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Jose Tolentino As Estrategias Do Desejo
Jose Tolentino As Estrategias Do Desejo
As Estratégias do Desejo
2. edição acrescida
ª
Cotovia
Título: As Estratégias do Desejo
1. ·1 edição: Junho de 1994
© José Tolenrino Mendonça
e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2003
ISBN 972-795-077-9
À memória de
meu pa1
Índice
I ntro du ção
11
O corpo de Deus 35
A Providência, ternura de Deus 41
1. A Bíblia a c o n tas com a hera nça c lássica 43
2. A P r ovidência expressão de D eus
, 46
3. P rovidê n cia e História 49
4. Exerc íci o da Pater nidade Divina 52
AS ESTRATÉGIAS DO DESEJO
Introdução
11
ao entendin1ento que é semp re o jogo da identidade
que se joga quando se fal a de realidades tão diversas e
coincidentes como o corpo que é o Homem e o c o rpo
que é Deu.s.
' Egoí s ta
'. E o último saiu na revista de teologi a 'Com
m unio'. A eles e aos leitores a minha gratidão.
12
As Estratégias do Desejo
A definição do lugar
l 5
A primeira constatação, a fazer, é que o 'texto bíbli
co' tornou pro ano o domínio da sexualidade. Tomemos
f
três exemplos:
17
Os três conhecem já enumeração no capítulo XVIII
d' O Livro dos mortos: «0 g rande tribunal divino que
está em Heliópolis é Atum, é Shu, é Tef nut» 1•
Shu e Tefnut, por sua vez, geram os rcstan ces deu
ses da enéada, conjunto de nove deuses que, segundo a
cosmogonia de H eli ó polis representam as forças do
,
universo.
Noutro registo, c()nstatemos, ainda como exemplo,
as atribuladas pe ripé c ias sexuais en tr e e ntida des divinas
e os humanos. O informado roman ce de Roberto
Calasse, As núpcias de Cadmo e Harmonia2 - que des
creve a última vez que os deuses se sentaram à mesa com
os h ome ns, para uma festa - dá-nos o resumo dessas
peripécias na mitologia grega: Zeus, sob a forma de um
touro branco , raptou a princesa Europa; Dionísio vio
lou Aura; Coronis traill Apolo com um mortal; Apolo
foi servo de Admeto por amor, etc.
A sexualidade era p ois, no Mu ndo Antigo, divina e
religiosa A representação iconográfica das di vinda des
.
18
(Deus tem um rosto - Ex 33, 11; olhos - Sl 11, 4;
Deus ouve - Num 11, l; D e us como um sábio oleiro,
,
19
a humanidade-, escrito nas colunas azuis e verdes das
Pirâmides de Saqqara e que reúne ele1ncntos literários
de natureza muito diversa (desde listas de oferendas a
fórmulas mágicas, desde hinos litúrgicos a lendas divi
nas), com o intuito de assegurar eternamente a sobrevi
vência do Faraó, alude a este facto.
Se o Faraó se ergue em tão improvado vôo, se ele se
levanta, pássaro, escaravelho ou gafanhoto rumo ao
celeste Campo das Oferendas, se ele não tem de enfren
tar o i mortal juízo de Osíris antes de se instalar num
dos tronos do céu é porque, desde a sua origem, foi
divino.
Relevante é também o caso de Sargão (monarca
Acádico), que não tendo sido gerado por intervenção
divina, é-lhe concedida uma prerrogativa única, ligada
ao âmbito da sexualidade. Diz o Canto de Sargão:
«. . enquanto eu era jardineiro, Isharar (uma deusa) me
.
20
Ambas estão nos Livros de Samuel. A primeira (lSam 9,
1-10), que vê a monarquia como uma proposta posi
tiva, apresenta a iniciativa como tendo partido de Deus.
É Ele quem escolhe Saúl (o primeiro rei de Israel) para
libertador do seu povo, co ntinuando a tradição dos fuí
zes7, homens e mulheres que Deus suscita como garan
..,
21
recai uma condenação moral (2Sam 12, J -1 5) e uma
descrição, no mínimo anti-heróica, da sua velhice (ele é
apr esentado com extrema di fi cu l d ade cm gerir as
manobras palacianas dos seus filhos que disparavam
entre si a sucessão - lRei, 1-1 O).
É verdade que o Salmo 2 (2, 7) diz do rei : «tu és
meu filho/eu hoje te gerei». Mas é claro que aqui se
trata de uma adopção. O mon a r c a é assumido por
Deus, por isso é ungido (lSam 16, 13). Como esc rev e
Roland de Vaux, «a religião de Israel, com a sua fé em
Iahweh Deus pesso al único e transcendente, tornava
,
22
damental no culto de muitos povos e a sexualidade uma
via privilegiada de comunicação com os deuses10•
Em Heródoto (490/480 a. C.) temos uma desapie
dada descrição deste fenómeno que ele con sidera 'o
mais torpe dos costumes babilónicos':
«Toda a mulher natural do país tinha de ir ao
santuário de Afrodite (na verdade, de Belit), uma vez na
vida e unir-se a u.m homem estrangeiro. Muitas, evi
tando, por desdém, misturar-se com as outras, so berbas
como s ão das suas riquezas, fazem-se transportar ao
templo em carros cobertos e colocam-se ali, rodeadas
por nu merosas servas. Mas a maioria faz assim: no san
tuário de Afrodite põem-se sentadas com uma coroa de
corda (sinal de obediência à deusa) em torno à cabeça;
umas chegam, outras partem. Em todas as direcções,
por entre as mulheres, existem passagens e atraves
sando-as os estrangeiros escolhem. Quando uma
mulher tomou lugar ali não regressa a casa sem que um
estrangeiro, atirando-lhe para o colo u mas moedas, se
tenha unido a ela.» 11 •
23
co n jugal) Neste último caso a atit ude idol átrica era
.
12
SICRE, J., Los dioses olvidados, Madrid, 1979, p. 82.
u MAILLOT, A., "Le sexe dans la Bible" in Foi et Vie( 1975), p. 59.
24
A serp en te aparece regi sta da em m úl tip la s tra dições
do antigo médio-oriente. As escavações arqueológicas
têm permitido concluir que nessa reg ião a serpente er a
utilizada como emblema para certas divindades femini
nas da vegetação e da fecun didad e (Ishtar, Astan, Anat),
como ex pressão da sua maternidad e fecunda. Em
Canaã, por exempl o a serpente era o b j e cto de culto
,
11
RAVASI, G., El librodeLGénesis {I-11), Barcelona, 1992, p. 140.
25
A fé de Israel rep resenra, portanto, neste don1ínio
da relação divindade/sexualidade, uma verdadeira vira
gem: o seu Deus é um Deus Outro. A sexualidade é des
divinizada. Assume-se como puramente criatura!. Isco
não quer dizer que a sexualidade humana lhe seja indi
ferente. Quer dizer sim que ela é entendida de uma
nova maneira. Recusa-se a categoria da 'hybris' para
acolher a categoria da ética.
Gen l, 24-31:
«Deus disse: 'Façamos o ser humano à nossa ima
gem, como nossa semelhança, e que eles domi nem
sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que raste
jam sobre a terra'.
26
Neste relato o hom em é ime diat amen t e criado
casal, 'macho e fêmea' (1, 27). Não há um sexo preli
minar (dito fort e) co mpleta do mais tarde por um sexo
s ecu n d á rio (ou fraco), como aco n tece, um pouco na
nar ração de Gen 2 (tida como bastante mais antiga) .
À partida temos o casal.
O homem é dito Zâkâr e a mulher Nekêvah. Est es
termos são m uit o significativos, p or que tentam uma
de fini ção dos dois elementos humanos a partir da
dimensão sexual. Zâkâr é o macho, e é t am bé m o
'membrurn virile', enquanto Nekêvah é 'aquela que se
rasga, que se penetra'. Estas eti mol o gias asseguram-nos
que «a sex:ualização do homem não é uma consequência
da que da (nem do pecado). É desde a sua criação que o
casal humano é se x ua do» 15•
O cas al é chamado a 'imagem de Deus» o que não
significa um deus andrógino ou am b ivalente . . sign i fi ca
.
27
Por outro lado, em toda esta narração nada de pejo
rativo surge ligado à definição sexual do ser humano.
Ela pertence ao número das coisas que Deus considerou
'muito boas', ao concluir a Sua obra criadora. E surge
ligado à ampla mi ssão confiada ao ser humano. Serve o
mandato do 'Crescei e mulci plicai-vos'? Certamente.
E tam bém ao 'sujeitar e dominar', características tão
excelentemente reais que são p ertença de todos os
homens, não só de alguns.
28
selo em teu coração/ como um selo em teu braço;/ pois o
amor é for te como a morte .. .' (Ct 8, 6).
Falam do seu amor com uma intensidade taJ que
nos fazem ver, como escreve Paul Beauchamp, que «não
existe sexualidade sem a palavra , como não existe
desejo. A sexualidade humana é aquela que é dita»17•
Os rabinos, no sínodo de Jabneh (90 d. C.), dis
cutiram sobre a canonicidade do Cântico dos Cânticos.
Alguns achavam-no demas i ado ch eio de paixão.
E lame ntava m se, sobretudo, que fosse, frequentemente,
-
repetido em tabernas.
Mas na 'Mishna' es ta escrito: «Ü mundo inteiro
não é digno do dia em que o Cântico dos Cânticos
foi dado a Israel. Todos os livros da Bíblia são santos,
mas o Cân tico dos Cânticos é o mais santo de todos»
(Mishna, Yadayim, 3, 5).
Santa Teresa de Ávila diz recordar s e «de ouvir a-
29
Um dos contributos mais originais que a moder
nidade inscreveu na história da in terpretação deste sin
gular livro tem sido o da sua intersecção com outros
campos culturais, valorizando assim o fenómeno da
interrextualidade. Os pólos que mais frequentemente
recorrem neste confronto são o egípcio, o mesopotâ
mico e o da área sírio-palestina.
A dar confirmação a uma influência egípcia (suge
rida, por exemplo, pelos perturbadores paralelos entre
algumas passagens do nosso livro e textos contidos quer
no Papyrus Harris 500, descoberto no Ramesseum de
Tebas, quer nos Cantos da grande alegria do coração do
Papyrus Chester Beany I), o Cântico dos Cânticos seria
uma antologia de textos de diversão destinados, no
Egipto, às ocasiões festivas.
Esta tese tem um aliado vigoroso e imprevisto em
Teodoro de Mopsuéstia que, no séc. V, contestava a
canonicidade do Cântico dos Cânticos dizendo que ele
celebrava, «sem intenção suplementar, as núpcias de
Salomão com uma princesa egípcia»2º.
30
escrito bíblico, fornece alguns contributos esclarece
dores, ele não elide uma dificuldade essencial: o facto
do estudo comparativo ser extrem a mente fra g m entá
rio, ignorando, como escreve Anne-Marie Pelletier, «a
coerência glo bal do texto» e a Slla «inserção num con
texto singular que o q ualifi ca e o interpreta necessa
riamente»21.
O Cântico dos Cânticos retoma vocabulário comum
aos cul tos e rituais de exercícios religiosos coevos,
nomeadamente vocabulário hierogâmico, ma.s fá-lo
para o reinscrever num contexto que nega a relação
mitológica do homem e da mulher, formulada ªGui em
t er mos históricos e não enquanto panicipação mágica
do horizonte humano no divino.
Esce livro, do séc. V ou IV a. C., como de fen de
Mailloc, «é, portanto, uma des mit i z a ção uma huma ,
21 ibidem, p. 10.
21 MAILLOT. op. cit., p. 70.
31
como su j e i to ) que não co nse g uiam reso l uçã o em ourros
tipos de discurso, conseguem-na primeiramente no dis
curs o am o ros o.
Na o p ini ão d o t e ó l o go Karl Banh, os rextos de
Gen 2 e o do Cântico dos Cânticos são os que, no Antig o
Te st a m en to, pers p ec t iva m de modo mais ori ginal o
amor h u m a no.
A tendência predominante é a que situa a sexuali
dade do Ser Humano em função quase exclusiva da
post e rida d e e, por conseguinte, no contexto da vocação
de s te povo e da sua expectativa m essiân ica (um dos
nascidos, entre os descendentes de David, seria o Mes
sias, por isso a instituição ma tri mo nia l eta tão impor
tante).
No Cântico dos Cânticos te mos a afirmação d e um
outro aspecto (em ve rda de mais complementa r que
,
Oseias 2
32
mónio com uma prostituta, que vem descrito nos pri
meiros capítulos.
Alguns autores defendem para este acontecimento
uma natureza inteiramente ficcional; uns crêm n a hipó
tese literal; outros pensam que tratar-se-ia simples
mente de uma mulher que, após o casamento, foi infiel
ao profeta; e outros, ainda, defendem mesmo que a
33
Terceiro movimento: o amor não tem fim. t ele,
por fi1n, diz: ' levá-la-ei aos lugares do amor' para 'falar
-lhe ao coração'.
34
O Corpo de Deus
Deus não tem co rpo. O d i scu rso b í b l ic o sobre
Deus emerge deste escândalo. A Divi ndade é i r re p re
sen tável, transcendente, envolta em mistério. Os deuses
dos povos vizinhos, esses têm u m corpo, s ã o imagens,
no mes que se recitam. O Deus da B íblia deixa em silên
cio o pensamento dos hom ens, trans u m a n te, i m p ro
n u nciável como a luz, i legível e desc o n h ecido. As suas
teofa n ias são aco n teci men t os desa r m a n tes, p o rque
37
das represen rações. Por paradoxo, pode r-se-ia dizer: o
corpo d e Deus é u ma voz.
38
A i sã o do corpo de Deus c ontagia o observador de
v
E é também o co rpo a m an te .
39
exegese j udaica e na dos Padres da Igrej a. É assim na
extraordi nária visitação q ue a este livro faz São João da
Cruz.
40
A Providência, tern ura de D e u s
1. A Bíblia a contas com a herança clássica
43
citude (pronoías) do rei não seria mais possível alcançar
a paz».
Esta herança helén ica vai permiti r as duas ún icas
anotações di rectas de Prov idência do A ntigo Tes ta
n1ento, am bas no livro da Sabedoria2• A primeira em
Sab 14,3 ( « mas é a tua Providência, ó Pai, que conduz
(o barco), pois até no mar abriste um can1 in ho») e, a
seguinte, em Sab 1 7, 2, numa a lusão aos ím pios «reclu
sos sob seus tectos, b a n i dos da eterna Providência».
44
Uma das constantes da Teologia Bíbl ica é n1esmo a
ali rmação de que Deus não abandonou o mu ndo após
o acto criador, mas co ntinua a agir nele, de múltiplas
maneiras, manifestando solicitude. Bastaria, por exem
plo, evocar o Salmo 104 que fornece, em extraordinário
registo lírico, uma meditação sobre o processo criador,
enquanto obra divina no presente («De tuas altas mora
das regas os montes,/ e a terra sacias com o fruto de tuas
obras;/ fazes brotar erva para o rebanho/ e plan tas úteis
ao h o mem/ para q ue d a terra ele t i re o pão/ e o v i n ho,
que alegra o coração d o homem;/ para que ele faça o
rosto brilhar com o óleo,/ e o pão fortaleça o coração do
homen1» (v. 1 3- 1 5).
«Aqu i l o q ue está no coração do SI ] 04 é esta evi
dência de q ue o mundo i nteiro está aberto a Deus. Em
cada momento da sua existência o mundo tem necessi
dade do sus tentam e n to que lhe vem de Deus, espera
tudo de Deus»6. Por isso, B u ltmann escrevia também
q ue o SI 1 04 «atesta a fé na Providência»7. Esta mesma
li nha de entendimento atravessa outros salmos (veja-se,
por exem plo, 1 45, 1 5s.; 147,Ss.), mas também os textos
proféticos ( I s 6,3; Os 2 , l O) e sapienciais (Job 9 , 5 ) ,
constituindo uma espécie de visão global .
45
2. A Providência, ex pressão de Deus.
46
vem a ti/ por causa de seus pecados;/ nossas faltas são
mais fo rtes do que nós,/ mas tu no- las perdoas. / Feliz
q ue m escol h es e aprox i m as , / p a ra hab i ta r em teus
átrios./ Nós nos saciamos com os bens da tua casa, / com
as co isas sagradas do teu Te m plo./ Com prodígios de
j ustiça nos respondes,/ ó Deus nosso salvador,/ espe
rança dos co n fi ns da terra/ e das i lhas longínquas./ Tu
m a n téns as mo ntan has com a tua fo rç a ., / c ingido d e
poder;/ aplacas o estrondo dos mares,/ o est:rondo d e
suas ondas/ e o tumulto dos povos./ Os h ab i tantes dos
confins da terra/ temem frente aos teus sinais;/ fazes gri
tar de alegria/ as portas da manhã e as da tarde./ Visitas
a terra e a regas ., / cum ulando-a d e r i quezas./ O r i bei ro
de Deus é cheio de água,/ tu p reparas a sua seara./ Pre
paras ass im a terra:/regando-lhe os su lcos,/ aplanando
seus torrões,/ amolecendo-a com chuviscos,/ abençoan
do- l h e os b rotos . / Coroas o ano com a tua bondade,/ à
tua passagem goteja a abundâ n c i a ; / gotej am as pasta
gens do deserto/ e as co l i nas c i n gem-se de j úbilo;/ os
cam pos cobrem-se d e rebanhos,/ os vales vestem-se de
esp igas:/ gritam de alegria e canta m . »
47
q uerido so b ret u d o à l i tera t u ra sa p ie n ci al » 1 0 (v.7-9) ,
quer de maneira graciosa, como u m ca m ponês da pai
sage n1 ru ral palesti nense, um 'pater fam ílias' que l abora
a terra, recolhe o trigo e se afana para a l i mentar os seus
(v. 10- 1 4) . De urna i m agem para outra (a pri meira epo
peica, esta segu n d a quase b u cól i ca , reproduzindo em
preciosa m i n iatura o quotidiano cam pes tre) , só uma lei
tura m u i to l i gei ra detectaria qualquer t i po de abranda
mento ou d i m i n u i ção no v igor metafórico. É p recisa
mente o con trá r io aq uilo que aco n tece. Como defende
Ravas i, « n u m certo sentido, todo o sal m o evolui para
este fi nal grá c i l e s i m ples» 1 1 , em q ue se percebe que o
poeta se deixou contagiar pel a ternura de Deus. Melhor
até que o enredo cos mol ógi co dos actos fundadores,
o n de ai n d a se respira, de alguma fo rma, a atmosfera
mítica do oriente a n tigo, o registo h istóri co, co m a sua
ri q u eza de pormeno res, as s uas i m age n s c o l h idas da
existência q uotid ia n a , o seu cioso reali s m o testemunha
ampl amen te a orig i nal idade d a Fé de Is rael 12.
Do m ito passa - se à so teri o l o gia, enquanto p u lsar da
gesta de Deus n a H istória. As acções d ivi nas não estão
contidas ap e nas n o excepc i o n a J tempo das origens, mas
atravessa1n e resgatan1 o tempo ordi n ár i o, profà n o , pre
sente. E esta 'travess i a' torna-se n ítida sem p re que se
refere a P rov i d ê n c i a Divina. É corno se o texto sagrado
10
RAVASI, G., II Libro dei Snfmi, Vol. I I , p. 309.
1 1 RA VASI , G . , p. 3 1 0.
48
'tropeçasse de tern u ra', para rec o rre r à i n si n u a n te
expressão d o poeta con te m porâneo l.\ e a narrativa
ganh asse, à custa desse m o t i v o a lentidão das co n fidên
,
3 . Providência e H istória.
49
nós, e seus segredos/ a n o i te os escuta com mil ouvidos, /
e os repete, d e vaga em vaga . . . »11• Na Bíbl ia, a h istória
transparece d e Deus, como o rosto de M oisés transpa
recia, mesmo debaixo do véu (Ex 34 , 3 5 ) . É n a h istória
que a Providência se manifesta.
Manifesta-se n as h i stórias i n d i v i d ua i s . Quer
quando as existências parecem asseguradas e o seu dese
n h o estavelmen te defi n i d o («Sai da tua terra», disse
I ahweh a Abrão - Gen 1 2, 1 ) , quer q uando atravessam
o vau n octurno d a angústia (o anjo d o Senhor diz à
escrava fugit iva, « Iahweh escutou a t u a aflição» G e n
1 6, 1 1 ) o u quando, sim plesmente, a so l eira do fu turo se
abre i ncerta diante d e n ós («lah\.veh, m ostra, eu ce peço,
se estás disposto a l eva r a bom termo o cam i nho que
percorri» Gen 24,42).
11
SAFO, Poemas e fragmentos (rrad. de Eugénio de Andrade), Porco,
1 99 5 . p. 94.
, .., Cf. PROVAN, l . , Hezekiaht1nd rhe Books ofKmgs. A Coniribution
to the Debate llbout the Compos1tion of tht Deuttrononzistic History, Bcrl1n
- New York, 1 988.
50
dize n do: «Até aqui lahweh nos socorre u » , é o di l ata r
dessa frontei ra da t ern ura div ina que, s i m bolicamente,
e l e es tava também a assinalar. Mas tantos outros ep isó
d i os pode m ser a l ud idos : a v i tó r i a do frágil Dav i d
( 1 Sam 1 7) ; a fari n ha e o óleo i nesgo táve is , na casa da
v i úva de Sar ep ta ( l Re 1 7 ,7); a cu ra do rei Ezequ ias ,
po rque Deus « v i u » as «abundantes l ág r i m as » que ele
chorou ( 2 Re 20) .
O reco n heci mento que a teol ogia deuteronom ista
faz da Prov id ê n c ia na h istória é suportada p o r esquemas
tão d ec lara dos , de u m a configu ração real ista tão acen
tuada, que pode m até surpreende r. To memos, para i l us
t rar, a p rece que Sa lomão faz, pelo povo, na sagração do
Te m p lo: «Quando Israel, teu povo , for vencido dia n te
do i n i m igo , p o r haver pecado contra t i , se ele se con
ver te r, louvar teu Nome, o rar e supl icar a t i neste Tem
p lo escuta n o céu, perdo a o pec ad o de I s rael, teu povo,
,
51
sempre a o homem op rar. E, p o r isso, a historiografia
deutero n o m ista, narra as peripécias de tan tos reis q ue se
afastaram do Senhor ( I Re 1 3 ,33; 1 4,22-24).
O desenvolvi mento e o benefício da Provi dên cia
surgem como expressões da fidel idade à Al iança. É na
h istória que a Providência se m a n i festa, m as na h iscória
de uma Aliança, desse comércio todo p u ro e l ivre a que
chamamos amor.
52
Pai , que está nos céus, que um d es ce s pequen i nos se
perca» ( M t 1 8, 1 4) . Por isso, nas perseguições « q u an d o
vos en tregarem, n ão fiqueis p reocupados com o que
haveis de falar. Naquele mome n to vos será indicado o
que haveis de dizer» ( M t 1 0 , 1 9) ou, na si tuação l i m i te
do ma rt í rio , 1< não tem a is os que n1atan1 o corpo, mas
não podem matar a al ma. ( . .. ) Quan to a vós, até mesmo
os vossos cabelos fo ram co n t ados» (Mt 1 0 ,28.30) .
Na passagem de Mt 7,9- 1 1 (Lc 1 1 , 1 1 - 1 3), o dis
c u rso s o b re a Providê ncia a lcança p a r t i c u lar intensi
dade: «Se vós que sois maus sabeis dar boas dádivas aos
vossos fi l hos, q uanto n-1ais o vosso Pai que está nos céus
dará coisas boas aos q ue lhe pedem» . J es us exorta abso
lutame n te à con fiança em Deus corno « na terna bon
dade de um pai » 1 8 que faz esp l en der o s o l da sua ternu ra
sobre bons e maus (M t 5,4 5 ) .
53
ENTREPOSTOS
A CIDADE DE COBRE
G I L DL CARVAI I 10
DEIXA R A VIDA
)0Rc1 Su VA M n.o
t r ê s r a 1 õ e s
LIVROS COTOVIA