Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Thoma Adriana Da Silva Entre Normais e Anormais - Compress
Thoma Adriana Da Silva Entre Normais e Anormais - Compress
1
Este texto foi escrito a partir de um dos capítulos, intitulado “Normalidade e anormalidade:
invenções que delimitam os limites da existência humana”, de minha Tese de Doutorado (THOMA,
2002).
2
Professora do Departamento de Educação da UNISC (Universidade de Santa Cruz do Sul);
pesquisadora do NUPPES/FACED/UFRGS (Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para
Surdos/ Faculdade de Educação/Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
é normal, etimologicamente – já que norma significa esquadro – aquilo que
não se inclina nem para a esquerda nem para a direita, portanto o que se
conserva num justo meio-termo; daí derivam dois sentidos: é normal aquilo
que é como deve ser; e é normal, no sentido mais usual da palavra, o que se
encontra na maior parte dos casos de uma espécie determinada ou o que
constitui a média ou o módulo de uma característica mensurável. (...) esse
termo é equívoco, designando ao mesmo tempo um fato e “um valor
atribuído a esse fato por aquele que fala, em virtude de um julgamento de
apreciação que ele adota”.
A norma, portanto, marca a existência de algo tomado como o ideal e que serve para
mostrar e demarcar aqueles que estão fora da curva da normalidade, no desvio que deve ser
corrigido e ajustado. A normalidade é uma invenção que tem como propósito delimitar os
limites da existência, a partir dos quais se estabelece quem são os anormais, os corpos
danificados e deficientes para os quais as práticas de normalização devem se voltar.
A alteridade deficiente é uma das alteridades que mais sofreu intervenções e para a
qual foram criados espaços de reclusão e investidos esforços de correção/normalização
desde vários séculos. Inúmeras vezes confundidos com loucos, os sujeitos deficientes foram
narrados e inventados para sustentar a normalidade dos não-deficientes.
O termo estatística surgiu no séc. XVIII, embora não sejam unânimes as teorias que
falam sobre a sua origem. Para alguns, foi o professor Godofredo Achenwall (1719-1772)
quem usou pela primeira vez o termo estatística – statistik (do grego statizein). Mas há
também quem diga que estatística tem origem na palavra estado (do latim status), uma vez
que este foi um termo largamente utilizado por políticos e pelo Estado.3
A estatística pode ser vista a partir de três fases distintas. Na primeira, que se
estende até o início do século XVII, ela servia par assuntos de Estado e se limitava a uma
3
Fonte: http://www.fortunecity.com/skyscraper/deschutes/745/id20.htm
simples técnica de contagem (traduzindo numericamente fatos ou fenômenos observados):
esta era a fase da Estatística Descritiva. Na segunda fase, denominada Estatística Analítica,
a estatística passa a servir como base para a análise dos fenômenos observados. A terceira
fase, denominada Estatística Aplicada, surge ao longo dos séc. XVIII e XIX e se estende
até hoje. Essa fase surge com o desenvolvimento da estatística, através da sua associação ao
cálculo das probabilidades. Também o uso da estatística na realização de trabalhos de
pesquisa científica nos campos da Botânica, Biologia, Meteorologia, Astronomia entre
outras, possibilitou o seu desenvolvimento. Assim, a estatística deixa de ser mera técnica de
contagem de fenômenos para se transformar num poderoso instrumento científico a serviço
dos diferentes ramos do saber.
Para Canguilhem,
Normal é o termo pelo qual o século XIX iria designar o protótipo escolar e
o estado de saúde orgânica. (...) Tanto a reforma hospitalar, como a
reforma pedagógica exprimem uma exigência de racionalização que se
manifesta também na política, como se manifesta na economia, sob a
influência de um maquinismo industrial nascente que levará, enfim, ao que
se chamou, desde então, normalização. (CANGUILHEM, 2002, p. 209-
210)
Na perspectiva de Foucault, a norma é “uma maneira de um grupo se dotar de uma
medida comum segundo um rigoroso princípio de auto-referência, sem recurso a nenhuma
exterioridade, quer seja a de uma idéia quer a de um objecto” (EWALD, 1993, p.108).
Temos hoje um conjunto de normas pedagógicas, psicológicas, sexuais etc, que são
vistas como naturais e que se impõem na descrição e nomeação dos corpos e mentes
anormais/deficientes. Porém, nesse conjunto de normas, identidades como as de raça,
gênero, etnia, nacionalidade e outras acabam muitas vezes sendo suprimidas, pois o foco de
atenção é o corpo que não ouve, não pensa ou não escuta de acordo com o esperado pela
norma.
Resumidamente, podemos dizer que normalizar nada mais é do que trazer o outro
para a minha eficiência. Ou, como diz Ewald (1993, p.103-104):
Os discursos são historicizados, como nos alerta Foucault e, por isso mesmo, não
encontraremos uma resposta verdadeira ou mais apropriada para nomear os sujeitos da
Educação Especial, a não ser em contextos históricos específicos. O discurso sobre os
sujeitos da educação especial, assim como qualquer outro, é marcado por descontinuidades
e rupturas, mas o que temos presenciado, na quase totalidade dos discursos que os
nomeiam, é uma espécie de domínio, de colonização e de fixação de seus corpos que
resultam em práticas de normalização cada vez mais refinadas.
A Educação Especial, nesse sentido, pode ser vista, antes de qualquer coisa, como
um conjunto de técnicas e de dispositivos de recuperação do corpo que não ouve, não vê,
não pensa ou não interage segundo a norma estabelecida. Como um campo marcadamente
normalizador, a educação especial não só absorve os sujeitos com “deficiências” ou com
“necessidades especiais” em suas práticas institucionais de educação e reabilitação, senão
que toma conta do universo da vida desses sujeitos: dita normas de comportamento e
práticas que devem ser assumidas pela família e pela sociedade em geral.
4
Essa discussão, no campo da educação especial, ainda é bastante limitada, mas algumas pesquisas
na área da educação de surdos em particular têm estado voltadas para o estudo das identidades,
entendendo os/as surdos/as como sujeitos multifacetados, nos quais a perda auditiva é um dos
recortes que os coloca como excluídos/as. Na contramão, aparecem versões mais aceitas e
divulgadas pelos discursos oficiais, a exemplo da Política Nacional de Educação Especial (1994)
discussão, Skliar (1999) propõe que a deficiência, de um modo geral, deva passar de um
simples entendimento biológico e ser problematizada epistemologicamente. Isso significa
inverter aquilo que foi construído como norma, como regime de verdade e como problema
habitual, ou seja, significa
vigente hoje no Brasil, que classifica os “deficientes auditivos” somente a partir dos traços
biológicos faltantes: [a surdez] “É a perda total ou parcial, congênita ou adquirida, da capacidade de
compreender a fala através do ouvido. Manifesta-se como: surdez leve/moderada (...) e surdez
severa/profunda (...). Os alunos portadores de deficiência auditiva necessitam de métodos, recursos
didáticos e equipamentos especiais para correção e desenvolvimento da fala e da linguagem [oral]”.
militância política. Os Disability Studies são um território crítico cujas raízes
metodológicas podem também ser encontradas no pensamento de Foucault, pois questiona
os investimentos disciplinares e normalizadores para as disabilitys, optando por
problematizar esses investimentos, em vez de tomá-los como naturais.
Os registros de que dispomos (SKLIAR, 1997; SÁ, 1999; LULKIN, 2000, entre
vários outros) falam na educação de surdos iniciando com as primeiras tentativas de educar
crianças surdas de famílias nobres, para que essas pudessem se tornar legítimas herdeiras.
Em geral, os filhos “defeituosos” de famílias nobres eram retirados da visão pública pela
vergonha que lhes causavam, pois eram considerados resultados das depravações ou
pecados cometidos por seus pais. As primeiras tentativas educacionais com crianças surdas
5
Trecho extraído do texto “Educação de surdos-mudos”, do livro: Actas e Pareceres do Congresso
da Instrucção do Rio de Janeiro, de 1884.
na Espanha, assim como na França, ocorreram de forma individual, frente à necessidade de
tornar legítimo herdeiro o “anormal” destituído dessa condição por um defeito que deveria
ser corrigido.
A educação dos surdos no Brasil foi fortemente influenciada por um professor surdo
francês, que veio ao país em 1857 a convite de D. Pedro II. Eduard Huet cria, neste mesmo
6
O método oral consiste em treinar as crianças surdas para que estas conseguissem imitar a
articulação dos sons. Essa imitação era conseguida através da percepção vibratória dos sons pelas
crianças, em exercícios fono-articulatórios intensos.
ano, o Instituto Nacional dos Surdos-Mudos – INSM e começa suas atividades em uma sala
do Colégio Wassiman (centro da cidade do Rio de Janeiro), atendendo duas crianças
surdas. O atendimento deste Instituto priorizou a educação oralista durante um longo
período, por acreditar que era inútil tentar ensinar os surdos a escrever, já que o
analfabetismo era condição da maioria da população brasileira. Por isso, a fala era o único
modo pelo qual os surdos/as poderiam integrar-se na sociedade e no mercado de trabalho.
Hoje, o INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos) é uma instituição pertencente ao
governo federal e, desde 1996, com a Lei 9394/96, há uma forte tendência de o Instituto
passar de Centro Educacional a Centro de Pesquisa, uma vez que se pretende que os
surdos/as sejam, aos poucos, inseridos no ensino regular. Entretanto, a proposta de
educação inclusiva presente nessa Lei parece desconsiderar o fato de que cada uma das
categorias pertencentes à chamada Educação Especial exige um tipo de estrutura. No caso
dos surdos, sabemos que a única forma viável de integração é através da contratação de
intérpretes para cada sala de aula onde houver um estudante surdo, implicando, portanto,
em despesas para com recursos humanos.
Para Lulkin (2000), o pensamento moderno do século XIX entendia a surdez como
uma condição de natureza animal e, portanto, o surdo era visto como prejudicado
mentalmente, inferior e passível de uma educação limitada. França e Inglaterra, entretanto,
não compartilhavam das mesmas idéias em relação aos surdos: na Inglaterra, a gestualidade
era considerada um desvio e a virilidade do povo inglês era aclamada; já na França, a
gestualidade era apreciada pela Academia. Para as artes visuais a gestualidade era vista
como imagem de evolução, cultura e refinamento. Mas ao final do século XIX, as
instituições que permitiam o uso da gestualidade como forma de expressão e comunicação
dos surdos, passam a proibi-la, assim como a presença de professores surdos adultos. Cria-
se um projeto de erradicação da língua de sinais e de seus remanescentes culturais na
educação, justificado biologicamente pelo inspetor-geral dos serviços administrativos do
Ministério do Interior da França:
Todo mundo sabe que os surdos-mudos são seres inferiores sob todos os
aspectos (...). Pois o surdo, semelhante ao homo aladus, o homem sem
palavra dos tempos pré-históricos, mais para trás ainda já que ele não
escuta, passa entre seus semelhantes, para ele percebido como sombras,
sem escutá-los, sem compreendê-los: tudo que é humano lhe permanece
estranho. (...) deve haver uma pré-disposição especial: a hereditariedade,
disso não há dúvida, domina e dirige toda biologia. Não se trata de
estabelecer uma comparação entre os criminosos e os surdos-mudos, mas,
com efeito, em todos os casos dessa ordem, a degenerescência hereditária é
o fator dominante (GRÉMION apud LULKIN, 2000, p.70).
Porém, muitos surdos e surdas desejam o nascimento de filhos na mesma condição,
provavelmente pelo fato de poderem educá-los em sua própria língua e perpetuá-la, assim
como pela possibilidade de transmitirem a(s) chamada(s) cultura(s) surda(s) a eles/as.
7
No mesmo exemplar é relatado o enterro da Princesa, o qual foi assistido por milhões de pessoas
pela televisão e legendado ao vivo. Entre os convidados para a cerimônia estavam dez pessoas
surdas. Desde 1983, quando Diana se casou com o príncipe Charles, tornou-se patronesse da British
Deaf Association (BDF). O mais antigo caso de surdez na família real britânica data de 1273, com o
nascimento da princesa Katherine, filha do rei Henrique VIII, falecida aos quatro anos de idade. Na
família real, Diana soube que a princesa Alice, bisavó de seus filhos William e Harry, era surda,
assim como a rainha consorte Alexandria (tia de Alice). A rainha Vitória dominava a Língua de
Sinais e, em dois anos, Diana também aprendeu a língua dos surdos britânicos através de aulas
particulares. Algumas semanas antes do seu acidente fatal, a princesa conheceu Karin Al Fayed,
surdo de 14 anos, irmão de seu namorado Dodi Al Fayed, com o qual utilizava a Língua de Sinais.
1000, bem como a formação de mais de 200 intérpretes de BSL em nível superior e o
atendimento a cerca de 20.000 crianças surdas em idade escolar que recebem aulas de BSL.
Nos Estados Unidos, no ano de 1851, 16% dos professores de escolas públicas
norte-americanas para surdos eram surdos; em 1858, 40,8%; em 1870, 42,5%. As primeiras
escolas para surdos na América Latina são fundadas entre 1821 e 1885 (REIS e RAMOS
apud SÁ, 1999, p.73).
Quando falamos na inclusão de outros grupos, como por exemplo no caso dos
cegos, as exigências são, além de atitudinais, de ordem material (compra de impressoras
em Braille e outras) ou, para os deficientes físicos, a construção de acessos (rampas,
elevadores, ônibus etc) e a derrubada das barreiras arquitetônicas. Com os surdos,
entretanto, ainda se espera que muitos possam fazer leitura labial e se comunicar através da
fala. Temos nos perguntado se não seria, neste sentido, a proposta de inclusão para os
surdos um retorno ao oralismo.
Porém, é preciso que avancemos ainda mais nas formas como os surdos são
inventados e representados e busquemos novas maneiras de entender a surdez e os surdos a
partir da diferença, a qual se constitui segundo relações hierárquicas e assimétricas de
poder e não mais da diversidade, que se refere a uma pluralidade de identidades e é vista
como uma condição da existência humana (SCOTT apud SKLIAR, 1999, p.22), pois esse
entendimento permite a invenção de totalidades fixas, inalteradas e totalizadas, não
fragmentadas.
FOUCAULT, Michel. Tecnologias del yo y otros textos afines. Barcelona: Paidós Ibérica,
S. 4, 1990.
______. Os anormais: curso no Collège de France (1974 – 1975). São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
MITCHELL, David T. and SNYDER, Sharon L. (Eds). The body and physical difference.
University of Michigan Press, 1997.
SÁ, Nídia Regina Limeira de. Educação de surdos: a caminho do bilingüismo. Niterói:
EDUFF, 1999.
Documentos eletrônicos