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A Poética de Aristóteles para os Escritores de Hoje*

Marcelo de Araujo

Por que ler a Poética de Aristóteles? Que relevância esse texto poderia
ter para quem se interessa pela produção de texto de ficção hoje em dia?

Aristóteles viveu no século 4 a.C. e refletiu sobre praticamente todos os


temas que ainda hoje são relevantes para nós: sobre a ética, sobre a política,
sobre a estética, sobre a lógica, sobre metereologia, biologia, etc. Nada mais
natural, portanto, que ele tivesse também alguma coisa a dizer sobre a
"literatura". Quando falamos em literatura pensamos geralmente em
"romances" ou "contos". Mas Aristóteles não conheceu esse tipo de produção
literária. Romances e contos são formas literárias bem mais recentes. O
romance surge mais ou menos no século 18, e o conto só aparece no século
19. O tipo de "produção literária" que Aristóteles tinha em mente na Poética
eram basicamente peças de teatros (dramas) e poemas épicos.

Peças de teatro e poemas épicos faziam parte da formação moral dos


cidadãos gregos. Evidentemente, uma peça de teatro não era só um texto
escrito: ela envolvia também, como ocorre ainda hoje, o desempenho dos
atores, a música do coro, as roupas, etc. As peças na época de Aristóteles
eram encenadas e disputavam prêmios entre si. Mas, na Poética, Aristóteles
está mais interessado em examinar, não o espetáculo teatral como um todo,
mas a estrutura narrativa do drama e a capacidade que certas estruturas
narrativas bem resolvidas teriam de evocar certos sentimentos na plateia.

Embora Aristóteles estivesse mais interessado em obras de dramaturgia,


muito do que ele tem a dizer sobre a estrutura narrativa de peças de teatro,
como vamos ver, se aplica também a romances, contos, novelas, e roteiros
para cinema. E isso é assim porque Aristóteles estava interessado em
                                                                                                                       
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Roteiro para a vídeo-aula sobre a Poética de Aristóteles, módulo do "Curso de Narrativa
Ficcional" oferecido pela Editora Oito e Meio. Para divulgação apenas entre os participantes do
curso. Por favor, não repassar este texto.

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examinar uma questão que qualquer um de nós poderia se colocar ainda hoje
com relação à produção de textos de ficção: qual é característica distintiva de
uma boa história?

É desnecessário dizer que não existe uma regra fixa para se produzir
uma boa história. Mesmo na época de Aristóteles havia dramaturgos que não
seguiram à risca o modelo que ele propunha, mas nem por isso esses
dramaturgos deixaram de ser reconhecidos como grandes artistas. Ainda
assim, a Poética de Aristóteles foi, e continua sendo até hoje, um texto
bastante influente. As ideias que Aristóteles discute na Poética continuam entre
nós mesmo quando não nos damos conta do peso de sua influência sobre os
textos que escrevemos, sobre os livros que lemos, ou sobre os filmes a que
assistimos.

No início do século 16, por exemplo, Lodovico Castelvetro publicou um


livro chamado Poetica d'Aristotele vulgarizzata e sposita (Poética de Aristóteles
na língua vernácula) que retoma as ideias que Aristóteles defende na Poética.
[Imagem1 - Castelvetro] Mais tarde, apareceram outras obras desse tipo que
influenciaram autores como Shakespeare, Molière, Racine, etc. No século 20,
Bertold Brecht também chamou atenção para a importância do texto de
Aristóteles. Mais recentemente, apareceram pelo menos dois livros que
retomam a Poética na tentativa de mostrar o quanto ainda podemos aprender
com Aristóteles, por exemplo, na elaboração de roteiros para cinema:

- Michael Tierno. 2002. Aristotle's Poetics for Screenwriters: Storytelling


Secrets From the Greatest Mind in Western Civilization. [Imagem3 - Tierno
(Aristotle's Poetics for Screenwriters)]

- Ari Hiltunen. 2002. Aristotle in Hollywood: The Anatomy of Successful


Storytelling. [Imagem4 - Hiltunen (Aristotle in Hollywood)]

Evidentemente, mais importante do que ler essas obras, é ler o texto do


próprio Aristóteles. O texto da Poética é bastante curto, com pouco mais de 50
páginas, e está disponível na internet em quase todas as línguas, inclusive
português. Mas dizer que o texto é curto não significa dizer que Aristóteles
tenha dedicado menos atenção à estrutura dos textos de ficção do que às
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ciências, ou à filosofia. O texto é curto porque a segunda parte dele se perdeu.


O que temos da Poética hoje é apenas o "Livro I", dividido em 26 capítulo. Mas
como Aristóteles se refere ao conteúdo do Livro II ao longo do Livro I, sabemos
que Aristóteles dedicou o Livro II à "comédia".

Quem leu o livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco (ou assistiu ao


filme) deve se lembrar que toda a trama da história gira em torno do Livro II da
Poética [Imagem2 - Eco (O nome da rosa)]. Na história ficcional contada por
Eco, o último exemplar da Poética, o único de que ainda se tinha notícia, é
destruído em um incêndio. Há algo de peculiar no livro de Eco: um livro de
Aristóteles, que um dia de fato existiu, se perdeu para reaparecer, mais de dois
mil anos depois, em uma obra de ficção na qual esse livro é destruído num
incêndio. No último módulo do curso vamos ver que isso se chama
"intertextualidade": a referência a obras literárias (no caso um livro de filosofia
que cita várias obras literárias que não existem mais) no contexto de uma obra
literária. Intertextualidade é um recurso muito usado na literatura da segunda
metade do século 20 e que continua sendo usado até hoje.

Como o Livro II da Poética se perdeu, quando falamos dessa obra


estamos nos referindo apenas ao que sobrou do texto. O Livro I tem 26
capítulos. Os mais importantes para nós são os capítulos 6-22. É nesses
capítulos que Aristóteles fala da "tragédia". Aristóteles tem uma preferência
especial por Sófocles, que morreu mais de cem anos antes de Aristóteles. É
sobretudo a obra Édipo Rei, de Sófocles, que Aristóteles toma como modelo de
tragédia. Aristóteles, ele mesmo, não escreveu nenhuma tragédia. O que ele
faz, como filósofo e como cientista empenhado em fazer "taxonomias", é
analisar a estrutura básica de grandes tragédias, e propor essa estrutura
básica como modelo a ser seguido por outros dramaturgos.

O ponto de partida de Aristóteles na Poética é a ideia de mímesis. A


palavra mímesis é geralmente traduzida como "imitação'' ou às vezes também
como "representação". Toda obra de arte, até mesmo a música e a dança, são

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segundo Aristóteles, como uma forma de "imitação" ou "representação". Imitar


é típico de seres humanos:

"A tendência para a imitação é instintiva no homem,


desde a infância. Neste ponto distinguem-se os humanos
de todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito
desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquirimos
nossos primeiros conhecimentos, e nela nós
experimentamos prazer." (cap. 4, 1448b 6-9).

A palavra "imitação", evidentemente, tem uma má reputação entre nós.


Mas "imitação", no sentido que Aristóteles tem em mente, não significa falta de
originalidade ou autenticidade. Pensem no seguinte: se não existem regras
fixas para se fazer literatura, tudo que podemos fazer é ler grandes textos
literários na expectativa de tentarmos fazer algo parecido. É claro que não se
trata de "imitar" o que os outros já fizeram, mas de adquirir o tipo de habilidade
que torna possível a produção de grandes textos literários. Na filosofia moral de
Aristóteles – em sua ética – a "imitação" desempenha um papel importante
também. Na ética de Aristóteles não existem "regras morais", "principais morais
fundamentais", etc. Essa é uma ideia moderna. O que existe são pessoas que
têm "traços de caráter" como coragem, generosidade, honestidade, etc. Essas
são qualidades do caráter das pessoas que costumamos admirar. Para
aprendermos a agir moralmente temos de "imitar" a conduta típica das pessoas
que são reconhecidas pela sua coragem, generosidade, honestidade, etc. Mais
adiante eu retornarei a esse ponto, porque uma maneira de reconhecermos
essas pessoas – pessoas "virtuosas" no vocabulário de Aristóteles – é
justamente através da leitura de grande obras literárias.

No capítulo 6 Aristóteles começa a discussão da tragédia. Logo no


início desse capítulo ele propõe a seguinte definição de tragédia:

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"A tragédia é a imitação de uma ação importante e


completa, com certa duração; ela deve ser composta
numa linguagem agradável, empregando separadamente
os recursos da linguagem em cada parte da obra; na
tragédia, a ação é encenada, não por meio de uma
narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o
terror, a tragédia tem por efeito provocar a purgação
[catarsis] dessas emoções" (cap. 6, 1449b 22-32).

Na definição que Aristóteles propõe de "tragédia" ele chama atenção


para uma ideia que, a meu ver, se aplica também à produção de outros tipos
de obras de ficção. A tragédia não é o "relato" de uma ação. A tragédia é a
"encenação" de uma ação. Seria estranho que alguém subisse ao palco e
simplesmente "narrasse" uma história. Talvez, no ensaio de uma peça, esse
tipo de coisa ocorra, quando o diretor explica para os atores como deve
transcorrer a ação. Um romance, assim como uma peça de teatro, não é um
simples "relato" do que os personagens estão fazendo. Um romance é, de
certo modo, a "encenação" de uma ação. Mas o desafio para quem escreve um
romance é, a meu ver, parecido com o desafio de quem encena uma peça:
criar, unicamente por meio da linguagem e sem o recurso a atores ou diretores,
a "encenação" de uma ação. O desafio é usar a linguagem para "mostrarmos"
uma determinada situação, e engajarmos o leitor da mesma forma que os
atores engajam os espectadores no teatro. No caso da tragédia, esse
engajamento envolve, segundo Aristóteles, duas reações distintas: os
sentimentos de "compaixão" e de "pavor". Retornarei a isso mais adiante.
Através desse engajamento o espectador experimenta o que Aristóteles
denomina de "catarses"

Aristóteles distingue 6 elementos básicos de toda tragédia:

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1. Enredo (mythos, plot)

2. Personagem (ethe, characters)

3. Reconhecimento (dianoia)

4. Dicção ou forma linguística

5. Música

6. Encenação

Os elementos 5 e 6 não são muito discutidos no texto, talvez porque


Aristóteles reconheça que eles não dependem da qualidade do "poeta", no
sentido de escritor ou autor da peça.

"A representação [mimesis] da ação é o enredo [mythos].


O enredo, tal como entendo, é a combinação de
incidentes, ou coisas que ocorrem na história, ao passo
que o personagem é o que nos faz atribuir certas
qualidades aos agentes." (cap. 6, 1450a1 4-6).

Em vários momentos da Poética, Aristóteles deixa bastante claro que o


elemento mais importante da narrativa, para ele, é o enredo, o plot. A palavra
que ele usa no texto grego é mythos, mas não no sentido que a palavra "mito"
passou a ter mais tarde em português e outras línguas. Há um momento da
Poética em que Aristóteles afirma que o enredo é a "alma" da tragédia. A
pergunta sobre se o plot – o enredo – é ou não o elemento mais importante da
narrativa passou a ser uma das grandes questões da literatura contemporânea.
Mas foram necessários mais de dois mil e trezentos anos para as pessoas
rejeitarem essa ideia. Dar-se como desafio escrever um romance sem plot já é
de alguma maneira reconhecer o peso da influência de Aristóteles. Para
Aristóteles, na narrativa, em primeiro lugar está o plot, o personagem vem em
segundo lugar:

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"O elemento básico da tragédia, a sua própria alma, é o


enredo; o personagem vem em segundo lugar. Algo de
semelhante se verifica na pintura: se o artista espalha as
cores ao acaso, por mais sedutoras que sejam, elas não
provocam prazer igual àquele que advém de uma imagem
com os contornos bem definidos (cap. 6, 1450a 37 -
1450b 4)."

Justamente por se tratar do elemento mais importante da narrativa, a


partir do capítulo 7 Aristóteles começa a falar um pouco mais sobre como deve
ser o enredo. Ele afirma que o enredo é dividido em três partes: começo, meio,
e fim. Nessa ordem! Isso parece trivial, e é de fato trivial. Tão trivial que muitas
narrativas no século vinte, sejam em romances, peças de teatro, ou filmes,
procuram deliberadamente subverter essa ideia básica na expectativa de
produzir uma obra original. Mas essa divisão entre começo, meio e fim, por
mais trivial que possa parecer, marca outros elementos da narrativa.

O enredo deve também "representar" um encadeamento de ações bem


delimitado. Não pode haver na tragédia vários sub-plots (cap. 13, 1453a1 10-
15). No caso de poemas épicos isso não é um problema. E se pensarmos por
exemplo em romances como Guerra e Paz, de Liev Tolstói, ou Buddenbrooks,
de Thomas Mann, podemos encontrar várias histórias dentro da história. Mas
no caso de tragédias, segundo Aristóteles, essa não é uma boa ideia.

O segundo elemento mais importante da narrativa é o personagem. O


"herói trágico" tem quatro características básicas (cap. 15, 1454a 17-27):

1. Ele é bom, i.e. tem a capacidade de engajar a audiência (ou o leitor)


justamente por que ele não é uma pessoa qualquer. Ele deve ser alguém
honrado, de um status social superior.

2. Ele tem qualidades apropriadas ou virtudes. Ser "carinhoso" é com


certeza uma grande qualidade, mas não exatamente a qualidade, por exemplo,
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de um general num campo de batalha. A "virtudes", no sentido que Aristóteles


dá à palavra "virtude", são qualidades do caráter de uma pessoa apropriadas
ao papel social que ela desempenha, adequado ao seu status social. É porque
uma pessoa tem essas qualidades que dizemos que ela é "boa".

3. O herói tem que ser caracterizado de modo realista. Nada nos


desaponta mais numa história do que um personagem implausível. Mesmo um
super-herói com poderes fantástico deve ser caracterizado de modo plausível.
O personagem dever ser capaz de engajar o envolvimento da plateia no teatro,
ou dos espectadores no cinema, ou dos leitores.

4. O a caracterização do herói tem de ser coerente. Isso não significa


dizer que um bom personagem não possa ser a "representação" de uma
pessoa incoerente. Mas a incoerência do personagem tem de ser caracterizada
de modo coerente na obra.

Falamos até agora dos elementos mais importantes da narrativa,


segundo Aristóteles: o plot; personagens; começo, meio e fim. Mas é preciso
também compreendermos como esses elementos se articulam entre si na
estrutura da narrativa, e como a narrativa desperta na audiências os
sentimentos de compaixão e terror.

O "herói trágico", no "começo" da obra, toma uma decisão, realiza uma


ação e dá início a uma sequencia de acontecimentos sobre os quais depois já
não tem mais nenhum controle. Essa ação inicial é denominada "erro trágico"
(hamartia). Essa sequencia de acontecimentos progride até o "meio" da peça,
quando ocorre o "revés da fortuna". Esse ponto marca a situação trágica do
herói: apesar de suas virtudes, de seu poder, ou de seu status social, ele
começa uma trajetória descendente. Considere o seguinte esquema:

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A passagem do "começo" para o "meio" da narrativa marca o início da


queda trágica do heroi.

"Resta, entre estas situações extremas, a posição


intermediária: a do homem que, mesmo não se
distinguindo por sua superioridade e justiça, não é mau
nem perverso, mas cai no infortúnio em conseqüência de
algum erro que cometeu; neste caso coloca-se também o
homem no apogeu da fama e da prosperidade, como
Édipo ou Tiestes ou outros membros destacados de
famílias ilustres" (cap. 13, 1452b 6-9)

A queda do herói, uma pessoa que admirávamos no início da história em


função de seu poder, e de seus méritos, desperta no espectador, segundo
Aristóteles, um sentimento de "compaixão e de pavor". Esses sentimentos, no
teatro, provocariam também uma "catarse", uma espécie de purificação no
espectador. Existe muita discussão até hoje sobre o que exatamente
Aristóteles compreende por "catarse" e se, de fato, tragédias teriam essa
capacidade terapêutica sobre as pessoas que vão ao teatro, ou se engajam na
leitura de obras literárias.

Talvez uma maneira de vermos o problema aqui é considerarmos que,


através da leitura de obras literárias nós nos identificamos com os
personagens. Somos capazes de ter reações afetivas diversas como
compaixão, medo, indignação, alegria ao acompanharmos a trajetória do herói.
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Essas reações podem afetar o nosso próprio caráter, modificar as pessoas que
somos. E há uma razão para vermos o problema dessa maneira.

A palavra que Aristóteles usa para se referir aos "personagens" é ethe,


plulral de ethos que significa basicamente "traço de caráter." Em inglês a
palavra "character" tem também essa dupla função: "caráter" e "personagem".
A palavra "ética" vem da palavra ethos. Para Aristóteles, a ética é uma
investigação sobre "traços de caráter" como coragem, generosidade, justiça,
moderação, etc. que são tipos de virtudes. A ética de Aristóteles é uma ética
das virtudes. O ponto a que quero chegar é que o modo como nos engajamos
na leitura de textos sobre os "reveses na vida" de um "personagem" modificam
o nosso próprio caráter, como se nos tornássemos, nós também, personagens
de nossas próprias narrativas.

© Marcelo de Araujo

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