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ROBERT DARNTON

Os dentes falsos de
George Washington
Um guia não convencional para o século XVII

Tradução
Iosé Geraldo Couto
Copyright © 2003 by Robert Darnmn
Sumério
Ttrulo origmal
George Washingmn‘s False Teeth:
An Unconvcmional Guide to the Eightecmh Century

Cnpa
Rita da Costa Aguiar

Fare (12 mpa


Hulton Archival Getty Images

India remis iva


Miguel Said Vícira

Prepamção
Vanessa Barbara

Revisda
Cumen S. da Costa
erise Simñes Lenl

Dodo: lnurnlciomi: d: (3-1:!on m Publinçlo (HP)


(Churn Iruileir: do Lhrro. IF. Bran) lntrodução. . . .
Dun-non. Robem I939
OI Acute: films dc George Wuhlngton :um guin nlo con—
vendonul pun n Iéculo XVII / Robert Dlrnton :lrlduçlo Jose
1. O processo do Iluminismo: os dentes falsos de
Gcrl do Como. ~ 550 Pink) :Companhiu du Letru. 2005‘ GeorgeWashington. . . . . 17
Tímlo origin-l: George Wuhlnncn‘s False Tum :An 2. As noticias em Paris: uma pioneira sociedade
Un onvenüon l Guide to the Eighteenth Century.
IKblloynr‘n. dainformação. . . .. 4o
BIN 85459-06 54
3. A unidade da Europa: cultura e civil dade .. . . . . .. .. 91
I. Pnnçl Vidl imelmull - Skuln 18
4. A busca da felicidadez Voltaire e Ief erson . .. . . . . .. . ... 105
-

Z. Ilunllnlano - ança l.Tllulo‘

05-3!” mummy
5. O grands portal: Rous eau na estrada de Vincen es ... 125

Indian purl “mop sinemtlko: 6. O entusiasmo pela América: Condorcet e Brissot . .. 138
944.034
l.Prlnçn :llumlniuno :VMI inlekmul :Século 1! 7. A busca do lucio: rous eaunismo na Bolsa. . . . . . .. . . . . 158
2. Skulo I! :llumínilmo :Vida inleledual :ança 944.034
8. Os esqueletos no armério: como os hístoriadores
brincamdesrDeus. . . . 179
[ms]
Tudon ac díreitos dam ediçlo reservation I
EDITOM scuwncz LTDA. 201
Ru Bmdeirl Paulina 702. C].32
— sr
Agradecimentos. . . . . 217
045 1-0 2 — Slo Plulo
'Ihlcfone (11) 3707-3500 Indicer mis ivo. . 221
Fu (1:) 3707-3501
w w.m plnh duktru.o m.br
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société àpenser pré-revolucionária, fran-


ccses pré-revolucionérios
mas na época os radicais
8. 05 esqueletos no armério:
não pensavam como pensamos hoje.”
Em algum momento de meados de 1789, Claviére ensaiou n como os historiadores brincam
elaboração de uma declaração dos direitos do homem. Seu esboço
de ser Deus
incluía a cláusula: “Sendo a preservação dos costumes absolutu‘
mcntc nec s ária àmanutenção do contrato social, todas as ativi~
dades financeiras no setor público devem ser contempladas em suu
relação com a mOralidade’1“ Não havia nenhuma especulação ala
baisse pegando carona nessa declaragao. Talvez Claviére de fatu
entendes e a Bolsa de acordo com idéias derivadas do Contratu
social de Rous eau. Talvez o aspecto mais significativo dessa pan-v
fletagem com Brissot não seja o fato de eles desejarem ganhar
dinheiro, mas 0 dc realmente acreditarem no que diziam.

Os fatos concretos desmanchar m-se. Não há como ncgai-lo,


qualquer que tenha sido aposição que você adotou durantc as ulti-
mas décadas, enquanto as ondas do relativismo inundava m a pai-
sagem intelectual. Os bíógrafos podem ainda gostar de mctúlbras
como escavar nos arquivos, mas quem acredita na dcscobcrtu c
cxtração de pepitas de realidade? Palavras como “fatus” e “ver—
dade”criam constrangimento edão vontade de correr em busca dc
ubrigo. Se vocé está escrevendo uma biografia, comc c—a com
pedidos de desculpas. Uma introdução deve rodcar o objeto com
um alerta: nunca poderemos conhecer a “verdadcira” Virginia
Woolf on o “verdadeiro” Teddy Roosevelt, e qualquer leitor que
suspeite que o escritor seja ingénuo deve ser levado a cntrar no
livro através de um discurso sobre o método.
Recentemente cu estava escrevendo um prefácio cautelar a
um estudo bíográñco de Jacques-Pier e Brissot, o líder dos giron—
dinos durante a Revolução Franc sa. Antes dc apagé-lo da tela do
computador, rememorei os 36 anos durante os quais segui o rastro
desse homem em meio aos arquivos. Topei com ele pela primeira

179
vez na Bibliothéque Municipale d’Orle’ans, em 1965. Eu era 0 pri- existéncia civil -— isto é,a casar e herdar propriedades. Insurgiu-se
meiro estrangeiro que batia na porta da biblioteca, eo homem que também contra a pena de mortc e a escravidio. Era um rous eau-
a abriu, o bi liotecario—adjunto Le Maire, den-me cordiais boas- niano ardoroso, que tinha chegado a testemunhar uma abortada
vindas. Até se ofereceu para me mostrar a cidade. Pelo fato de a revolução inspirada pelas ídéias de Rous eau em Genebra, em
excursão ter começado pela prefeitura, e também porque meu 1782. O idealismo nutria seu entusiasmo pela Revolução Ameri-
frances era fraco demais para que eu entendes e direito o que se cana e por tudo o que fosse da América, que ele celebrou em livros
passava, julgueí quc monsieur le Maire fosse o prefeito de Orléans; e panfletos, um mais radical que ooutro. Como foi explicado no ca-
e fiquei admirado com tanta gentileza. Onde mais, pensei, o res- pitulo anterior, ele fundou uma Sociedade Galo~Amcricana em
peito pela pesquisa era tão grande que até um inexperiente estu- companhia de Etienne Claviére, um financista gencbrino rcfugiado
dante de pés—graduagao era recebido com tapete vermelho? Só na da revoluçâo frustrada de 1782; de Hector Saint John dc (Iréve-
Franca. coeur, autor das Lettersfrom an American Farmer, as quais, traduzi—
Mais tarde, meu conhecimento da lingua mostrou-se born 0 das dc maneira bizarra para um francés rous cauniano, tomaram
suficiente para que eu entcndes c que meu anñtrião era responsi- Paris de assalto; e de Nicolas Bergasse, um advogado radical c fami-
vel pelos arquivos da bibi oteca, e comccei asuspcitar do motivo dc gerado mesmeriano.A entidade não durou muito, mas gerou doctr-
sun hospitalidade quando ele me perguntou, um tanto hesitante: mentação suñciente para que eu escreves e uma tese dc bachare-
“Vous ltes Protestant”. Embora cu scja atcu, meu írances não es- lado em filosofia sobre ela na Universidade de Oxford. Eu tcntara
tava àaltura de uma confromação tcolégica. Optei pelo mais sim- rastrear as cor entes ideológícas que circulavam pela Paris dc Icffcr-
ples: “Oui, monsieur’". “Nous sommaplusieurs”, ele respondeu com son. Eem 1788, quando Brissot partiu de Paris para uma excursáo
um sorriso. Logo estava mc mostrando abrigos subter áneos and: pelos Estados Unidos, continuei a seguir suas pegadas. Scu cami-
03 huguenotes be havíam escondido dos perseguidores durante o nho levou-me de volta àFrança revolucíonáría, onde ele fundou Le
reinado dc Luls XIV. Depois disso ele mc deu achnve da biblioteca, Patriotefrangais, um dos jornais mais radicais da nova esquerda em
uma chave mestra' que abria tudo, dz pom dz frentc aos armáríoa A~ 1789, c ajudou a fundar a Sociedadc Francesa dos Amigos dos
com manuscritos medievaia. Eu cenamente gostaria dc trabalhu ' Negros, uma influente cntidade antiescravista, que também fun-
dcpois do jantar, quando a bibliotcca estava fechada, e durante o cionou como um grémio politico. Para mim, atrajetória de Brissot
fim dc semma. Podia-sc confiar mun protestante. atraves ava todas as melhores causas do século xvm e vinculava o
Nos arquivos, depois do moitecer, cncontrei minha p' Iluminismo àRevolução.
Sofri, portanto, um tremendo choquc quando abri uma pasta
os protestant”. Bscreveu em favor dc sun emn cipnção dunnte - mm: 05 documentos dc Jean-Charles-Pier e Lenoir, teneme-
mos1770 c1780, quando ainda era negado aele: o direito a general da policia em Paris entrc agosto dc 1774 e maio de 1775 e
entre junho dc 1776 e agosto de 1785, na livraria dc Orleans, e
Wm nofighdemindhmbynuepmduzmjogde- encontrci esta anotação escrita de próprío punho por Lenoir:
Wm uapm e-uqm- mn “Brissot permaneceu em Paris [dcpois de ser i bcrtado da Bastilha,

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onde havia sido aprisionado por força de lettre de cachet (carta através das montanhas do Iura e vendia por toda parte na Franga.
régia) entre 12 de julho e 10 de setembro de 1784]. Ele veio oferc- Editoras semelhantes e atacadistas havíam surgido ao longo das
cer seus serviços àpolícia. Recusei—os, mas por cerca de um ano ele fronteiras com aFranqa, e seu negócio prosperava, graças às restri-
manteve relações de espionagem com um dos secretários daquele ções impostas dentro do reino pela censura, pelas corporações de
departamento, que apresentava seus relatóríos a mim, e ele era editores e pela polícia dos livros. Os documentos da STN —- 50 mil
pago por esses relatérios. Pouco antes da minha aposentadoria, cartas e todo tipo de livros contabeis - são os únicos desta vasta
Brissot ainda estava empregado como espião da polícia”. indústria que sobreviveram. Eles incluem 119 cartas inéditas dc
Brissot espião da polícía? Um fato concreto? Lenoir incluiu Brissot, como descobri ao escrever àbiblioteca de Neuchâtel de~
essa declaração entre algumas notas que ele pretendia reunir num pois de topar com uma nota de pé de página num livro de história
esboço de suas memórias, tarefa que nunca completou. Escreveu local.
em algum momento depois de 1800, quando estava vivendo fora As cartas estavam esperando por mim quando cheguei: 1l9
da França como refugiado de uma rcvolução que ele detestava. T - cartas em meio a uma montanha de documentos referentes a cada
vez quisesse denegrir a Revolução medíante adifamação do nome aspecto da indústria editorial, da compra de papel àvcnda dc
de um de seus líderes maís eminentes. Mas Lenoir não tinha ne- livros. Incapaz de resistir àtentação, comecei a bisbilhotar as car-
nhuma rixa pessoal com Brissot. Nenhuma das outras referéncias tas assinadas por outros autores. Para meu espanto, deparei com

r
em seus documentos sugere um falseamento proposital. Pclo conv uma de autoria de um lider ainda mais famoso da Revolução Fran-
trárioz seus contemporâneos e biógrafos geralmente o descrevem cesa, Jean-Paul Marat.
como um funcíonário público honesto e capaz. Seria possivel drio Marat nasceu no cantão de Boudry, perto de NeuchâtcL e
blar a questão alegando que a “espionagem” poderia consistir da completou seus estudos no college de Neuchâtel antes dc iniciar
redação de relatórios relativamente inocentes sobre autores ea carreira como médico e cientista na França e na Inglater a. A carm.
opinião pública. Mas os parisienses abominavam cspiões de poll- endereçada a Frédéric-Samuel Ostervald, amigo de família e um
cia desde muito antes de 1789, quando lincharam pelo menos um dos fundadores da 5m, íncluía uma longa e mal-humorada defesa
deles. E Lenoir diz com todas as lctras: Brissot era empregado c da obra mais ambiciosa de Marat, De l’homme, ou des principcs et
pago “como espião da polícia”. Trinta e seis anos depois ainda me des lois de l’influence de l’dme sur le corps etdu corps surl’dmemms—
vejo perturbado pclo dilema ir edutível envolvido na questio: ou terda, 1775-76) ,em trés volumes. Revelava muito sobre o estado de
Brissot espionava para a polícía ou não espionava. Ou Lenoir disse espírito de Marat e sobre o começo de sua carrcira. Mas seu aspecto

a verdade ou mentiu. maís importante era a data, 14 de maio de 1776. Àquela altura, de
Orléans foi a primeira parada numa víagem de pesquisa que acordo com váríos de seus biografos, Marat estava na prisão por
terminou num arquivo realmente formidável e virtualmente in- haver roubado o equivalente a cem libras em moedas e medalhas
tocado, os documentos da edítora de Brissot, a Société Typogra- do Ashmolean Museum, em Oxford. Segundo constava, ele esti—
phique de Neuchâtel (STN) na Suíça. A STN im primía grandes vera ensinando francés na Warrington Academy, em Lancashire,
quantidades dc livros piratas e proibidos, que ela contrabandeava sob um pseudOnimo, Jean-Pier e Le Maitre. Defendeu asipróprio
_

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com eloqüéncia no julgamento, invocando talvez o principio pro— meiro Iugar, claro, ele foi um dos doze lideres mais proeminentes
clamado em seu Plan de législation criminella “Qualquer um que da Revolução Francesa; quanto mais soubermos sobre ele, melhor.
roubc para viver, quando não pode fazer outra coisa, apenas faz Ele estava identificado com a fase “bris otista” ou girondina da
uso dc seus direitos”. Esse Le Maitre então teria escapado da prisão Revolueao, o último periodo de moderação antes da ir upção do
a tempo de reaparecer em Paris como Marat, cuja existéncia como Terror. Ele e seus aliados erarn republicanos, idealistas, radicais à
médico dos Gardes du corps du comte d’Artois pode ser documen- sua maneira, mas não homens de ação violenta. Podem ser roman-
tada apartir de junho dc 1777. Ahistória continha suñcíente plau- tizados, como na Histoire des Girondins de Lamartine, mas não
sibil dade e mais que suñciente fascínio para desencadear uma desprezados como gente trivial. Pelo contrario: eles defondiam os
polémica que teve início com um artigo no Glasgow Star de 4dc principios mais elevados e em sua maioria, incluindo Brissot,
março de 1793. Mas era uma hístória falsa. Acarta que eu tínha em foram parar corajosamente na guilhotina. Em meia dL’lzia de bio-
mics fora escrita na França antes da fuga da prisão na Inglater a. grafias, Brissot aparece como o protótípo de idealismo em aqfio. A
Ela provava que todo o debate girava em tomo de um caso de con- mais recente delas, de autoria de Leonore Loft, compara-o a Nel—
fusão de ídentídades. son Mandela.
Sem querer. eu tinha declarado Brissot culpado de espiona- Em segundo lugar, Brissot aparece nas biografias, enas ohms
gem eMarat inacente de roubo. Estava emitindo veredictos sabre sobre o século XVII em geral, como aencarnação de um proccsso
dois individuos que eu não conhecí eque não poderiam nunca se crucial, atransição do Iluminismo àRevolução. A conexão cntre
defender, jáque tinham morrido numa longínqua revolução esses dois fenômenos muitas vezes parece problemática, mas Bris-
duzcntos anos atras. Será que cssa era uma prátíca característica da sot escreveu tratados iluministas antes de 1789 edefendcu cu sas
vocação de historiador? iluministas depois dessa data. Daniel Mornet, a maior autoridade
Voltemos aBrissot. Agora que publiquei todas aquelas cartu no que diz respeito às origens intelectuais da Revolução Franccsa,
junto com um ensaio biografico, percebo que nunca deixei dc vim descreveu-o como “a imagem perfeita de todas as aspiraçócs de
7

com esse homem desde 1968, quando decidi abandonar uma him uma geração”. Quem encontrar a chave para a vida de Brissot
grafia completa dele. Desisti do projeto porquc julguei mais‘ poderá ser capaz de desvendar os problemas mais importantes de
importante cmpreender outro, a história dos livros, uma nova seu tempo — não de resolve-105 definitvamente, claro, mas de
specie dc tema que emergiu do contato com os arquivos dc New mostrar como um indivíduo representativo lidou com eles e in-
chitel. Urn esboço de quinhentas páginas de uma vida de Brim corporou-os no padrão básico de sua Vida.
jaz no fundo de uma gaveta em men escritério. Devo tentar u.-.- '- As cartas em Neuchátel certamente abrem uma nova pers-
pectiva sobre avida de Bríssot porque mostram como um jovem
provinciano obscuro tentou construir uma reputação como escri-
tor. Brissot não tínha protetores nem amizades influentes, por-
tanto teve de abrir por meio da escrita seu caminho para aRepti-
blica das Letras. Seu pai, urn próspeto fornecedor dc refeíções

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[maftre cuisinier et traiteur) de Chartres, queria que ele fosse advo acompanharam. Eu também o fiz quando comecei a ler o dossié

~
gado. Mas, quando completava a ínstrução secundária, Iacques~ sobre ele nos documentos da STN, em 1965. Em alguns aspectos, o
Pierre caiu sob o encanto de Voltaire, e enquanto trabalhava como novo material confirmava o velho retrato traçado nas memórías.
assistente para advogados, primeiro em Chartres, depois em Paris, Esse material mostrava o modo como Brissot publicou amaioria
começou a escrever ensaíos sobre temas como os absurdos conti— dos livros. Demasiado obscuro e demasiado franco para vender
dos nas epistolas de são Paulo e as íníqüidades do sistema do seus manuscritos aeditores franceses, ele pagava aos suíços para
direito criminal na Franga. Seu pai, um católico devoto, ameaeou imprimi-los e esperava cobrir os custos vendendo as edições por
deserda-lo e finalmente acabou lhe deixando apenas 4mil libras intermédio de revendedores que atuavam no vasto comércio sub-
no matter, em 1779, um Iégitime minimo de uma fortuna de mais ter âneo de livros da França. Seu iivro mais ambicioso, Théaric des
de 100 mil libras. Jacques-Pier e usou uma parte do dinheiro, seis- lois criminel es (1780), merece com certeza um lugar entre os tra-
centas i bras, para comprar um diploma formal de direito da Uni- tados jurídicos do Iluminismo, embora proceda quase intcira-
versidade de Reims, mas logo trocou o direito pela literatura. Elc mente da obra, mais original, de Cesare Beccaria. 0 livro impres-
explicou em suas Mémoires: “Livre dali em diante, resolvi me dedi~ sionou oprincipal diretor da STN, Frederic-Samuel Ostervald, que
car inteiramente aproñssão de escritor”. adotou um interes e um tanto paternal por Brissot. Os dois se
Escrever era uma proñssão naquela época? Essa pergunta conheceram quando Ostervald fez uma viagem de negócios aParis
ocupa um lugar central na sociologia da literatura tal como desen- em 1780, eao que parece tornaram-se imediatamente amigos. Em
volvida por Robert Escarpit, Pierre Bourdieu e Alan Viala. As 1781, as cartas de Brissot a Ostervald jáhaviam as umido um tom
memórias de Bríssot revelam um pouco da estratégia que ele ado- confidencial, e as confidéncias versavam sobre seus esforÇOs para
tou com o intuito de levar adiante sua carreira. Ele recor eu a conquistar fama e fortuna como escritor.
ajuda deVoltaire ed’Alembert, competiu em concursos de ensaio‘lx Claro que os melhores escritores podern confessar its vezes
aegifindo o exemplo de Rou s e au , Culüvou contatos nos circuloa, ambíções extravagantes e descrever suas carreiras como lanccs de
literirios e escreveu um tratado ñlosóñco depois do outro. Bm— um jogo de avangar posigoes. Mas fiquei surpreso ao encontrar o
bora nio tenha conseguido ingressar nas primeiras fileiras dos phi; tema da autopromoção tão onípresente nas cartas de Brissot. E1215
losophes. atraiu atenção suficiente para ser pcrseguido pelo Estado.‘ 4 0 mostram buscando contatos, cultivando apoios, tentando colo-
Eacapou da primeira lettre dc cachet emitida para sua priaao em car seu nome nos jomais, solicitando resenhas favoráveis e reali-
1779, mas a aegunda levou-o ao encarceramento na Bastilha pox}, zando manobras a fim de se eleger para academias. Em suas
dais mesa em 1784. Uma pua gem pela Bastilha, somada a ulna memérias, ele alegava desdenhar as academies por causa de seu
bibliografia de tratados iluminista , propiciou-lhe o curricula caréter fechado, mas nas cartas ele pede a Ostervald que opromova
'

perfeito em 1789, quando emergiu como o protótipo do philoso- no Journal Helvétique da STN como “M. Brissot de Warvil e, juris-
pheeonvertido em revolucionario. consulto no Parlement de Paris, membro de diversas academiasja
Btiuot eacalou ease papel para sipróprio quando descreveuq, conhecido por sua 'I'héorie des lois criminal es, da qual falamos em
_'_a pré-revolucionaria em suaa memorias, e seus biOgrafoa a nossas edições anteriores, e por apontamentos sobre o mesmo
'

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n n
assunto premiados no ultimo ano na Académie de Châlons . nlc vendé—las àSTN. Ao propor a antologia de textos da Académie des
também alcgava em suas memórias que sempre odíara mas reis, Inscriptions ct Bel es-Let res, ele explicou que produziria em
orientou Ostcrvald aenviar exemplares especialmente encaderna- ritmo acelerado recrutando escritores dc aluguel: “Dirigirei um
dos dc scus livros aFrederico IIcCatarina II: “Estou fazendo minha grupo de trabalhadores subalternos”. Brissot trabalhou dc fato em
cstréia n‘a literatura, e meu nome não ébem conhecido [...]. Para duas compilações próprias, uma Bibliothêque philosophique du
causar sensacao, como desejo, ele deve contar com a maior publi- législateurem dez volumes e uma Cor espondance universel e sur ce
cidade possivel, deve ser enviado a toda parte, a todas as cabeças qui intéres e le bonheurde l’homme et de lasociété, que deveria pros-
coroadas, enão pouparei nada para alcançar esse objetivo”. Depois seguir indefinidamente, mas empacou depois do volume 2. 05
de esboçar oprojeto de um tratado sobre o “pir onismo universal", titulos sugerem generosidade, mas os conteúdos mostram que não
Brissot rogou a d’Alembert que lhe escreves e uma carta que passam de trabalhos de “recortar e colar”. Na verdade Brissot
pudcsse scrvir de prefácío ao texto. Mas quando d’Alembert en- nunca escreveu nada de muito notável - pelo menos até onde
viou-lhe apenas duas linhas mornas, abandonou o projeto. Suas posso dizer depois de vasculhar em milhares de páginas dc sua
conexões com o Courrie r de ’E ur o pe, onde ele havi a trabalh ado prosa. Sua obra mais importante, Théorie des lois criminallcs, era.
par um tempo corno rcvisor, proporcionar m-lhc alguma publi- como mencionei, pouco mais que um pastiche do Dos delitos e das
cidade; mas ele sc ir itava com sua própria inaptidão para estourar perms de Beccaria, e sua publicação mais pretensiosa, Dela vérilé.
no Journal de Paris. Conseguiu cleger-sc para a Académie de Cha- ou médimtions sur les moyens de parvenir àla vériré dans toutes les
lons-sur-Marne, mas cm Paris considerava ímpossível iralém do con aís ances humaines (1782), meramente requentava os luga-
Musée dc Pilttre dc Rozier, um clube literárío não exclusive and: res-comuns clássicos do pensamento iluminista.
qullquer um podia let um texto sobre qualquer coisa. Maquina- As únicas obras de Brissot que atrairam alguma atenção de
ções lem fim junto aSociété Économique dc Bern: n30 levaram I seus contemporáneos foram panfletos; ese eles otornaram conhc-
and: no concurso dz ensaios promovido pela entidade, enenhum cido foi com areputação de polemista vecmente. Depois dc lcr seu
dc sous limos produziu o menor estardalhago, apesar das tentati— Le Philadelphien aGenêve (1783), Iacques Mallet du Pan descrc—
W de orquestru resenhu favoriveis. veu-o como um exemplo do elemento mais vulgar em literatura:
0 fluxo continua de propootu de Brissot ao editor sugar: “Os homcns de letras hoje em dia estão se tornando gentalha
mais nutopromoçio esenso empre ndedor que dedicação a11% [canail e] ,cgentalha da pior espécie, porque reúnem descaramen-
'_ trcçlaEeparcinpmtonmsobrequctdom acow ‘A . to e covardia”. EJean-Francois dc La Harpc considerava-o um
7 * emdczvolumesdamdaAdemidcshucriptomu? seguidor grosseiro edc quinta categoria de Rous eau. Mas outros
pareciam avaliar sua dimensão com mais precisão. Quando Frie-
drich von Freudenreich informou aOstervald que aSociété Eco-
nomique de Bemc não iria desrespeítar sua: normas, como Bris-
Man can obru loam coma trabalhos de encomenda, a. sot pedira, para dar a estc ultimo pistas que o favoreces em num
\ =› Ciel» dragon iEmma impressa, porque Brissot quem concurso dc ensaios, observou: “Na idade del e [entao 28 anos],

189
apresentar-se como um juiz plenamente competente de todos gui parar. Cada nova informação que eu trazia àtona reforçava
os aspectos da filosofia,da política edo direito, apresentar—se como minha tendência a duvidar do homem projetado nas memorias,
um novo Arquimedes [...] éexibir um grau de presunção de que 56 especialmente quando investiguei o lado financeiro de seus em-
um jovem homem de letras francés écapaz”. pre ndimentos literários.
Essa avaliação me pareceu muíto próxíma do alvo. Se podia A herança de Brissot foi suficiente para pagar pela impressão
ser considerado um philosophe, Brissot representava o alto ilumi- dos prímeíros lívros. Mas, quando ela acabou, Brissot adotou uma
nismo numa expressão intel ctualmente mediana. Mas por que estratégia piramidal: as vendas de um livro deveriam pagnr apro-
considera-lo um fiIOSofo? Porque ele se apresentava assim em suas dução do seguinte. Era possivel postergar o acerto de contas de
mcmórías c porque os bíógrafos dele moldaram suas interpreta- uma publicação até o livro seguinte porque os atrasos cram ambu-
ções com base nisso. Ele surge sob uma luz diferente, porém, tidos no sistema de pagamento. Como a maioria dos autores que
quando visto através da cor espondêncía com aSTN. Além de pro- encar egavam a STN de editar seus livros, Brissot promctia cobrir
por obras de ocasião que jamaís foram editadas, ele publicou pan- os custos com letras de câmbio que vencíam seis meses depois que
flctos que nunca Ihe foram atribuidos porque cram anOnimos. A ele recebia os exemplares impressos. Se ele conscguis c vcndé-los
STN imprirm'u quatro deles, todos desconhecidos por seus biogra- com rapidez suficiente, podia liquidar as dividas. Ele emitia as le-
fos anteriores. Um deles era um ensaio amadorístico sobre 0 es- tras em nome de seu livreiro parisiense, E.-M.-P. Desauges, um as—
tudo de linguas; outro, um relato polémico da cena literáría em tuto veterano do mercado clandestine, que trabalhava cm con-
Paris; cas outros dois, diatribes tendenciosas sobre relações ínter- junto com tipos igualmente duvidosos, como Jacques Revol, um
nacionais. Quando liestas últimas, julguei reconhecer o Brissot de contrabandista de Lyon, e aviúva La Noue, uma agente de rcmes-
1792. Em vez de discutir os as untos scriamente, eles amontoavam sas com depósitos secretos espalhados por toda part: em Versa-
ofensas contra os inimigos da França e as umiam um tom infla- 1hes.0s intermediaries tinham perícía suñcientc para dcscmpc’
mado, que soava um pouco como os discursos que ele faria no nhar seus papéis com eficacia; mas, como Brissot os dcscrevia nus
Club: Iacobino uma década mais tarde, quando contribuiu main cartas, eles operavam com base no principio da honra cntrc
do que nínguém para enredar a Revolução numa guerra desas- ladrões, e não tinham honra alguma. No final, depois de toda espé-
tron. O corpus das obras de Bríssot, quando rc onstruido por cie de complicações e manobras, Desauges recusou-se aaccitar as
meio dos arquivos dc sua edítora, não parece muito filosofico, eo letras dc càmbio de Brissot, e Brissot queixou-se de que tinha sido
prdprio Briuot não sc parece muíto com um ñlósofo. tosquiado por um bando de embusteiros.
'Ihlvez, porérn. cu tenha sido o ntaminado pela ótica dos ini- Ele também tinha outra desculpa para nio conseguir pagar
nrdígon de Brisaot. Devo admitir que bastou cu começar a ler suas suas contas: apolícía confiscara um car egamento dc quinhentos
m acontrapelo pm elu perderem o brilho; e, depois que jun- exemplares dc sua Théoric dc: 101's criminclks. Assim. cm sun versão
id-‘fl poçu do hiatória por m. dc sua publicação, elas passaram a das diñculdades que atraves arn, ele era um inocente que havia
sido vítima de inimigos de ambos os lados na batalha dos livros—
de um lado, os agentes do despotismo real, e do outro lado, os

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