atuara
no assédio com o destacamento negro de Florian Geyer,
tomou posição perto de Heidingsfeld, não longe de
Wurtzburgo. A 24 de maio, o destacamento branco
chegou a Kraucheim num estado que lhe não permitia
entrar em campanha. Ali souberam muitos que suas
aldeias haviam prestado juramento a Truchsess e com
esse pretexto voltaram para casa. O destacamento
continuou a marcha até Neckarsulm e a 28 entabulou
negociações com Truchsess. Ao mesmo tempo enviaram
mensageiros à Francônia, Alsácia e Floresta Negra para
pedir o envio urgente de reforços. De Neckarsulm, Götz
regressou a Oehringen. O destacamento diminuía
diariamente; o próprio Götz de Berlinchingen
desapareceu durante a marcha; foi para casa depois de
se pôr de acordo com Truchsess sobre essa deserção,
tendo atuado como intermediário seu antigo
companheiro de armas Dietrich Spät. (Em Oehringen,
uma notícia falsa sobre a suposta chegada do inimigo
provocou o pânico na massa desanimada e
desorientada; o destacamento se dispersou em meio a
grande desordem; Metzler e Wendel Hipler lograram,
com grandes esforços, conservar uns 2.000 homens que
conduziram de novo a Krautheim. Enquanto isto
aproximavam-se 5.000 camponeses da Francônia; porém
Götz, que pelo visto queria cometer outra traição,
ordenara que se desviassem em sua marcha para
Oehringen, passando por Löwenstein; desse modo não
lhes foi possível encontrar o destacamento branco e
marcharam para Neckarsulm. Truchsess estava sitiando
essa cidade ocupada por algumas companhias do
destacamento branco de Helle. Os homens da Francônia
chegaram à noite e avistaram as fogueiras do
acampamento da Liga, mas seus chefes não tiveram
coragem de atacar, retirando-se para Krautheim, onde,
por fim, encontraram os restos do destacamento branco.
A 29, como não chegassem os reforços, Neckarsulm
rendeu-se às tropas da Liga; imediatamente Truchsess
mandou executar treze camponeses e logo saiu ao
encontro dos destacamentos matando, saqueando e
queimando tudo em seu caminho. No vale do Neckar,
Kocher e Jaxt marcavam seu caminho com ruínas e
cadáveres de camponeses pendurados nas árvores.
Perto de Krautheim os camponeses tiveram seu
primeiro encontro com Truchsess e tiveram de retirar-se
para Königshofen sobre o Tauber, forçados por um
movimento envolvente de Truchsess. Aí tomaram
posição com 8.000 homens e 32 canhões. Truchsess,
ocultando-se atrás dos montes e nos bosques, fez
avançar colunas para hostilizar a retaguarda dos
camponeses e a 2 de junho atacou-os com tanta energia
e em número tão superior que, apesar da resistência que
várias colunas opuseram até depois de muito avançada
a noite, dispersou-os e derrotou-os completamente.
Como sempre, a cavalaria da Liga, “a morte dos
camponeses”, contribuiu muito eficazmente para
aniquilar o exército dos insurretos, arrojando-se sobre os
camponeses desorganizados pelo fogo da artilharia,
fuzilaria e pelos ataques a lança, dispersando-os
completamente para matá-los um a um. O exemplo dos
300 cidadãos de Königshofen que serviam no exército
camponês dá uma ideia dos métodos de guerra
empregados por Truchsess e sua cavalaria. Menos
quinze, foram todos massacrados e destes quinze,
quatro foram decapitados posteriormente.
Depois de liquidar dessa maneira os camponeses do
Odenwald, do vale do Neckar e da baixa Francônia,
Truchsess submeteu toda a região dando batidas para
queimar aldeias inteiras, levando a cabo numerosas
execuções; depois transladou-se a Wurtzburgo. No
caminho, soube que o segundo destacamento da
Francônia, capitaneado por Florian Geyer e Gregório de
Rurg-Bemsheim achava-se perto de Sulzdorf, para onde
se dirigiu imediatamente. Desde que fracassou o assalto
à fortaleza de Fraüenberg, Florian Geyer começou a
negociar com os príncipes e cidades especialmente com
a cidade de Rotemburgo e o margrave Casimiro de
Anspach, acerca de sua adesão à irmandade dos
camponeses; ao receber a notícia da derrota de
Königshofen, interrompeu as gestões. O destacamento
de Anspach, conduzido por Gregório Burg-Bemsheim
incorporou-se ao seu. Esse destacamento formara-se
recentemente. Com um espírito digno de um
Hohenzollern, o margrave Casimiro soubera conter a
sublevação em seus territórios tanto por meio de
promessas como pela ameaça das tropas. Observava
uma neutralidade perfeita ante todos os destacamentos
estranhos, enquanto não atraíam algum camponês de
Anspach. Tratou de canalizar o ódio dos camponeses
contra as fundações eclesiásticas, contando enriquecer-
se mediante sua posterior apropriação. Contudo armava-
se, aguardando os acontecimentos. Mal recebeu a
notícia da batalha de Bötlingen, atacou os camponeses
rebeldes saqueando e incendiando suas aldeias e
mandando enforcar e apunhalar muitos; porém os
camponeses concentraram-se rapidamente e, sob o
comando de Gregório de Burg-Bernsheim, derrotaram-no
a 29 de maio em Windsheim. Quando iam sair em sua
perseguição, os insurretos receberam um apelo dos de
Odenwald pedindo auxílio. Sem vacilar, dirigiram-se a
Heidingsfeld de onde voltaram a Wurtzburgo em
companhia de Florian (2 de junho). Sem que houvessem
recebido mais notícias de Odenwald, continuaram sua
marcha com 4.000 homens, deixando 5.000 na cidade. O
resto se dispersara. Encorajados pelas notícias falsas
sobre o resultado da batalha de Königshofen, foram
surpreendidos por Truchsess perto de Sulzdorf, sendo
completamente desbaratados. Como sempre, os
cavaleiros e mercenários de Truchsess fizeram tremenda
matança. Florian Geyer logrou conservar 600 homens,
que restavam de seu destacamento negro, e com eles
abriu caminho até Ingolstadt; 200 homens ocuparam a
igreja e o cemitério, outros 400 ocuparam o castelo. As
tropas do Palatinado perseguiram-nos. Uma coluna de
1.200 homens tomou a aldeia e incendiou a Igreja; os
que não pereceram nas chamas, morreram ao fugir. O
fogo das tropas abriu uma brecha nas velhas muralhas
do castelo, iniciando-se o assalto. Duas vezes os
camponeses, protegidos por uma segunda muralha,
rechaçaram as tropas que, destruindo também essa
muralha, conseguiram tomar o castelo no terceiro
assalto. A metade dos camponeses pereceu; Geyer
conseguiu escapar com os últimos 200. Porém o lugar
em que se refugiara foi descoberto no dia seguinte
(segunda-feira de Pentecostes); as tropas do Palatinado
cercaram o bosque onde se achava escondido e
mataram todo o bando. Durante esses dois dias não
fizeram mais que 17 prisioneiros. Florian Geyer mais
uma vez se salvou com uns quantos homens decididos;
foram reunir-se com os Gaildorff, que ainda dispunha de
uns 7.000 homens. Porém, quando chegaram, estes já se
haviam debandado aterrorizados pelas más notícias que
de toda parte recebiam. Geyer tentou reunir no bosque
os que fugiam; porém, a 9 de julho, as tropas da Liga o
surpreenderam perto de Hall, onde morreu lutando.13
Truchsess, que fizera chegar notícias da vitória de
Königshofen às tropas sitiadas na Frauenberg avançou
para Wurtzburgo. Com o maior segredo, o Conselho da
cidade se pôs de acordo com ele e, a 7 de julho, o
exército da Liga pôde cercar a cidade ocupada por 5.000
camponeses e, na manhã seguinte, conseguiu entrar,
sem sacar da espada, pelas portas que o Conselho
mandara abrir. Graças a essa traição cometida pelos
“honoráveis” de Wurtzburgo, foi desarmado o último
destacamento da Francônia, caindo prisioneiros todos
seus chefes. Truchsess apressou-se em ordenar a
execução de 81 deles. Chegaram a Wurtzburgo um a um
os diversos príncipes da Francônia, o próprio bispo de
Wurtzburgo, o de Bramberg e o margrave de
Brandenburgo-Anspach. Esses excelentes senhores
procederam à distribuição dos papéis que iam
representar. Truchsess continuou sua marcha, seguido
pelo bispo de Bramberg que se apressou a romper o
tratado que firmara com seus camponeses entregando
seu país às hordas incendiarias e assassinas dos
exércitos da Liga. O margrave Casimiro devastou seu
próprio país. Queimou a cidade de Teitingen, saqueou
numerosas aldeias e as entregou às chamas. Em cada
cidade julgava e castigava cruelmente os rebeldes. Em
Neustadt-sobre-o-Aisch, mandou decapitar 18
camponeses; na marcha de Burgel, 43. Dali seguiu para
Rotemburgo onde o patriciado iniciava a
contrarrevolução, detendo Estevão de Menzingen. Agora
os pequenos burgueses e plebeus tinham de pagar caro
sua atitude ambígua ante aos camponeses a quem até o
último momento, se haviam negado a prestar ajuda,
persistindo em seu egoismo estúpido, oprimindo as
indústrias rurais para favorecer os grêmios da cidade e
resistindo em renunciar às rendas municipais que
procediam dos serviços feudais dos camponeses. O
margrave mandou decapitar dezesseis deles; como era
natural, Menzingen em primeiro lugar. O bispo de
Wurtzburgo procedeu da mesma maneira, saqueando,
destroçando e queimando o que encontrava em seu
caminho. Em sua parada triunfal, mandou executar 256
rebeldes; sua obra culminou com a execução de outros
13 cidadãos, ordenada quando voltou a Wurtzburgo.
Na região de Mogúncia o governador Guilherme, bispo
dc Estrasburgo restabeleceu a ordem sem encontrar
resistência. Não mandou executar mais que quatro
indivíduos. Também se produziram distúrbios em
Rheingau porém fazia tempo que todos tinham voltado a
suas casas; não obstante Frohen de Hutten, primo de
Ulrico, invadiu a região e “pacificou-a” completamente
com a execução de 12 chefes. Em Frankfurt, que
também fora teatro de importantes movimentos
revolucionários, a paz foi mantida no primeiro momento
graças à transigência do Conselho e depois com auxílio
das tropas mercenárias. Após a traição do eleitor outros
8.000 camponeses reuniram-se no Palatinado
começando outra vez a queimar conventos e castelos;
porém o arcebispo de Trèves chamou o marechal de
Saverna e com sua ajuda venceu-os a 23 de maio, em
Pferdsheim. Uma série de crueldades (somente em
Pferdsheim foram executados 82) e a tomada de
Wissenburgo, a 7 de julho, terminaram com aquela
insurreição.
De todos os destacamentos, apenas restavam dois que
não tinham ainda sido vencidos: o do Hegau e da
Floresta Negra e o do Allgäu. O arquiduque havia feito
intrigas com ambos. Do mesmo modo que o margrave
Casimiro e outros príncipes que queriam aproveitar-se da
sublevação para apoderar-se de terras e principados
eclesiásticos, ele queria utilizá-la para aumentar os
domínios da casa de Áustria. Tratava com Walter Bach,
chefe dos camponeses do Allgäu e com João Müller de
Bulgenbach, do Hegau, para conseguir que os
camponeses se declarassem favoráveis à união com a
Áustria. Mas, apesar de ambos os chefes serem
corruptos, só conseguiram convencer os camponeses do
Allgäu a concluírem uma trégua com o arquiduque,
observando neutralidade ante a Áustria.
Em sua retirada de Würtemberg, os camponeses de
Hegau haviam destruído grande número de castelos e
receberam ajuda do margraviado de Baden; a 13 de
maio, marcharam contra Friburgo; a 18 começaram
acanhonear a cidade e a 23 entraram com suas
bandeiras desfraldadas, uma vez que ela capitulara. Daí
marcharam sobre Stockbach e Radolfzell, hostilizando
sem êxito as guarnições dessas cidades que, assim
como a nobreza e as cidades próximas, invocaram o
tratado de Weingarten para pedir auxílio aos
camponeses do Lago, os quais mobilizaram 5.000
homens contra seus próprios aliados. Chegou a este
ponto o particularismo estúpido desses camponeses.
Apenas 600 deles se negaram a isso e queriam unir-se
aos de Hegau, sendo entretanto dominados. Porém, os
de Hegau já haviam abandonado o assédio, cumprindo
ordens de João Müller de Bulgenbach, vendido ao
inimigo. Pouco depois, João Müller fugiu e os
camponeses se dispersaram. Os que ficaram
fortificaram-se no porto de Hiltzinf, onde, a 16 de julho,
foram vencidos e aniquilados pelas tropas que haviam
chegado. Graças à mediação das cidades suíças, os
camponeses de Hegau obtiveram um tratado, o que não
impediu que João Müller fosse detido em Laufenberg e
decapitado apesar de sua traição. Também Friburgo,
Brisgóvia, se separou a 17 de julho da liga camponesa
mandando tropas contra ela; mas também ali
terminaram por firmar o tratado de Offenburgo, a 18 de
setembro, por serem demasiado débeis as forças
regulares. As oito unidades da Floresta Negra e do
Klettgau que ainda não haviam sido desarmadas,
levantaram-se de novo, irritadas pela tirania do conde
Sultz e foram vencidas em outubro. A 13 de novembro
impôs-se um tratado aos camponeses da Floresta Negra
e, a 6 de dezembro, caiu Waldhut, o último baluarte da
insurreição, às margens do alto Reno.
Quando Truchsess foi embora, os bandos do Allgäu
reavivaram sua campanha contra conventos e c lelos,
tomando enérgicas represálias pelos desmandos das
tropas da Liga. Diante deles encontravam-se forças
escassas que só empreendiam pequenos ataques sem
poder persegui-los no interior dos bosques. Em junho,
estalou um movimento contra o patriciado, na cidade de
Memmingen, que até então se conservara neutra. A
repressão do movimento deve-se tão somente à
presença de algumas tropas da Liga que por casualidade
se encontravam nos arredores e que puderam, no
momento oportuno, prestar auxílio ao patriciado.
Schapeler, que fora o pregador e chefe do movimento
plebeu, logrou fugir para St. Gall. Os camponeses
avançaram sobre a cidade; mal tinham começado a abrir
uma brecha, porém, quando souberam que Truchsess
saíra de Wurtzburgo, marchando contra eles. A 27 de
junho, saíram a seu encontro, formados em duas colunas
que passaram por Babenshausen e Obergunzburgo. O
arquiduque tentou mais uma vez ganhá-los para a casa
de Áustria. Invocando a trégua que concluíra com eles,
ordenou a Truchsess que não continuasse avançando;
mas a Liga da Suábia ordenou que atacasse, evitando
unicamente os saques e incêndios. Não obstante,
Truchsess era bastante inteligente para não renunciar à
sua arma decisiva, mesmo se lhe tivesse sido possível
manter a ordem entre os lansquenés que, do Lago de
Constança até o Meno, tinham ido de desmando em
desmando. Os camponeses tomaram posição com cerca
de 23.000 homens às margens do Iller e do Luibas. Com
11.000, Truchsess colocou-se diante deles. Ambas as
posições eram fortes; a cavalaria não podia operar no
terreno acidentado e se os lansquenés de Truchsess
eram superiores aos camponeses em organização,
disciplina e espírito militar, também estes tinham em
suas fileiras grande número de velhos soldados e
experimentados capitães, dispondo, além disso, de
numerosa e bem servida artilharia. A 19 de julho, as
tropas da Liga abriram fogo com seus canhões e, no dia
seguinte, continuou o canhoneio de ambos os lados,
porém sem resultados. A 21, Jorge de Frundsberg juntou-
se a Truchsess, com 300 lansquenés. Conhecia muitos
camponeses que haviam servido às suas ordens na Itália
e entabulou negociações com eles. A traição triunfou
onde não bastaram os recursos militares.
Deixaram-se comprar. Walter Bach e vários chefes e
artilheiros. Mandaram atear fogo a todas as reservas de
pólvora e ordenaram um movimento envolvente. Mal os
camponeses abandonaram suas fortes posições, caíram
na emboscada que lhes preparara Truchsess, de acordo
com Bach e outros traidores. Foi-lhes impossível
defenderem-se pois, por cúmulo, seus chefes traidores
os haviam abandonado sob o pretexto de fazer um
reconhecimento. achando-se já a caminho da Suíça.
Duas colunas foram totalmente aniquiladas e a terceira,
sob o comando de Knopf de Luibas, pôde retirar-se
ordenadamente. Tomou posição sobre o monte
Kollenberg, perto de Kempten onde a cercou Truchsess
que, aqui, tampouco se atreveu a atacá-la limitando-se a
cortar-lhe os aprovisionamentos, e tratando de
desmoralizar os camponeses, incendiando duzentas
aldeias nos arredores. A fome e a visão de seus lares em
chamas, levou-os finalmente a renderem-se a 25 de
julho. Mais de 20 foram executados nessa ocasião. Knopf
de Luibas, o único chefe desse destacamento que não
atraiçoara sua bandeira, logrou refugiar-se em Bregenz,
porém ali foi preso e enforcado depois de prolongada
detenção.
Assim terminou a guerra dos camponeses da Suábia e
Francônia.
6. As Guerras dos Camponeses na
Turíngia, Alsácia e Áustria
Ao estalarem as primeiras insurreições na Suábia,
Tomás Münzer se apressara a voltar à Turíngia, fixando
residência entre fevereiro e março na cidade livre de
Mühlhausen, onde mais força tinha seu partido. Em sua
mão reunia os fios de todo o movimento; conhecia o
alcance de toda a tormenta que ia desencadear-se na
Alemanha do norte. Encontrou terreno altamente
favorável. Na própria Turíngia, que fora o centro da
Reforma, a excitação atingira o auge; a miséria que
reinava entre os camponeses oprimidos, assim como as
doutrinas revolucionárias, religiosas e políticas que
circulavam, haviam preparado, também nos países
vizinhos, em Hessen, Saxe e na região do Harz, o terreno
para a insurreição geral. Sobretudo em Mühlhausen a
tendência extremista de Münzer ganhara a massa da
pequena burguesia que esperava com impaciência o dia
em que iria fazer sentir aos orgulhosos patrícios, os
efeitos de sua superioridade numérica. Afim de que se
não adiantassem ao momento combinado, o próprio
Münzer tinha de acalmá-los; porém seu discípulo Pfeiffer,
que dirigia este movimento, já estava a tal ponto
comprometido que não pôde mais contê-los. A 17 de
março de 1525, muito antes de iniciar-se a sublevação
geral na Alemanha do sul, a cidade de Mühlhausen fez
sua revolução. O velho Conselho patrício foi destituído, o
“conselho eterno” que acabava de ser eleito tomou
conta do governo sob a presidência de Tomás Münzer.
O pior que pode suceder ao chefe de um partido
revolucionário é ver-se forçado a tomar o poder num
momento em que o movimento ainda não está bastante
amadurecido para que a classe que representa possa
assumir a direção e para que se possam aplicar as
medidas necessárias ao domínio dessa classe. O que na
realidade pode fazer não depende de sua própria
vontade, senão do grau de tensão a que chega o
antagonismo das diferentes classes e do
desenvolvimento das condições de vida materiais, do
regime de produção e circulação, que são a base
fundamental do desenvolvimento dos antagonismos de
classe. O que deve fazer, o que lhe exige seu próprio
partido, tampouco depende dele ou do grau de
desenvolvimento que haja alcançado a luta de classes e
suas condições. Está ligado a suas doutrinas e
reivindicações anteriores, e estas não são o resultado
das relações momentâneas entre as diferentes classes
sociais, nem do estado momentâneo, e mais ou menos
casual, da produção e circulação, e sim de sua maior ou
menor capacidade de compreender as tendências gerais
do movimento social e político. Encontra-se pois,
necessariamente, diante de um dilema insolúvel: o que
realmente pode fazer acha-se em contradição com toda
a sua atuação anterior, com seus princípios e com os
interesses imediatos de seu partido; e o que deve fazer
não é realizável. Numa palavra: vê-se forçado a
representar, não o seu partido e sua classe, mas sim a
classe chamada a dominar no momento. O interesse do
próprio movimento obriga-o a servir a uma classe que
não a sua e a entreter a sua própria classe com palavras
e promessas e com a afirmação de que os interesses
daquela classe estranha são os dela. Os que ocupam
essa posição ambígua estão irremediavelmente
perdidos. Temos visto alguns exemplos nestes últimos
tempos; recordemo-nos da posição que, no último
governo provisório da França, ocupavam os
representantes operários apesar de não representarem
senão uma etapa muito inferior ao desenvolvimento do
proletariado. Os que depois das experiências do governo
de fevereiro, — não falemos dos nobres governos
provisórios e regências do império na Alemanha, —
podem ainda anelar postos oficiais, ou são
extraordinariamente bobos, ou não pertencem senão de
boca ao partido revolucionário. Porém a posição de
Münzer diante do “conselho eterno” de Mühlhausen era
muito mais arriscada que a de qualquer governante
revolucionário da atualidade. Não somente aquele
movimento, como todo aquele século, não estavam
amadurecidos para a realização das ideias que o próprio
Münzer começara a imaginar tarde e confusamente. A
classe que ele representava acabava de nascer, não
estava ao menos completamente formada, nem era
capaz de subjugar e transformar a sociedade inteira. A
mudança de estrutura social que ele imaginara não tinha
o menor fundamento nas condições materiais existentes
onde se achava em gestação uma ordem social que ia
ser exatamente contrária à ordem que havia sonhado.
Não obstante, continuava ligado a suas pregações
anteriores sobre a igualdade cristã e a comunidade
evangélica de bens; tinha de efetuar pelo menos uma
tentativa de aplicação. Proclamou-se a comunidade de
bens, o trabalho obrigatório para todos e a supressão de
toda a autoridade. Porém, na realidade, Mühlhausen
continuava sendo uma cidade livre republicana com uma
constituição um tanto mais democrática, um senado
eleito por sufrágio universal e controlado pela
assembleia e uma organização de beneficência
apressadamente improvisada. Esta revolução social que
tanto horrorizava os burgueses protestantes da época,
não passou, na realidade, de um ensaio tímido e
inconsciente para estabelecer prematuramente a atual
sociedade burguesa.
O próprio Münzer parece haver percebido o abismo
que separava suas teorias da realidade objetiva; um
abismo que ele tanto menos podia ignorar quanto mais
as cabeças incultas de seus partidários desfiguravam
sua genial teoria. Com zê-lo desusado, mesmo para ele,
pôs-se a propagar e organizar o movimento ; escreveu
cartas e mandou emissários a toda parte. Seus escritos e
pregações refletem um fanatismo revolucionário que,
ainda tendo em conta seus escritos anteriores, produz
estupefação. O tom humorístico e juvenil dos panfletos
revolucionários de Münzer desapareceu por completo,
como também a linguagem ponderada e sistemática de
pensador que empregara em certas ocasiões. Agora
Münzer é um profeta da revolução com todo o seu ser.
Incendeia incessantemente o ódio contra as classes
dominantes, desperta as paixões mais violentas e,
quando fala, emprega as frases incendiadas que o delírio
nacional e religioso atribuía aos profetas do velho
Testamento. O novo estilo a que teve de acostumar-se
indica o nível cultural do público que ele tinha de influir.
O exemplo de Mühlhausen e a agitação de Münzer,
não tardaram em produzir efeito nas demais regiões. Na
Turíngia, nos campos de Fichsfeld, no Harz, nos
ducados da Saxônia, em Hessen e Fulda, na Alta
Francônia e no Voigtland, os camponeses levantaram-
se e formaram bandos que queimaram castelos e
conventos. Münzer era o chefe reconhecido de quase
todo o movimento cujo centro continuava sendo
Mühlhausen, enquanto que em Erfurt triunfava um
movimento puramente burguês, adotando o partido que
ali dominou, uma atitude ambígua ante os camponeses.
No começo os príncipes da Turíngia se viram diante
dos camponeses, tão impotentes e desorientados quanto
os da Francônia e Suábia. Nos últimos dias de abril, o
landgrave de Hessen conseguiu por fim concentrar um
corpo de exército; esse landgrave era o mesmo Felipe
cuja piedade lhe valeu tantos elogios por parte dos
historiadores burgueses e protestantes da Reforma e
sobre cujas infâmias contra os camponeses também
ouviremos neste pequeno relato. Em várias expedições
rápidas, e graças à sua atitude enérgica, o landgrave
Felipe submeteu a maior parte do país, mobilizou novos
contingentes e entrou no território do abade de Fulda de
quem fora vassalo até então. A 3 de maio, venceu os
camponeses de Fulda, sobre a Frauenberge e submeteu
o país inteiro aproveitando a ocasião para livrar-se da
soberania do abade, como para transformar toda a
abadia de Fulda em feudo de Hessen. reservando-se, —
está claro, — o direito de secularizá-la mais tarde.
Depois ocupou Eisenach e Langesalz e, unido às tropas
do duque de Saxe, marchou contra Mühlhausen, foco
principal da rebelião. Münzer concentrou suas tropas
(cerca de 8.000 homens, munidos de alguma artilharia),
perto de Frankenhausen.
Os camponeses da Turíngia, não tinham o valor
guerreiro que uma parte dos destacamentos da Suábia e
Francônia mostrou diante de Truchsess. Não dispunham
de armamento suficiente, eram indisciplinados, em suas
fileiras havia poucos soldados veteranos, e a falta de
chefes era absoluta. O próprio Münzer não possuía, sem
dúvida, o menor conhecimento militar. Não obstante, os
príncipes acreditaram oportuno aplicar a mesma tática
que tantas vezes proporcionara a vitória a Truchsess: a
felonia. A 16 de maio, iniciaram negociações, concluindo
um armistício para atacar de repente os camponeses
antes de terminar a trégua.
Münzer e os seus haviam se fortificado por trás de
uma barreira de carros no monte que ainda tem o nome
de Schlachtber.14 Já grassava a desmoralização entre os
bandos. Os príncipes prometeram-lhes a anistia geral
caso entregassem Münzer. Este convocou uma reunião
para discutir as propostas dos príncipes. Um cavaleiro e
um padre mostraram-se a favor da capitulação; Münzer
fê-los conduzir para o centro do círculo dos conferentes e
ali mesmo mandou decapitá-los. Esse ato de energia
terrorista foi saudado com entusiasmo pelos
revolucionários decididos e, consequentemente,
levantou um pouco o moral ds camponeses; não
obstante, a maior parte destes se dispersaria sem opor
resistência, se não se dessem conta de que, apesar da
trégua os lansquenés e os príncipes que cercaram os
montes avançavam contra eles em colunas cerradas.
Apressaram em tomar posição por trás dos carros porém
as balas de canhão e arcabuz já haviam começado a
fazer estragos entre os camponeses quase indefesos e
pouco habituados à guerra. Os lansquenés já haviam
chegado até a barreira de carros. Depois de uma breve
resistência romperam a linha de carros, apoderando-se
dos canhões e dispersando os camponeses. Estes
fugiram em debandada e caíram nas mãos das colunas
envolventes e da cavalaria que fizeram uma horrível
matança. Dos 8.000 camponeses, morreram 5.000 e o
restante conseguiu refugiar-se em Frankenhausen,
levando atrás de si a cavalaria. Münzer, que estava
ferido na cabeça, foi descoberto numa casa e capturado.
A 25 de maio, rendeu-se também Mühlhausen; Pfeiffer,
que permanecera na cidade, conseguiu fugir mas
acabou sendo detido perto de Eisenach.
Em presença dos príncipes, Münzer foi submetido à
tortura e a seguir decapitado. Subiu ao cadafalso com a
mesma coragem que demonstrara toda a vida. Tinha no
máximo 38 anos. Pfeiffer também foi decapitado. Com
esses dois morreram muitos outros. Em Fulda, o
“piedoso” Felipe de Hessen iniciara a carnificina: Entre
outros abusos, ele e os príncipes saxões mandaram
passar 24 rebeldes a fio de espada, em Eisenach; em
Langensalz, 41; 300 depois da batalha de
Frankenhausen; mais de 100 em Mülhausen; 26 em
Germar; 50, em Tungeda; 12 em Sangerhausen e 8 em
Leipzig; isso sem contar as numerosas mutilações e
outras torturas além de meios mais “pacíficos” como o
saque e incêndio de aldeias e cidades.
Mühlhausen teve de renunciar à sua independência de
cidade imperial para ser incorporada aos principados
saxões, do mesmo modo que a abadia de Fulda tinha
sido incorporada ao landgraviado de Hessen.
Os príncipes atravessaram a serra da Turíngia, onde os
camponeses da Francônia, procedentes do
acampamento de Bildhausen, se haviam unido aos da
Turíngia, queimando numerosos castelos. Perto de
Meiningen travou-se um combate; os camponeses foram
derrotados, retirando-se para a cidade. Porém esta
repentinamente cerrou suas portas e ameaçou-os com
um ataque pela retaguarda. Os camponeses, a quem a
traição de seus aliados colocara em situação difícil,
capitularam aos príncipes e dispersaram-se antes
mesmo de terminarem as negociações. O acampamento
de Bildhausen dissolvera-se já havia tempo; com a
dissolução desses bandos aniquilaram-se os últimos
restos da insurreição em Saxe, Hessen, Turíngia e na alta
Francônia.
Na Alsácia, a sublevação se havia produzido mais
tardiamente do que a da margem direita do Reno. No
bispado de Estrasburgo, os camponeses não se
sublevaram antes de meados de abril; seguíram-se-lhes
os da alta Alsácia e Sundgau. A 18 de abril, um bando de
camponeses da alta Alsácia saqueou o mosteiro de
Altdorf; na região de Ebersheim e Barr, assim como nos
vales do Willer e do Urbis, formaram-se outros bandos.
Logo se uniram, formando o grande destacamento da
baixa Alsácia, que organizou a tomada das cidades e
aldeias e a destruição dos conventos. Por toda parte, de
cada três homens, um teve de se incorporar ao exército.
Os doze artigos desse destacamento foram muito mais
radicais do que os da Suábia e Francônia.
Enquanto a primeira coluna da baixa Alsácia se
concentrava perto de S. Hipólito, depois de fracassada a
tentativa de tomar essa cidade, e se apoderava de
Barken, Rappoltsweiler, e Reichenweiler
respectivamente a 10, 13 e 14 de maio, graças a um
acordo com os cidadãos, a segunda coluna, sob o
comando de Erasmo Gerber, saía para tomar
Estrasburgo, de surpresa. O intento fracassou e a coluna
dirigiu-se para os Vosgos, destruindo o mosteiro de
Mauersmúnster e sitiando Saverna, que se rendeu a 13
de maio. Daí marchou para a fronteira da Lorena
sublevando a parte limítrofe desse ducado, enquanto
fortificava os postos da montanha. Em Herbolzheim, às
margens do Sarre, e em Neuburgo estabeleceram-se
grandes acampamentos; 4.000 camponeses alemães da
Lorena fortificaram-se perto de Sarreguemines; por fim
havia na vanguarda dois destacamentos, o de Kolben, os
Vosgos, perto de Stürzelbrunn e o de Kleeburgo perto de
Wissemburgo, que defendiam a frente e a ala direita
enquanto a ala esquerda se apoiava nas tropas da alta
Alsácia.
Estas se achavam em movimento desde o dia 20 de
abril; a 10 de maio fizeram a cidade de Sulz entrar na
irmandade camponesa. O mesmo já haviam feito, a 12,
com Guebwiller e a 15 com Sennheim. O governo
austríaco e as cidades livres da região uniram-se
imediatamente contra os camponeses, mas não tinham
força suficiente para resistir e muito menos para atacar.
Exceto poucas cidades, em meados de maio toda a
Alsácia estava em mãos dos insurretos.
Porém já se aproximava o exército que ia castigar a
ousadia dos camponeses alsarianos. Foram os
franceses que ali restabeleceram a dominação da
nobreza. O duque Antônio de Lorena pôs-se em marcha
a 6 de maio, à frente de um exército de 30.000 homens,
entre os quais se achava a fina flor da nobreza francesa
e tropas mercenárias espanholas, piemontesas,
lombardas, gregas e albanesas. A 16 de maio, ocorreu o
primeiro encontro perto de Lutzelstein com 4.000
camponeses que foram vencidos sem dificuldade; a
cidade de Saverna, ocupada pelos camponeses, foi
obrigada a capitular no dia seguinte. Enquanto as tropas
lorenas ainda estavam entrando e desarmando os
camponeses, violou-se o acordo de capitulação; os
lansquenés atiraram-se sobre os camponeses indefesos,
matando muitos deles. As demais colunas da baixa
Alsácia dispersaram-se e o duque Antônio marchou
contra os da alta Alsácia. Estes últimos tinham se
negado a correr em auxílio dos camponeses da baixa
Alsácia em Saverna; agora viam-se atacados pelo grosso
das forças lorenas e defenderam-se muito valentemente,
porém a enorme superioridade numérica, — 30.000
contra 7.000, — e a traição de grande número de
cavaleiros, sobretudo a do corregedor Reichenweiler,
tornou inútil toda sua valentia. Foram totalmente
derrotados e dispersos. O duque submeteu toda a
Alsácia com a crueldade do costume. O Sundgau foi a
única região não castigada pela sua presença. Ali o
governo austríaco intimou os camponeses à conclusão
do tratado de Ensisheim, ameaçando-os de chamar o
duque. Porém o próprio governo não tardou em romper
esse tratado, mandando enforcar um. sem número de
pregadores e dirigentes do movimento. Mas os
camponeses do Sundgau voltaram a sublevar-se até que
por fim foram incluídos no tratado de Offenburgo a 18 de
setembro.
Resta relatar a guerra dos camponeses nos Alpes
austríacos. Desde que se iniciou o movimento da
“Stara prava” esses territórios, assim como o
arcebispado vizinho de Salzhurno, achavam-se em
oposição permanente ao governo e à nobreza; também
ali as doutrinas da Reforma encontraram terreno
favorável. As perseguições religiosas e os aumentos
arbitrários de impostos provocaram a insurreição.
Desde 1522 a cidade de Salzburgo, apoiada pelos
camponeses e mineiros, estava em conflito com o
arcebispo, discutindo-se os privilégios da cidade e a livre
prática da religião. Em fins de 1524, o arcebispo atacou
a cidade com lansquenés mercenários, amedrontando-a
com os canhões do castelo ao mesmo tempo que
perseguia os pregadores heréticos. Decretou novos
impostos esmagadores provocando deste modo a
indignação de toda a população. Na primavera de 1525,
simultaneamente com as insurreições da Suábia,
Francônia e Turíngia, sublevaram-se todos os
camponeses e mineiros do país formando bandos
dirigidos pelos capitães Prossler e Weitmoser que
libertaram a cidade e sitiaram o castelo de Salzburgo. Do
mesmo modo que os camponeses da Alemanha
ocidental, constituíram uma liga cristã, formulando suas
reivindicações em catorze artigos.
Na primavera de 1525 se sublevaram os camponeses
da Estíria, Alta Áustria, Caríntia e Carniola, onde novos
tributos arbitrários prejudicavam os interesses mais
vitais do povo. Tomaram grande número de castelos,
derrotando, perto de Griss, o velho general Dietrichstein,
vencedor da “stara prava”. Se bem que o governo
tivesse logrado apaziguar uma parte dos insurretos,
enganando-os, a massa não perdeu por isso sua coesão;
ao contrário, uniu-se aos de Salzburgo e desse modo
todo o arcebispado de Salzburgo, a maior parte da Alta
Áustria, a Eslíria, a Caríntia e Carniola caíram em poder
dos camponeses e mineiros.
As doutrinas dos reformadores encontraram também
muitos partidários no Tirol; ali, mais do que em outras
regiões dos Alpes austríacos, atuaram com êxito os
emissários de Münzer. Como em outras partes, o
arquiduque Ferdinando perseguia os pregadores da nova
doutrina e violava os direitos da população com leis
fiscais arbitrárias. A consequência foi, como em toda
parte, a insurreição na primavera do ano de 1525.
Chefiados por Geismaier, discípulo de Münzer e o único
talento militar apreciável entre todos os chefes
camponeses, estes se apoderaram de grande número de
castelos e procederam muito energicamente contra os
sacerdotes, especialmente no sul, na região do Adige.
Também se sublevaram os camponeses do Vorarlberg
que se uniram aos do Allgäu.
Nessa situação o arquiduque fez concessões sobre
concessões aos rebeldes, àqueles a quem pouco antes
tinha querido exterminar à força de incêndios, saques e
matanças. Convocou as dietas dos Estados da casa de
Áustria, concluindo um armistício com os camponeses
até que elas se reunissem. Nesse ínterim armava-se a
toda pressa para poder mudar o mais rapidamente
possível de linguagem ante os “insolentes”.
Naturalmente o armistício não durou muito tempo. Nos
ducados, Dietrichstein que precisava de dinheiro,
dedicou-se ao saque. Suas tropas eslavas e húngaras
entregaram-se às crueldades mais vergonhosas contra a
população. Os estírios voltaram a levantar-se e, na noite
de 2 para 3 de julho, surpreenderam o capitão-general
Dietrichstein em Schladming e mataram todos os que
não falavam alemão. Dietrichstein foi capturado; no dia
3 pela manhã os camponeses constituíram um tribunal
de jurados que condenou à morte quarenta nobres
tchecos e croatas, os quais, foram executados no ato.
Este gesto produziu grande efeito; o arquiduque
apressou-se em aceder a todas as reivindicações dos
Estados nos cinco ducados (a Alta e Baixa Áustria,
Estíria, Caríntia e Carniola).
Também no Tirol foram aceitas as condições da dieta,
restabelecendo-se a tranquilidade no norte. Porém o sul,
que insistiu nas suas primitivas reivindicações,
atenuadas pelas decisões da dieta, continuou em armas.
Em dezembro, o arquiduque logrou por fim restabelecer
a ordem pela força, fazendo executar inúmeros chefes
que tinham caído em suas mãos.
Em agosto, 10.000 bávaros conduzidos por Jorge de
Frundsberg, marcharam contra os rebeldes de Salzburgo.
Este alarde de forças, assim como as dissenções que
reinavam entre os camponeses, moveram-nos a concluir
com o arcebispo um tratado que também foi aceito pelo
arquiduque. Mas ambos os princípes, que já tinham
podido reforçar suas tropas, não tardaram a violar o
tratado e, desse modo, os camponeses de Salzburgo
viram-se obrigados a sublevar-se de novo. Os insurretos
se sustentaram durante todo o inverno; na primavera
chegou Geismaier que desenvolveu uma formidável
campanha contra as tropas que avançavam de todos os
lados. Numa série de combates brilhantíssimos que
ocorreram em maio e junho de 1525, derrotou
sucessivamente os bávaros, austríacos, tropas da Liga
da Suábia e lansquenés do arcebispo de Salzburgo,
impedindo durante muito tempo a união dos diferentes
exércitos e ainda encontrando tempo para sitiar
Radstadt. Por fim teve de retirar-se ante a enorme
superioridade numérica das forças que o cercavam;
abriu caminho através dos Alpes austríacos, conduzindo
os restos de suas tropas a território veneziano. A
república de Veneza e a Suíça ofereceram ao incansável
chefe camponês um ponto de apoio para novas intrigas.
Durante um ano tratou de induzi-los a uma guerra contra
a Áustria, o que lhe daria uma nova oportunidade de
sublevar os camponeses. Mas, enquanto levava a cabo
essas negociações, morreu vítima de um atentado. o
arquiduque Ferdinando e o arcebispo de Salzburgo, não
podiam estar tranquilos enquanto Geismaier vivesse, e
pagaram a um assassino que, em 1527, logrou por fim
fazer desaparecer tão perigoso revolucionário.
7. As Consequências das Guerras
Camponesas
Com a retirada de Geismaier para o território
veneziano, chegara a seu fim o último ato da guerra
camponesa. Em toda parte, os trabalhadores do campo
estavam de novo submetidos ao domínio dos senhores
eclesiásticos, nobres e patrícios, que não respeitaram os
tratados que em algumas partes haviam firmado; os
antigos fardos foram aumentados pelas enormes
indenizações cujo pagamento os vencedores impuseram
ao vencidos. A mais grandiosa tentativa revolucionária
do povo alemão terminou por uma derrota vergonhosa e
uma opressão redobrada.15 Mas, não foi a repressão do
movimento que tanto agravou a situação da classe
camponesa pois, antes da guerra, a nobreza, os
príncipes e os padres já tiravam de seus vassalos o que
lhes era materialmente possível tirar. Naquela época, a
participação do camponês alemão no produto de seu
trabalho, era igual à do proletário de nossos dias,
limitando-se, portanto, ao mínimo de meios de
subsistência indispensável à sua própria manutenção e
perpetuação da classe. De maneira geral, não cabia
explorado maior. Muitos camponeses médios estavam
arruinados; um sem número de rendeiros tivera de
passar à servidão; grandes extensões de terra comunal
foram confiscadas e, pela destruição de suas casas, pela
devastação de seus campos e, graças à desordem geral,
grande número de camponeses fora arrojado às estradas
entre os vagabundos e os plebeus das cidades. Porém as
guerras e as devastações eram fenômenos corriqueiros
na sociedade daquela época e o nível de vida da maioria
dos camponeses era tão baixo que sua situação não
podia mais piorar muito por causa dos novos aumentos
tributários. As guerras religiosas que se seguiram e, por
fim, a Guerra dos Trinta Anos com suas incessantes
devastações e matanças em massa, foram para os
camponeses golpe muito mais duro do que a própria
guerra camponesa. Sobretudo a Guerra dos Trinta Anos,
que aniquilou a maior parte das forças produtivas da
agricultura e destruiu numerosas cidades, foi a causa da
miséria verdadeiramente espantosa, semelhante à dos
camponeses irlandeses, em que durante muito tempo
tiveram de viver camponeses, plebeus e burgueses
alemães arruinados.
Foi o clero quem mais sofreu as consequências da
guerra camponesa. Seus conventos e palácios foram
incendiados, seus tesouros roubados e vendidos ao
estrangeiro ou fundidos e esgotadas suas provisões. Os
clérigos quase não puderam opôr resistência e o ódio
popular os atingiu com todo seu vigor. As demais
classes, — os príncipes, a nobreza e até a burguesia, —
alegravam-se intimamente com a má sorte dos odiados
padres. A guerra dos camponeses popularizara a
secularização dos bens eclesiásticos em benefício dos
camponeses. Os príncipes de sangue e uma parte das
cidades, entraram a realizar esta secularização em
proveito próprio; nos estados protestantes, as
propriedades do clero não tardaram em cair em mãos de
príncipes e patrícios das cidades. Mas também a
autoridade dos príncipes do clero estava fortemente
abalada e os príncipes seculares souberam aproveitar-se
do ódio popular nesse sentido. Vemos assim o abade de
Fulda tornar-se simples vassalo de Felipe de Hessen.
Deste modo a cidade de Kempten obrigou o príncipe-
abade a vender por preço irrisório uma série de valiosos
privilégios que possuía na cidade.
Também a nobreza sofrera grandes danos. A maior
parte de seus castelos estava em cinzas. Muitas das
melhores famílias estavam arruinadas e tiveram de
ganhar a vida a serviço dos príncipes. Sua impotência
diante dos camponeses ficara patente. Fora derrotada
em toda parte e forçada a capitular; salvou-a apenas a
intervenção dos exércitos dos príncipes. A nobreza
perdeu a sua significação como classe imperial livre para
cair mais e mais sob a dependência dos príncipes.
Tampouco as cidades tiraram grande proveito da
guerra camponesa. A dominação do patriciado ficou de
novo assegurada; a oposição dos cidadãos fora abatida
por muito tempo. Assim a velha rotina dos patrícios foi
sobrevivendo a revolução francesa, paralisando
totalmente o comércio e indústria. Os príncipes
responsabilizaram as cidades pelos êxitos momentâneos
que em seu seio obtivera o partido burguês ou plebeu
durante a luta. Muitas cidades que havia algum tempo
constituíam parte do território dos príncipes sofreram
grandes prejuízos: privaram-nas de seus privilégios,
entregando-as de mãos atadas à arbitrariedade dos
príncipes exploradores (p.e. Frankenhausen, Arnstadt,
Schmalkölden, Wurtzburgo, etc.); muitas cidades livres,
ainda que não fossem incorpordas ao principado, (como
Mühlhausen) passaram a depender moralmente dos
príncipes vizinhos; assim sucedeu com grande número
de cidades imperiais da Francônia.
Nessas circunstâncias os príncipes foram os únicos que
puderam tirar algum proveito dos resultados da guerra
camponesa. Vimos no começo de nossa exposição que o
incompleto desenvolvimento industrial, comercial e
agrícola da Alemanha tornava impossível toda e
qualquer centralização e união dos alemães em nação,
não permitindo mais do que uma centralização local ou
provincial; os príncipes eram os representantes dessa
centralização dentro da divisão e formavam a única
classe a se beneficiar com todas as mudanças das
condições sociais e políticas da época. O nível alcançado
pela Alemanha era tão baixo, e tão desigual o
desenvolvimento das diferentes províncias, que junto
aos principados seculares ainda podiam subsistir
soberanias eclesiásticas, cidades republicanas e condes
e barões independentes. Não obstante, a evolução
tendia, se bem que lenta e penosamente, para a
centralização provincial, quer dizer, para a
subordinação das demais classes à dos príncipes. Eles
por conseguinte eram os únicos que podiam ganhar
alguma coisa na guerra dos camponeses, e assim
aconteceu. Ganharam não apenas relativamente por
debilitar-se seus rivais, — o clero, a nobreza e as
cidades, — como também por arrebanhar os mais ricos
despojos. Os bens eclesiásticos foram secularizados em
seu benefício; a parte da nobreza mais ou menos
arruinada teve de ir se acolhendo sob sua soberania; as
indenizações das cidades e dos camponeses vieram
aumentar-lhes as rendas; além disso, a oportunidade de
praticar suas operações financeiras prediletas
aumentaram de maneira insólita ao desaparecer grande
quantidade de privilégios das cidades.
O principal efeito das guerras camponesas foi aguçar e
consolidar a divisão política da Alemanha, esta mesma
divisão que havia sido a causa de seu fracasso.
Vimos que a Alemanha estava não apenas dividida
numa porção de províncias independentes e totalmente
estranhas umas às outras, como também que em cada
província a nação se dividia em numerosas classes e
frações de classes. Além dos príncipes e padres
encontramos a nobreza e os camponeses no campo, e os
burgueses e plebeus nas cidades, formando classes com
interesses totalmente diferentes, quando não colidentes.
Por cima de todos esses interesses tão complicados
estavam ainda os do imperador e os do papa. Vimos
como todas estas tendências chegaram, por fim, — se
bem que de maneira lenta, incompleta e desigual, — a
formar três grandes grupos; vimos que, apesar de
existirem esses grupos, cuja formação tanto trabalho
custara, cada classe se opunha à evolução nacional
determinada pelas condições da época. E como cada
classe queria participar do movimento por sua própria
conta, entrou em conflito não apenas com todas as
classes conservadoras, como também com as demais
classes da oposição, acabando por sucumbir. Assim
aconteceu com a nobreza na sublevação de Sickingen,
com os camponeses, na guerra camponesa e com os
burgueses em sua Reforma moderada. Assim os próprios
camponeses não chegaram na maior parte das regiões
alemãs a um acordo para uma ação comum com os
plebeus, atrasando-se ambos no caminho. Mesmo assim
vimos quais foram as causas desta fragmentação da luta
de classes, da consequente derrota total do movimento
revolucionário e da derrota parcial do movimento
burguês.
A exposição precedente deve ter demonstrado a todos
que a divisão local e provincial e o particularismo local e
provincial fizeram naufragar todo o movimento; ter-se-á
visto como nem os camponeses, nem os burgueses, nem
os plebeus chegaram à unidade de ação em toda a
nação, como em cada província os camponeses atuavam
por sua própria conta, negando-se a ajudar seus vizinhos
e como desta maneira foram aniquilados, isoladamente,
em sucessivas batalhas e por exércitos que, em total,
não somavam nem a décima parte dos insurretos. Os
diferentes armistícios e tratados que alguns
destacamentos isolados firmaram com seus adversários
constituem outros tantos atos de traição à causa
comum; o fato de os destacamentos não se agruparem
com o fito de levar a cabo uma ação comum, senão
quando forçados, sob a ameaça de sucumbir ante um
inimigo também comum, constitui a prova mais
contundente do particularismo das diversas províncias.
Também nisso é evidente a analogia com o movimento
de 1848-1850. Em 1848, também estavam em luta os
interesses das diferentes classes da oposição e cada
uma agia por conta própria. A burguesia se desenvolvera
o suficiente para não mais tolerar o absolutismo
burocrático-feudal, porém ainda não tinha forças
bastantes para subordinar aos seus os desejos de outras
classes. O proletariado era ainda demasiado débil para
poder tentar passar por cima do período burguês ou
esperar uma pronta conquista do poder; por outro lado
já pudera apreciar, sob o absolutismo, as delícias do
regime burguês e já havia adquirido o desenvolvimento
suficiente para não duvidar nem um momento de que a
emancipação da burguesia não equivalia à sua própria
emancipação. A grande massa da população, os
pequenos burgueses, artesãos e camponeses viam-se
abandonados por seus aliados, pela burguesia que já os
considerava demasiadamente revolucionários, e,
também em alguns casos, pelo proletariado por não
serem bastante avançados. Corno estava dividida entre
si, nada pôde realizar, colocando-se em Oposição
contínua aos aliados de direita e esquerda. Por fim, o
particularismo dos camponeses de 1525 não poderia ser
maior que o de todas as classes que tomaram parte no
movimento de 1848. Demonstram-no, com diáfana
clareza, as cem diferentes revoluções locais seguidas de
outras cem contrarrevoluções feitas com a mesma
facilidade e a manutenção final da divisão em estados
fragmentários. Aqueles que conhecem os resultados
das revoluções alemãs de 1525 e de 1848 e ainda
são capazes de divagar sobre a “República
federal” não merecem outra coisa senão ir para o
manicômio.
Porém, apesar de tantas analogias, as duas
revoluções, a do século XVI e a de 1848-1850, se
diferenciam profundamente. A revolução de 1848, se
bem que não demonstre nada em favor dos progressos
realizados na Alemanha, pelo menos põe de manifesto o
progresso da Europa.
Quem se beneficiou com a revolução de 1525? Os
príncipes. Quem se beneficiou com a revolução de 1848?
Os grandes príncipes, isto é, a Áustria e a Prússia. Por
trás dos pequenos príncipes de 1525, tolhendo-os,
ocultavam-se os burgueses mesquinhos da época, que
concediam e pagavam os impostos, enquanto os
grandes príncipes de 1850, isto é, a Áustria e a Prússia
representaram os grandes burgueses modernos que os
têm sob seu guante, por meio da dívida do Estado. Mas,
por trás dos grandes burgueses estão os proletários.
A revolução de 1525 foi um caso particular da
Alemanha. Os ingleses, franceses, tchecos e húngaros já
haviam feito sua guerra camponesa, quando os alemães
começaram a fazer a sua. Se a Alemanha estava
dividida, a Europa o estava muito mais. A revolução de
1848 não foi um caso particular da Alemanha e sim
parte de um grande movimento europeu. As causas que
a motivaram, e que não deixaram de influir nela durante
todo o seu curso, não se produzem no cenário estreito
de um só país, nem mesmo de um só continente. Ao
contrário, os países que foram teatro dessa revolução
foram os que menos participaram de sua gênese. Foram
apenas matéria prima mais ou menos amorfa e
inconsciente, transformada por um processo de que
agora participa o mundo inteiro e por um movimento
que, nas condições atuais da sociedade, só pode nos
parecer como uma força estranha, se bem que, afinal de
contas, não seja senão o nosso próprio movimento. A
revolução de 1848-1850 não pode portanto, terminar
como a de 1525.
Apêndice: Os Doze Artigos dos
Camponeses
Título:
Justas reclamações de todos os camponeses e súditos
submetidos às autoridades espirituais e temporais a
quem acreditam dever queixar-se.

Saudação:
Ao leitor cristão, paz e misericórdia de Deus por Cristo.

Apologia
Certo número de maus cristãos tomam como pretexto,
hoje, os levantes dos camponeses para blasfemar contra
o Evangelho e para dizer: “Eis aí os frutos da nova
doutrina: negação completa da obediência; levantes,
insurreição geral. Numerosas tropas agrupam-se e
reúnem-se; quer reformar os poderes eclesiásticos e
temporais, inquietá-los, talvez mesmo destruí-los”.
Os artigos seguintes serão nossa resposta a todos,
esses detratores ímpios e maliciosos porque destroem,
primeiro a vergonha com que se tentou cobrir a Palavra
de Deus e, em seguida, justificam a desobediência, e
mais ainda, a revolta, dos camponeses.
Com efeito não se pode responsabilizar o Evangelho
pelos levantes, parque ele é o Verbo do Cristo, o Messias
prometido, cuja palavra e cuja vida nos ensinam apenas
amor, paz, paciência e concórdia, de tal modo que quem
acredita nesse Cristo é animado do espírito do amor e da
paz. Então, já que todos os artigos dos camponeses (isso
se percebe facilmente), pedem que se ouça o Evangelho
e que se viva de acordo com seus mandamentos, como
podem os maus cristãos chamar essa causa, de revolta e
desobediência?
Também de que certos maus cristãos, inimigos do
Evangelho, revoltem-se contra tais pedidos, não se deve
responsabilizar o Evangelho, mas sim o diabo que
desperta nos fiéis a incredulidade e o ódio procurando
por esse meio suprimir e mesmo destruir a palavra de
Deus que não ensina senão a paz, o amor e a concórdia.
Como consequência clara e pura do que acima se
expõe, resulta, em último lugar, que os camponeses que
em seus artigos reclamam o Evangelho como doutrina e
regra da vida não podem ser chamados desobedientes e
rebeldes.
Além do mais, se Deus quiser exorcizar os camponeses
que pedem apenas para viver segundo Sua palavra,
quem então desejará se interpor no cumprimento de sua
justiça (Isaías. LX), quem então ousaria desobedecer á
Majestade Divina? Já atendeu aos filhos de Israel que
gritaram por Ele (Rom. VIII), e libertou-os das mãos de
Faraó; não pode Ele ainda hoje, salvar seus fiéis? Sim,
decerto os libertará e, estamos certos, não tardará
muito.
Leitor cristão, lê com atenção os artigos seguintes e
depois julga:

Artigo primeiro. — Nosso desejo é, antes de tudo, de


agora em diante, toda comuna tenha o direito e o poder
de escolher por si mesma seu pastor (I. Tim, XIII) e de
destituí-lo se sua conduta for repreensível.
O pastor que assim se escolher deve pregar
puramente e sem rodeios o santo Evangelho sem
nenhum acréscimo de origem humana (Actos. XIV) e
fazer-nos conhecer a fé verdadeira. Porque se Deus nos
dá motivo de implorar sua misericórdia é que deseja
introduzir e imprimir em nossos corações essa fé. Porque
se não nos dá sua graça ficaremos para sempre carne e
sangue (Deut. XVII, Êxodo. XXXI. Deut. X, João. VI),
coisas de todo inúteis como o prova a Escritura. Com
efeito, é somente pela verdadeira fé que podemos
chegar a Deus e é por sua misericórdia que obteremos a
salvação.
É por isso que o pastor cujo modelo nos traça a
sagrada escritura nos é de primeira necessidade.

Artigo 2. — Aceitamos pagar o dízimo dos cereais,


dízimo que o Velho Testamento instituiu, que o Novo
Testamento aboliu; mas pagando-o de maneira
conveniente, isto é, dando-o a Deus.
Parece-nos justo, consequentemente, que esse dízimo
seja remetido ao pastor que anuncia claramente a
palavra divina e, com este fim, os cobradores de nossas
comunas serão encarregados de cobrá-lo, depois de
remeter uma parte ao pastor que a usará para sua
manutenção e de sua família.
Uma parte do que sobrar será distribuída entre os
pobres e necessitados que vivem nas cidades. Segundo
sua situação, a repartição será feita a cada um pelos
nossos cobradores.
Se restar ainda alguma coisa será guardada em
previsão de uma possível penúria a fim de poupar aos
pobres impostos vexatórios nesses momentos de
provação.
Se se encontram algumas comunas que, premidas
pela necessidade, venderam esse dizimo, o comprador
honesto que possa exibir suas atas de compra nada
deve perder e nós trataremos de nos arranjar com ele
amigavelmente e segundo a justiça e a lei cristãs. Mas o
que não for capaz de apresentar essas provas ou quem,
quer seja em sua pessoa, quer na dos ancestrais, se haja
apropriado desse dízimo violenta ou sub-repticiamente,
terá por nós denegada sua reclamação, não sendo o
dízimo autorizado pela escritura senão para a
manutenção dos pastores e dos necessitados.
No que concerne ao pequeno dízimo, nós não
queremos absolutamente pagá-lo. Deus, com efeito,
criou o gado a fim de que os homens dele tirassem
proveito livremente. Também consideramos o pequeno
dízimo coisa injusta, inventada pelos homens e desde
hoje declaramos que não queremos mais pagá-lo.
(Textos invocados: Ps. LIX, Gen. XIV,
Deut. XXV, I Tim. V, Mat. X, I Cor. XX, Luc.
XL, Mat. V, Gen. I.)

Artigo 3. — Até hoje, fomos olhados como servos por


quem se deve sentir piedade e, contudo, Cristo nos
salvou e resgatou, com seu sangue precioso vertido por
todos nós, do pastor ao nobre, sem exceção.
Nascemos livres segundo o ensinamento da Palavra da
Sagrada Escritura, portanto sejamos livres, não que o
desejemos ser absolutamente e que rejeitemos toda
autoridade, qualquer que seja ela. Isto não no-lo ensina
Deus.
“Viveis, diz Ele, segundo a lei, e não na vontade da
licença carnal”. “Amareis a Deus, vosso Senhor; amá-lo-
eis em vosso próximo, em vossos irmãos e fareis a eles o
que desejais que vos seja feito, segundo a Palavra de
Deus, manifesta na Santa Ceia”.
Eis porque queremos viver segundo Sua lei que nos
manda obedecer à autoridade e nos ensina também a
humildade diante de todos, de tal maneira que em todas
as coisas convenientes e cristãs, obedecemos
voluntariamente à autoridade que escolhemos e
estabelecemos, aquela que Deus nos deu.
Consequentemente, não duvidamos que nos
concedereis voluntariamente a qualidade de homens
livres, como a bons e verdadeiros cristãos; caso
contrário, mostrai-nos pela Escritura que nós somos
servos.
(Textos invocados: Isaías LUI, I Pedro, I,
Cor. VII, Rom. XIII, Sap. VI. I. Pedro II, Deut.
VI Mat. IV, Luc. IV e VI, João XIII, Rom. XIII,
etc.)

Artigo 4. — Até hoje reinou o costume de interditar ao


camponês a caça de pelo ou de pena e a pesca.
Tal proibição nos parece injusta, pouco fraternal,
egoísta, e oposta à palavra de Deus.
Em certos lugares recusam até constatar os danos
causados por sua caça e devemos suportar que os
campos que Deus fez frutificar para uso do homem
sejam devastados por animais privados da razão, o que
é o cúmulo da loucura e da tirania humana porque,
quando o Senhor Deus criou o homem, deu-lhe todos os
poderes sobre os animais da terra, os pássaros do ar e
os peixes das águas.
Os frutos são assim o apanágio do homem e todos os
pobres devem ter o direito da colheita quando se trata
de satisfazer sua fome.
Se, então, alguém possui um reservatório e pelos
títulos de sua propriedade puder provar que o comprou
legalmente, não queremos que isso seja tomado por
meio de violências, mas é preciso ter para com o
proprietário considerações cristãs. Quanto ao que não
possa provar seu direito de posse de maneira
convincente, deverá restituir seu bem à comuna que a
usará em proveito de todos.
(Textos invocados: Gen. I, I Tim. IV, Cor.
X, Coloss. II.)

Artigo 5. — Temos, em quinto lugar, de nos queixar


da questão da madeira. Nossos senhores, com efeito,
tomaram tudo para eles e quando o camponês precisa
tem de comprar madeira por preço dobrado.
Se existem florestas que possuem madeira, sem que
as hajam comprado senhores eclesiásticos ou não,
pedimos que as referidas florestas voltem à posse das
comunas que terão liberdade de deixar levar
gratuitamente, a todos os seus membros, a lenha de que
precisem.
Do mesmo modo se alguém tiver necessidade de
madeira de construção poderá levá-la gratuitamente
depois de haver avisado os guardas que a comuna
escolher para tomar conta das florestas.
Se os bosques foram comprados, a comuna deverá
arranjar- se fraternalmente e cristãmente com seus
possuidores. Se os bosques comprados em certa época,
forem mais tarde revendidos, o arranjo deverá ser feito
segundo as circunstâncias, deixando-se que o guie o
amor fraternal e obedecendo-se às indicações da Santa
Escritura.

Artigo 6. — Temos, em sexto lugar, muitas queixas


dos serviços que aumentam dia a dia e pedimos que se
use de mais discernimento, que se nos não oprima tão
duramente, mas aceitamos com indulgência a obrigação
de servir como o fizeram nossos pais, seguindo somente
a Palavra de Deus. (Romanos X).
Artigo 7. — Declaramos, em sétimo lugar, que, desde
hoje, não queremos mais que os senhores nos
sobrecarreguem de trabalhos. Quando eles alugarem
alguma coisa a um camponês, este se tornará seu
possuidor de acordo com o contrato feito com o senhor.
Este último, por seu lado, não deve mais lhe reclamar
serviço gratuito, ou qualquer outra coisa, a fim de que,
não tendo tributos, possa o camponês gozar de seu
bem.
Mas, se por outro lado, o senhor tiver necessidade de
um serviço, o camponês, antes de haver recebido uma
indenização conveniente, deverá prestá-lo e ser fiel; isso
nos momentos, em que lhe não cause nenhum prejuízo.
(Luc. III.)

Artigo 8. — Queixamo-nos, — particularmente


aqueles que dentre nós possuem bens, — de que tais
não podem sustentar os impostos com que somos
onerados, o que acarreta aos camponeses a perda de
suas fortunas.
Também pedimos que os senhores venham examinar
os ditos bens para em seguida fixar com equidade os
impostos, a fim de que o camponês não trabalhe mais
em vão porque todo trabalhador é digno de seu salário.
(Mat. X.)

Artigo 9. — Uma nona razão de queixa consiste no


grande mal que nos causa a contínua criação de novas
leis, porque não somos hoje punidos segundo as
circunstâncias presentes; ora o ódio, ora o favor ditam
os castigos que se nos infligem. Pensamos que, de agora
em diante, devemos ser punidos, não segundo o favor,
mas sim segundo o direito escrito e as circunstâncias.
(Isaías X, Efes. VI. Luc. III, João XXVI.)
Artigo 10. — Em décimo lugar, queixamo-nos de que
certos homens se hajam apropriado dos prados e dos
campos que pertencem à comuna e pedimos que os
ditos campos e prados retornem outra vez à posse da
comuna, a menos que hajam sido legitimamente
comprados.
Se a compra não se fez legalmente, as duas partes
devem entender-se amigavelmente, inspirando-se nas
circunstâncias. (Luc. VI.)

Artigo 11. — Queremos que o costume chamado


“caso de óbito” desapareça inteiramente.
Não podemos mais sofrer nem tolerar que
desprezando a Deus e à honra se arrebatem
indignamente às viúvas e aos órfãos o que lhes
pertence, como ocorre em numerosos lugares.
Os que na verdade tinham por missão protegê-los,
despojaram-nos e se os infelizes não tinham senão umas
poucas coisas, essas mesmas lhes foram tomadas. Deus
não quer mais sofrer semelhante costume que deve
desaparecer inteiramente; Quanto a nós, desde já
declaramos que, por meio do “caso de óbito” não somos
forçados a dar nem pouco nem muito de nossos bens.
(Deut. XVIII, Mat. VIII. 23, Isaías X.)

Artigo 12. — Conclusão — Nosso décimo segundo


artigo encerra nossa conclusão.
Se um ou vários dos artigos precedentes não se
acharem conforme a Palavra de Deus desistiremos
voluntariamente deles desde que se demonstre que
estão contra essa Palavra uma vez que tal demonstração
nos fosse feita por meio da Escritura.
Se se concordar presentemente com certos artigos e
se, mais tarde, esses artigos se tornarem injustos, desde
o instante em que tal injustiça fique devidamente
provada, eles devem desaparecer e, a partir de então,
não terão mais valor. Porém, se por outro lado, se
encontrarem na Escritura certos textos contra os abusos
opostos à vontade de Deus, abusos estes que causem
prejuízo ao próximo, reservamo-nos o direito de formular
novos artigos sobre o assunto porque desejamos viver
segundo a doutrina cristã e orar a Deus e ao Senhor que
é quem unicamente pode nos dar os meios para tanto.

A paz de Cristo seja convosco!


Lista de Personagens Históricos
Wilhelm Zimmermann. Historiador e poeta alemão.
Nasceu a 2 de janeiro de 1807, em Stuttgart, de uma
família de artesãos. Fez seus estudos no colégio de
Stuttgart e depois na Universidade de Tübingen, com F.
Strauss. Pastor e, mais tarde, professor de história, de
língua alemã e de literatura, na escola politécnica de
Stuttgart. Eleito a 23 de abril de 1848 à Assembleia
Nacional de Frankfurt, aderiu à extrema esquerda.
Tomaram-lhe a cadeira por sua participação no
movimento revolucionário de março. Retomou, em 1854,
o exercício do sacerdócio em Zabergäu. Faleceu a 22 de
setembro de 1888.
Como historiador, W. Zimmermann é conhecido por
sua História da Grande Guerra dos Camponeses (1841),
reeditada em 1865 e em 1891. Também deixou outros
trabalhos de história literária e obras poéticas: História
dos Tohenstaufen, História Ilustrada do Povo
Alemão, História Geral da Poesia, etc.
A História da Grande Guerra dos Camponeses,
que se pode considerar como sua obra principal, foi
escrita com espantosa mestria sobre o assunto, sendo
de grande objetividade. O autor dispôs sobretudo da
contribuição dos arquivos de Stuttgart. A obra de
Zimmermann continua sendo a mais completa exposição
de fatos sobre a guerra dos camponeses. A objetividade
dessa exposição e “o instinto revolucionário que conduz
o autor a tomar a defesa das classes oprimidas”
conferem à obra interesse todo particular, O burguês
radical, todavia, faz sentir sua presença. A atitude
negativa de Zimmermann ante o socialismo e o
comunismo não lhe permite bem apreciar a luta de
classes.
O livro de Kautski sobre a História das Correntes
Sociais retifica alguns erros e preenche algumas
lacunas do trabalho de Engels. Assim Tomás Münzer
nasceu, não em 1498, mas em 1490 ou 1493. As
passagens citadas como originárias de um discurso
pronunciado por Münzer diante dos príncipes saxões
após a destruição, pelo povo, da capela de Maria, em
Mellerbach, são na realidade extraídos de um libelo
contra Lutero. Nesse ponto, Engels cita Zimmermann.
Kautski corrige Zimmermann sobre outra questão mais
importante. Zimmermann apresenta Münzer como
homem superior a sua época. Kautski demonstra o erro
dessa apreciação. “Münzer, diz ele, não era superior a
seus discípulos, nem por seus dons de filosofia, nem por
seu talento de organizador, e sim por sua energia
revolucionária e, antes de tudo, por seu espírito de
estadista”.
Pode-se também corrigir certos detalhes da história da
ditadura de Münzer em Mühlhausen, relatada por Engels.
Münzer não foi posto à frente do Conselho de
Mühlhausen. Pfeiffer não foi seu discípulo e sim o
representante de uma tendência pequeno-burguesa. (F.
Mehring).

Luís XI. — Rei de França, filho de Carlos VII (nascido


em 1423, reinou de 1461 a 1483). Fundou, na França,
sobre as ruínas do feudalismo, a monarquia absoluta e
estendeu as fronteiras do país até o Jura, os Alpes e os
Pireneus. Quando delfim, participou, na juventude, dos
levantes da nobreza contra seu pai. No trono, tornou-se
adversário dos nobres. A Liga do bem público agrupou
contra ele os grandes e pequenos senhores feudais. Luís
XI combateu-a pela força, pela intriga, pela mentira
diplomática, com o logro e a prudência, em lugar aos
métodos grosseiros da política feudal. Vencido numa
primeira guerra, teve de aceitar, em 1461, a paz com os
senhores feudais, mas lhes declarou guerra de novo em
1470 com o apoio da burguesia comerciante.
O levante do oeste da França não o impediu de triunfar
nessa luta. Para melhor se fortificar contra os feudais
decidiu a reforma do exército, libertou as cidades do
serviço militar e formou, sobre novas bases, um exército
de 50.000 homens, cuja infantaria era, em sua maior
parte, composta de mercenários suíços. Em 1481 anexou
a Provença e Liège. Conseguiu submeter toda a França
exceto a Navarra e o ducado da Bretanha. A monarquia
de Luís XI só conseguiu firmar-se na França, graças ao
apoio da burguesia comerciante. Luís XI encorajou o
comércio, a indústria e a agricultura. O correio, antiga
instituição do império romano, foi restabelecido sob seu
reinado.

A Carolina — Código penal do século XVI promulgado


sob o Imperador Carlos V, em 1532. A Alemanha contava
nessa época com mais de 300 Estados, cada um com
sua legislação penal caracterizada, a maioria dos casos,
por grande crueldade. A justiça obtinha as confissões
dos acusados por meio da tortura. O direito romano era,
nas mãos dos príncipes, um instrumento de impiedosa
exploração das massas. O desenvolvimento da
circulação monetária e o do absolutismo exigiam um
código penal único reformado.
A partir de fins do século XV e de começos do século
XVI, as tentativas de reforma começam a se esboçar na
Alemanha. O Reichstag de Augsburgo e de Regensburgo
adotou enfim, em 1532, o projeto definitivo do código
penal chamado Carolina, do nome do Imperador Carlos.
O código tentava combinar o direito romano com o
direito local. A Carolina não substituía os códigos locais,
apenas se destinava a esclarecer os príncipes e
eleitores. As modificações trazidas à instrução criminal
eram de somenos importância. Atenuava-se a ferocidade
dos interrogatórios inquisitoriais. Definiam-se os direitos
da defesa. A tortura subsistia. Os capítulos sobre a
ablação das orelhas e do nariz, o suplício do fogo, o
esquartejamento constituíam o mais belo ornamento do
novo código que permaneceu em vigor até o século
XVIII.

Os Valdenses formaram no século XII uma seita


religiosa do sul da França. As cidades do norte da Itália e
do sul da França ofereciam nessa época um terreno
particularmente favorável ao desenvolvimento dos
movimentos reformistas religiosos. O comércio e a
indústria tiveram ali uma prosperidade até então
desconhecida em todos os países do ocidente. O
artesanato florescia; a burguesia nascia. Mas, enquanto
as cidades do norte da Itália, parcialmente interessadas
na exploração de Roma, cedo aspiravam apenas a uma
relativa independência espiritual ante a Igreja Católica,
as do sul da França, do mesmo modo desenvolvidas,
porém menos dependentes de Roma, viram nascer um
movimento sério contra esse domínio.
A lenda atribui a fundação da seita valdense a um rico
mercador lionês, Pierre de Vaux, ou Valdo. Mas, é
possível que a seita lhe seja anterior,., Pierre Valdo,
resolvido a seguir o conselho do Evangelho, distribuiu
seus bens aos pobres, formou um grupo de discípulos e
começou, em 1176, sua pregação.
Logo depois os valdenses se reuniram, na Lombardia,
aos cátaros (os puros, os pobres de espírito).
Chamaram-se também de pobres de Lião. Suas
prédicas chegaram mesmo à Itália, à Alemanha e à
própria Boêmia. No sul da França e em outros países,
recrutaram adeptos entre os artesãos, sobretudo entre
os tecelões.
Os valdenses não pensaram, no princípio, em se
separar da Igreja. Mas a leitura livre do Evangelho, a
propaganda leiga, a dissidência sobre o mistério da
transubstanciação e o caráter militante da seita levaram
o poder temporal e o clero a perseguir os heréticos. O
papa Sisto IV organizou a cruzada contra eles em 1447.
Tais perseguições deviam durar até o século XVIII. Em
1685 as tropas francesas e italianas massacraram 3.000
valdenses e capturaram mil. Os valdenses só em 1848
obtiveram direitos cívicos e liberdade religiosa no
Piemonte e na Savóia. A seita ainda existe nos Alpes
italianos, em Valnartino e em outras localidades. Conta
com umas quarenta comunidades e vários milhares de
adeptos.
O comunismo evangélico dos valdenses tinha, na
Idade Média, um caráter monarcal. Os “perfeitos” viviam
em comunidade e observavam o do celibato. Os
discípulos podiam casar-se e possuir bens. Os valdenses
recusavam o serviço militar e o juramento. Cultivavam a
instrução pública. As comunidades valdenses, em cujo
seio dominavam os elementos camponeses e pequeno-
burgueses, adquiriram caráter burguês democrático;
naquelas em que o domínio pertencia aos elementos
proletários, os valdenses se tornaram “comunistas
sonhadores”.

Arnoldo de Bréscia [também conhecido como


Arnaldo de Bréscia] foi, em meados do século XII, o autor
da primeira tentativa de reforma da Igreja católica.
Nasceu entre 1100 e 1110, em Bréscia, na Itália. Aluno
do teólogo francês Abelardo, aprendeu com ele a atitude
crítica em face dos dogmas da fé e dos padres da Igreja.
Participou em 1136, em sua cidade natal, da comuna
contra o senhor episcopal. Arnoldo de Bréscia quis
reconduzir o clero ao verdadeiro cristianismo do
Evangelho, preconizou a renúncia da Igreja ao poder
temporal e o abandono de seus bens às autoridades
leigas. Os padres deveriam contentar-se com os dízimos
e as oferendas benévolas. O bispo de Bréscia denunciou
essa heresia no segundo concílio de Latrão e Arnoldo
teve de se refugiar em Paris, onde o atacou Bernard de
Clairvaux. De volta a Roma, em 1146, participou das
lutas da democracia urbana contra o papa. Roma era,
nessa época, o centro espiritual e político para onde
afluíam as riquezas de todos os pontos do universo
cristão. Os papas se mostravam hábeis em explorar tal
situação privilegiada da capital cristã. Arnoldo de Bréscia
apelou para o povo romano para que derrubasse o papa
e restabelecesse, em sua pureza, a antiga república
romana. Durante algum tempo foi senhor de Roma. O
papa Adriano IV conseguiu exilá-lo. Feito prisioneiro pelo
Imperador Frederico Barbaroxa, foi entregue a Roma e
enforcado como herege e reincidente. Seu corpo foi
queimado. (1155).

Os Albigenses. — Formaram nos séculos XI e XII uma


seita religiosa que se expandiu no sul de França. Como
seu nome indica, seu centro principal ficava em Albi, no
Languedoc. Os Albigenses professavam o cristianismo
apostólico e se conformavam a todos os costumes e à
simplicidade do Evangelho. Eram chamados, a boa
gente. O papa e os concílios imputaram-lhes a negação
da doutrina da Santíssima Trindade, dos sacramentos, da
comunhão, do casamento e dos mistérios da morte e da
ressurreição de Jesus. Os papas Calixto II e Inocêncio II,
os excomungaram; o primeiro no concílio de Toulouse,
em 1119, e o segundo em 1139. O papa Inocêncio III
organizou uma cruzada contra eles em 1209. A guerra
durou vinte anos.
A tenacidade e crueldade com que os Albigenses
foram perseguidos explicam-se pelo fato de ser a causa
do papa combatida pelos senhores do sul da França. Um
inquisidor, legado do papa, foi assassinado nos domínios
do conde Raymond IV de Toulouse, que se mostrava
tolerante para com os hereges; isso fez o papa Inocêncio
III resolver-se a agarrar esse pretexto para despojar o
referido conde. Começou a luta entre os senhores do sul
contra os do norte, apoiados pelo papa. O norte da
França era hostil ao sul, o qual era mais desenvolvido e
cuja prosperidade ameaçava o norte. O conde Simão de
Montfort e os legados do papa conduziram a cruzada. A
tomada de Béziers pelo exército do norte caracterizou-se
pelo massacre de 20.000 Albigenses. Estes sucumbiram
em grande número nas lutas ulteriores que resultaram
na devastação e despovoamento da Pro- vença e do
Alto-Languedoc. A paz só foi concluída em 1229 e a
heresia foi extirpada. As consequências das guerras
contra os Albigenses foram a ruína do sul e a ampliação
dos territórios do rei de França.

John Wycliffe (1320-1384). Reformador inglês. Foi um


dos ideólogos que já antes da Reforma dos séculos XV e
XVI a tinham esboçado em traços gerais. Ensinando na
Universidade de Oxford. Wycliffe, antes de sua ação
política, ocupava-se exclusivamente da física, da lógica e
da filosofia. O século XVI caracterizou-se, na Inglaterra,
pelas lutas encarniçadas contra a realeza e o papado. No
século XIII, o rei da Inglaterra pagava anualmente ao
papa um tributo de 1.000 libras de prata. O Parlamento
queixava-se, sob Eduardo IV, (século XIV) de que o país
pagava ao papa cinco vezes mais impostos do que ao
rei. O desenvolvimento da produção das mercadorias e
das trocas aumentara a capacidade de resistência da
Inglaterra. A guerra dos Cem Anos, entre a Inglaterra e a
França, veio agravar o conflito com Roma. Esta guerra
(1339-1456) interessou todas as classes do povo inglês.
As classes dominantes da Inglaterra queriam conquistar
as riquezas dos Países-Baixos e cobiçavam as da
nobreza francesa. A burguesia inglesa também via na
guerra uma possibilidade de enriquecimento. As
despesas decorrentes das hostilidades caíam
principalmente sobre os camponeses. Por conseguinte,
não há nada de se admirar em que o papa, aliando-se à
França, atraísse o ódio geral. O Parlamento aboliu, em
1366, o dízimo papal. A heresia, acuada na Itália e na
França, estendeu-se à Inglaterra. As prédicas de Wycliffe
tornaram-se populares em todos os círculos. Wycliffe
afirmou o direito de em caso de necessidade o estado
despojar a Igreja de seus bens temporais. Ensinava que
a autoridade se baseava nos serviços prestados e que,
consequentemente, só os serviços podem justificar a
arrecadação dos impostos e das taxas pelo clero.
Discutindo em 1374 com os representantes da cúria
romana, Wycliffe revelou os abusos de tal coisa,
especialmente no que se referia à designação dos
dignatários eclesiásticos na Inglaterra. Foi perseguido
encarniçadamente pelo clero e só a intervenção da
Corte, da Universidade e das cidades conseguiu salvá-lo.
A doutrina de Wycliffe jamais saiu dos limites que lhe
determinavam as classes dominantes. Wycliffe não
pregou a pobreza nem a igualdade de Cristo senão
visando o clero. Propôs que se despojasse o clero de
suas terras, o que bem correspondia aos interesses do
rei e dos proprietários. Aplicou as noções feudais de seu
tempo às relações entre o homem e Deus. Tudo o que o
homem tem, tomou de Deus. A graça divina é a
condição dessa posse da qual o pecado mortal priva o
homem. Da mesma forma, os bens do clero devem ser
de todos. O clero se submete à jurisdição secular. Deus,
e não o papa, é o supremo juiz da consciência humana.
A simpatia geral que Wycliffe conquistou, transformou-
se em ódio entre as classes possuidoras depois do
levante camponês de 1381. A Universidade de Oxford
condenou as doze teses nas quais ele refutava o dogma
da transubstanciação. Wycliffe morreu em paz, porém
sua doutrina foi cruelmente perseguida. O concílio de
Constança decidiu, em 1415, queimar seus restos.

João Huss. O nome de João Huss ficou ligado à luta


contra o clero católico na Boêmia (Tchecoslováquia),
onde se desenvolveu, no século XV, o chamado
movimento hussita.
A Igreja católica perdeu, nos séculos XIV e XV, sua
autoridade sobre as massas populares. O papa surgia
aos olhos do povo como um explorador que os privava
dos direitos dos bens da terra em nome de Deus e da
vida futura. Na Inglaterra e na França, assim como na
Espanha, a Igreja tornou-se nacional e rompeu com
Roma. A Alemanha foi uma exceção a esse movimento e
tornou-se o objeto da cupidez romana. Se os outros
países se achavam, sob esse aspecto, em situação mais
favorável, se puderam sacudir o jugo do papa, foi porque
o capitalismo nelas estava mais desenvolvido do que na
Alemanha; porque a riqueza e o poder da burguesia e
dos príncipes tinham se desenvolvido. Sob esse aspecto,
somente a Boêmia gozava, na Alemanha, de uma
situação particular. A Boêmia conhecera, no século XIV,
um rápido desenvolvimento econômico, devido a suas
minas de prata. A Igreja, o rei e a Corte, tinham ali, do
mesmo modo que os mercadores e os artistas,
apreciáveis rendas. O papa e o imperador estavam
sempre vigilantes para que a Boêmia não lhes escapasse
à influência. O descontentamento crescia no país,
sobretudo entre a pequena nobreza, os camponeses e a
população urbana. A abundância da prata acarretava
uma alta geral dos preços. Na Boêmia as massas
populares pertenciam à nacionalidade tcheca, enquanto
que os dirigentes, os senhores e o alto clero eram de
nacionalidade alemã, de sorte que a luta de classes se
revestia do aspecto de uma luta religiosa e nacional
contra o papa e os alemães. É nessa situação
revolucionária que as ideias do reformador inglês
Wycliffe chegaram à Boêmia. João Huss se fez seu
defensor e propagandista. Nascido em 1369, de uma rica
família camponesa, João Huss ensinou na universidade
Praga, célebre àquela época, e da qual ele foi reitor
durante certo tempo. Pregou também na capela de
Belém onde os serviços religiosos eram celebrados em
língua tcheca. João Huss defendeu as 45 teses de
Wycliffe quando a universidade de Praga se levantou
contra elas, em 1409. Em 1412, o papa João XXIII,
desprovido de dinheiro, abriu em Praga um grande
comércio de indulgências. Huss denunciou com ardor a
corrupção do clero e exigiu a cessação desse comércio.
Levantou-se, também contra os milagres, demonstrando,
em um trabalho, que os verdadeiros cristãos deles não
precisam e que a fonte da verdadeira fé não está senão
na Sagrada Escritura. Afirmou que a Igreja não passava
de uma assembleia de crentes predestinados à salvação
e atraiu assim o ódio dos dirigentes que viam na Igreja o
domínio do alto clero.
Huss foi excomungado a 6 de julho de 1410 e seus
livros lançados ao fogo. Acusado de heresia em 1414,
nos concílios de Constança, pediu que os príncipes da
Igreja o esclarecessem e que lhe demonstrassem em
que os seus ensinamentos se diferenciavam da palavra
divina, mas foi entregue ao poder secular e queimado (6
de julho de 1415). Suas cinzas foram atiradas ao Reno.

Os Hussitas (Taboritas e Calixtinos). A execução de


João Huss foi na Boêmia o sinal da revolução. Todas as
classes do povo tcheco se sublevaram contra a
autoridade do papa, pela reforma da Igreja e da religião
e contra os alemães, pela independência nacional. No
curso das lutas nacionais e religiosas que se seguiram as
massas populares manifestaram em diferentes
oportunidades seu ódio às classes possuidoras. No
começo, entretanto, todas as classes da Boêmia ficaram
unidas. A comunhão foi a palavra de ordem do
movimento. Segundo o uso católico, os crentes ao
comungar recebiam apenas o pão, enquanto que o clero
e as gentes da Igreja recebiam pão e vinho. Os
adversários dos privilégios da Igreja reivindicaram a
igualdade da comunhão. “O cálice aos leigos”, foi a
palavra de ordem do movimento. Os nobres aderiram
com o fito de se apropriar dos bens da Igreja. O clero
possuía ao menos um quarto do reino. A grande
burguesia viu também na guerra dos hussitas uma
oportunidade para enriquecer em detrimento da Igreja e
das ricas cidades católicas alemãs. (Kuttenberg e suas
minas de prata antes de tudo). A nobreza e a grande
burguesia tchecas, que tinha esposado as ideias
hussitas, formaram, no movimento hussita, o partido
moderado dos calixtinos, — da palavra cálice, — ou
utraquistas e seu centro foi Praga. Uma outra
tendência democrática formou-se ao lado dos calixtinos.
Esta foi, primeiramente, dos camponeses desejosos de
possuir livremente a terra, sobretudo depois que os
nobres se foram apropriando dos bens do clero. Os
burgueses e os proletários faziam causa comum com os
rurais. Seus centros estavam nas pequenas cidades da
Boêmia. Esses democratas foram mais tarde chamados
Taboritas, do nome de sua capital militar e política, a
cidade comunista de Tabor. Os comunistas se
encontraram, graças a eles, à frente do movimento
hussita.
O povo de Praga derrubou em 1414 o rei Venceslau, e
a Boêmia tornou-se o asilo dos heréticos de toda a
Europa.
Os begardos e os valdenses ali encontraram refúgio.
Os comunistas (estavam fortificados em Tabor e
começaram sua propaganda (anunciando que o reino
milenar de Cristo tinha chegado, que não havia mais
amos nem servidores e que os homens iam chegar à
pureza do Eden. Organizaram em Pisek, e em várias
cidades, principalmente em Tabor, comunidades
comunistas. Tabor se acha sobre o Luschnitz. Havia, a
pequena distância dessa cidade, jazidas auríferas em
exploração. O comércio e a indústria estavam
particularmente desenvolvidos nessa região. Os
comunistas, firmados em Tabor, foram apoiados por
grande parte da população. Uma de suas grandes
assembleias, a de 22 de julho de 1419, reuniu, segundo
se diz, 42.000 pessoas. Os Taboritas se tratavam por
“irmãos” e “irmãs” e não admitiam diferenças entre
“teu” e “meu". “Nem deve haver, diziam eles, nem reis,
nem senhores, nem súditos, aqui em baixo; os impostos
e dízimos devem ser abolidos”. Não admitiam a
opressão. Sustentavam que todos os bens pertencem à
comunidade e que a propriedade privada é um pecado
mortal. Seu comunismo era, é verdade, um comunismo
cristão, um comunismo de consumo e não de produção.
No fundo cada família trabalhava por sua própria conta
não entregando à comunidade mais do que os
excedentes de sua produção. Havia extremistas entre os
taboritas, que não admitiam compromissos e negavam a
família. Esses “irmãos e irmãs de espírito livre”
chamavam-se adamitas, ou nicolaitas, do nome de
seu chefe, o pastor Niklaus. Os adamitas foram
combatidos pela maioria dos taboritas e pelos
cavaleiros, sob a direção de Ziska.
A cidade comunista de Tabor surpreendia por sua alta
organização. Comunidade militar, fez-se por muito
tempo temer pelos alemães. Os Taboritas formaram o
primeiro exército permanente e foram os primeiros a
usar a artilharia. A atenção que prestavam à instrução, e
a ordem e disciplina que reinavam entre eles, explicam
como conseguiram resistir durante toda uma geração. A
causa principal da queda de Tabor foi a divisão dos
hussitas. Os calixtinos moderados, enriquecidos com os
despojos do clero, recusaram-se a reconhecer a
supremacia de Tabor. A guerra que sustentou a cidade
comunista contra o rei, o papa e toda a Europa era
contrária aos interesses dos nobres. Depois da vitória de
Tauss, os Taboritas pareciam invencíveis. Mas os
calixtinos iniciaram negociações com o inimigo.
Decidiram convocar uma assembleia de senhores,
cavaleiros e cidades a fim de estudar a organização do
Estado. Uma cisão produziu-se na própria Tabor onde os
burgueses e os camponeses, indiferentes ao programa
comunista, aspiravam à paz. O próprio comunismo de
Tabor não possuía raízes profundas, pois não se baseava
na organização coletiva da produção. A igualdade das
condições de existência não tinha durado muito. Havia,
em Tabor, ricos e pobres. Os aventureiros de todas as
nacionalidades afluíam ao exército taborita. Desde que a
nobreza se pôs a equipar tropas para combater Tabor e
desde que oferecia a seus soldados soldo superior ao
que oferecia a cidade comunista, a traição e a deserção
começaram a grassar entre as fileiras dos Taboritas.
Essas causas explicam a queda de Tabor. Os Taboritas
sofreram uma cruel derrota a 30 de maio de 1434, em
Tcheski-Brod. Perderam 13.000 combatentes de um total
de 18.000. Tiveram, em 1436, de tratar com o rei
Sigismundo, que reconheceu a autonomia de sua cidade.
Mas a comunidade comunista não tardou a desaparecer
(1452).

A Seita dos Flagelantes apareceu na Europa a partir


do século XI, mas expandiu-se sobretudo nos séculos XIII
e XIV. Da Itália, o movimento ganhou o sul da França, os
Países Baixos, a Alsácia e Lorena. Os flagelantes
ensinavam que os pecados podem ser resgatados por
uma flagelação rigorosa. Um dos primeiros teóricos
religiosos dessa seita, Gregório VII, ensinava que, pelo
flagelo, o fiel imitava Cristo, obtinha a coroa do martírio,
humilhava e castigava o corpo e resgatava seus
pecados. Essa doutrina era aparentada com o ascetismo
largamente expandido na Idade Média que exigia dos
crentes a mortificação da carne por meio do jejum, das
vestes rústicas, etc. A flagelação se revestiu do caráter
de epidemia, de psicose de massas. Viu-se, no século
XIII, no sul da Itália, multidões de crentes flagelarem-se
nas ruas com varas e correias, pedindo aos céus o
perdão para seus pecados. O movimento tornou-se
particularmente ameaçador depois da grande peste ou
“morte negra”, que grassou na Europa.
O ano de 1349 viu na Alemanha, na França e em
Flandres, multidões inteiras se flagelarem e se
martirizarem, na convicção de que Cristo ia castigar os
pecados dos homens, provocando o fim do mundo.
Sociedades de flagelados formaram-se na Alemanha.
Não pediam aos prosélitos mais do que uma pequena
cotização e a participação nos exercícios de flagelação.
O movimento enfraqueceu no século XV, mas não
desapareceu. Os flagelantes mostraram-se, então, hostis
às ordens monásticas e exigiram diversas reformas na
Igreja. A Igreja romana, que não combatera o movimento
anteriormente porque ele tinha, na Itália, sido hostil ao
imperador e por conseguinte favorável ao papado, pôs-
se, desde então a perseguir os flagelantes. O concílio de
Constança condenou-os. Nos séculos XVI e XVII a
flagelação foi moda. Tornou-se alvo de zombarias. A
seita ainda sobrevivia, aqui e ali, no século XIX.

A Seita dos Lollardistas expandiu-se entre os


trabalhadores ingleses do século XIV e XV. A heresia não
se expandiu unicamente entre as classes dirigentes.
Todas as classes fizeram valer suas reivindicações no
movimento reformador. Assim se desenvolveu entre os
tecelões mais pobres da Inglaterra a seita dos begardos
(frades mendicantes), palavra oriunda do verbo to
beg, pedir esmola, ou como se os chamavam na
Inglaterra, lollardistas (lollen quer dizer cantar,
murmurar; os lollards eram cantores fúnebres). A seita
apareceu nos Países Baixos, em Flandres e Brabante,
países onde a indústria e o comércio se desenvolveram
cedo. A criação de carneiros e a indústria da lã
prosperavam ali. A seita dos begardos era mais formada
de comunidades de tecelões celibatários agrupados em
casas especiais, em bases comunistas. Os begardos
apareceram na Inglaterra mais ou menos ao mesmo
tempo que em Flandres. O condado de Norfolk, centro da
indústria inglesa da lã, tornou-se também o centro dos
lollardistas ou begardos ingleses. Seus agitadores, “os
frades mendicantes”, espalharam no país a nova
doutrina.
Os “pobres padres” errantes pregaram a volta à
comunidade dos bens leigos e eclesiásticos, convidando
a população a não pagar mais ao clero, nem o dízimo
nem o foro e aconselhando servos e camponeses a
recusarem uma geira que fosse ao proprietário
territorial. Em 1395 os lollardistas pediram, em uma
petição ao Parlamento, a reforma da Igreja inglesa, a
supressão de seus bens temporais e a abolição do
celibato dos padres. Essa petição foi recusada.
John Bali, o “padre insensato”, de Kent, foi o mais
conhecido representante dos lollardistas. Saído da
ordem mendicante dos franciscanos, que simpatizava
com a seita. John Bali foi um dos chefes do movimento
camponês de 1381 na Inglaterra. John Bali pregou
sobretudo nos condados de Essex e Norfolk, a partir de
1356. Sua pregação nas praças e nas encruzilhadas
constituíram enorme sucesso. Preconizava a comunidade
de bens e a abolição da nobreza. Só então, dizia, os
homens serão iguais e “não haverá mais senhores”.
Todos os homens são iguais em sua descendência “de
Adão e Eva”. “Quando Adão trabalhava e Eva fiava, onde
estava o gentil-homem?”, perguntava John Ball.
Mataram-no durante a repressão ao movimento
camponês de 1381. O movimento lollardista adquiriu
enorme importância, confundindo-se com o movimento
camponês e a oposição da burguesia das cidades. Mas, a
partir da derrota do levante de 1381, os lollardistas
foram perseguidos e todos considerados criminosos.
Esse terror durou muito tempo. Os lollardistas se
mantiveram todavia entre os trabalhadores, conforme
atestam os panfletos do fim do século XIV e de começos
do século XV, tais como a visão de Pedro, o
trabalhador e a oração do trabalhador. Os
lollardistas divulgaram a tradução inglesa da Bíblia.

O Quiliasmo é a doutrina da volta de Cristo e de seu


reino milenário sobre a terra. O reino de Cristo era
representado como o começo de uma era de mil anos de
felicidade terrestre. Todas as calamidades e todas as
privações deviam desaparecer. Uma completa harmonia
seria restabelecida entre a humanidade e a natureza
renovada. Os sonhos do reino milenário expandiram-se
largamente durante a Idade Média, sobretudo nos anos
marcados pelas calamidades e pelas revoluções sociais e
políticas. Nas épocas de calmaria não passavam de
dissidência. Os sonhos quiliásticos se apoderaram das
massas durante as perseguições dos cristãos no século
X quando se esperava o fim do mundo para o ano mil.
Mas, se expandiram sobretudo nos séculos XIV e XV,
época da Reforma. A volta ao Evangelho, a excitação
religiosa, a agravação e a exploração das massas
alimentaram-nos. Os anabatistas, os taboritas e Tomás
Münzer pagaram seu tributo à doutrina do reino
milenário.
A situação social da idade média era propícia ao
desenvolvimento do misticismo alimentado pela
ignorância das massas, O quiliasmo, a fé nos milagres e
o misticismo se expandiram porque as massas não viam
nenhuma possibilidade de melhorar sua condição por
seus próprios meios. Apenas um milagre podia provocar
a queda de todos os exploradores e de todos os
opressores. As massas aspiravam o milagre e deviam
crer na volta do Cristo para não desesperar. Essas
condições sociais explicam a difusão do quiliasmo.

Martinho Lutero. Este nome está ligado à história da


revolução religiosa e social do século XVI na Alemanha,
que se chamou Reforma. Lutero, contudo, não foi seu
iniciador. Seus ensinamentos e sua atividade não eram
bastantes para preencher a história social da coalizão
dos burgueses e dos nobres no movimento
revolucionário do século XVI.
O capital comercial desagrega completamente, do
século XIV ao século XVI, a velha economia natural dos
povos da Europa e o edifício político do feudalismo. A
vitória do absolutismo tornara-se uma necessidade
econômica. O desenvolvimento do capital comercial
obriga, ao mesmo tempo, os senhores a intensificar a
exploração do camponês. Livrando os camponeses do
jugo feudal, os senhores aumentaram a servidão,
substituindo as geiras e os tributos em espécie, pelos
tributos em dinheiro. Começou-se a expulsar os
camponeses das terras que cultivavam, remontando a
essas expropriações de lavradores a origem do
proletariado moderno. O novo proletariado servia aos
capitães e aos comerciantes; lutava e trabalhava nas
manufaturas. A revolução econômica fez da nobreza
feudal um obstáculo do desenvolvimento histórico. A
pequena nobreza e a cavalaria adotaram posições
intermediárias entre os camponeses e os grandes
senhores. Condenada a perecer, tentou resistir. A luta
desses agrupamentos de classes se complicou, na
Alemanha, em vista das circunstâncias peculiares do
desenvolvimento econômico. Nos princípios do século
XVI, a Alemanha ainda era um país poderoso, graças a
suas minas e a seu comércio. Porém o centro econômico
da Europa não tardou a se deslocar da bacia
mediterrânea para as costas do Atlântico. O
desenvolvimento econômico da Alemanha e da Europa
oriental foi detido. As relações sociais e políticas tinham
de se transformar profundamente, ou romperem-se. A
Europa foi, durante um século, presa de guerras terríveis
e de revoluções.
A Alemanha sofria sobretudo a exploração da Igreja
romana. Os conventos e os príncipes da Igreja
arruinavam as cidades e os campos. A burguesia estava
descontente com as esmolas parcimoniosas cedidas
pelos conventos aos indigentes, esmolas que por si só
seriam capazes de pôr um freio à exploração capitalista
das massas populares.
A Igreja romana entregava-se ao comércio dos tributos
eclesiásticos e das indulgências. Podia-se obter,
mediante finanças, o perdão dos pecados mais graves.
Os príncipes da Igreja assim tentavam rivalizar, em
exploração, com os proprietários feudais e os
mercadores capitalistas. A luta contra a Igreja romana se
impunha. Enquanto que os países mais adiantados do
ponto de vista econômico, como a Inglaterra e a França,
sacudiram com relativa facilidade o jugo papal, a
Alemanha teve de sustentar uma luta prolongada e
pertinaz.
Lá, todas as classes da sociedade sofriam da
exploração romana, mas cada uma tinha seu programa.
A propaganda de Lutero reuniu, a princípio, a cavalaria
em luta com os príncipes, o baixo clero e os camponeses
inimigos dos príncipes da Igreja e dos senhores, as
cidades em luta contra a aristocracia patrícia.
Lutero nasceu a 10 de novembro de 1483, de família
camponesa. Seu pai trabalhava nas minas. Lutero entrou
para a Universidade de Erfurt, em 1501 e ali levou uma
vida alegre entre os humanistas que então formavam
um meio avançado. Em 1505 entrou para o convento e
fez, como católico, sua peregrinação a Roma. Em 1509,
ensinou na Universidade de Wittenberg. Quando, em
1517, o legado do papa Leão X, Tetzel, começou a fazer
no Saxe seu comércio de indulgências, Lutero pregou às
portas da igreja de Wittenberg, suas 95 teses
condenando o comércio de indulgências. O protesto
levantado contra a Igreja romana era ainda tímido.
Lutero não denunciava mais do que os abusos. Em sua
21.a tese, dissera: “Os pregadores de indulgências
enganam-se, afirmando que a absolvição papai exonera
o homem de todo castigo”. A tese 27.ª dizia: “É absurdo
pretender que a alma voa do Purgatório desde que o
dinheiro cai no cofre”. O próprio Lutero ficou estupefato
com o efeito produzido por suas teses. Encontrou-se
dando impulso decisivo ao movimento que começara
antes dele e que arrastava todas as lasses da sociedade.
Três grupos sociais entraram na luta: conservadores
católicos, burgueses reformistas e plebe revolucionária.
Representando a tendência reformista burguesa, Lutero
pregou primeiro a extirpação, a ferro e a fogo, do mal
que devastava o mundo. Apelou à luta contra os
príncipes da Igreja e contra os príncipes seculares.
Porém, se pareceu de 1517 a 1522, disposto a entender-
se com as tendências democráticas, traiu, de 1522 a
1525, seus aliados camponeses e a pequena nobreza. Os
anabatistas de Zwickau e o movimento camponês
desempenharam papel decisivo nessa reviravolta de
Lutero. O levante da cavalaria, no outono de 1522,
desempenhou papel igualmente considerável.
Franz de Sickingen e Ulrico de Hutten se tinham
colocado à frente do movimento dos cavaleiros. O
primeiro foi seu chefe militar e o segundo seu ideólogo.
Seu ódio ao papa e aos príncipes e sua aspiração à
unidade da Alemanha fizeram deles os campeões da
burguesia alemã. Esse movimento da pequena nobreza
empobrecida era, no entretanto, àquela época de
desenvolvimento capitalista, um movimento reacionário.
Sickingen e Hutten sonhavam com a reconstrução do
Estado medieval, onde coubesse à nobreza exercer o
poder e dominar o imperador. De modo nenhum
sonhavam com a emancipação das cidades e dos
camponeses se bem que tivessem de solicitar o apoio de
ambos. Durante o verão de 1522, Franz de Sickingen
entrou em em campanha, à frente de um exército,
contra o “ninho de padres” de Treves. A coalisão dos
príncipes da Renânia e da Suábia infligiu-lhe uma
derrota. Numerosos castelos foram arruinados; inúmeros
cavaleiros pereceram. Lutero não apoiou o movimento.
Condenou-o e levantou-se contra ele como se tinha
erguido contra o movimento camponês.
Em seus primeiros escritos, onde os príncipes são
chamados de “maiores imbecis e tratantes mais
perversos” e em seus apelos à guerra dos camponeses,
Lutero tomara a defesa dos rebeldes. Assim escreveu:
“Não são os camponeses que contra vós se levantam,
senhores, é o próprio Deus que quer castigar vossos
crimes”. Naquele momento Lutero esperava que o
movimento o auxiliasse contra Roma. Porém quando, em
abril e em maio, os camponeses se insurgiram em todo
país, queimando e destruindo castelos, quando viu
nascer em diversos centros um movimento comunista
Lutero tomou a defesa dos príncipes contra os
camponeses sublevados. Explicou o levante como sendo
causado pela cupidez dos camponeses. Escreveu que
deviam “ser degolados como cães raivosos” e se jactou
depois da repressão, de ter “massacrado todos os
camponeses pois que tinha dado a ordem de matá-los”.
Disse ele: “Todo o seu sangue está sobre mim”.
Assim se selou a aliança entre Lutero e os príncipes.
Os príncipes enriquecidos com as terras do clero,
estavam satisfeitos. A Reforma lhes servira, assim como
aos mercadores das grandes cidades. Foi pela primeira
vez proclamado, na dieta de Espira, (1526), que o
súditos deviam professar a religião de seus príncipes.
Assim foi salva a situação dos príncipes que
abertamente se tinham aliado a Lutero. O serviço
católico foi, é bem verdade autorizado em 1529 e
interditado o confisco dos bens do clero católico em
território dos príncipes luteranos. Mas a minoria luterana
protestou contra essas decisões, dando origem ao nome
de protestantes. Em 1530, na dieta de Augsburgo, os
príncipes protestantes apresentaram ao imperador
Carlos V, seu credo, depois chamado de Confissão de
Augsburgo. Este se divide em duas partes: a primeira
expõe a nova doutrina da fé; a segunda denúncia os
abusos da Igreja romana e propõe reformas.
Lemos na Confissão de Augsburgo: “Repudiamos o
ensinamento segundo o qual o perdão dos pecados se
obtém, não pela lei, mas pelas boas ações. O Verbo
divino e o Santo Espírito, unicamente, podem conceder
essa graça. O poder temporal, não deve confundir-se
com o do papa. O poder espiritual deve pregar o
Evangelho, acabar com os mistérios e não mais intervir
nos negócios do poder temporal”.
A Confissão de Augsburgo estava longe de pôr termo à
luta. Não foi senão em setembro de 1555 que a dieta de
Augsburgo sancionou, pela paz religiosa, chamada de
Augsburgo, a decisão de 1526 sobre a obrigação dos
súditos professarem a religião de seus príncipes.
Estabeleceu-se, desse modo, que a Alemanha ficaria
dividida e submetida aos príncipes.
O luteranismo tomou-se a religião dos países
economicamente atrasados. Estendeu-se ao norte e ao
este da Alemanha, à Dinamarca e à Suécia. Os príncipes,
bispos e proprietários de terra tornaram-se, nesses
países, os protetores da Igreja luterana. Porém uma tal
Reforma parcial não teria vencido senão graças ao
movimento revolucionário dos camponeses, dos
cavaleiros e das cidades.

Joaquim de Floris (O Calabrês). Místico italiano do


século XII. Sua doutrina do Evangelho eterno é
conhecida pelo nome de “joaquinismo”. O Apocalipse,
nos ensina, segundo Joaquim, que o mundo atravessa
três épocas, ou “séculos”: o século do Pai, o século do
Filho e o século do Espírito Santo. O primeiro século é o
do Velho Testamento; é o reino do poder temporal, da lei
exterior e da carne; o segundo é o do clero branco e a
união dos interesses espirituais e carnais. É o século de
Joaquim da Calábria. O terceiro, cujo advento está
próximo, será o do triunfo do espírito sobre a carne e do
monarquismo. O Evangelho eterno será a lei do mundo.
Joaquim repelia a doutrina do resgate dos homens por
Cristo.
Era filho de um cidadão. Os horrores da peste levaram-
no a vestir o burel e a fundar o mosteiro de Floris.
Deixou um Comentário do Apocalipse e uma
Conciliação do Velho e do Novo Testamento. O
joaquinismo foi, ao fim de algumas décadas,
amaldiçoado por Roma e perseguido cruelmente.

Nicolau Storch, fabricante de tecidos de Zwickau,


onde se tornou notável por sua propaganda religiosa e
comunista e influenciou Tomás Münzer seu antecessor
que declarou que Storch tinha um conhecimento da
Bíblia “melhor que o dos padres”. Toda uma
comunidade, compreendendo 12 apóstolos, cedo se
formou em torno de Storch. Os adeptos deste último
atribuíram-lhe a revelação divina. Quando, a 16 de maio
de 1521, o Conselho de Zwickau chamou um novo
pregador, Nicolau Hausmann de Schneiberg, Storch
passou à oposição aberta. Foi expulso da cidade e
refugiou-se em Wittenberg, onde os “profetas de
Zwickau” contavam encontrar apoio perto de Karlstadt,
um dos velhos companheiros de luta de Lutero.
Porém tiveram de se refugiar no sul da Alemanha.
Storch pensava instituir o reino de Deus na terra. A
revelação divina lhe ensinara o verdadeiro caminho da
transformação social. Em 1522 estabeleceu-se na
Turíngia, e tornou-se um dos pioneiros e chefes da
guerra camponesa. Redigiu, com Tomás Münzer, Pfeiffer
e outros, o programa de reivindicações desse
movimento, as teses fundamentais que declaram que
tudo é de todos e que Deus criou o homem nu a fim de
fazê-lo senhor de tudo o que existe sobre a terra, águas
e céus. Também todas as autoridades espirituais e
temporais devem ser abolidas e seus representantes
depostos ou mortos. Todo homem tem direito de pregar
livremente a lei divina, uma vez que todo homem tem
uma vontade livre que lhe permite acolher o bem e
repelir o mal. Storch morreu em Munique em 1525.

Jorge Dosza foi o chefe do levante camponês no


século XVI, na Hungria. Naquela época, a luta entre os
senhores feudais estava longe de chegar a seu termo, na
Hungria. Pela morte do rei Matias Corvin (1430) que se
apoiava no povo e combatera com sucesso os feudais,
estes adquiriram novas forças e, sob a direção de
Ladislau Jagelão, aboliram todas as reformas de Matias
Corvin, particularmente o exército permanente. As
discórdias dos senhores feudais esgotaram a Hungria.
Em 1514, o papa proclamou uma nova guerra contra os
muçulmanos. Jorge, que se havia celebrizado lutando
contra os turcos, foi convidado a pôr-se à frente do
exército. Em 20 dias levantou um exército. Foi ele o
chefe militar desse exército que os padres Lourenço e
Barnabé sustentavam com suas prédicas. Os senhores
não deixavam os servos entrar voluntariamente em
campanha ao aproximar-se a época da ceifa: Terminaram
por exigir a volta dos servos à gleba. Dosza e os padres
pediram então ao povo que se levantasse. Os
camponeses ergueram-se, em toda a Hungria.
Sua situação, na Hungria daqueles tempos, não era
tão intolerável como nos outros países. Mas,
precisamente por serem mais livres, os camponeses
húngaros compreendiam melhor o peso da servidão. As
incessantes guerras contra os turcos arruinavam o país,
a população diminuía em proporções assustadoras. Os
camponeses tinham conseguido arrancar dos senhores
várias concessões. Aguerridos, sonharam com uma
emancipação completa. O baixo clero do campo
participava comumente do ódio do povo contra os
príncipes da Igreja e, como as populações das cidades,
juntou-se ao movimento camponês, não tardando,
porém, a traí-lo.
Os inspiradores do levante camponês (1514)
pregavam que os nobres deviam formar uma classe
criminosa culpada de haver avassalado o corpo e a alma
do camponês. Dosza ensinou aos camponeses a se
servirem das armas; convocou-os à rebelião em todo
país. Os senhores feudais ergueram-se contra ele, sob a
direção de João Zapolya e lograram, com o apoio das
cidades e dos nobres que antes se tinham aliado aos
camponeses, afogar em sangue a rebelião. Dosza
resistiu, por muito tempo, obstinadamente. Aboliu a
realeza e os privilégios e proclamou a república. Foi
vencido em Temesvar a despeito da simpatia das
massas camponesas. Morreu entre suplícios horrorosos:
assaram-no em um trono de ferro aquecido ao rubro,
com uma corôa de ferro, também incandescente e, nas
mãos, um cetro semelhante. Ao expirar gritou a seus
carrascos: “Cães!”. Mais de 60.000 camponeses
perderam a vida nos combates. Os senhores se reuniram
em dieta e conseguiram impor aos camponeses uma
submissão maior: a servidão foi declarada perpétua.

Guerra da Duas Rosas (1455-1485). Mal acabara a


Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra e as
tropas inglesas obrigadas a evacuar a França, quando
estourou, na Inglaterra, uma guerra que devia durar 30
anos, entre as dinastias de Lancaster e York. A primeira,
cujo brasão trazia uma rosa vermelha, representava os
interesses dos grandes senhores feudais do ducado de
Gales e do Norte, onde se encontravam seus domínios. A
dinastia de York, cujo brasão levava uma rosa branca,
apoiava-se no Sudoeste comerciante, na burguesia, nos
camponeses e na Câmara baixa. Essa guerra cruel devia
decidir se a Inglaterra seria uma monarquia absoluta,
sob a casa de York ou uma monarquia feudal sob a casa
de Lancaster.
A partir do século XIV, tinha-se efetuado a
concentração da propriedade territorial nas mãos de
pequeno número de famílias nobres. A Câmara dos Lords
não contava, no século XV, senão com um terço de seus
velhos membros. As famílias sobreviventes apropriavam-
se dos domínios das famílias extintas. Ao fim da guerra
dos Cem Anos as tropas foram licenciadas e formaram
bandos a serviço dos senhores feudais. A guerra foi
encarniçada. Na batalha de Northampton, (1460), York
aprisionou o rei e obteve da Câmara dos Lords o título de
Protetor do Estado e herdeiro do trono. O Exército da
Rosa Vermelha cedo infligiu-lhe uma derrota, mas seu
filho Eduardo entrou vitorioso em Londres. O exército de
Eduardo exerceu contra os nobres impiedosas
represálias. Após a batalha de Townston, 42 cavaleiros e
dois lords foram executados. A subida de Eduardo IV ao
trono, com a vitória da Rosa Branca abriu o período de
absolutismo. Eduardo IV não sonhou fazer-se eleger pelo
Parlamento inglês. Descartou-se de todos os senhores
feudais, mesmo daqueles que lhe estavam mais
próximos, que lhe resistiram (Veja-se a sua luta contra
Warwick, o “fazedor de reis”). Serviu-se de tropas
mercenárias contra os rebeldes feudais e suprimiu sem
contemplação os camponeses da casa de Lancaster.
Renunciou, para solidificar os resultados de suas vitórias,
às contribuições obrigatórias e pediu ao Parlamento, a
fim de assegurar o apoio dos camponeses, éditos contra
a desapropriação destes. O estabelecimento do
absolutismo na Inglaterra foi, consequentemente, um
dos resultados da Guerra das Duas Rosas.
Notas
1 - IV Congresso da Associação Operária Internacional
(1869).

2 - Palavra alemã significando derrocada, quebra.

3 - Órgão dirigido por W. Liebknecht, do “partido


operário social democrata”, fundado em 1869 e, diz
Éisenach, precursor do Vorwärts.

4 - Nas eleições para o primeiro Reichstag alemão


(1871) os operários socialistas obtiveram 102.000 votos;
em 1874, 352.000.

5 - O Código Penal do imperador Carlos V

6 - Século XIV. No Decameron descreve a confusão de


costumes que reinava entre padres e monges.

7 - De Quiliasmo (do grego kilos, mil): Crença dos


milenários, segundo a qual Jesus Cristo e os santos
deviam reinar mil anos sobre a terra.

8 - Ao asno, comida, carga e chibata.

9 - Trocadilho intraduzível; “Lügner”, mentiroso em


alemão. Evidentemente se refere a Lutero.

10 - Joãozinho da flauta.
11 - Capital do Cantão de Solothurn, na Suíça.

12 - Segundo domingo antes da Páscoa.

13 - Sabe-se hoje que Florian Geyer não morreu em


combate: foi assassinado numa emboscada em Rimpar,
perto de Wurtzburgo, por, ou a mando de seu cunhado,
Wilhelm de Grumbach, irmão de Barbara de Brumbach,
esposa do chefe rebelde. Esse Wilhelm de Grumbach
também teve fim trágico, sendo esquartejado a 17 de
abril de 1567 por haver mandado assassinar o bispo de
Wurtzburgo, Melchior Zobel.

14 - Monte da Batalha.

15 - O historiador burguês Engelhaff diz, na sua


História da Alemanha durante a Reforma (Berlim, 1903,
pág. 245): ‘‘As atrocidades que cometeram alguns
reacionários a quem faltava por completo o menor
sentimento humano, superaram dez vezes tudo o que
poderiam ter feito os insurretos... Estima-se em 130.000
o número de camponeses mortos”.
Table of Contents
Prefácio
Antelóquio
1. Situação Econômica e Estrutura Social da
Alemanha
2. Os Grandes Grupos da Oposição e suas Ideologias:
Lutero e Münzer
3. Os Movimentos de 1476-1517: Precursores da
Grande Guerra Camponesa
4. A Sublevação da Nobreza
5. A Guerra dos Camponeses na Suábia e Francônia
6. As Guerras dos Camponeses na Turíngia, Alsácia e
Áustria
7. As Consequências das Guerras Camponesas
Apêndice: Os Doze Artigos dos Camponeses
Lista de Personagens Históricos
Notas

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