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José Tolentino Mendonça

As Estratégias do Desejo

Corpo e identidades: um discurso bíblico

2. edição acrescida
ª

Cotovia
Título: As Estratégias do Desejo
1. ·1 edição: Junho de 1994
© José Tolenrino Mendonça
e Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2003

Com autorização eclesiástic3

ISBN 972-795-077-9
À memória de
meu pa1
Índice

I ntro du ção
11

As Est ratégias do Desejo


13
A Definição do Lugar
15
1. A des-sexualização da imagem de Deus 17
2. Redimensionamento da r elaçã o Deus/Rei 19
3. O templo e o culro: da «Hybris» à Ética 22
4. Alguns tex to s 26
4. 1. Deus viu que tudo era muico bom 26
4.2. Grava-me como selo em teu coração 28
4.3. Tor nar incessantemente aos lugares do amor 32

O corpo de Deus 35
A Providência, ternura de Deus 41
1. A Bíblia a c o n tas com a hera nça c lássica 43
2. A P r ovidência expressão de D eus
, 46
3. P rovidê n cia e História 49
4. Exerc íci o da Pater nidade Divina 52
AS ESTRATÉGIAS DO DESEJO
Introdução

William Blake chamava à Bíblia o grande códice da


Arte ocidental, reconhecendo como a navalha tremelu­
zente do seu brilho continua a iluminar a interminável
narrativa da criação. E tem acontecido que, entre as mais
significativas práticas de cabotagem (não é isso a leirura,
navegação entre portos?), estejam os relatos de estudio­
sos que chegaram à Bíblia vindos da literatura: Oll por­
que aprofundavam os procedimentos do realismo na
literatura ocidental, como Auerbach; ou porque estuda­
vam o modo como a literatura recorre à energia dos sím­
bolos, Norrhrop Frye; ou porque simplesmente, como
Alter, se interessavam pela Novela Picaresca e Ste11dhal.
Está, de a l guma maneira, a alterar-se uma certa
conjuntura intelectual que remetia a Bíblia para o espe­
cífico domínio do religioso, esquecendo que a condição
teológica da Bíblia é inseparável da sua natureza pro­
priamente literária. Também por i sso me pareceu
importante que, numa colecção com textos publicados
de David Mo urão-Ferreira e Gil de Carvalho, entre
outros, permanecesse esta pequena incursão pelo terri­
tório bíblico, agora revista e acrescida de um ou outro
endereço.

Quem tenha acompanhado a primeira edição veri­


ficará que alterei o subtítulo do texto, agora 'corpo e
identidades: um discurso bíblico'. A principal razão
ligar-se-á ao contributo dos 11ovos textos, mas também

11
ao entendin1ento que é semp re o jogo da identidade
que se joga quando se fal a de realidades tão diversas e
coincidentes como o corpo que é o Homem e o c o rpo
que é Deu.s.

Ag radeço muito ao editor André Jor ge a generosi­


dade de me ter editado em 1994, e pa s sad os quase dez
ano s para que a edição se esgotasse, me t en h a ainda
contactado de novo. Uma fé, o que quer que tal as som ­

bros a p alav ra designe, é o secreto ofício de todo s .


O p ri m ei ro ensaio, que dá o nome ao v o lu m e ,

reproduz, etn g r a n de medida, uma comunicação reaU­


zada em Coimbra, n u m as J o r nadas d o Moviment o
Católi co de Estudantes. Lembro-me do convite de José
Manuel Pereira de Almeida e de uma boleia de Olí m pi o
Ferreira até ao comboio. O segundo escrevi-o, por un1
p ed ido de António Mega Ferr ei ra que me chegou via
Ilda David', para o número sobre De u s da revista

' Egoí s ta
'. E o último saiu na revista de teologi a 'Com­
m unio'. A eles e aos leitores a minha gratidão.

12
As Estratégias do Desejo
A definição do lugar

A lite ratura policial escá cheia de exemplos em que a


solllção de um enredo depende da definição do lugar
onde a acção acontece. Se Poirot ou o melancó l ico
detective Phil ip Marlowe puderam desvelar al guns in­
tricados fios do espírito do século foi pela sua meticulo­
sa aplica ção ao real: recolh.e ndo fragmentos, atendendo
a sinais que outros esqueceram, reconstruindo situações
e vivências, lig ando histórias aparentemente incompatí­
veis e diversas.

Esta defi nição do l ugar' é também


' uma obrigação
para a Teologia que, na senda do Concílio Vaticano II,
elegeu o Ser Humano como instância privilegiada para a
sua el aboração. E um Ser Humano não tomado univo­
camente no seu apelo espiritual, mas sempre olhado na
globalidade do seu estar-no-mundo. Como se diz no
fundamental documento que é a Gaudium et Spes, «a
própria dignidade humana exige que o homem glorifi­
que a Deus (também) no seu corpo».

Este é um pequeno livro sobre a glória.

l 5
A primeira constatação, a fazer, é que o 'texto bíbli­
co' tornou pro ano o domínio da sexualidade. Tomemos
f
três exemplos:

1. A des-sexualização da imagem de Deus

São inúmeros, no Mundo Antigo, os relatos das


proezas sexuais dos deuses ou dos filhos dos deuses. Mer­
gulhando, ainda que de modo muito sumário, nos exu­
berantes olimpos de um tempo, podemos assi stir à
descrição de fantásticas crenças.
Tômemos, por exemplo, a implicação sexual na
origem dos próprios deuses e do mundo. Surge-nos
então Atum, divindade local de On (Heliópoli s), no
Egi pto deus do sol que se põe, protector do nocturno
,

reino dos defuntos. Na teogonia que os sacerdotes de


Heliópolis lhe dedicaram, Atum irrompe, por sua pró­
pria força e artifício, das águas iner t e s «Quando me
.

manifestei à e xistê n ci a , esta existiu», explica o criador


,
autogeneo.

Porém, Atum logo experimenta o tormen(oso


devaste da solidão. Não existia mais nenhum ser. Dese­
joso de companhia, protagoniza o engenhoso processo
de autofecundação em que Shu (o Ar) e Tefnut (a
Humanidade) são ge ra dos .

17
Os três conhecem já enumeração no capítulo XVIII
d' O Livro dos mortos: «0 g rande tribunal divino que
está em Heliópolis é Atum, é Shu, é Tef nut» 1•
Shu e Tefnut, por sua vez, geram os rcstan ces deu­
ses da enéada, conjunto de nove deuses que, segundo a
cosmogonia de H eli ó polis representam as forças do
,

universo.
Noutro registo, c()nstatemos, ainda como exemplo,
as atribuladas pe ripé c ias sexuais en tr e e ntida des divinas
e os humanos. O informado roman ce de Roberto
Calasse, As núpcias de Cadmo e Harmonia2 - que des ­
creve a última vez que os deuses se sentaram à mesa com
os h ome ns, para uma festa - dá-nos o resumo dessas
peripécias na mitologia grega: Zeus, sob a forma de um
touro branco , raptou a princesa Europa; Dionísio vio­
lou Aura; Coronis traill Apolo com um mortal; Apolo
foi servo de Admeto por amor, etc.
A sexualidade era p ois, no Mu ndo Antigo, divina e
religiosa A representação iconográfica das di vinda des
.

sublinhando o seu carácter sexuado, tão comum às c ul­


turas da A ntiguidad e é disso claro testemu nho.
,

Esta concepção é alterada na religião de Israel e


contra ela se alinham as suas teologias mais proem inen­
tes. Na verdade, corno recorda Nunes Carreira, «apesar
dos laços culturais comuns a todo o Pr óximo Oriente,
das cataratas do Nilo ao Mar Cáspio, cada povo experi­
mentou o di vino à sua maneira»3.

Ainda que a li nguage m bíblica atribua a Deus, em


c ercos passo s, forma, sentimentos e acções humanas

1 O livro dos mortos do Antigo Egipto (Trad. porr.), Li�boa, 1991,


p. 54.
! CAI.ASSO, R., As míprias dt Cadmo e f!annonitt, Li!.hoa, 1990.
l CARREIRA, J., Mito mundo e monoteísmo, Li.sboa, 1994, p. 132.

18
(Deus tem um rosto - Ex 33, 11; olhos - Sl 11, 4;
Deus ouve - Num 11, l; D e us como um sábio oleiro,
,

modela o h o m em a p a rt i r do pó da terra - Gn 2, 7),


ela evidencia sempre a convicção profunda de que Deus
não é um homem.
Diz-se no Livro do profeta Oseias (11, 9): «eu sou
um Deus e não um homem, eu sou santo no meio de ti».
Ora o termo santo (em hebraico qds) aplicado a Deus,
costume já muito frequente no Canaã pré israelítico e -

que I srael depois adopta, resume aquilo a que H.-P.


Muller designa por «correspondência contrária»4 entre a
luminosidade divina e a sinuosa obscuridade da palavra
humana.
Deus é, por conseguinte, entrevisto como alteri­
dade. Alteridade que ex i ge a afirmação inequívoca da
sua transcendência em relação ao fenómeno humano e
ao seu habitat cósmico.
Mesmo as referidas marcas antropomórficas que o
texto bíblico guar da com vantagem de apresentar nar­
,

rativamente um Deus vivo, próximo do homem, estão


submetidas à despoja d a norma da proibição das ima­
gens, garantia da impossibilidade de reduzi r o Deus de
Israel à categoria de ídolo.

2. Redimensionamento da relação Deus/Rei

Nas culturas vizinhas a Israel, a divindade intervém


na criação do rei. Os Textos das Pirâmides, o primeiro
grande livro (funerário) do Egipto Antigo - e de toda

4 MULLER, H.-P., "qds-Santo" in JENNI - WESTERMANN,


Dizionario Teolo gico dtll'Antico Testarnmto II. Perugia, 1982, p. 538.

19
a humanidade-, escrito nas colunas azuis e verdes das
Pirâmides de Saqqara e que reúne ele1ncntos literários
de natureza muito diversa (desde listas de oferendas a
fórmulas mágicas, desde hinos litúrgicos a lendas divi­
nas), com o intuito de assegurar eternamente a sobrevi­
vência do Faraó, alude a este facto.
Se o Faraó se ergue em tão improvado vôo, se ele se
levanta, pássaro, escaravelho ou gafanhoto rumo ao
celeste Campo das Oferendas, se ele não tem de enfren­
tar o i mortal juízo de Osíris antes de se instalar num
dos tronos do céu é porque, desde a sua origem, foi
divino.
Relevante é também o caso de Sargão (monarca
Acádico), que não tendo sido gerado por intervenção
divina, é-lhe concedida uma prerrogativa única, ligada
ao âmbito da sexualidade. Diz o Canto de Sargão:
«. . enquanto eu era jardineiro, Isharar (uma deusa) me
.

assegurou o seu amor, de modo que eu por quatro anos,


tive o poder de soberan o »5. . . .

De modo semelhante os reis Sumérios se orgulha­


vam de, como esposos ou amantes, partilharem o leito
da deusa Inanna.
Em Israel, acerca da instituição da realeza, conser­
varam-se duas tradições que radicalmerte se opõem6•

� Cic. por MURRAY, O., La Grecta dei/e origini, Bologna, 1983,


p. 171.
6 A tese rradicional sobre a origem desra diverc;idadc, que teve como
paladino J. Wellhausen, defende que estamos aqui perance duas fon res:
uma amiga (a favorável à monarquia) e ouna mais recente (ligada ao

judaísmo pós-exílico, que culpabilin a monarquia das irrec;pomab1lid.ides


religiosm e políticas que teriam provocado o exílio).
Contudo, hoje, um número crescence de autores (nomeadamente
Jobling, Gerbrandt, Eslinger, Sicré, erc.) inrerroga o presumível caduer
anti-monárquico dos rexros cm questão, preferindo enrcnder que 'quando
se critica um rei, não se o fa1 por s er um rei, mas por �cr um mrn rei'.
Quanto à di,·ersidade textual, em vez de fontes diferences, fala-se �imples­
mence de difoenres redacrores.

20
Ambas estão nos Livros de Samuel. A primeira (lSam 9,
1-10), que vê a monarquia como uma proposta posi­
tiva, apresenta a iniciativa como tendo partido de Deus.
É Ele quem escolhe Saúl (o primeiro rei de Israel) para
libertador do seu povo, co ntinuando a tradição dos fuí­
zes7, homens e mulheres que Deus suscita como garan­

tes d a inteireza e da identidade de Israel.


Na segunda tradição (desfavorável à monarquia)
não é Deus que propõe o rei como Sua mediação, mas
é o povo que pede um rei, para assim ter uma configu­
ração política semelhante à dos outros povos (lSam 8,
20). E na hora da instituição da realeza, o profeta não
deixa de prevenir os seus pesados inconvenientes: «Este
é o direito do rei que reinará sobre vós: Ele convocará
os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de
guerra ... e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara,
fabricar as suas armas de guerra e as peças dos seus car­
ros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozi­
nheiras e padeiras. 'Tomará os vossos campos, as vossas
vinhas, os vossos melhores olivais e os dará aos seus ofi­
ciais ... Os melhores dentre os vossos servos e as vossas
servas, os vossos bois e os vossos jumentos, ele os
tomará para o seu serviço» (1 Sam 8, 10-16). Portanto
uma visão cruamente desmistificada.
De igual modo o povo nunca se eximirá de fazer
um juízo negativo da actividade dos monarcas (2Re 1 3,
1; 14, 24; 1 Cr 21), facto que não acontece quando pre­
domina uma visão sacralizada do poder. Mesmo sobre
David, o ungido do Senhor, o rei segundo o coração de
Deus, tomado como paradigma pelo entusiasmo popu­
lar, pela literatura de corte e pelos círculos proféticos,

..,

7 Contudo, posreriormen re, o próprio Deus reti rará a realeza a Saúl em


favor de Da\id.

21
recai uma condenação moral (2Sam 12, J -1 5) e uma
descrição, no mínimo anti-heróica, da sua velhice (ele é
apr esentado com extrema di fi cu l d ade cm gerir as
manobras palacianas dos seus filhos que disparavam
entre si a sucessão - lRei, 1-1 O).
É verdade que o Salmo 2 (2, 7) diz do rei : «tu és
meu filho/eu hoje te gerei». Mas é claro que aqui se
trata de uma adopção. O mon a r c a é assumido por
Deus, por isso é ungido (lSam 16, 13). Como esc rev e
Roland de Vaux, «a religião de Israel, com a sua fé em
Iahweh Deus pesso al único e transcendente, tornava
,

impossível toda a di vi n iz aç ão do rei»8•

3. O templo e o culto: da 'Hybris' à Ética

Mircea Eliade ensina que «qualquer que sej a a sua


natureza, o mito é sempre um precedente e um exernplo,
não só em re l ação às a cções - 'sagradas' ou 'profanas'
- do homem mas também em relação à sua própria
,

co n dição Ou melhor: um precedente para


. os mode los
do real em ge r al 'Nós devemos fazer o que os deus e s
.

fizeram n o princípio'. 'Assim fizeram os deus es assim ,

fazem os home ns'»9.


Ora grande parte dos mitos do M u ndo An rigo são,
chamemo-1os assim, 'mitos de fecundidade'. Homens e
mulheres s e uniam então para copiar e ajudar o deus,
tornando-se a prostituição s agrad a uma instituição fun-

8 DE VAUX, R., Les in.stitutions de l'ancim Testmnent J, Paris, 1989,


p. ] 73.
'1 EUADE, M., Trarado de história das religiões, Lisboa, 1992,
p. 515.

22
damental no culto de muitos povos e a sexualidade uma
via privilegiada de comunicação com os deuses10•
Em Heródoto (490/480 a. C.) temos uma desapie­
dada descrição deste fenómeno que ele con sidera 'o
mais torpe dos costumes babilónicos':
«Toda a mulher natural do país tinha de ir ao
santuário de Afrodite (na verdade, de Belit), uma vez na
vida e unir-se a u.m homem estrangeiro. Muitas, evi­
tando, por desdém, misturar-se com as outras, so berbas
como s ão das suas riquezas, fazem-se transportar ao
templo em carros cobertos e colocam-se ali, rodeadas
por nu merosas servas. Mas a maioria faz assim: no san­
tuário de Afrodite põem-se sentadas com uma coroa de
corda (sinal de obediência à deusa) em torno à cabeça;
umas chegam, outras partem. Em todas as direcções,
por entre as mulheres, existem passagens e atraves­
sando-as os estrangeiros escolhem. Quando uma
mulher tomou lugar ali não regressa a casa sem que um
estrangeiro, atirando-lhe para o colo u mas moedas, se
tenha unido a ela.» 11 •

É neste contexto cultural que se devem situar


alguns discursos proféticos contr a certas práticas da
sexualidade (Os 7, 4; 9, 1 ), atacadas não por serem
'sexuais', nem s equer por acusação de luxúria, mas por
serem religiosas.
A atitude idolátrica, tão denunciada pela g lobali­
dade dos profetas, era correntemente expres sa em dois
paradigmas: o que concebia os ídolos como ponto de
apoio e refúgio (o paradigma político) e o que via nos
ídolos amantes e na idolatria adultério (o paradigma

1° CARUSO, G., Travestissements dionysiaques in AA. VV., brzages et


société en Grece Ancimne, Lausanne, l 987, pp l 03-120.

11 ERODOTO, Storie !, Milano, 1984, p. 297.

23
co n jugal) Neste último caso a atit ude idol átrica era
.

evocada «como en amoramento ( gb, 'gbh, 'hb) e prosti­


tu i ção (znh, n'p)))12•
Razão tem o teólogo A. Maillot q u ando defende
que «a bíbli a não é moralista , ela é (nes te sentido) anti­
-religiosa»13. O p õ e - se a toda a forma de hibridismo
entre o céu e a terra.

Devem ser colocadas em paralelo d uas narrações


bí blicas que tendo características míticas são inaudita­
mente des-mitizantes. A primeira é Gen 3, on de o
pecado de Adão e Eva, mais d o que uma desobediência
Aquele que, p elo crepúsculo, visit ava o ja rd i m é a pre­
tensão de querer galgar a 'categori a' do di vino :
«A serp e n te era o mais astuto de tod o s os animais
dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à
mulher: 'Então Deus disse: vós não podereis comer das
árvores do jardim?' A mulher re sp o n d e u à serpente:
'Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim.
Mas do fruto da ár vo re que está no meio do jardim,
Deus disse:
Dele não com e rei s , nele não tocareis sob pena de
morte'. A se rpe nte disse então à m ulh er : 'Não mor re­
reis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele co merd es,
vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses versa­
d os no bem e no mal'. A mulher viu que a árvore e ra
boa ao apetite e formosa à vi st a , e que essa á rvore e ra
d esejável para adquirir discernimento. Tom ou -l he do
fruto e comeu. Deu-o também a seu marido, que com

ela estava e ele comeu. E ntão abriram-se os olhos dos


doi s e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas
de figueira e cingir am- se ... » (3, 1- 7)

12
SICRE, J., Los dioses olvidados, Madrid, 1979, p. 82.
u MAILLOT, A., "Le sexe dans la Bible" in Foi et Vie( 1975), p. 59.

24
A serp en te aparece regi sta da em m úl tip la s tra dições
do antigo médio-oriente. As escavações arqueológicas
têm permitido concluir que nessa reg ião a serpente er a
utilizada como emblema para certas divindades femini­
nas da vegetação e da fecun didad e (Ishtar, Astan, Anat),
como ex pressão da sua maternidad e fecunda. Em
Canaã, por exempl o a serpente era o b j e cto de culto
,

(ofiolarria), nos 'lugares altos', com p rá ti cas em tudo


an álogas à p r osti tui ção sagrada.
Gen 3 re prese nta também uma reacção polém ica
contra a expansão da ofi olatria, culro que elaborava não
na distinção mas na fusão dos planos humano e divino.
,

O seg undo texto é Gen 6, 1-4, onde são os filho s


de deus (seres divinos, portanto) que se unem às filhas
dos home ns gerando seres híbridos, os gi ga n tes conde­ ,

nados a d esapare cer no dilúvio:


« Qua n do os homens começaram a ser numerosos
s obre a face da terra, e lhes nasceram fil h as os filhos de
,

d e us viram que as filhas dos homens eram belas e toma­


ram como mulhe res todas as que lhes ag rada ra m. ( ...)
Ora, naquele tempo, quando os filhos de D e us se
uniam às filhas dos hon1ens e e stas lhes d avam filhos, os
Nefilim habitavam sobre a terra; estes home n s famosos
foram os heróis dos tempos antigos».

É evide n t e a na tureza m itológica deste episódio, que


chego tt a ser i nterpre ta do como um pecado dos anjos
que se rebelaram contra Deus. « P rovavel m en te o a u ro r
bíblico recolhe aqui urna tradi çã o local cananeia centrada
em torno aos giga n tes nascidos de uma h ie rogarn ia , isto
' '

é, de um matrim ónio sagrado entre divinos e hu manos ,

evocado nos cultos da fertilidade, tão difundidos pelo


m un do circundante e a n teri or a Israel»14.

11
RAVASI, G., El librodeLGénesis {I-11), Barcelona, 1992, p. 140.

25
A fé de Israel rep resenra, portanto, neste don1ínio
da relação divindade/sexualidade, uma verdadeira vira­
gem: o seu Deus é um Deus Outro. A sexualidade é des­
divinizada. Assume-se como puramente criatura!. Isco
não quer dizer que a sexualidade humana lhe seja indi­
ferente. Quer dizer sim que ela é entendida de uma
nova maneira. Recusa-se a categoria da 'hybris' para
acolher a categoria da ética.

4. Mas percorramos juncos alguns textos:

4.1. Deus viu que tudo era muito bom

Gen l, 24-31:
«Deus disse: 'Façamos o ser humano à nossa ima­
gem, como nossa semelhança, e que eles domi nem
sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que raste­
jam sobre a terra'.

Deus criou o ser humano à sua imagem


à imagem de Deus ele o criou,
homem e mulher ele os criou.

Deus os abençoou e lhes disse: 'Sede fecundos,


multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; dominai
sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os ani­
mais que rastejam sobre a cerra. Deus disse: 'Eu vos dou
todas as ervas que dão semenre, que estão sobre roda a
superfíc ie da terra, e todas as árvores que dão fruto de
semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a
todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e
que é animado de vida, eu dou como alimento toda a
verdura das plantas e assim se fez. Deus viu tudo o que
tinha feito: e era muito bom».

26
Neste relato o hom em é ime diat amen t e criado
casal, 'macho e fêmea' (1, 27). Não há um sexo preli­
minar (dito fort e) co mpleta do mais tarde por um sexo
s ecu n d á rio (ou fraco), como aco n tece, um pouco na
nar ração de Gen 2 (tida como bastante mais antiga) .
À partida temos o casal.
O homem é dito Zâkâr e a mulher Nekêvah. Est es
termos são m uit o significativos, p or que tentam uma
de fini ção dos dois elementos humanos a partir da
dimensão sexual. Zâkâr é o macho, e é t am bé m o
'membrurn virile', enquanto Nekêvah é 'aquela que se
rasga, que se penetra'. Estas eti mol o gias asseguram-nos
que «a sex:ualização do homem não é uma consequência
da que da (nem do pecado). É desde a sua criação que o
casal humano é se x ua do» 15•
O cas al é chamado a 'imagem de Deus» o que não
significa um deus andrógino ou am b ivalente . . sign i fi ca
.

que o casal deve fazer o que Deus podia e que ri a fazer


('encher. .. sujeitar e dominar a terra' - l, 28).
Est as p rerrogativas, 's ujeitar e dominar', são atribu­
tos reais, fazem parte da missão do rei e aqui são, numa
univeisalização democratizante, estendidas a todo o ser
humano16. O autor j u d eu Fílon de Alexandria, na sua
obra A criação do mundo, explica ass i m este passo: «Ü
criador fez o homem au riga e timoneir o após ter criado
todas as o utr as coisas, para que o h o mem regesse e
guiasse os an i mais e as p lantas da terra, tomando cui­
dado deles como uma espécie de lugar-tenente do pri­
me i ro e grande Rei». Não se trat a de nenhuma s ujei ção
irracional ou domina ção violenta do homem em relação
às outras criaturas e à natureza, mas sim de uma espécie
de pas t ore io do cr iado.

1� MAILLOT, op. cit., p. 60.

27
Por outro lado, em toda esta narração nada de pejo­
rativo surge ligado à definição sexual do ser humano.
Ela pertence ao número das coisas que Deus considerou
'muito boas', ao concluir a Sua obra criadora. E surge
ligado à ampla mi ssão confiada ao ser humano. Serve o
mandato do 'Crescei e mulci plicai-vos'? Certamente.
E tam bém ao 'sujeitar e dominar', características tão
excelentemente reais que são p ertença de todos os
homens, não só de alguns.

4.2. Grava-me como selo em teu coração

O Cântico dos Cânticos:


Dois amantes que se buscan1, que se olham, se con­
templam. Só se lembram do amor e se esquecem
do amor. Em tudo p rocur a m o am or e em tudo o evi­
tam.
Têm receio de abrir a porta de casa ao amor e ousa­
dia para enfrentar, em nome dele, as austeras sentinelas
q ue vigiam a cidade, quando é n oite. Têm receio dos
mil luga res onde o amor assoma, mas em mil lugares o
buscam, se, por uma h esitaç ão ou um silêncio, dele se
perde m .

Escondem-se e reencontram-se. Incessante deslo­


cação de corpos. De desejos. Como num jogo. E dizem:
'
meu amado é par a mim como um ramo de mirra'
o

(Ct l, 13); 'és formosa amiga minha, os teus olhos são


como os das pombas' (Ct 4, I); ou 'Grava-me corno um

16 Lembremo-nos que esta narração da criação (Gen 1-2, 4a) foi


ec;crica no exílio em Babilónia, quando a monarquia israelírica havia sido
suprimida.

28
selo em teu coração/ como um selo em teu braço;/ pois o
amor é for te como a morte .. .' (Ct 8, 6).
Falam do seu amor com uma intensidade taJ que
nos fazem ver, como escreve Paul Beauchamp, que «não
existe sexualidade sem a palavra , como não existe
desejo. A sexualidade humana é aquela que é dita»17•
Os rabinos, no sínodo de Jabneh (90 d. C.), dis­
cutiram sobre a canonicidade do Cântico dos Cânticos.
Alguns achavam-no demas i ado ch eio de paixão.
E lame ntava m se, sobretudo, que fosse, frequentemente,
-

repetido em tabernas.
Mas na 'Mishna' es ta escrito: «Ü mundo inteiro
não é digno do dia em que o Cântico dos Cânticos
foi dado a Israel. Todos os livros da Bíblia são santos,
mas o Cân tico dos Cânticos é o mais santo de todos»
(Mishna, Yadayim, 3, 5).
Santa Teresa de Ávila diz recordar s e «de ouvir a-

um religioso um serm ã o admirável em extremo, e o


mais dele foi a declarar estes regalos de que a Esposa tra­
tava com Deus. E houve tanto riso e foi tão mal tomado
o que disse, porque falava de amor, que estava espan­
tada»18.

Contudo a sua experiência de leitora deste livro é


bem diversa: «Ü Se nhor tem- me dado, d esde há aJguns
anos para cá, um grande gosto cada vez que o uço ou
leio algumas palavras do Cântico dos Cânticos, e isto e m
tanto extremo que, sem entender com clareza o latim, a
minha aln1a mais se recolhia e movia então, de que com
os livros muito devotos que entendo»19•

1� BI:AUCHAMP, P . , L 'un etl'autreTestammt, Paris, 1990, p. 172.


18 TERESA DE JESUS, Obrtts completas, Aveiro, 1978, p. 581.
''Ibidem, p. 577.

29
Um dos contributos mais originais que a moder­
nidade inscreveu na história da in terpretação deste sin­
gular livro tem sido o da sua intersecção com outros
campos culturais, valorizando assim o fenómeno da
interrextualidade. Os pólos que mais frequentemente
recorrem neste confronto são o egípcio, o mesopotâ­
mico e o da área sírio-palestina.
A dar confirmação a uma influência egípcia (suge­
rida, por exemplo, pelos perturbadores paralelos entre
algumas passagens do nosso livro e textos contidos quer
no Papyrus Harris 500, descoberto no Ramesseum de
Tebas, quer nos Cantos da grande alegria do coração do
Papyrus Chester Beany I), o Cântico dos Cânticos seria
uma antologia de textos de diversão destinados, no
Egipto, às ocasiões festivas.
Esta tese tem um aliado vigoroso e imprevisto em
Teodoro de Mopsuéstia que, no séc. V, contestava a
canonicidade do Cântico dos Cânticos dizendo que ele
celebrava, «sem intenção suplementar, as núpcias de
Salomão com uma princesa egípcia»2º.

Por sua vez, a relação com a literatura mesopotâ­


mica far-se-ia através de textos de índole cultual, vin­
culados a um cenário de hierogamia, que colocavam em
acção as rivalidades amorosas dos deuses Dummuzi e
Enkimdu e da deusa lnanna. Enquan to que da área
sírio-palestina a influência viria sobretudo do folclore
praticado no ciclo dos sete dias festivos que se sucedia à
coroação matrimonial dos esposos, à maneira de um rei
e de uma rainha.

Mas se é verdade que o confronto co m estes


modelos literários, próximos no tempo e no espaço ao

2º Cir. in PELLETIER, A.-M., lectures du Cantiq11e des Ctmtiques,


Roma, 1989, p. 4.

30
escrito bíblico, fornece alguns contributos esclarece­
dores, ele não elide uma dificuldade essencial: o facto
do estudo comparativo ser extrem a mente fra g m entá­
rio, ignorando, como escreve Anne-Marie Pelletier, «a
coerência glo bal do texto» e a Slla «inserção num con­
texto singular que o q ualifi ca e o interpreta necessa­
riamente»21.
O Cântico dos Cânticos retoma vocabulário comum
aos cul tos e rituais de exercícios religiosos coevos,
nomeadamente vocabulário hierogâmico, ma.s fá-lo
para o reinscrever num contexto que nega a relação
mitológica do homem e da mulher, formulada ªGui em
t er mos históricos e não enquanto panicipação mágica
do horizonte humano no divino.
Esce livro, do séc. V ou IV a. C., como de fen de
Mailloc, «é, portanto, uma des mit i z a ção uma huma­ ,

n iza ção e uma liberalização do amor. É a libertação em


relação aos mitos da fecund idade. É a afirmação que o
a m or de um homem e de uma mulher ( . . . ) é em si
mesmo justificado»22.
Recordemos que nenhum outro livro bíblico dá
a palavra à mulher numa tal pro porção. Ela busca
e é b us cada . Pede e é pe did a . A sua pa lavr a abre
o canto: «Beije-me ele com os beijos da sua boca».
A mulher olha para o homem e avizinha-se a ele
com a mesma impaciência e a mesma alegria que ele
a ela.
Este co-protagonismo é m u ito interessante. :Porque
tensões, paradoxos, desníveis (por exemplo, o facto da
mulher não ser tratad a em paridade, não ser tomada

21 ibidem, p. 10.
21 MAILLOT. op. cit., p. 70.

31
como su j e i to ) que não co nse g uiam reso l uçã o em ourros
tipos de discurso, conseguem-na primeiramente no dis­
curs o am o ros o.
Na o p ini ão d o t e ó l o go Karl Banh, os rextos de
Gen 2 e o do Cântico dos Cânticos são os que, no Antig o
Te st a m en to, pers p ec t iva m de modo mais ori ginal o
amor h u m a no.
A tendência predominante é a que situa a sexuali­
dade do Ser Humano em função quase exclusiva da
post e rida d e e, por conseguinte, no contexto da vocação
de s te povo e da sua expectativa m essiân ica (um dos
nascidos, entre os descendentes de David, seria o Mes­
sias, por isso a instituição ma tri mo nia l eta tão impor­
tante).
No Cântico dos Cânticos te mos a afirmação d e um
outro aspecto (em ve rda de mais complementa r que
,

opositor) : «O ena mor a m e m o - escreve Barth não já


-

do pai ou do chefe de famíl i a potencial, mas simples­


mente do homem tal qual ele é d iante da mulher tal
q ua l ela é»23.

4.3. Regressar incessantemente aos lugares do amor

Oseias 2

O profeta Oseias teria começado a sua actividade


profética nos últimos anos do reinado de Joroboão II
(782-753 a.C.). Um dos aspectos mais controversos do
livro a que deu origem, respeita ao seu hipotético matri-

23 BARTH, Karl, Dogmtttique Ili, Geneve, 1960, p. 337.

32
mónio com uma prostituta, que vem descrito nos pri­
meiros capítulos.
Alguns autores defendem para este acontecimento
uma natureza inteiramente ficcional; uns crêm n a hipó­
tese literal; outros pensam que tratar-se-ia simples­
mente de uma mulher que, após o casamento, foi infiel
ao profeta; e outros, ainda, defendem mesmo que a

esposa de Oseias não tinha sido prostituta, nem lhe


tinha sido infiel, tudo se deveu a uma má interpretação
dos seus discípulos.
Para lá do debate biográfico, o capítulo 2 é unani­
memente considerado o ponto mais forte da escrita do
profeta Oseias e um dos grandes poemas do Antigo Tes­
tamento.
Nele temos a voz do esposo. A solidão do a mante.
A esposa partiu na desviação de outros amores. Pri­
meiro movimento: o A mado diz: 'cancelarei o amor'.

«Processai a vossa mãe, processai.


Pois ela não é a minha esposa,
e eu não sou o seu esposo.»
(Os 2, 4)

Segundo movimento: o amor não tem fim. E ele


diz: 'Impedirei o caminho que leva aos seus amantes'.
'Será submetida a julgamento'.

«Cercarei seu caminho com espinhos,


com uma barreira o fecharei,
para que não encontre sendas.

Agora vou descobrir sua vergo n ha


aos olhos dos seus amantes
e ninguém a livrará de mi nha mão.»
(Os 2, 8.12)

33
Terceiro movimento: o amor não tem fim. t ele,
por fi1n, diz: ' levá-la-ei aos lugares do amor' para 'falar­
-lhe ao coração'.

«Por isso, eis que vou, eu mesmo, seduzi-la,


guiá-la ao deserto
e falar-lhe ao coração.

Acontecerá, naquele dia,


- oráculo de Iahweh -
que me chamarás 'Meu marido',
e não mais me chamuás 'Meu dono'.»
(Os 2, 16.18)

Tornar incessantemente aos lugares do amor:


parece ser esta a estratégia do enamoran1ento, dos
esponsais e da reconciliação. Dizer que nos textos bíbli­
cos se passa do labirinto do hibridismo ao horizonte
ético no domínio da sexualidade (com tudo o que isto
implica de investimento no Homem e de responsabili­
zação do humano), significa apostar numa história
aberta, que corre o risco de aventuras e recomeços.
Assim acontece neste texto do profeta Oseias, o qual foi
chamado por Deus a reconquistar o coração i nfiel da
esposa. O Deus da Aliança. apenas crê na força dos reco­
meços, já que o Amor é «esse dar-se sem retorno ao
desejo sem limite»24.
E o lugar do amor aonde se torna é o futuro do
amor. Porque são sempre começos o que o corpo do
Outro visita.

l.i BLANCHOT, Maurice. La comunitlz mconfeisttbile, \1ilano,


1984, p. 28.

34
O Corpo de Deus
Deus não tem co rpo. O d i scu rso b í b l ic o sobre
Deus emerge deste escândalo. A Divi ndade é i r re p re­
sen tável, transcendente, envolta em mistério. Os deuses
dos povos vizinhos, esses têm u m corpo, s ã o imagens,
no mes que se recitam. O Deus da B íblia deixa em silên­
cio o pensamento dos hom ens, trans u m a n te, i m p ro­
n u nciável como a luz, i legível e desc o n h ecido. As suas
teofa n ias são aco n teci men t os desa r m a n tes, p o rque

Deus foge do declarado e do n ítido e apresenta-se no


i m pe rcepcível , naquilo que é apenas sussurrado, apenas
e n trevisto. Ao furacão, grande e i m p etuoso, ao terra­
moto ou à convulsão do fogo, Ele prefere «O m urmúrio
de uma b risa suave» ( l Re 1 9 > 1 2) para se dar a conhecer.
A teologia bíblica é um enunciado sol i tário e polé­
m ico, que contradiz a realidade religiosa dos povos c i r­
cundantes, porque parte deste escândalo de um Deus­
- s e m -co rpo. « O uvi stes o rumor d e p a l avra s , mas
n e n h uma fo rça d ivisastes: n ada, além de uma voz»
( D r 4 , 1 2) . Por isso, o Código da Al ian ça é peremptório,
n e n h um corpo serv i rá à rep resen tação de Deus, seja
« u m a fig u ra de ho mem ou de m ul her, figu ra de algum
a n i mal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de
algum rép til que rastej a sobre o solo, o u figura de algum
peixe que há nas águas q ue estão sob a terra» ( D t 4, 1 6-
- 1 8) . O Deus Santo é, l itera lmen te, o D e us separado

das imagens, o Deus todo outro face às poss i b i lidades

37
das represen rações. Por paradoxo, pode r-se-ia dizer: o
corpo d e Deus é u ma voz.

E , contudo, mesmo para a Tradição Bíblica, é


impossível falar de Deus sem referir o Seu corpo. Em
mome ntos determinantes da exper iência religiosa, o
sussurro é o de u m corpo divino que se atravessa, obs­
curo e fulgurante, um corpo que se agarra ao nosso
corpo, num combate nocturno, primitivo, por razões
que trazemos gravadas no sangue, a mil braças de pode­
rem ser contadas, razões que se tiram não com civiliza­
das disputas retóri cas, mas num duelo, desprotegido,
onde só vale o corpo. No L ivr o do Génesis, quase nada
se descreve desse corpo divi n o que enfrenta o patriarca
Jacob, até o romper da aurora (Gn 3 2,23-33). A narra­
tiva sublinha, antes, o carácter inesperado do aconteci­
mento, a hesitação quanto ao vencedor decidida por
golpe certeiro, o pedido que Jacob faz ao seu adversário
para que o abençoe. Mas a irrupção do divin o é tão
force, é de tal modo exposta, sem deixar n unca de ser
obscura e impenetrável, que este texto se tornou refe­
rencial.
No Livro do Êxodo h á um passo enigmático, que
deve, concerteza, o seu colorido ao universo n ómada.
Não se vislumbra o motivo da cena (a procura de expli­
cação para a lei da circuncisão?), mas n uma hospedaria
do caminho, Deus também lutou com Moisés e «pro­
curava fazê-lo mo rrer» (Ex 4 ,24-26) . Este trecho inclas­
sificável é ainda mais perturbador se tivermos em conta
o desenvolvimento da epopeia do Êxodo. Moisés há-de
aí aparecer-nos como o amigo de Deus, aquele com
quem Deus fala «face a face, como um homem fala co m
o outro» (Ex 33, 1 1 ). E, a pedido de Moisés, Deus faz
passar diante dele «toda a (Sua) beleza>>, deixando-se ver
« pelas costas» (Ex 33, 1 8-23 ) .

38
A i sã o do corpo de Deus c ontagia o observador de
v

uma lumi nosidade ins u port áve l e M o isés cem de colo­


car um véu sobre o seu próprio rosto (Ex 34, 29-3 5 ) ,
u m rosto que se to rnara respla ndecen te, devorado por
o urra ordem; um rosto q u e j á n ão era si m p l esme nte
humano pois ti n ha transcendido a fro nteira daq u i lo
que a u m h o m e m cabe ve r; um rosto que tocara o
perigo absoluto que é o território da al ter i dade abso­
l u ta. Ta lvez aquele episódi o i n icial, i ncompreensível ,
em que Deus repen r i name n t e te n ta matar o seu esco­
l h ido, p retenda lançar uma reserva sobre a visão do
co rp o de Deus (por parte de Moisés e do leitor da nar­
rativa) , a l udi ndo à imposs i b i l i dade de controlar o
divino. Deus n ão é m an i p u l ável , n em pri sio ne iro de
nen h u m tipo de con hec i m e n to ou de sabedo r i a .
O corpo d e Deus é o corpo indo mável.

E é também o co rpo a m an te .

O Câ nti co dos Cânticos, no seu sentido l i teral, des­


dobra a narrativa do amor humano. Em nenhum outro
l ugar da B íblia o corpo é assi m tomado com o trama
mesm a do canto. O co rpo que o amor revela não tem
fi m : o m u ndo i n teiro ( a s p aisage n s de Is rael e d o
Líba no, os j ardins fechados de povoações n o deserto, o
perfu1ne dos frutos, os tri lhos e a l u r a dos rebanho s ,
a v

a mo n u menta l idade das cons t r uções c i vis e sagradas, o


n1istério dos metais que reluzem no escuro da terra, a
vida e a m o r te . . . ) serve- l he de metáfora. M as é u m
corpo - corpo, «adoecido pelo amor», como algu res se
diz, u m corp o p o deroso e vencido , s up l i c a n ce, um
corpo solar e nocturno, um co r p o q ue o amor perde.

Desde o princípio, e essa é uma das j ustificações para a


sua i n c l u s ã o no esrre iro cânone bíbl ico, abundaram l e i ­
turas al egó ricas e espiri t uai s deste l iv ro que iden tifica­
vam o corpo amante com o co rpo de Deus. É assim n a

39
exegese j udaica e na dos Padres da Igrej a. É assim na
extraordi nária visitação q ue a este livro faz São João da
Cruz.

E é também u m corpo exilado.

A abertura do L i v ro de Ezeq u iel ( Ez 1 , 4-26) é


dom inada por uma v isão desti nada a encorajar os exila­
dos. Deus abandona Je rusalém e vai ao encoruro dos
seus fiéis, anulando a distância, terrestre e espiri tual, do
exíl i o . Desl oca-se n u m a máqui na prod igiosa, na ver­
dade, u m orga n i smo fe i to da pro fusão arrebatadora de
c o rpos desco n h ecidos, ani mais alado s , h o mens com
face de leão e de touro, seres de fogo. Ao alto , por c i ma
da abóbada, Deus era «Um ser com aparência humana».
O corpo glorioso de Deus frequenta os exílios (o salmo
23 h á-de dizer, «os i n fernos») do homem.

Ta lvez esta so l i d a r iedade de Deus pelo h o m e m ,


expressa n a visão de Ezequiel, seja o segredo escond ido
n u m gesto, séculos depois reali zado, n u m a sa l a anó­
n i ma, de Jerusalém. Jesus pega num pão , a ntecipando a
sua morre, e entrega-o aos discípulos dizendo: « Is to é o
meu corpo que eu vos dou» (Me 1 4,22). Não há véus
q ue filtrem o divino manifesto nele. Todos po de m olhar

o seu rosto. À grandeza, de que a visão d e Ezequiel


t r a n sbordava, opõe-se, q uase esc a n d a l osam ente, a
human idade e o despojamento da cena d e alguém que
se despede para ficar a i nda mais presente. Po r isso tam­
bém é Dele que falamos, quando falamos do corpo de
Deus.

40
A Providência, tern ura de D e u s
1. A Bíblia a contas com a herança clássica

Alguns consideram-no apenas um frívo lo co n tador


de h is t ó r ias, ou tros, um a rguto espião d a c o nd iç ão
h u mana ou mesmo, como Cícero, o 'pai da h i stória'.
O cerro é que na extensa fragmen tação das peripécias
relatadas, «a obra de Heródoto obtém a sua un idade
interna da convicção de q u e todos os acon tecimentos
narrados são governados pelo dest i n o » 1 • Um dos
modos, tipicamente gregos, de se referir a essa espécie
de fio condutor da história, será falar de u m a p rovidên­
cia divi na. Heródoto foi o p ri m eiro a fazê-lo.

Depois dele, o termo vulgarizou-se, quer na l itera­


tura, quer na filosofia e, por exemplo, quando P latão o
utiliza n o 'Ti meu' («este cosmos é verdadei ramente u m
ser ani mado e intel igen te, gerado pela providência de
deus», 30b), ele é já uma fórmu la técnica q ue designa,
tanto a sol icitude divina, q u e ordena, de forma b e n igna,
tudo o que acon tece no m u ndo e na vida dos homens,
como, em absol uto, a p rópria divi ndade. A providência
(prónoia) era também util izada, analogicame n t e, para
descrever a acção dos chefes políticos e mili tares. Neste
sen tido situa-se a passagem de 2 Mac 4,6: «sem a soli-

1 l I-SKY, A., Histórra da litemr1m1 Grega. Lisboa, 1 99 5 , p . 352.

43
citude (pronoías) do rei não seria mais possível alcançar
a paz».
Esta herança helén ica vai permiti r as duas ún icas
anotações di rectas de Prov idência do A ntigo Tes ta­
n1ento, am bas no livro da Sabedoria2• A primeira em
Sab 14,3 ( « mas é a tua Providência, ó Pai, que conduz
(o barco), pois até no mar abriste um can1 in ho») e, a
seguinte, em Sab 1 7, 2, numa a lusão aos ím pios «reclu­
sos sob seus tectos, b a n i dos da eterna Providência».

Não é estranho que o concei to de Providênci a


esteja praticamenre ausente dos textos bíbli cos·1?
É necessário tomar e m consideração a original idade do
pensamento bíbl ico, de ex.tracção hebraica, tão silen­
cioso quanto a formulações abstractas, e tão atento oo
concreto, à escassez ful m i nante e essencial do concreto,
ao seu pormenorizado realismo. Este pensamento orga­
niza-se de forma narrativa e, como cal, « toma aquilo
que narra da experiência e tran sform a-o e m experiência
daqueles q ue escutam a sua história»4. Não colhe o seu
sentido no plano conceptual, mas n a arte de nos apro­
x i mar d e uma H i s tória que vai sendo contada na plura­
lidade das h istórias e nos ingredientes que são próprios
das narrações5. Po r isso não se tome por paradoxal esta
verificada ausência do conceito de Providência, pois a
experiênci a de u m Deus Providencial está, precic;a­
n1ente, no âmago da Fé bíbl ica.

- O Livro da Sabedoria, que pode ter sido coniposrn na segunda


metade do séc. I a.C., e é provavdmence o mais recente dos cc>:to!I Vl'tl'ro­
cc�camentário�, foi escrito, c m gn.:go, por um judtu d<. culcura hdénic,L
Me�mo comando c:m consideração a pa��agem <lt Job 10, 1 2, que
alude à protecção ou cuscódia (pequddâ) Divin.1 que guarda o homem.
4 BENJAMIN, W . , !luminationem, Franl<rurr, 1977, p. 387.
e; Cf. �KA, J.-L., Gn 18, l-15 alia prol'n dell't.•e.�es1 drnua e dtfl'rse­
gesi namaitw 1n C. MARCHESCl I !-CASALE (ed.), Oltre t! rnrcnnto,
Napoli, 1 994, p. 1 2 .

44
Uma das constantes da Teologia Bíbl ica é n1esmo a
ali rmação de que Deus não abandonou o mu ndo após
o acto criador, mas co ntinua a agir nele, de múltiplas
maneiras, manifestando solicitude. Bastaria, por exem­
plo, evocar o Salmo 104 que fornece, em extraordinário
registo lírico, uma meditação sobre o processo criador,
enquanto obra divina no presente («De tuas altas mora­
das regas os montes,/ e a terra sacias com o fruto de tuas
obras;/ fazes brotar erva para o rebanho/ e plan tas úteis
ao h o mem/ para q ue d a terra ele t i re o pão/ e o v i n ho,
que alegra o coração d o homem;/ para que ele faça o
rosto brilhar com o óleo,/ e o pão fortaleça o coração do
homen1» (v. 1 3- 1 5).
«Aqu i l o q ue está no coração do SI ] 04 é esta evi­
dência de q ue o mundo i nteiro está aberto a Deus. Em
cada momento da sua existência o mundo tem necessi­
dade do sus tentam e n to que lhe vem de Deus, espera
tudo de Deus»6. Por isso, B u ltmann escrevia também
q ue o SI 1 04 «atesta a fé na Providência»7. Esta mesma
li nha de entendimento atravessa outros salmos (veja-se,
por exem plo, 1 45, 1 5s.; 147,Ss.), mas também os textos
proféticos ( I s 6,3; Os 2 , l O) e sapienciais (Job 9 , 5 ) ,
constituindo uma espécie de visão global .

Fazendo contas co m a hera nça cláss ica, podemos


dizer que a fé bíblica na Providência in screve-se numa
dara autonomia, por d uas ordens de razões: porque a
Prov idência é experim en tada como exp ressão d e u m
Deus Pessoal; e porque a H istória torna-se o lugar deci­
sivo da sua manifestação8•

<• RAVAS l , G., Jl libro dri S1dmi, Commento t 1utut1fizz1tzione,


Vol. I I I, Bologn.1 , 1 988, p. 90.
l>ULTMANN, R., }éms, Paris, 1 968, p. 142.
H cr. RE II M , J., pronocõ in Grande Lessico dd /\'uo110 Testttrnento,
V(>I. V l i , Brc\LÍa, 1 97 1 , cc. 1 209- 1 2 1 1 .

45
2. A Providência, ex pressão de Deus.

Na narrativa b íblica, a Providência não é descar­


nado paradig m a filosófico, nem eco da passagem inde­
cifrável dos deuses, mas expressão d e u m Deus pessoal.
A fé d e Israel desc reve o Omnip o tente S enhor d o
mundo, na sua Providência, com e ntranhas maternas,
seduzido pelas manifestações d o amor filial, profunda­
mente en ternecido: «Será Efraim para mi m um fi lho
tão querido, uma criança de tal m odo preferida, que
cada vez que falo nele quero ainda lembrar-me dele?
É por isso que minhas entranhas se comoven1 por ele e,
por ele, transborda a minha ternura» (J er 3 1 ,20) .
Entranhas ou vísceras, em hebraico rehamim, designam
«a par te mais íntima»9 do ser, a fo nte daquele amor que
tem a natureza impetuosa e inqueb rantável do sangue.
A Providência radica-se neste territó rio semântico: ela
é o borb ulhar do amor, a impossibilidade dramática
que os que amam têm de não amar, a cada m o mento,
em cada gesto, mesmo naqueles gestos que parecem tri­
viais ou anónimos ou desprotegidos é impossível que
· não gravitem, como certos corpos estelares, em volta
do grande centro do amor. Por isso o discurso teológico
sobre a Providência é, na rradição b í blica, uma espécie
de lente fo tográfica que torna o ros to d e Deus subita­
mente próxin10. Este movimento de aproximação pode
ser notavelmente com preen dido a partir d o Sl 65
(v.2- 1 4) .

«A ti, ó De us,/ convém o louvor em Sião ; / e a ti se


cumpre o voto/ porque ouves a prece./ Toda a carne

9 Misericordia i n ROSSANO- RAVAS I-G I RLANDA


SISTI, A . ,
(eds), Nuovo Dizionario di Teologia Bíblica, Torino, p. 978.

46
vem a ti/ por causa de seus pecados;/ nossas faltas são
mais fo rtes do que nós,/ mas tu no- las perdoas. / Feliz
q ue m escol h es e aprox i m as , / p a ra hab i ta r em teus
átrios./ Nós nos saciamos com os bens da tua casa, / com
as co isas sagradas do teu Te m plo./ Com prodígios de
j ustiça nos respondes,/ ó Deus nosso salvador,/ espe­
rança dos co n fi ns da terra/ e das i lhas longínquas./ Tu
m a n téns as mo ntan has com a tua fo rç a ., / c ingido d e
poder;/ aplacas o estrondo dos mares,/ o est:rondo d e
suas ondas/ e o tumulto dos povos./ Os h ab i tantes dos
confins da terra/ temem frente aos teus sinais;/ fazes gri­
tar de alegria/ as portas da manhã e as da tarde./ Visitas
a terra e a regas ., / cum ulando-a d e r i quezas./ O r i bei ro
de Deus é cheio de água,/ tu p reparas a sua seara./ Pre­
paras ass im a terra:/regando-lhe os su lcos,/ aplanando
seus torrões,/ amolecendo-a com chuviscos,/ abençoan­
do- l h e os b rotos . / Coroas o ano com a tua bondade,/ à
tua passagem goteja a abundâ n c i a ; / gotej am as pasta­
gens do deserto/ e as co l i nas c i n gem-se de j úbilo;/ os
cam pos cobrem-se d e rebanhos,/ os vales vestem-se de
esp igas:/ gritam de alegria e canta m . »

A composição co meça por s i tuar-nos no Tem plo,


es paço onde Deus revela a sua acção Salvado ra (v. 2- 5 ) ,
e m favor da co m u n idade crente. Essa comunidade é o
sujei to q ue enuncia o canto. Canto que se organiza em
torno a um a largamento fundam ental: do louvor à acti­
vi dade d ivina no Tem plo passa-se ao louvor pela gest a
de Deus n o mundo; do microcosmos sagrado avança-se
para o cosmos t ransfigu rado pela p resença do Todo­
-Poderoso.
No poético fresco da criação que então se evoca (a
terra, o mar, os mon tes, as nações, o abismo p r i mor­
d ial), Deus é des crito quer em te rmos grandiosos, como
« u m arq u i tecto cósmico segu n d o o m o delo clássico,

47
q uerido so b ret u d o à l i tera t u ra sa p ie n ci al » 1 0 (v.7-9) ,
quer de maneira graciosa, como u m ca m ponês da pai­
sage n1 ru ral palesti nense, um 'pater fam ílias' que l abora
a terra, recolhe o trigo e se afana para a l i mentar os seus
(v. 10- 1 4) . De urna i m agem para outra (a pri meira epo­
peica, esta segu n d a quase b u cól i ca , reproduzindo em
preciosa m i n iatura o quotidiano cam pes tre) , só uma lei­
tura m u i to l i gei ra detectaria qualquer t i po de abranda­
mento ou d i m i n u i ção no v igor metafórico. É p recisa­
mente o con trá r io aq uilo que aco n tece. Como defende
Ravas i, « n u m certo sentido, todo o sal m o evolui para
este fi nal grá c i l e s i m ples» 1 1 , em q ue se percebe que o
poeta se deixou contagiar pel a ternura de Deus. Melhor
até que o enredo cos mol ógi co dos actos fundadores,
o n de ai n d a se respira, de alguma fo rma, a atmosfera
mítica do oriente a n tigo, o registo h istóri co, co m a sua
ri q u eza de pormeno res, as s uas i m age n s c o l h idas da
existência q uotid ia n a , o seu cioso reali s m o testemunha
ampl amen te a orig i nal idade d a Fé de Is rael 12.
Do m ito passa - se à so teri o l o gia, enquanto p u lsar da
gesta de Deus n a H istória. As acções d ivi nas não estão
contidas ap e nas n o excepc i o n a J tempo das origens, mas
atravessa1n e resgatan1 o tempo ordi n ár i o, profà n o , pre­
sente. E esta 'travess i a' torna-se n ítida sem p re que se
refere a P rov i d ê n c i a Divina. É corno se o texto sagrado

10
RAVASI, G., II Libro dei Snfmi, Vol. I I , p. 309.
1 1 RA VASI , G . , p. 3 1 0.

1� É isso mesmo que defende Auerbach numa obra irnpn.'Scindível,


onde comec,.a por comparar as li te rac u ras grega e bíblica. O auror afirma
que, na Bíblia, Deus não escá como Zeus, circunscriro na sua presença. N:.i
riquaa e na cornpecência das suas cécnicas li cerári�. duranteséculos i n ccr­
preradas como um discuno mu1co ind igence e p n n "l iti vo (quando é cxac­
ramrntc o t.orurá1io), a Bíblia pc.:rm irc esca conscaração assombrosa: «D(us
aparece sempre». AUERBAC H , E., Mimesis. Dargestellte \Virklichkeit 111

der Abendliindischen Lireratur, Bem, 1 946.

48
'tropeçasse de tern u ra', para rec o rre r à i n si n u a n te
expressão d o poeta con te m porâneo l.\ e a narrativa
ganh asse, à custa desse m o t i v o a lentidão das co n fidên­
,

cias, dos relatos que expr i mem p rofundamente a densi­


dade e o espanto maravil hado por uma p resença.

De repente, Deus é um ca m ponês ( S I 65) ou uma


1nãe que explica, des te modo, ao filho seu amor: «gra­
o

vei -te n a palma da m i nha mão» ( I s 4 9 , 1 6 ) o u um


esposo que, por am o r, s u p rime o passado adúl tero da
esposa (Os 1 -3 ) . « D eus é um guerreirG» (Ex 1 5, 3) e é a
paz (Num 6,26). Os seus desvelas são extensos como as
asas aberras de uma águ ia (Ex 1 9 ,4) : ele aca r i n h a o fruto
do ven tre e o fruto da terra, abe nço a o trigo e o vinho
n o vo , in u l t i p lic a os campos e o s ani mais ( D t 7, 1 3) . I:le
é o cnh.or da fes t a ( Dr 1 6, 1 6) e o Especrador da dança
(2 am 6, 1 6) , mas também « i ncl ina o ouvido» à aflição
e 1 i berta os olhos do j u go d as lágri mas(Sl 1 1 6). «Fona­
lcLa» ( Sl 62,7) ; «Sol e escudo» (Sl 84, 1 2); « Rochedo»
(Sl 89 ,2 7); «guarda» e « sombra» (SI 1 2 1 , 5 ) não serão
apenas o dedi lhar de un1a adjectivação que se repete,
mas u m existencial e com prometido murmurar dessa

espécie de l i tania que não nos l arga: a Providência de


Deus.

3 . Providência e H istória.

Uma outra l inha h ermenêutica fu nda mental é a


que aproxima Prov idência e h i stó ria. A h istória não
te m , na Bíbl i a , aquel a opac id ade i m p e n et rável que
nu nca se descobre, apenas se pro l onga, e de que faz eco,
p o r exemplo, a lí rica grega, porque a í a vi da « g r i t a por

" O' N EJLL, A., Poesias Compluas, Li�boa, 200 1 , p. 53.

49
nós, e seus segredos/ a n o i te os escuta com mil ouvidos, /
e os repete, d e vaga em vaga . . . »11• Na Bíbl ia, a h istória
transparece d e Deus, como o rosto de M oisés transpa­
recia, mesmo debaixo do véu (Ex 34 , 3 5 ) . É n a h istória
que a Providência se manifesta.
Manifesta-se n as h i stórias i n d i v i d ua i s . Quer
quando as existências parecem asseguradas e o seu dese­
n h o estavelmen te defi n i d o («Sai da tua terra», disse
I ahweh a Abrão - Gen 1 2, 1 ) , quer q uando atravessam
o vau n octurno d a angústia (o anjo d o Senhor diz à
escrava fugit iva, « Iahweh escutou a t u a aflição» G e n
1 6, 1 1 ) o u quando, sim plesmente, a so l eira do fu turo se
abre i ncerta diante d e n ós («lah\.veh, m ostra, eu ce peço,
se estás disposto a l eva r a bom termo o cam i nho que
percorri» Gen 24,42).

E a Providência revela-se, de igual modo, na h istó­


ria que tem por s u j eito a c o m u n i dade cren te. Nessa
grande revisi tação da h istória, em chave teológica, que
representa o i t inerário deucero n o mista 1 5 , a Providência
desempe n h a u m p a p e ] fundamental . Os momentos
mais turb ulentos e som brios da vida do povo são iden­
tificados com o afas tamento de Deus e o não cumpri­
mento das p rerrogat ivas da aliança. Os momen tos de
p rosperidade, com o acol h i mento fiel do Deus do S i nai,
que, em tantos modos, exprime a Sua p rovidencial ter­
n u ra. Qua n do, n u ma narrativa ( l S a m 7 , 2- 1 2) que
conta a batal h a q u e Deus vence, p a ra Israel , com a
aj uda de trovões e do pânico dos adve rsários, Samuel
coloca no fi n a l , e n t re Iv1. asfa e S e m , u ma pedra,

11
SAFO, Poemas e fragmentos (rrad. de Eugénio de Andrade), Porco,
1 99 5 . p. 94.
, .., Cf. PROVAN, l . , Hezekiaht1nd rhe Books ofKmgs. A Coniribution
to the Debate llbout the Compos1tion of tht Deuttrononzistic History, Bcrl1n
- New York, 1 988.

50
dize n do: «Até aqui lahweh nos socorre u » , é o di l ata r
dessa frontei ra da t ern ura div ina que, s i m bolicamente,
e l e es tava também a assinalar. Mas tantos outros ep isó­
d i os pode m ser a l ud idos : a v i tó r i a do frágil Dav i d
( 1 Sam 1 7) ; a fari n ha e o óleo i nesgo táve is , na casa da
v i úva de Sar ep ta ( l Re 1 7 ,7); a cu ra do rei Ezequ ias ,
po rque Deus « v i u » as «abundantes l ág r i m as » que ele
chorou ( 2 Re 20) .
O reco n heci mento que a teol ogia deuteronom ista
faz da Prov id ê n c ia na h istória é suportada p o r esquemas
tão d ec lara dos , de u m a configu ração real ista tão acen­
tuada, que pode m até surpreende r. To memos, para i l us­
t rar, a p rece que Sa lomão faz, pelo povo, na sagração do
Te m p lo: «Quando Israel, teu povo , for vencido dia n te
do i n i m igo , p o r haver pecado contra t i , se ele se con­
ver te r, louvar teu Nome, o rar e supl icar a t i neste Tem­
p lo escuta n o céu, perdo a o pec ad o de I s rael, teu povo,
,

e reco n du ze o à ter ra q ue destes a seus pai s » ( l Re 8,33 -


-

-34) . Mas, ao m esmo tempo, esta fórmula, à p rimei ra


vista demas iado rígida, salvagu a rd a o carácter i n cond i­
cional da li berdade de Deus e da l i berdade do h o m e m .

Evoco, por paradigmática d e u m certo ponto de


vista, uma b reve p assagem dos d i á r ios de Sylvia Pl a r h :
«Ó Deus, que i nvoc o sem fé, só a m i m res peita a esco­
l h a e ape nas eu so u a responsáve l . (Oh, esta é a parte
desagradável do ateísmo!)»16• Po de se contudo, tam­
- ,

bén1 dizer, à lu z da tradição bíblica, que essa é 'a parte


desagradável, da fé . De fac ro a Providência n ão se deve
confu n d i r com um p roviden c i a l i s m o que substi tu i o
ho mem no grande ri s co que é v iver e de ci d i r entre pos­
s i b i l idades. A P rovi d ê n c i a de m o do n e n h u m a n u l a a
co nd i çã o dramá t i ca d o exist i r s o b re a t e rr a . C ab erá

ir. PLATH, ) . , Dinri, M ilano, Addphi, 1 998, p.6 1 .

51
sempre a o homem op rar. E, p o r isso, a historiografia
deutero n o m ista, narra as peripécias de tan tos reis q ue se
afastaram do Senhor ( I Re 1 3 ,33; 1 4,22-24).
O desenvolvi mento e o benefício da Provi dên cia
surgem como expressões da fidel idade à Al iança. É na
h istória que a Providência se m a n i festa, m as na h iscória
de uma Aliança, desse comércio todo p u ro e l ivre a que
chamamos amor.

4. Exercício da Paternidade Divi na

O qu e se disse da Bíblia H e b raica vale para o Novo


Testa mento: nem aqu i enco n t ran1os um vocábulo espe­
cífico para defi n i r a Providência de Deus, e isso é «um

dos m u itos s i nais da original i d ade conceptual do p ró­


p r io Novo Testamento e da s ua distância em relação às
ideologias filosóficas» 17. Ta l co mo para o Vel ho Tes ta­
mento, também aqui a fé na Providência é uma fé (p rá­
tica) na presença de Deus, «Senhor do céu e da terra»
(Mt l l ,25), na h istória, que Ele conduz eficazmente,
«porque tudo é dele, por ele e para ele» (Rm 1 1 ,36).

No a n úncio de Jesus, a Providência coincide con1 o


exerc ício da Patern idade de Deus. « Ü vosso Pai celeste
sabe que tendes necessidade» (M t 6,32): é esta certeza,
na acção providencial de Deus, que perm ite que Jesus
diga « n ão vos p reocupeis com a vossa vida>, mas «bus­
cai, em p r i mei ro l ugar, o Rei n o de Deus e a sua justiça».
A assistência de Deus é, no c a m i n ho que o Nazare no
propõe, uma certeza a toda a prova, pois, semelhante ao
Pastor da ovelha desgarrada, « n ão é da vontade de vosso

17 B E H �. J . , pronoeo m Grande Lessico dei Nuouo Testamento,


Vol. V I I , cc. l 2 1 6.

52
Pai , que está nos céus, que um d es ce s pequen i nos se
perca» ( M t 1 8, 1 4) . Por isso, nas perseguições « q u an d o
vos en tregarem, n ão fiqueis p reocupados com o que
haveis de falar. Naquele mome n to vos será indicado o
que haveis de dizer» ( M t 1 0 , 1 9) ou, na si tuação l i m i te
do ma rt í rio , 1< não tem a is os que n1atan1 o corpo, mas
não podem matar a al ma. ( . .. ) Quan to a vós, até mesmo
os vossos cabelos fo ram co n t ados» (Mt 1 0 ,28.30) .
Na passagem de Mt 7,9- 1 1 (Lc 1 1 , 1 1 - 1 3), o dis­
c u rso s o b re a Providê ncia a lcança p a r t i c u lar intensi­
dade: «Se vós que sois maus sabeis dar boas dádivas aos
vossos fi l hos, q uanto n-1ais o vosso Pai que está nos céus
dará coisas boas aos q ue lhe pedem» . J es us exorta abso­
lutame n te à con fiança em Deus corno « na terna bon­
dade de um pai » 1 8 que faz esp l en der o s o l da sua ternu ra
sobre bons e maus (M t 5,4 5 ) .

A tern u ra p rovi dencial de Deus m an i festa-se, de


n1odo i rresistível , n a v i da e n o destino de Jesus se, como
es c re ve S . Paulo, « n e m a m o rte, nem a vida, n em os
a n j o s, nem os p r i n c i pados, n e m o p resente, n e m o
fu tu ro, nem os poderes, nem a altura, nem a p ro fu n d i­
dade, nem q u alq ue r o u t ra cri at u ra p o derá separar-nos
do amor de Deus mani festado em C risto Jesus» ( Rm
8,38-39) . Aqui tocámos, talvez, o aspecto mais caracte­
r ísrico da fé neotestamentá ria na Prov idência: aq uele
q u e considera a Providência não apenas co m o o rasto de
Deus no t e m p o, mas como a fi nal i d ade da p rópria h is­
tória. Fala r da Providência no Novo Test a m e n to é já
abei rar-se da escatologia.

, ._. ';CJl RrNK, G .. p,uhr in Grande I.essico dei Nuoz·o Testmnmto,


Vol. 1). Bn.•,cia, 1 9"""'1 , cc. l 240- 1 24 1 .

53
ENTREPOSTOS
A CIDADE DE COBRE
G I L DL CARVAI I 10

MAGIA, PALA VRA, CORPO


DAVID MüU RAO-FERREIRA

ARQUJTECTURA POR TUGUESA


jOSÉ MANUEL FERNAN DFS

}AZZÉ E OUTRAS MÚSICAS


Jost. DuAR"l r

AS ESTRA TÉGIAS DO DESEJO


jOSÉ Tül l NTI N O MCN DONÇA

HOMEM E MUL HER OS CRIOU


]ORCE TEIXLI RA DA CUNHA

POR EXEMPL O A CADEIRA


SER FELIZ É IMORAL?
ANTÓNIO P I NTO RIBrl RO

UM PREGO NO CORA ÇÃO


NA TUREZA MORTA
VÍCIO
PAU L O Josr- M I RANDA

DEIXA R A VIDA
)0Rc1 Su VA M n.o

A L GURES ENTRE A RESPOSTA E A INTERROGAÇÃO


ABI:L N tVl �

t r ê s r a 1 õ e s

LIVROS COTOVIA

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