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Carolina Cunha

Professora Associada da Faculdade de Direito da


Universidade de Coimbra
ccunha@fd.uc.pt

AVAL E PLANO DE
INSOLVÊNCIA: O ART. 217º, 4,
DO CIRE

IV Curso de Pós-Graduação em Direito da Insolvência


27 de Abril de 2020 * CIDP / Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa
O PROBLEMA A TRATAR

• À margem do processo de insolvência, é movida contra


o avalista do sujeito insolvente uma execução
• No âmbito do processo de insolvência, os credores aprovam
um plano de insolvência que altera a obrigação fundamental
garantida
• Na acção executiva, o credor preenche o título em branco pelo
valor integral da dívida e o avalista deduz embargos,
opondo-se à execução
• Estas situações ocorrem tipicamente no contexto da
insolvência de sociedades comerciais, cujos sócios (na maioria,
pessoas singulares) avalizaram títulos em branco para garantia
de financiamentos bancários

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ARGUMENTAÇÃO DOS
AVALISTAS EM BRANCO
EXECUTADOS

• O eixo da argumentação dos avalistas em branco


executados é a existência de preenchimento abusivo
• Susceptível de conduzir ao afastamento da pretensão
cambiária com base no art. 10º LU e à consequente
extinção total ou parcial da execução (art. 732º, 4,
CPCiv.)

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COORDENADAS DE UMA
SOLUÇÃO

• Há que ter em conta:


✓ O regime especial imposto pelo CIRE aos garantes do
devedor insolvente
✓ A interpretação e integração do próprio acordo de
preenchimento do título cambiário no que toca às
consequências situação de insolvência

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OS GARANTES E A INSOLVÊNCIA
DO GARANTIDO

• O art. 217º, 4 CIRE ocupa-


• Os garantes podem ver- se
se afectados pela ✓ Da 1ª questão na 1ª parte: “As
insolvência do garantido providências previstas no plano de
numa dupla vertente insolvência com incidência no passivo
do devedor não afectam a existência
✓ Enquanto garantes nem o montante dos direitos dos
propriamente ditos credores da insolvência contra os [...]
terceiros garantes da obrigação”
✓ Enquanto credores do ✓ Da 2ª questão na 2ª parte: os
insolvente contra o qual garantes “apenas poderão agir
adquirem direito de contra o devedor em via de regresso
regresso nos termos em que o credor da
insolvência pudesse exercer contra
ele os seus direitos”

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CONSEQUÊNCIAS DA OPÇÃO
CONSAGRADA NO ART. 217º,
4, CIRE

• Protecção dos credores: permite-se recuperação integral


da quantia em dívida fora do processo de insolvência (1ª
parte)

• Protecção do devedor insolvente: nunca pagará mais do


que o que resulta do plano ou em condições diferentes
das aí fixadas (2ª parte)
• Quem vai suportar jurídica e economicamente a
discrepância? Os garantes - que não tiveram qualquer
intervenção na elaboração, discussão e aprovação do plano
(numa singular concretização da possibilidade
excepcional prevista pelo art. 192º, 2, CIRE )

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O ART. 217º, 4, CIRE COMO “UMA
EVOLUÇÃO POSITIVA NO DIREITO
FALIMENTAR”

• Aplausos: a solução actual estimula a recuperação da


empresa, em contraste com o art. 63º do antigo CPEREF
✓ O credor que aprovasse ou aceitasse uma providência de
recuperação ficava impedido de actuar contra o garante na
exacta medida da extinção ou modificação do seu crédito

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O ART. 217º, 4, CIRE COMO
“TUTELA EXCEPCIONAL” QUE
JUSTIFIC A UMA “INTERPRETAÇÃO
RESTRITIVA ”

• Vozes críticas:
✓ Solução “eticamente reprovável”
✓ Susceptível de infringir o princípio da igualdade entre os credores
• Defendem interpretação restritiva :
✓ Credores só mantêm os seus direitos intactos em situações de
perdão e a redução do valor dos créditos
✓ De fora do âmbito de aplicação da norma ficam todas as
outras providências (condicionamento do reembolso,
modificação do prazo de vencimento ou moratória)

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O V E R DADEI RO AL C ANCE DA NOR MA:
FI NANCI AME NTO DA ( E V E NT UAL)
R E CUPE RAÇÃO DO I NSOLV E NT E PE L OS
G AR ANT E S

• A solução anterior repartia com alguma equidade as desvantagens


✓ Credor: suportava alteração do do crédito: redução/extinção
/moratória
✓ Garante: suportava o risco da insolvência propriamente dita
• Agora todos os riscos são alocados à esfera jurídica do garante
✓ Suporta também a redução/extinção do crédito ou a demora na
sua satisfação (além do risco da insolvência)
✓ Os meios que o devedor garantido possa ter são drenados para
a sua própria recuperação, em lugar de serem aplicados na
satisfação integral do direito de regresso
✓ Sempre que isto aconteça, são os garantes que estão a financiar a
recuperação

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ALGUMAS CONCLUSÕES

• Não me parece que esteja em causa propriamente a


igualdade entre os credores (obtenção de garantias é
exercício de autonomia privada)
• Não me choca que os garantes respondam de forma mais
gravosa que o devedor principal após a aprovação do plano
(ainda estamos dentro do limite da dívida tal como
originariamente configurada)
• Preocupa-me a segunda metade do art. 217º, 4: o exercício
adiado, mitigado ou mesmo suprimido do direito de
regresso imposto pela lei sem qualquer relação com a
verdadeira capacidade económica do insolvente

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APLIC AÇÃO DA 1ª PARTE DO O ART.
217º, 4 À SITUAÇÃO DO AVAL EM
BRANCO

• A declaração cambiária do avalista está incompleta


✓ Subscrição e entrega do título em branco constituem embrião
de vinculação cambiária: direito ainda não existe
• A determinação do conteúdo a inserir é levada a cabo per
relationem: depende do incumprimento da relação
fundamental entre o avalizado e o credor
• Portanto ao abrigo do art. 10º da LU, o avalista pode
prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação
fundamental à qual é alheio
✓ É incorrecto aplicar aqui o art. 17º LU: o art. 10º é uma norma
especial que afasta a norma geral

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O PREENCHIMENTO DO TÍTULO E
ACCIONAMENTO DO AVALISTA NO
CONTEXTO DA DECLARAÇÃO DE
INSOLVÊNCIA DO AVALIZADO

• Chegou ou não a verificar-se, quando e em que termos, o


pressuposto do qual depende o preenchimento do título - o
incumprimento da obrigação fundamental pelo devedor
avalizado?
1. A própria situação de insolvência (art. 3º, 1, CIRE) indicia
incumprimento
2. O art. 91º, 1, CIRE prescreve que a declaração de insolvência
opera o vencimento de todas as obrigações (segue-se:
inexecução/incumprimento)
3. Se há incumprimento, credor está legitimado a preencher e
não tem de apresentar o título a pagamento ao obrigado
principal ou lavrar protesto (arts. 43º e 44º LU)
4. Mas e se entretanto é homologado um plano de insolvência: o
preenchimento nos termos originários torna-se abusivo?

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CONSEQUÊNCIAS DA
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO DE
INSOLVÊNCIA SOBRE
PREENCHIMENTO DO TÍTULO

• O acordo de preenchimento é geralmente omisso


quanto às consequências da insolvência do devedor principal
no preenchimento do título
• Mas a sua interpretação/integração não prescinde da
banal consideração de que o risco tipicamente assegurado
por qualquer negócio de garantia pessoal é precisamente o
da insolvência do devedor
• Pelo que não há, à partida, preenchimento abusivo
perante o art. 10º LU

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A AUTONOMIA PRIVADA E A
DISCIPLINA FIXADA NO ACORDO
DE PREENCHIMENTO

• Todavia o acordo de preenchimento não tem


que ser omisso
• Autocomposição de interesses não afecta
terceiros
✓ Nem outros credores * nem devedor * nem a própria
execução do plano (2ª parte art. 217º, 4)
✓ Apenas volta a alocar à esfera daquele credor o peso
económico dos sacrifícios impostos pelo plano de insolvência
(1ª parte art. 217º, 4)
• Portanto: avalista em branco pode acordar
previamente com o credor que a letra ou livrança só
poderá vir a ser preenchida nos termos das
modificações que um eventual plano introduza

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A HOMOLOGAÇÃO DE UM PLANO
DE RECUPERAÇÃO EM PER :
DIFERENÇAS

• Não tem necessariamente de haver incumprimento da


obrigação fundamental
✓ Ou porque de facto não ocorreu (obrigação não venceu * ou venceu
e foi cumprida)
✓ Ou porque credor diferiu voluntariamente o pagamento (extinguindo
a mora)
• Nesta fase não há especial tutela do interesse dos credores:
verifica-se maior equilíbrio
✓ A iniciativa provém do devedor, que participa nas negociações e tem
poder de veto sobre plano (pondo fim às negociações)
✓ O plano vai dirigido à revitalização do devedor e não à satisfação
dos credores

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I NCUMP R I MENTO DA OB R I G AÇÃO
FUNDAME NTAL AN T E S DA
H OMOL OG AÇÃO D O P L A NO D E
R E CUPE RAÇÃO : V E R I F ICAÇÃO D O
R I SCO G AR ANT I DO

• Se obrigação fundamental venceu e devedor em


dificuldades não a cumpriu (extrajudicialmente)
• Credor está legitimado a preencher o título e
demandar avalista:
✓ Verificou-se o risco garantido (incumprimento)
✓ Crédito cambiário constituiu-se com configuração
precisa (montante e prazos)
• Alterações que plano de revitalização posteriormente
introduza ao crédito fundamental não têm como se
repercutir no plano cambiário
✓ A menos que o acordo de preenchimento o preveja
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O DI R E I TO DE R E G R ESSO DO AVAL I STA
SO LV E N S

• Mas o avalista que satisfez o direito cambiário do credor


estará condicionado pelas restrições do plano entretanto
homologado quando pretender ressarcir-se junto do avalizado (o
devedor em dificuldades que recorreu ao PER)?
• Não – a menos que tenha adquirido o direito de regresso
cambiário ainda antes da decisão judicial de nomeação do
administrador judicial provisório, prevista no actual art. 17ºC,
4 – art. 17ºF, 10
• Sempre que o avalista adquira o direito de regresso cambiário
após essa data, o respectivo exercício não é afectado pelas
medidas constantes do plano de recuperação
✓ poderá exercer o seu direito contra o avalizado pelo valor constante
do título (art. 49º LU)
✓ dentro dos prazos cambiários normais (art. 70º LU)
✓ não se aplica art. 217º, 2ª parte (remissão)
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H OMOL OG AÇÃO D O P L A NO D E
R E CUPE RAÇÃO S E M I NC U MP R I MENTO
DA OB R I G AÇÃO FUNDAME NTAL : N ÃO -
VE RI F ICAÇÃO DO R I SCO G AR ANT I DO

• Nunca chegou a ocorrer facto que justificaria


preenchimento (o incumprimento)
• O risco assegurado pelo avalista pura e simplesmente
não se verificou
• Reconfiguração da obrigação fundamental vai
providenciar o futuro parâmetro de aferição da
existência de cumprimento
✓ Paralelo com vulgar renegociação da dívida fundamental
(fora de PER)
✓ Título em branco mantém-se como garantia

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A N ÃO - APLICAÇÃO D O ART. 2 1 7 º , 4
CI R E AO P L ANO DE R E V I TAL IZAÇÃO

• Nem aplicação remissiva


✓ Referência do art. 17ºF, 7 não o abrange
✓ E há incompatibilidade para efeitos do art. 17ºA, 3
• Nem aplicação analógica
✓ Não há lacuna, nem identidade de situações
• Mesmo que aplicássemos o art. 217º, 4 a solução seria
idêntica nos casos em que o devedor ainda não incorreu em
incumprimento
✓ Porque aí no momento da homologação ainda não existe direito
cambiário ou sequer faculdade de preenchimento do título

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BIBLIOGRAFIA

• CUNHA, Carolina, Aval e Insolvência, Almedina Coimbra, 2017


• CUNHA, Carolina, Manual de Letras e Livranças, Almedina Coimbra, 2015
• CUNHA, Carolina, “Vinculação cambiária de sociedades: algumas questões”, Nos vinte anos do Código
das Sociedades Comerciais - Homenagem aos Prof. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e
Vasco Lobo Xavier, vol. I, “Congresso Empresas e Sociedades” Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 361-
393.
• CUNHA, Carolina, “Pluralidade de avalistas e direito de regresso” anotação ao Acórdão de Uniformização
de Jurisprudência n.º 7/2012, de 5.6.2012, Cadernos de Direito Privado, n.º 40, Outubro/Dezembro 2012
• CUNHA, Carolina , “Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência”, Direito
das Sociedades em Revista, ano 5, vol. 9, março 2013, pp. 91-114
• CUNHA, Carolina, “Nulidade do contrato garantido e aval em branco – anotação ao Acórdão do Tribunal
da Relação de Coimbra de 19 de Fevereiro de 2013”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 143º,
Setembro/Outubro 2013, n.º 3982, p. 53-80
• CUNHA, CAROLINA, "Quando querer é poder: David, Golias e o conhecimento pelo Banco da vontade
real do sócio-avalista que cede a sua quota - anotação ao Acórdão do STJ de 16 de Maio de 2018", RLJ, ano
148º, n.º 4015, março-abril, 2019, p. 238-269
• CUNHA, Carolina, Letras e livranças: paradigmas actuais e recompreensão de um regime, Almedina,
Coimbra, 2012

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