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A IMPORTÂNCIA DA AUTONOMIA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA O FAIR

PLAY PROCESSUAL

INTRODUÇÃO
O percurso do acesso à justiça pelos necessitados no Brasil é
inegavelmente labiríntico. Houve meros lampejos de abertura desse espaço aos mais
pobres até o advento da Constituição da República de 1988.
O art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Cidadã, ao estabelecer que
“o Estado prestará assistência ‘jurídica’ integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos”, deixou claro que a assistência não mais está restrita ao
âmbito das ações em trâmite no Poder Judiciário, facultando ao necessitado invocá-la
onde quer que se faça necessária a presença de um advogado. Isso porque fez menção
à assistência “jurídica” gratuita, e não mais assistência “judiciária” gratuita.
Trouxe ainda outra significativa inovação ao tratar “Das Funções
Essenciais à Justiça” (Título IV, Capítulo IV), elegendo a Defensoria Pública como a
instituição responsável pela prestação da atividade supramencionada – o que expressa
a atribuição de prioridade e prevalência do modelo público de prestação de assistência
jurídica aos necessitados.1
Assim, pode-se considerar que a Constituição de 1988 foi pioneira
ao prever a organização institucional das Defensorias Públicas no Brasil, indicando as
diretrizes fundamentais para que, por meio de Lei Complementar, fossem
estabelecidos os parâmetros para sua estruturação.
A Constituição de 1988 foi ainda mais longe, vale lembrar. Deixou
claro que a Defensoria Pública deve atuar em todas as áreas da Justiça nos planos
federal e estadual, além de se estender por todos os graus do Poder Judiciário – o que,
entretanto, ainda está distante de se concretizar.
Tais mudanças foram resultado de um trabalho desenvolvido desde
a década de 1970, conforme lembra Lobão Rocha, 2 época em que os serviços de

1
Sobre a eleição da Defensoria Pública pela Constituição Federal, pertinente fazer menção ao
pensamento de Holden Macedo da SILVA: “Veja-se bem, não se defende que a Defensoria Pública tem
o monopólio da assistência jurídica. Evidentemente que não. O necessitado tem o direito de escolher se
quer ser assistido por um advogado que lhe cobrará, tão somente, os honorários de êxito na ação; se
deseja atendimento de um escritório-modelo de Faculdade de Direito etc. Mas o Estado não tem essa
escolha. Se quer prestar assistência jurídica aos necessitados, que o faça nos termos da Constituição,
por meio da Defensoria Pública”. In: Princípios institucionais da Defensoria Pública: breves
comentários textuais ao regime constitucional da Defensoria Pública. Brasília: Fortium, 2007. p. 15-16.
2
ROCHA, op. cit., p. 109.
assistência das Unidades da Federação eram realizados por outros órgãos da estrutura
estatal, como setores das Procuradorias e do Ministério Público estaduais.
Já no plano federal, a Defensoria Pública da União – DPU –
começou a ser implantada com o aproveitamento dos Advogados de Ofício da Justiça
Militar Federal, por força do disposto no art. 138, da Lei Complementar n. 80/1994,
dentre os quais foi escolhido o primeiro Defensor Público-Geral, que tomou posse em
1º de dezembro de 1994, no governo Itamar Franco.
Contudo, a efetivação de tais garantias, entretanto, tem ocorrido de
forma lenta, tímida e oscilante. Veem-se sucessivos atrasos há mais de trinta anos no
cumprimento de determinações constitucionais e legais, a exemplo de inexplicável
demora na instalação de Defensorias Públicas em Estados da Federação.
Ademais, de forma surpreendentemente decepcionante, no presente
momento há possibilidade de inominável retrocesso no reconhecimento constitucional
desta instituição, capaz de prejudicar severamente o funcionamento e o
desenvolvimento das Defensorias Públicas.

EMENDA CONSTITUCIONAL N. 74/2013

Apenas às Defensorias Públicas Estaduais a Constituição Federal de


1988 assegurava autonomia funcional e administrativa, conforme se verificava da
dicção original do art. 134, CF. Até a promulgação da Emenda Constitucional n. 74,
de 06 de agosto de 2013, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do
Distrito Federal ficaram sujeitas a tratamento desigual, de difícil compreensão,
evidenciando desrespeito ao pacto federativo, a recomendações do Tribunal de Contas
da União e a instrumentos internacionais3. Com a EC n. 74/2013, contudo, corrigiu-se
o tratamento discrepante, eis que foi acrescido o parágrafo 3º ao art. 134, CF. O novo
dispositivo determina aplicação do § 2º, do art. 134, CF, também à Defensoria Pública
da União e à Defensoria Pública do Distrito Federal, assegurando-lhes, portanto,
autonomia funcional e administrativa, bem como a iniciativa de sua proposta
3
Vale destacar que a atribuição constitucional de autonomia funcional e administrativa, o que inclui a
iniciativa de proposta orçamentária, somente às Defensorias Públicas dos Estados-membros
desrespeitava flagrantemente: i) o pacto federativo; ii) reiteradas recomendações do Tribunal de Contas
da União (Acórdãos 725/2005, 167/2007, 929/2009 e 544/2011); iii) diversas recomendações
internacionais (dentre as quais se destacam a Resolução AG/RES. 2656/2011 (XLI-0/11) – OEA; a
Resolução 2.714/2012 – OEA; o relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da
Tortura e Outros Tratamentos Cruéis e Desumanos – ONU – Itens 26 e 27; a Recomendação
MERCOSUR/CMC/REC 01/2012).
orçamentária. Não há mais, portanto, diferença de tratamento, no âmbito
constitucional, às Defensorias Públicas, correção promovida pelo constituinte
reformador que merece elogios.

O DEFENSOR PÚBLICO COMO AGENTE POLÍTICO

Os Defensores Públicos são agentes políticos, em síntese, em razão


de suas seguintes características: 1) exercem atribuições estatuídas da Constituição
Federal; 2) gozam de liberdades e prerrogativas funcionais; 4 3) estão submetidos a
regras específicas de escolha, investidura, conduta e processamento por crimes
comuns e de responsabilidade; 4) são remunerados por subsídios.5
Pertinente ainda lembrar que, de fato, a prestação de assistência
jurídica gratuita por um órgão público não é o único padrão adotado no mundo. A
doutrina costuma dividir os modelos de assistência em três tipos: o modelo pioneiro
pro bono, de viés caritativo e realizado pela iniciativa privada, o modelo judicare,
financiado pelos cofres públicos, mas realizado por advogados privados, integrantes
de programas de assistência estatais e, por fim, o salaried staff model, com advogados
também remunerados pelos cofres públicos, mas em regime de dedicação integral –
no qual se enquadra o modelo brasileiro.6
No modelo pro bono, a assistência jurídica funciona como uma
espécie de ação de caridade aos “desvalidos” – entre os quais se incluía a massa de
trabalhadores industriais urbanos em fase de organização – e era inicialmente
realizada por profissionais autônomos que se dispusessem a prestá-la gratuitamente,
por motivações morais, culturais ou mesmo ideológico-humanitárias. Daí sua
denominação, que deriva da expressão pro bono publico, ou seja, “para o bem

4
Dentre as garantias e prerrogativas do Defensor Público, faz-se mister citar: 1) independência
funcional, cuja abordagem foi feita no corpo do ensaio; 2) inamovibilidade: vedação da remoção do
Defensor Público do órgão de atuação onde o mesmo esteja lotado para qualquer outro
independentemente de sua vontade (forma compulsória); 3) irredutibilidade dos vencimentos: comum a
todos os servidores; 4) estabilidade; 5) prazo em dobro e intimação pessoal mediante carga dos autos
com vista ao Defensor; 6) comunicação da prisão e investigação criminal ao Defensor Público Geral; 7)
prisão especial em separado, não somente para preventiva, mas após trânsito em julgado, segundo
doutrina, à exemplo do MPU; 8) uso de vestes talares e insígnias: exclusivo; 9) comunicação pessoal e
reservada com os assistidos; 10) manifestação por meio de cotas; 11) poder de requisição, o qual
igualmente será melhor abordado neste ensaio; 12) autonomia funcional, como possibilidade de deixar
de patrocinar a ação – vale lembrar que desobrigar de propor demanda que considere manifestamente
incabível ou inconveniente resguarda a própria parte de eventual condenação nas penas da litigância de
má-fé; 13) mesmo tratamento reservado aos magistrados e às demais funções essenciais à justiça; 14)
oitiva do defensor como testemunha em local e horário previamente ajustado.
5
SILVA, op. cit., p. 61.
6
Idem, p. 59-60.
público”.7 Isto é, nesse modelo, os advogados autônomos não recebem qualquer
contraprestação pecuniária dos cofres públicos, o que faz com que ele seja pautado
simplesmente na boa-vontade destes profissionais liberais.8
No modelo público de subtipo judicare, o beneficiário legalmente
reconhecido pode escolher o advogado que o representará, dentre uma lista daqueles
que aderiram ao programa – o que, em tese, lhe garantiria a mesma posição daquele
que pode contratar um profissional – e as despesas daí decorrentes são pagas pelo
Estado. É o modelo é adotado no Reino Unido, por exemplo. Também pela ação
mediadora do Estado, os destinatários do serviço são estratificados em função do
nível de renda familiar, como os beneficiários do programa medicare de assistência
médica nos EUA – daí a denominação judicare.9 Esse modelo apresenta
características negativas como a dificuldade de controle da qualidade dos trabalhos
prestados e a tendência à maior onerosidade aos cofres públicos.10
O modelo público, de subtipo público estatal, também conhecido
como salaried staff, é formado por órgãos estatais comumente conhecidos como
Defensorias Públicas, voltados exclusivamente à assistência judiciária. O referido
modelo é amplamente difundido na América Latina, inclusive no Brasil, por opção
pela Constituição de 1988, conforme acima abordado.11
Há ainda o modelo misto ou híbrido, que combina os anteriores em
diversas possibilidades.
Evidente que, para a realidade brasileira, o modelo adotado pela
Constituição da República de 1988 é o mais adequado, já que a Defensoria Pública
volta-se exclusivamente à atividade de assistência judiciária. É o modelo que permite
ao mais necessitado o efetivo acesso aos Tribunais Superiores, à opinião consultiva e
às instâncias extrajudiciais e administrativas.
Sobre este aspecto, aliás, imprescindível lembrar que o inciso III, do
art. 4º, da LC 80, de 1994, ao prever como função do Defensor Público “promover a
difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento

7
Idem, p. 63.
8
SILVA, op. cit., p. 12
9
ROCHA, op. cit., p. 74.
10
SILVA, op. cit., p. 13.
11
ROCHA, op. cit., p. 79. Interessante notar que o modelo adotado pela CF é o recomendado pela
Organização dos Estados Americanos, conforme Resolução 2656, aprovada na 41ª Assembleia Geral
da OEA, realizada em 2011, caracterizada por abordar o acesso à Justiça enquanto direito autônomo,
que permite exercer e proteger outros direitos. Ainda, destaca o papel da Defensoria Pública como
instrumento eficaz para garantir o acesso à Justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade.
jurídico”, atividades que vão ao encontro da postura institucional do Defensor Público
como Agente de Transformação Social. Tal previsão constitui significativo avanço,
especialmente a partir de sua inscrição em texto legal.12
A enorme relevância dessa função consiste em sua possibilidade de
evitar a ocorrência de conflitos. Nesse sentido, Menezes explica: “a correta
informação e orientação jurídica, por si sós, são capazes de evitar diversos litígios e
situações de risco, que muitas vezes surgem pelo total desconhecimento das regras
existentes no ordenamento jurídico brasileiro”.13

A IMPORTÂNCIA DA AUTONOMIA DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA O


FAIR PLAY PROCESSUAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Michel Foucault aborda, em suas obras Vigiar e Punir e Microfísica


do Poder, a existência do panoptismo: até mesmo os mínimos detalhes de
determinado contexto irradiariam poder 14 e influência, na maioria das vezes de forma
implícita, vigiando e conduzindo o indivíduo implacavelmente, de um modo até
mesmo subliminar.
Infelizmente, parece ser essa a lógica a se reproduzir no que tange
ao tratamento da Defensoria Pública no Brasil: desde os mínimos detalhes de seus
contornos institucionais, há uma vertente ideológica que insiste em deixar claro ao
mais pobre que ele não tem direito ao verdadeiro acesso à justiça; que sua defesa não
será de qualidade; que ele é pequeno ante o aparato do Estado que o acusa e que o
julga.
Como, invariavelmente, sente-se o réu hipossuficiente em uma sala
de audiência, hoje? A natureza classista revela-se em uma estética única e tão somente
assimilada por uma elite (financeira e, por isso, intelectual) e acentua a
marginalização da população mais pobre: esta não consegue sentir-se parte de tudo
aquilo, tudo é muito distante.

12
Idem, p. 70.
13
MENEZES, op. cit., p. 143.
14
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, [s.d.]
Seu defensor senta-se junto com ele, ao passo que o representante
do Ministério Público senta-se ao lado do membro do Poder Judiciário; ambos ainda
costumam postar-se em um tablado, que fica em maior altura do que o local onde está
o acusado.
Saberá ele ainda que está assistido pelo agente estatal menos
valorizado? Que sequer integra instituição autônoma? Que estaria a Defensoria
Pública subordinada ao Poder Executivo – o qual igualmente integra o Polícia que o
investigou?

(...)
Por tais razões, sublinhamos as lições de Lobão Rocha, à guisa de
conclusão, eis que
A esta altura, não há mais qualquer sombra de dúvida de que o direito à assistência
jurídica gratuita representa uma conquista irrenunciável para o próprio aperfeiçoamento
do regime democrático, tanto que sua base formal decorre do ordenamento jurídico
internacional. Assim, está implícito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais
precisamente no seu art. XI, que trata da presunção de inocência, do julgamento público
e das garantias de defesa, como direitos assegurados a qualquer pessoa. E se explicita na
Convenção Americana de Direitos Humanos – art. 8º, § 7º - e no Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos – art. 14, item 3, letra ‘d’ –, quando dispõem sobre o direito a
assistência gratuita de um advogado para qualquer pessoa que não tenha meios para
remunerá-lo. Evitar retrocessos é, portanto, questão que ultrapassa fronteiras. 15

15
ROCHA, op. cit., p. 87-88.

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