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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UNB

INSTITUTO DE LETRAS – IL
DEPTO. DE LINGUÍSTICA, PORTUGUÊS E LÍNGUAS CLÁSSICAS – LIP

Fonética e Fonologia da Língua Portuguesa


Professor: Antonio Augusto Souza Mello
Aluna: Priscilla Haueisen Dias Ruas
Matrícula: 17/0154386

Resenha Crítica : Guia Teórico do Alfabetizador – Miriam Lemle

Segundo Miriam Lemle (2011), para que alguém aprenda a ler e escrever é
necessário considerar algumas questões próprias dessas habilidades. A primeira questão
é perceber que o aprendiz precisa ter a noção de símbolo: algo que estabelece uma
relação arbitrária entre ele (escrita) e a coisa simbolizada (som da fala). A segunda
questão é sobre o discernimento dos “símbolos” representados na escrita. O aprendiz
precisa diferenciar que cada risquinho é um símbolo do som da fala. A terceira questão
é a capacidade do aprendiz de perceber as diferenças entre os sons para poder escolher a
letra correta que represente cada som, ou seja, é preciso distinguir “vim” e “vi”; “fé” e
“pé”. A quarta é captar o conceito da palavra. Como a palavra é o acasalamento de som
e sentidos usados na expressão, é necessário que quem aprenda a escrever saiba isolar
corretamente as unidades que são palavras. O aprendiz também precisa compreender o
conceito de sentença, ou seja, que há divisões na escrita representadas pelo início com
letra maiúscula e o fim com o ponto. Outra noção necessária no aprendizado é a
espacial: em que a ordem das letras é da esquerda para direita e de cima para baixo, que
instruirá o aluno a maneira que se deve movimentar os olhos no ato da escrita. A autora
destaca que nesse processo há, na verdade, duas relações simbólicas: uma em relação a
representação de conceitos por meio de sons e a outra é a representação de sons por
meio de letras.

Para Lemle, essas habilidades básicas podem ser adquiridas de forma espontânea
pelas crianças, mas também podem ser estimulados na educação infantil. Entretanto, há
casos em que a criança não tem tais estímulos, o professor pode aplicar algumas
atividades específicas (uso de símbolos, desenhos de formas, usar canções, rimas,
identificar palavras em sentenças etc) para lidar com cada questão e para desenvolver
seus alunos.

Além disso, segundo Miriam Lemle, há alguns aspectos complicadores que devem
ser levados em consideração pelo alfabetizador no processo de aprendizado da leitura e
escrita. O primeiro deles é sobre a relação entre sons e letras, já que o casamento entre
sons e letras nem sempre é uma relação monogâmica. No português há poucos casos de
correspondência biunívoca entre sons da fala e letras do alfabeto, como é para p /p/; b
/b/; t /t/ em que cada letra corresponde a um único fonema.

Diante disso, há que se considerar também os casos de poligamia ou poliandria. Há


sons que se relacionam com letras diferentes segundo sua posição. Como exemplos,
pode-se citar o som da vogal [i]. Se essa vogal estiver numa sílaba acentuada, ela será
escrita como “i” (saci, pequi, caqui), mas se estiver numa sílaba átona final ela é
representada pela letra “e” (corre, morte, vale). Há casos também de letras que se
expressam sons diferentes, dependendo de sua localização. Esse é o caso da consoante
‘l’, que diante de uma vogal, é pronunciada como uma consoante lateral (lata, bola),
mas em posição final é pronunciado como vogal [u]. Note-se que na língua escrita essas
diferenças não são representadas e isso dificulta o aprendizado dos alfabetizandos.

Essas diferenças de correspondências devem ser explicadas pelo professor não como
erro da fala. Isso seria um equívoco linguístico. O professor deve estar apto para
explicar as modificações da língua falada, que é afetada pelo contexto e ambiente de
cada, alterando essas correspondências. Esse é o caso para a palavra “sal”. Anos atrás, o
‘l’ era pronunciado como [l], mas com o passar dos anos a pronuncia mais usual passou
a ser [u]. Além disso, o professor pode observar as regularidades das correspondências
múltiplas (e não biunívoca) entre letras e sons e sons e letras e apresentar para o aluno
como uma regra que facilita o aprendizado. Nota-se que essas regularidades de
correspondência múltiplas vão ser diferentes a depender do contexto social do aluno.

Outro complicador é em relação a concorrência de sons e letras: duas letras podem


representar o mesmo som no mesmo lugar. Esse é o caso do som [z] ser representado
com ‘s’ ou com ‘z’ quando entre vogais (mesa, reza). Não há nenhum princípio fônico
(apenas morfológico) que justifiquem as diferenças e a única forma de descobrir a letra
correta na escrita é com o dicionário.
Segundo a autora, é importante compreender que na relação entre sons e letras, há
uma gradação de nível de dificuldade entre a relação simbólica e fonética. A tendência é
que a primeira assimilação do alfabetizando é a da relação biunívoca em que um som
representa uma letra (como em p,b,t,d,f,v).

Orienta-se que o professor introduza o aprendiz, inicialmente, a essa relação. A


seguir, o professor deve apresentar letras que tenham a segunda relação (sons que
representam mais de uma letra ou letras que representam mais de um som em contextos
específicos), mas introduzindo paulatinamente. Nesta etapa, o alfabetizador introduz as
noções de poligamia em relação a determinadas posições da letra na palavra com
exemplos e atividades variadas. O alfabetizando que não dá esse passo na aprendizagem
costuma cometer alguns erros típicos de sempre assimilar os sons a letras específicas
(monogamia) na leitura e na escrita.

O professor apresenta para o aluno os casos em que a opção por uma ou outra letra
para representar um som é foneticamente arbitrária. Para explicar melhor esses casos, o
professor pode contextualizar com algumas informações da história da língua e suas
modificações, ao longo do tempo, já que algumas irregularidades da língua são
explicadas pelas memórias históricas e suas relações com o Latim. Explicações assim
podem aumentar o interesse do estudante pela língua. Outra alternativa é que o
professor faça alguma atividade para que o aluno investigue os casos em que duas ou
mais letras representam o mesmo som. E atividades com música podem ajudar na
identificação de sons e como eles são escritos. Nota-se que o professor ser muito
rigoroso com a escrita da criança, já que isso pode inibir sua expressão escrita.

A autora destaca que é importante que no processo de ensino o professor saiba que
as diferenças entre correspondência de sons e letras variam de dialetos para dialetos e
que essas diferenças podem ter uma carga social que deve ser trabalhada para não gerar
estigmas. O professor deve apresentar cada variante linguística como resultado de
processo linguísticos que por natureza não tem em si diferenças qualitativas.

As relações morfológicas das palavras também devem ser apresentadas aos alunos
para explicar letras em posição de concorrência. Esse é o caso de ‘beleza” que pelo o
som poderia ser escrito como ‘belesa’, mas ao entender que ‘eza’ é uma forma (sufixos)
comum na língua para se transformar algo que tem características de qualidade
(adjetivo) para algo que seria o nome dessas qualidades (substantivos). O estudo de
sufixos e prefixos ajudam o estudante a memorizar os casos de letras concorrentes, esse
estudo pode ser feito com jornais, revistas, músicas.

Miriam Lemle aponta que por meio da análise dos erros de escrita que o
alfabetizando tem cometido, é possível verificar em que etapa do processo de aquisição
o aluno se encontra. As falhas referentes à fase de dominar as capacidades prévias para
a escrita, ou falhas de primeira ordem, são aquelas que se relacionam a pronuncia
prolongada de palavras, como em “ppai” em vez de “pai”; omissões de letras; troca de
letras semelhantes; troca da ordem em que as letras estão dispostas na palavra e
dificuldade de classificar sons diferentes, como em “sabo” em vez de “sapo”.

Na fase monogâmica, o aluno comete erros que que se relacionam à


correspondência de sons e letras, as falhas de segunda ordem, sua escrita é como uma
transcrição fonética da fala, como em “matu em vez de mato”. Caso o aluno demonstre
falhas de terceira ordem, ele terá dificuldades na fase de correspondência entre sons e
letras concorrentes, tais como em “trese” em vez de “treze”. Essa identificação das
falhas dos alunos, e a correspondente fase em eles se encontram no processo de
alfabetização, auxilia o professor na elaboração do material adequado para cada fase do
aluno. É importante que o professor cobre apenas tarefas compatíveis com a etapa de
cada um. O aprendiz deve ser considerado alfabetizado se suas falhas forem de terceira
ordem, já que essas ele irá adequando à medida que aumente o contato com a leitura e
escrita.

A autora também enfatiza para a necessidade de se compreender as mudanças da


língua. Segundo Lemle, é importante notar que todas as línguas se alteram com o tempo
devido às mudanças nas formas de se expressar de cada geração e por causa de uma
série de fatores. O português, por exemplo, tem sua origem no latim. Existe um
documento Appendix Probi que permite que identifiquemos as mudanças já ocorridas
entre Latim clássico, utilizado na literatura, e Latim Vulgar, utilizado pelo povo. O
documento era uma recomendação do que seria considerado correto, comparando com o
que seria errado na pronúncia. Alguns exemplos: speculum non speclum; vinea non
vinia; rivus non rius.

Nota-se que as recomendações do documento não foram seguidas pelos falando da


língua, já que o português, por exemplo, é uma continuação da transformação que já
havia sido feita no latim clássico, como em Rivus > Rius.
O Appendix Probi exemplifica como o menosprezo pela língua falada de um
grupo de falantes é recorrente ao longo dos anos. Isso porque a língua falada marca a
identidade de grupos sociais e o preconceito linguístico é uma tentativa de valorizar a
fala de certos grupos em detrimento de outros. Aqueles que buscam preservar sua língua
falada, em outro sentido está tentando manter sua identidade e seus valores.

Para Lemle, a língua se altera quando as mudanças de pronuncia passam para a


geração seguinte. A geração nova terá apenas contato com a mudança e isso gera uma
transformação na estrutura da língua. Como exemplo, pode-se citar o caso de Rivus >
Rius. Inicialmente, por alguma razão, a comunidade adota uma articulação mais frouxa
que para [v] de Rivus, os falantes variam a articulação [v] entre fricção branda e sem
fricção. Esse é o estágio apenas de mudança de pronuncia da língua, mas não em sua
estrutura. Quando uma nova geração de filhos dos falando que afrouxaram o [v]
intervocálico surge, ela não terá contato com a pronúncia anterior, assim para eles Rivus
terá apenas a pronúncia como Rius. As representações mentais (ou léxicos mentais) das
gerações são diferentes, caracterizando a mudança na língua e conflito entre léxicos. A
mudança linguística ocorre em duas fases. A primeira fase é a de flutuação fonética,
com variação no desempenho articulatório dos falantes. A segunda fase é a da nova
geração de falantes que reinterpretam as alterações fonéticas da geração anteriores,
organizam seu saber linguístico em bases diferentes das dos seus predecessores.

O que a autora questiona é como a realocação dos dados fonéticos feitos por
uma nova geração afeta a estrutura da língua. No exemplo do Latim, quando se observa
uma série de transformações das palavras, é possível verificar um certo rodizio em que
alguns fonemas forneceu palavras portadoras de seus representantes a outro fonema e
recebeu palavras novas de um terceiro fonema, conforme em: capillu > cabelo (/p/ >/b/);
de caballu > cavallu /b/ > /v/. Essas alterações também podem ocorrer em relação a
traços distintivos dos fonemas (como na alteração de consoantes longas por breves, por
exemplo, em gatto > gato) ou mesmo um fonema deixa de exisitir. Outra possibilidade é
a alteração fonotática em que há mudanças nas estruturas de sílabas possíveis e na
distribuição de fonemas pelas posições na sílaba, como em passagem > passage, em que
a estruturação silábica terminada por consoante (sílaba travada) deixa de existir nesse
caso. A gramática da língua também pode sofrer alterações com essas mudanças. Esse
foi o caso na língua latina em que houve extinção do ‘m’ final nas palavras com função
de sinalizar o objeto direto (no acusativo).
Para Miriam Lemle, ao se tratar do processo de alfabetização, é necessário tratar
também sobre as diferenças entre língua falada e língua escrita. No contexto da nossa
sociedade ocidental, há o interesse de que a língua escrita tenha grande alcance de
comunicação para pessoas de diferentes nacionalidades e épocas. Entretanto esse
interesse se esbarra no processo complexo que se torna a alfabetização. Em outras
palavras, para que a escrita esteja próxima dos alfabetizandos é necessário que ela seja
próxima da língua falada, mas para que a escrita seja duradoura e que atenda a várias
culturas e comunidades, é necessário que ela seja mais rígida. Diante disso, é há uma
escolha a ser feita dentre as duas opções. No caso do Brasil, escolheu-se a ortografia,
inclusive por causa de acordos internacionais. Seria inviável que uma língua se
adequasse na escrita com mudanças e transformações de milhões de pessoas e muitas
culturas e nacionalidades. É impossível a língua escrita ser abrangente e fiel
foneticamente. Entretanto, isso acabaria deixando o aprendizado mais complexo e
difícil. Outro ponto que deve ser considerado é que a medida em que haja uma
correspondência entre fala e escrita, surge a necessidade de uma convecção em relação a
pronuncia das palavras. Isso promoveria status privilegiado para aquela variante que
fosse tida como o modelo de fala.

O estudo realizado por Miriam Lemle compõe um material para reflexão no


processo de alfabetização. A produção da autora permite que professores e futuros
professores ampliem a percepção sobre a complexidade que é o processo de aprender ler
e escrever. De forma oportuna, Lemle demonstra os mecanismos e etapas pelos quais o
aprendiz passará durante esse percurso. A explanação desses procedimentos e a
indicação de possíveis atividades que podem ser aplicadas são informações importantes
para fazer uma alfabetização mas completa e que respeite às fases e particularidades do
aluno.

Essa compreensão, além disso, permite que professores e alunos ultrapassem


alguns preconceitos, já que em seu trabalho há vários indícios de que as transformações
que ocorrem nas línguas são naturais e inevitáveis e que as variantes resultantes não são
em si melhores ou piores. Essa concepção traz a luz preconceitos linguísticos tão vistos
no dia-a-dia e que no fundo são apenas instrumentos para reforçar o status quo de
determinadas camadas sociais e perpetuar estigmas.

O estudo demonstra também sobre a importância da formação em linguística


para a alfabetização. O estudo das estruturas linguísticas promove um ensino mais
consciente e completo e que lide com todas as fases da alfabetização. Como pontuado
pela autora, há o incentivo de que os professores ultrapassem os métodos de ensino que
tem sido mais abordado, tais como o método sintético e o método analítico em que
apenas a etapa da hipótese monogâmica é considerada. É necessário que educadores
proponham um ensino que respeite os aspectos apresentados, tais como, as habilidades
necessárias para o aprendizado, a diferentes relações entre fala e escrita e as
transformações na estrutura da língua.

O grande desafio colocado é que professores consigam observar seus alunos e


desenvolver atividades que respeitem os contextos sociais e as variantes linguísticas de
cada um. Essa tarefa é bem complexa, se considerarmos a diversidade que se pode haver
em sala de aula e os diferentes níveis entre alunos, ainda mais no contexto de escola
pública em que há o incentivo para que alunos passem de série mesmo que não
cumpram os requisitos necessários.

Referências Bibliográficas:

LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. São Paulo: Ática, 2011.

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