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Luísa Leal de Faria

SOCIEDADE E CULTURA INGLESAS

Universidade Aberta
UNIVERSIDADE ABERTA
1996
Serviços de Documentação
Nº .A�Oo2..(o -
cu A
• \_JCC• O-
4. A Inglaterra Medieval - séculos XIV e XV
Sumário

O presente capítulo reflecte sobre a sociedade e a cultura inglesas no final


da Idade Média. As mudanças nos planos político, económico, social e
cultural agora observadas deverão clarificar um processo de mudança que
anuncia a formação da modernidade. O capítulo apresenta os seguintes
conteúdos:

• O contexto político e social da Inglaterra nos século XIV e XV.

• As campanhas na Irlanda e na Escócia; as campanhas em França; as


lutas internas.

• A Guerra das Rosas: os conflitos que opõem as casas de Lancaster


e de York.

• As relações sociais e a organização económica.

• As perturbações religiosas: misticismo e lolardia.

• Indícios da formação da nacionalidade: a língua, a literatura, as


artes.

99
4.1 O contexto político-social

Os séculos XIV e XV evidenciam já alguns dos traços que iriam mais tarde
caracterizar novas formas de organização política e económica, novos
modos de ver o mundo, novas expressões estéticas.

Politicamente, o período entre 1290 e 1490, em Inglaterra, é marcado por


uma sucessão de guerras e conflitos, externos e internos:

internamente, os soberanos ingleses procuram o domínio territorial


sobre o País de Gales, a Escócia e a Irlanda, e dilaceram-se em terrí
veis conflitos sucessórias;

externamente, 1utam pela conservação dos seus territórios em


França, ameaçados por idênticas pretensões de consolidação
territorial pelos soberanos franceses, gerando-se, pouco a pouco, um
maior sentido de identidade nacional.

A composição do tecido social altera-se:

regista-se o alargamento da classe dos mercadores e profissionais


liberais, e de novos proprietários de terras;

correspondendo à emergência de uma nova classe social, também a


riqueza se redistribuía e a sua produção se alterava.

Um novo espirita crítico relativamente às instituições religiosas induzia, tam


bém, mudanças:

promovia o aparecimento de heresias;


,,
proporcionava um maior sentido de individualismo, que se expres
sava quer em misticismo quer em novas representações estéticas tes
temunhadas por uma humanização das figuras de culto.

O rei e a corte, com a família e a casa real no centro, continuavam a ser o


fulcro da política e do governo britânicos, e a relação estabelecida entre o
rei eos seus barões, ou com os já influentes mercadores, cavaleiros e proprietários
rurais, bispos e funcionários talentosos era crucial, quer para a política, quer
para o governo. Também as relações de família ou kin.ship estruturavam ainda
a sociedade e os comportamentos individuais e sociais. Mas a relativa
estabilidade de uma sociedade pouco sujeita a pressões de mudança
económica, social ou cultural foi durante dois séculos perturbada pelas guerras
internas e externas, que funcionaram como cataiisadores de mudanças sociais,
desenvolvimento constitucional e conflito político, que de outro modo
teriam certamente sido mais lentos.

101
Eduardo I ( 1227-1307) procurou afirmar a soberania inglesa sobre o País
de Gales, primeiro, e sobre a Escócia depois. Em 1301 tinha já conquistado
metade do País de Gales e estabelecido um principado, conferido ao seu
filho mais velho, o primeiro Príncipe de Gales nascido em Inglaterra. Na
Escócia, Eduardo I procurou desenvolver uma espécie de Protectorado,
apro veitando uma crise sucessória. Mas a subordinação da Escócia à
coroa
inglesa não iria processar-se pacificamente, nem constitucionalmente. Os
conflitos com os escoceses prolongaram-se ao longo do século XIV, cru
zando-se com idênticos problemas de soberania na Irlanda, onde a explora
ção de recursos por Eduardo I enfraquecera de tal modo a região e criara
tal hostilidade ao regime inglês, que os irlandeses viram com alívio uma
sobe rania escocesa, por esta se opor à inglesa.

No continente, os problemas giravam em torno do território da Gasconha,


onde os reis ingleses, como Duques da Aquitânia, deviam vassalagem ao
rei de França. Aí gerara-se uma situação de fricção, pontuada por pequenos
conflitos, escaramuças e conferências de paz, agravadas pelo apoio que a
França dava à Escócia contra a Inglaterra. Mas a guerra, propriamente dita,
entre a Inglaterra e a França só começaria em 1337, e iria durar mais de
um século, ficando conhecida como a Guerra dos Cem Anos.

As guerras dentro das Ilhas Britânicas impulsionaram mudanças de tácticas


militares e uma relativa «modernização» dos exércitos, o que produziu resul
tados notáveis nas vitórias de Crecy e de Poitiers. Pouco a pouco a Ingla
terra foi abandonando o modelo do exército feudal, que foi substituindo por
forças pagas, recrutadas por capitães in.dentured, que tornaram os novos
exércitos mais disciplinados e flexíveis do que as forças francesas. Mas os
custos da guerra eram extremamente elevados, não só financeiramente, obri
gando ao levantamento de novos impostos, mas também socialmente, tradu
zindo-se na interrupção das actividades produtivas por parte de milhares de
ingleses, galeses e irlandeses, recrutados para os exércitos. Também o
comércio da lã inglesa e do vinho da Gasconha sofreram sérios reveses.
d
Porém. não pode deixar de constatar-se que o esforço da guerra em França,

prosseguido ao longo de décadas, não gerou instabilidade política ou social


r dentro da própria Inglaterra. que conseguiu simultaneamente defender a fron C

c
teira com a Escócia, manter a paz no País de Gales e evitar revoltas na
Irlanda. Estes feitos ficarão a dever-se à inspiração, exemplo e liderança de
ç
Eduardo III e do seu filho, o Príncipe Negro, que personifi"cavam as virtudes
d
da cavalaria queridas à nobreza e admiradas pela sociedade em geral, que
Jean Froissart elogiou rasgadamente nos seus registos dos feitos de cavala A
LI
' Rnlph A. Griffi1hs. «Thc ria mais notáveis do seu tempo, comparando Eduardo III ao rei Artur'.
Ln1cr Middlc Agcs ( 1290- te
-1-185)». in The Oxford
A nível político interno este período. entre 1290 e 1390, foi marcado por e
H1.<1ory o{ Briwi,1. vol. 11.
The i\fidd/e Ages. pp. 82- alguns acontecimentos que se torna indispensável registar por definirem o at
83.

102
_·_tdas relações entre o rei e os seus magnatas, indicando uma progressiva
:_,"terioração das relações pessoais que estruturavam o exercício do poder
·:·_. Poderá constatar-se o recurso, por parte dos nobres, a instrumentos Ie
·':'·s e constitucionais para fazer frente à vontade contrária do rei. Em 1297 e
:soo os nobres invocaram a Magna Carta para se insurgirem contra impos
.flevantados sem o consentimento do contribuinte. Em 1308 o novo rei,
i•;

j1ardo II, foi forçado a um juramento, na sua coroação, que o obrigava a


·:peitar as leis e os costumes ingleses. Em 1311 foram proclamadas orde
'; -ças que visavam limitar o poder do rei, e que foram anunciadas no Parla
":ento. Em 1326-1327 a deposição do rei constituiu um facto sem preceden
;: ,na história da Inglaterra, e a responsabilidade da decisão foi partilhada
;.lb Parlamento.

_as o sucessor de Eduardo II, Eduardo III, será também confrontado com o
,: contentamento dos nobres, dos mercadores e dos Comuns no Parlamento,
_:_ sformado agora no forum onde se processavam os pedidos reais de lan
:\unento de impostos (1339-1343). Nos anos setenta novas crises abalaram
''i,itegime de Eduardo III, quando os Comuns no Parlamento começaram a
pestionar a honestidade e competência dos conselheiros do rei, levando à
'.:- posição de ministros membros do clero. No chamado Good Parliament
:J 1376 os ministros ditos corruptos foram acusados e julgados pelos
,;,,

, amuns diante dos Lords, num procedimento que veio a permitir que, no
_··Juro, os detentores de posições de privilégio e responsabilidade pudes
'. mserpublicamente responsabilizados pelas suas acções- oimpeachment.

::cardo II, filho do Príncipe Negro, sucedeu a Eduardo III, em 1377.


}imenoridade do rei, com 1O anos de idade, pôs problemas de governação,
(_., e tiveram alguma influência na Revolta dos Camponeses, em 1381. Entre
,razões de descontentamento dos camponeses avulta, sem dúvida, o lança
·<"::ento de um poli tax destinado a financiar a guerra contra a França. Mas
).:uitos outros aspectos devem ser tidos em conta, uns de índole religiosa, de
,escontentamento relativamente à Igreja, outros de natureza social, de res
;:otimento contra a política de repressão seguida pelos proprietários de ter
_,.. a seguir à Peste Negra. A Revolta, que alastrou em áreas tão distantes
: amo o Hampshire e a fronteira escocesa, Wirral e Norfolk, acabou por ser
#ontida em Londres, onde o jovem rei concedeu perdões e alvarás de liberta
'.çioda servidão, posteriormente revogados pelo Parlamento, com o pretexto
;4 que teriam sido emitidos sob coacção.
!; •Revolta dos Camponeses foi interpretada por alguns historiadores como
_}tml movimento de libertação, precursor de movimentos reivindicativos pos
J riores, tendo decisivamente contribuído para o fim do regime de servidão
:Im Inglaterra. Outros historiadores, porém, verificam um endurecimento da
(Jtitude dos proprietários fundiários após a Revolta, que terá levado, pelo

103
contrário, ao adiamento da libertação dos sevos. Importa notar que a
autori dade do rei começava a ser questionada pelos nobres, num
crescendo de conflitos que culminaria em 1388 no Meciless Parliament,
em que o rei foi forçado a submeter-se a uma facção de Lords,
precipitando o país numa nova crise política e constitucional.

Os esforços posteriormente desenvolvidos pelo rei, no sentido de acabar


a guerra com a França e restaurar a sua autoridade em Inglaterra, levaram
ao seu casamento com Isabella, filha de Carlos VI, rei de França, e à
aliança com o Papa em Roma, Bonifácio IX. Porém, as alianças
continentais não impediram a continuação de um estado de permanente
rivalidade entre facções em Inglaterra, o que proporcionou condições
favoráveis a Henry Bolingbroke, filho de John of Gaunt (por sua vez
terceiro filho ele Eduardo III), para tomar o poder pela força em 1399 e,
ao que tudo indica, mandar executar o rei, prisioneiro no castelo de
Pontefract, em 1400.

4.2 A Guerra das Rosas

As casas de Lancaster e ele York, que entre si lutaram pela coroa inglesa no
conflito que ficou conhecido como a Guerra elas Rosas, continuaram a
enfren tar a guerra com a França e a instabilidade interna, gerada pela guerra
civile pelas dificuldades em manter as pretensões de governo sobre Gales, a
Escó cia e a Irlanda. No século XV os sucessivos governos da Inglaterra
iriam cessar as tentativas de manutenção de um overlordship na Escócia,
e veriam enfraquecer o seu domínio sobre a Irlanda, onde prevalecia o poder
dos magnatas locais, como os condes de Ormond ou Kildare. No País de
Gales a paz e o reéonhecimento da soberania inglesa eram também difíceis
de man ter, sendo sempre temida uma revolta galesa, à semelhança da que,
em 1400, foi chefiada por Owain Glyndwr. O descontentamento no País de
Gales po deria, em consequência ela proximidade geográfica e da facilidade
de acesso por mar, tornar o território inglês vulnerável aos seus inimigos
continentais.

A consolidação de Bolingbroke no poder foi conseguida através do esmaga


mento de revoltas internas, nomeadamente a do País de Gales, que mobiliza
vam necessariamente os nobres que lhe eram favoráveis contra aqueles
que defendiam Ricardo II ou os seus potenciais herdeiros. Estes eram os descen
dentes do segundo filho de Henrique III. Lionel, e representavam as
preten sões rivais ao trono. Mas Henrique IV, Bolingbroke, conseguiu
também governar com o apoio do Parlamento sem abdicar dos seus
poderes reais.

É importante lembrar que competia ao rei o direito e o dever de governar o


reino. Na sequência de um princípio tradicional, antigo e forte, o rei deveria
10-l
n governar segundo a lei divina, a lei natural (ou seja, com equidade), e segundo
de as leis do reino. Mas era, ao mesmo tempo, reconhecido ao rei o direito de
=oi anular ou suspender o exercício da lei em casos especiais ou de necessidade.
na E os reis da casa de Lancaster, tendo fundado a sua dinastia num claro acto
de usurpação, e sabendo-se permanentemente ameaçados por actos idênticos,
necessitavam em absoluto do apoio dos poderes existentes, sobretudo dos
r a grandes magnatas. Estes, por seu lado, consideravam-se os dirigentes
ao naturais dasociedade e, em consequência desta doutrina constitucional, os
iça conselhei ros naturais do rei. O seu poder territorial era crucial para a
ião manutenção da paz e o bom governo de reino, sendo como tal reconhecido e
tre tratado por Henrique IV.
nry
rdo Numa hierarquia que se desdobrava em barões, viscondes, condes,
dar marqueses e duques, os magnatas britânicos tornaram-se, no século XV,
num grupo social hereditário e estritamente definido, que coincidia
praticamente com o conjunto de pares que tinha assento na Câmara dos
Lords. Esta grande nobreza não contaria mais de sessenta famílias, e talvez
metade desse número depois dedécadas de guerra civil, mas era dela que
dependia o controle das províncias inglesas2. : Ralph A. Griffiths. «Thc
Latcr Middlc Ages». in Tlte
Oxford His1111T of E11gla11d,
Se os interesses do rei estavam intimamente ligados aos dos nobres, os vol. li. Tlte Middle Ages,
1 no destes estavam relacionados com os dagentry: entre seis mil e nove mil p. 105.
ren
gentlemen, esquires, e cavaleiros, que desejavam a protecção e senhorio
vil dos magnatas e que, em troca, ofereciam serviços fiéis. Os magnatas davam
e
gratificações, terras e lugaEes, e agentry clava conselhos, apoio e ajuda
scó
militar. Também os burgos e os seus habitantes faziam parte desta relação de
·iam
interesse e serviço mútuo, a que alguns historiadores chamaram
riam «feudalismo bastardo».
dos
lesa Henrique IV legou ao seu sucessor, Henrique V, um reino pacificado e um
nan- trono reconhecido externamente através ele alianças estabelecidas com a
400, Alemanha, a Escandinávia, a Bretanha e a Flandres Borgonhesa. Estas
s po con dições favoreceram o retomar das campanhas em França, que
:esso Henrique V liderou entre 1415 e 1420, conseguindo a vitória de
Agincourt (1415), e
1tais. procedendo depois à conquista da Normandia. Em 1420 o Tratado de Troyes,
firmado com Charles VI, fez dele regente da França e herdeiro do trono de
1aga Valais. A sua morte, em 1422, impediu Henrique V de subir ao trono de
iliza França, mas o seu filho, Henrique VI herdou a monarquia dupla. As forças
s que inglesas conseguiram ainda as vitórias de Cravant (1423) e Verneuil (
scen 1424).
.-eten
nbém Mas a sorte mudaria com a coroação de Charles VII em Rheims (1429), e
reais. com um novo fôlego adquirido pelos exércitos franceses com a inspiração
de Joana D' Are. A Normandia seria perdida em 1450 e a Gasconha em
rnaro 1453. DoImpério de Henrique V restava apenas Calais, que viria a ser
everia perdido sob o reinado de Mary Tudor, no século XVI. Henrique VI seria
confrontado com estas derrotas pelos nobres, descontentes com a perda
dos seus territó-

105
rios em França, e pelo povo, liderado por um obscuro John ou Jack Cade,
que em 1450 tomou a cidade de Londres durante alguns dias e denunciou a
incompetência e a opressão financeira imposta pelos ministros do rei.

Ao descontentamenlogeral veio acrescentar-se um problema de governação,


decorrente de um colapso físico e mental do rei, que abriu novas expectativas
às pretensões da casa de York à coroa. Nem mesmo o nascimento de um
filho de Henrique VI, em 1453, foi suficiente para estabilizar uma
siluação de grande tensão, agravada pela feroz hostilidade da raínha
contra a família de York e os seus apoiantes. As tensões degeneraram nas
batalhas de Biore Heath e Ludford Bridge e na condenação do Duque de
York no Parlamento de Conventry. Finalmente, em Março de 1461, o
novo Duque de York, Eduardo, com o auxílio do Duque de Warwick,
conquistaria a coroa.
O estabelecimento da dinastia de York não foi pacífico. O rei deposto, a
rainha e o filho continuavam vivos, polarizando descontentamentos e
pro p
porcionando novas alianças. Eduardo IV acabaria por ser deposto e Henrique
s
VI reinstaurado. Mas também Eduardo IV continuava vivo e disposto a
recuperar a coroa, o que finalmente conseguiu com a vitória obtida em e
Tewkesbury, em 1471. A rainha Margaret, mulher de Henrique VI foi feita
prisioneira, o seu filho morto na batalha e Henrique VI morreria, na Torre de
t
Londres, na mesma noite em que o triunfante Eduardo IV regressava a Lon
f
dres. Ficara assim extinta a principal linha de Lencastre.
r

Mas a sorte da casa de York não seria duradoura: embora os últimos anos do

é
governo de Eduardo IV tenham sido relativamente tranquilos, a sua suces
são caberia de novo a um menor, o seu filho Eduardo V, que não chegaria a A
ser coroado. Num país dividido por pretensões rivais, apoiadas pelos gran u
c
des magnates o Duque de Goucester encontrou a oportunidade de usurpar a
c
coroa ao seu sobrinho, que terá mandado executar juntamente com o irmão,
tendo finalmente subido ao trono com o nome de Ricardo III. m

m
A Guerra das Rosas chegaria ao fim com a vitória de Henrique Tudor, conde V
de Richmond, sobre Ricardo III na batalha de Bosworth, em 1485. Mais e
uma vez a coroa seria conquistada por um pretendente com um direito cr
remoto ao trono. Mas Henrique VII tomaria medidas para garantir, não ape p
nas uma sucessão legítima, mas Lambém o fortalecimento de um governo
li
que tenderia já a assumir as características modernas de consolidação do rn
Estado e da Nação. re
11
as

4.3 As relações sociais e a religião o


vi
A instabilidade política da Inglaterra dos séculos XIV e XV foi acompa

Ju
nhada por um conjunto de mudanças nos planos económico, social, reli- ce

106
''ioso e cultural que indicam uma progressiva tendência para a indi
·:idualização e o consequente rompimento das relações feudais do kinship.
·-: :J:govemo da Inglaterra adquiriu, pouco a pouco, as práticas e as rotinas
--- 'nistrativas que lhe permitiam acção eficaz no levantamento regular de
- postos, na cobrança de taxas alfandegárias, nas questões práticas da
·.erra, na manutenção da lei e da ordem internas. O governo tornou-se coor
çnado, concentrado e sedentário, e Londres e Westminster transformaram
: nos grandes centros administrativos, comerciais e culturais do reino.
)Parlamento começou a reunir com regularidade, a ter funções próprias,
ocedimentos regulamentados e representação permanente dos comuns a
,- ·r de 1337.
/,
J>s planos económico e social, assistiu-se ao gradual desaparecimento do
·, nor feudal, à medida que os serviços eram comutados em dinheiro.
,.._este Negra, em meados do século XIV, ao dizimar cerca de um terço da
;> pulação da Inglaterra, contribuiu também para a alteração das relações
i'*eiais e para o desaparecimento gradual da servidão rural: a escassez de
"'"o-de-obra terá levado ao recurso do trabalho pago, e ao progressivo
,·belecimento de uma classe intermédia, de pequenos proprietários e de
·oalhadores livres, que começaram a colmatar a imensa distância social do
dalismo, entre os proprietários e os vilões. O yeoman independente,
'ltivamente próspero, bem humorado e excelente archeiro tornou-se um
'itivo constante nas baladas inglesas desde a Guerra dos Cem Anos até à
bca Stuart3. 1
G. M. Trevelyan. E111-:lish
,,' Social History: A S111Tey of
J ndência para a progressiva libertação dos servos e para o crescimento de Six Ce11t11ries. Chaucer
to Queen Victoria,
):,classe intermédia de pequenos proprietários livres, para a qual as expli Harmonds worth, Penguin.
••,ij_es populacional e económica iluminam apenas um segmento de um pro 1967, p. 24.

. o mais complexo, foi acompanhada por um crescendo de descontenta


·:_Jo com os procedimentos da Igreja e por'°'uma alteração nos comporta
·ntos relacionados com a religião. Indicadores como a arte - imagens da
/gem com o Menino ao colo, olhando para Ele, ou de Cristo crucificado
_(expressão de sofrimento, por exemplo - apontam para uma importância
):.pente do indivíduo no século XIV. A procura de formas de devoção mais
'soais, de modos de imitação de Cristo, de regresso a uma pureza apostó
·,e a uma Igreja mais despojada de bens materiais indicam um espírito de
,-U.ança que, embora tivessem sido já sentido em períodos anteriores de
:,
.ama religiosa, nomeadamente com a criação de ordens como a de Cister
?século XII, ou Franciscana no século XIII, são agora dificilmente
._,._'láveis, criando tensões e conflitos.

!flisticismo do século XIV é outro indicador desta tendência para uma


eia religiosa mais pessoal, que tem em Richard Rolle, Walter Hilton ou
)na de Norwich uma expressão escrita, apelando a um público cres
·,temente letrado, a quem se recomenda a vida contemplativa. Também

107
entre os leigos surgem expressões de misticismo, como no Book
ofMargery Kempe, a autobiografia espiritual de uma burguesa de Lynn, que
exemplifica as virtudes que os leigos - homens e mulheres - devem
procurar, e as revelações, visões e êxtases através dos quais as alcançarão. O
duque de Lencastre, Henry, escreveu em 1354 um livro de devoção em
francês, e a mãe de Henrique VII, Margaret Beaufort dedicou-se a uma
intensa vida espiritual, talvez como reacção à aridez das discussões e
debates teológicos dos scholars.

Embora não integrado na Igreja institucional, o misticismo é ortodoxo. Mas


o século XIV assistiria ao nascimento de um movimento muito mais radical
do que as expressões individuais do misticismo, o dos Lollards, inspirados
por Wycliffe, que abertamente questionaram a autoridade da Igreja e preco
nizaram a cisão com ela. A Lolardia foi considerada herética e os
seguidores de Wycliffe foram perseguidos e condenados.

Este movimento teve, porém, um importante significado, também ele indi- 1

cador da mudança dos tempos: foi um movimento tipicamente inglês, que


inspirou uma série de textos polémicos escritos em vernáculo, bem como a
primeira tradução completa da Bíblia em 1396. Wycliffe apelava ao espírito
anticlerical da época, criticando a riqueza da Igreja e a mediocridade de muitos
dos membros do clero. É também um sinal dos tempos o facto de as posições
de Wycliffe terem começado por inspirar simpatia entre a grande nobreza,
incluindo John of Gaunt, a quem o professor de Oxford terá ficado a dever
uma protecção que lhe poupou uma condenação por heresia, que poderia
chegar a ser a fogueira. Porém, o afastamento de Wycliffe do seu posto em
Oxford, bem como o afastamento dos seus seguidores mais próximos, trans
formaram a Lolardia num movimento de revolta, ameaçador da ordem pú
blica, que em breve se desorganizou e foi alvo de perseguição, mantendo-se
apenas entre pequenas comunidades de artesãos e sacerdotes pobres, nas
regiões fronteiras com o País de Gales e nalgumas cidades do centro da
Inglaterra.

A extinção da Lolardia no século XIV não aniquilou, porém, alguns dos


princípios fundamentais que, mais tarde, animariam a Reforma e o
purita nismo: uma hostilidade básica relativamente à autoridade
eclesiástica, uma devoção centrada exclusivamente nas Sagradas Escrituras, a
confiança numa Bíblia em inglês.

O misticismo e o movimentoLollard configuram já uma progressiva


«nacio nalização» da Igreja inglesa. Nos finais da Idade Média, a Igreja era
Cató lica, e nessa medida partilhava a universalidade da Fé e da doutrina de
Roma. No entanto, em Inglaterra. a dimensão institucional da Igreja radicava
pro fundamente na experiência e nas tradições especificamente britânicas,
que estruturavam as leis do estado e articulavam estreitamente a dimensão
mate- '

l08
'éâal e terrena da Igreja com a vida e os hábitos das popu]ações. No século
·xiv os monarcas ingleses começaram, inclusivamente, a adoptar
medidas 1,que, claramente, limitavam a jurisdição da Santa Sé em alguns
assuntos ecle
;:siásticos.

U partir do reinado de Eduardo I foram tomadas medidas que impediam o


..l vantamento de impostos pelo Papa, a que se seguiram limitações impostas
1
'.,opoder de nomeação bispos ou outros dignatários do clero, detido pelo
:,-,apa. O Cisma da Igreja Católica, que colocou um Papa em Roma e outro
: mAvignon (1378-1417), ofereceu circunstâncias favoráveis à promulgação
:,ªe estatutos antipapais, que garantiam ao rei a iniciativa da nomeação dos
bispos. Como resultado destas medidas, verificar-se-ia um número muito
• equeno de nomeações de estrangeiros na hierarquia eclesiástica em
·.,glaterra, no século XV.

Indícios da formação da nacionalidade

.)ros fenómenos sócio-culturais vão ocorrendo ao longo do tempo, sem


ye seja possível determinar com precisão datas ou acontecimentos com
.Ies relacionados, mas que indicam uma progressiva «nacionalização» de
·:.•itos, costumes e práticas sociais. O primeiro indicador importante é o
·odo inglês, em detrimento do francês e do latim, como língua de debate
.:'lítico, no Parlamento (o primeiro registo escrito data de 1362) e como
,:gua de registo oficial, em testamentos (1387) ou escrituras de proprieda-
• (1376). O uso do inglês num crescente leque de actividades poderá ter
_erentes motivos, entre eles o desenvolvill)ento de um sentido de
naciona '-de que se reforça como reacção à longa guerra com a França,
o próprio
,,vimento lollard que se apoia em textos de devoção em inglês, uma maior
":Jcipação da sociedade em geral nos assuntos políticos, nomeadamente
·s.debates parlamentares, ou o próprio uso do inglês pelo rei e pela corte.

ultaneamente pode observar-se alguma expansão da instrução básica,


ndida como competência de leitura e de escrita. Entre 1351 e 1499 o
:mero dos que sabiam ler aumentou de tal modo fora dos limites do clero,
·: o chamado benefit of clergy, um privilégio legal, deixou de
abranger s aqueles que sabiam ler, para se aplicar apenas ao clero.
As mesmas
_sformações fizeram-se sentir, também, entre a Re lta dos Campone
_.,,:em 1381, e a revolta de Jack Cade em 1450: no primeiro caso, todas as
• mações dos camponeses de Cantuária e Essex foram apresentadas oral
c_ te ao rei Ricardo II, enquanto que, em 1450, as pretensões dos seguido
.,1 e Cade, oriundos das mesmas áreas geográficas, foram todas apresenta
:por escrito, e postas a circular em várias versões.

lü9
i
The Callterbury Tales (redigidos entre 1386-1400, mas nunca completados)
revelam já a variadíssima gama de potencialidades do inglês como língua
de literatura. Chaucer, que conhecia bem a literatura francesa e italiana, o
Roman de la Rose e as obras de Dante, Petrarca, Boccaccio ou Froissart,
acrescenta a essas influências uma nota tipicamente inglesa, o sentido de
humor. Ao lado de Troylus alld Criseyde ( 1380-1385), este poema
alarga decisivamente o nível e o âmbito da poesia em língua vernácula,
acrescen
tando à riqueza e diversidade do pensamento um domínio do idioma em
todas as suas variedades.

Outras formas de poesia foram também escritas em inglês, e gozaram de


enorme popularidade: Piers Ploughman, de Langland, um poema simulta
neamente profético e denunciatório, os poemas de Gower, Sir Gawaill a11d
the Green.Knight, os dramas rituais cristãos dos ciclos ingleses dos
Miracle Plays. Estes, especialmente populares nas cidades do norte
como York,
Beverly, Wakefield e Chester, contam-se entre as peças mais populares
da literatura do período, em que a poesia de longe ultrapassa a prosa em
quali dade e popularidade. É especialmente significativo que os poetas,
como Chaucer, Hoccleve e Lydgate tenham beneficiado do patronato do rei
ou dos nobres. Embora a protecção tivesse por vezes a desvantagem da
dependên cia e das flutuações de preferência ou favor, dela dependeu, em
boa parte, o vigor daquilo que viria a ser a tradição da literatura inglesa.

As mesmas formas de patronato estendiam-se, também, a outras áreas de


actividade, simultaneamente criativas e úteis, onde se começam também a
detectar traços especificamente britânicos, que as distinguem dos modelos
continentais.

Na arquitectura, por exemplo, os desenvolvimentos insulares do gótico


deram origem a dois estilos diversos que, desde o século XIX têm sido
designados por «decorado» e «perpendicular», e que se encontram nas cate
drais inglesas, nas igrejas paroquiais de maiores dimensões e nos colégios
das Universidades. O chamado estilo Decorated não introduzia modifica
ções na estrutura arquitectónica, antes constituía o fundo ornamental que
realçava as inúmeras pinturas e esculturas que enchiam os nichos ou se apoia
vam em pedestais.

A destruição das imagens religiosas na Reforma limita, hoje, a apreensão


daquilo que fora concebido para realçar as próprias imagens. Esse fundo
arquitectónico distingue-se por uma ornamentação curvilínea e elaborada,
baseada no ogee, ou curva invertida, representando elaboradas folhagens
que se entrelaçam nas abóbadas, capitéis e colunas, em pedra ou em
madeira. A extraordinária torre lanterna octogonal da Catedral de Ely, em
madeira.é um exemplo notável deste estilo.

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A última fase da arquitectura medieval inglesa, o estilo Perpendicular,é
um desenvolvimento de um dos aspectos do Decorated. A decoração
torna-se mais rectilínea, mas continua a cobrir a superfície arquitectónica; as
janelas são muito maiores, as paredes cobertas pelos mesmos elementos
rectilíneos usados nas janelas, as abóbadas são desenhadas em padrões mais
rectos e quadrangulares. As bases e os capitéis são facetados e os arcos vão-
se aba tendo gradualmente até tomarem a forma quadrangular. Sendo
raramente de grandes dimensões, os edifícios do gótico perpendicular são
leves, abertos, arejados, esguios. A ornamentação em leque é também
própria deste estilo, de que os exemplos mais conhecidos e de
extraordinário equilíbrio e execu ção são a Capela do King's Colledge em
Cambridge e a ala este da catedral de Peterborough.

Associada à construção de edifícios religiosos, de castelos e fortificações,


de residências reais e nobres, encontra-se o desenvolvimento de todas as
formas de arte praticadas por pedreiros e carpinteiros, vidraceiros e ourives,
tecelãos e bordadores. Importa, porém, sublinhar que, ao contrário do que
posteriormente será observado, o artista na Idade Média é, àinda, o artesão
de quem não se conhece, salvo raríssimas excepções, a identidade. Duas
razões principais poderão explicar este facto: uma, a própria noção de arte,
no período medieval, que remete para Deus a autoria suprema, de que o
artista é simples mediador e a obra acabada é a expressão. A outra razão
prende-se com o facto de a maior partes das obras ser resuItado da
colabora ção de diferentes artesãos, e ser apenas registado o papel do
patrono, fosse ele o rei, um nobre, um bispo ou um abade.

Corno se verá, a valorização da criatividade individual e a consequente


valo rização do artista e sua singularização, serão fenómenos que só
poderão
) ocorrer quando a própria noção de individuaJidade se começar a desenvol
) ver.no período moderno. Por agora, em finais da Idade Média, se não
encon tramos ainda «artistas», como tal identificados, encontramos uma
outra
s forma, colectiva, de identificação - a de uma sociedade que é já inglesa.
.-
Ascaracterísticas da produção estética deste período serão reapreciadas na
e segunda metade do século XIX. Como posteriormente veremos, quer os
modelosde organização do trabalho, quer o seu resultado estético irão cons
tituir fonte de inspiração e de proposta alternativa, a autores preocupados
o com a massificação e descaracterização das artes, em resultado da indus
o trialização.
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