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João Filgueiras
Lima:
uma ponte entre a
arquitetura e o design

Adalberto Vilela

Na acepção estrita do termo design, entendido aqui como “a organização das partes 103
de um todo, de modo que os componentes produzam o que foi planejado”151,
encontramos um io condutor que caracteriza, por assim dizer, a ilosoia de uma obra
produzida por um arquiteto que, ao longo de quase 60 anos de proissão, destinou
boa parte de seu tempo a equacionar intrincados sistemas de produção, montagem,
encaixes e transporte de peças pré-moldadas (em concreto, madeira, aço ou
argamassa armada), onde os arranjos desses componentes se integram com
racionalidade, economia e sensibilidade estética em um todo operante e funcional.

No entanto, o design na obra de Lelé não se limita aos componentes construtivos, ele
vai além ao contribuir “para a construção de uma nova espacialidade adequada ao
homem e ao ambiente, integrada corretamente à paisagem e seu contexto
sociocultural.”152 Do veículo para transporte de pacientes a pinos ortopédicos,
passando por bancas de revista e escadarias, “Lelé transita com naturalidade desde
a complexa concepção construtiva de grandes espaços ao simples detalhe de um
componente. Produz mobiliário e equipamentos em uma experiência que mais
aproxima a arquitetura do design, concebida como produto industrial.”153

No fazer arquitetônico de Lelé, seu modus operandi se assemelha ao de um relojoeiro,


e na melhor tradição suíça, na qual veriica-se uma compreensão holística em torno
dos aspectos que asseguram o meticuloso funcionamento da ediicação, onde as
peças se encaixam como engrenagens de um complexo sistema cujo propósito é
responder de maneira eiciente ao programa que lhe foi imposto, sem contudo
dispensar a devida intenção plástica inerente a toda e qualquer obra de arquitetura
digna de nota.

O interesse de Lelé pelas técnicas construtivas, pela execução primorosa, sua


compreensão da topograia, dos materiais e condicionantes ambientais o aproxima
da tradição dos antigos mestres construtores (master builders), detentores de um
conhecimento que vai além do ato de projetar.

O todo e o detalhe trabalham juntos para a obtenção do produto inal, resultado de


uma postura proissional marcada pela pesquisa e pelo interesse social na formulação
das propostas. E é exatamente sob essa ótica proissional que Lelé se distingue de
grande parte de seus colegas de proissão.
Segundo Nobre,

o que se vê em Lelé é um envolvimento deliberado, sem precedentes no quadro da


arquitetura brasileira, com a organização e gerenciamento de todas os fatores
ligados à cadeia de produção como um todo. Desse ponto de vista, pode-se
inscrever a obra de João Filgueiras Lima na linhagem de Paxton e Wachsmann,
mais que na de Niemeyer e Costa. Se destes se diz “subproduto”, com aqueles
partilha um interesse mais profundo pelo objeto industrial e uma convicção,
digamos, brunelleschiana, de que projetar também signiica, muitas vezes, inventar
os meios e procedimentos necessários à execução da obra.154

Entretanto, com o mesmo empenho com que Lelé se dedica a seus projetos, e por
104 quê não dizer, inventos, sua personalidade discreta e modesta tende a mantê-lo
distante dos holofotes da mídia. Somado a isso, veriica-se até hoje um número de
publicações, textos e artigos cientíicos incompatíveis com a importância do trabalho
desenvolvido pelo arquiteto e sua equipe há mais de meio século. Segundo Ana
Luiza Nobre,

chega a ser quase escandalosa a limitada fortuna crítica que tem cabido à obra de
Lelé, malgrado seu reconhecimento por parte de Lucio Costa, Oscar Niemeyer,
Sergio Ferro, Pietro e Lina Bo Bardi, dentre outros. Talvez tenha contribuído para
isso sua própria postura proissional, mais aparentada com o peril de um “técnico”
que de um “artista”, na acepção restrita que ainda reservamos a este, como um
saber-fazer indistinto da arte.155

Essa mesma limitação foi observada no texto “O Lelé na UnB (ou o Lelé da UnB)”, de
Andrey Rosenthal Schlee, no qual o autor destaca “a maneira inconstante como a
historiograia da arquitetura brasileira fez referência a Lelé”156, indicando por meio da
seleção de um apanhado de obras de importantes autores a maneira difusa em que
a produção de João Filgueiras Lima foi abordada através do tempo.

Nos últimos anos, Lelé tem recebido muitas homenagens. No âmbito internacional,
seu reconhecimento se consolida com o prêmio da Bienal Ibero-Americana de
Arquitetura e Urbanismo, em Madri, 1998; a Sala Especial na Bienal de Veneza de
2000; o Grande Prêmio Latino-Americano de Arquitetura da 9ª Bienal de Arquitetura
de Buenos Aires, em 2001 e a Medalha de Ouro da Federação Pan-Americana de
Associações de Arquitetos (FPAA), em 2012, mais importante premiação da arquitetura
das Américas.

Em 2010, foi a vez do Museu da Casa Brasileira, em São Paulo, organizar uma
abrangente exposição sobre sua obra, intitulada: “A arquitetura de Lelé: fábrica e
invenção”. A abertura da exposição coincidiu com o lançamento do livro
homônimo157, organizado por Max Risselada e Giancarlo Latorraca, importante
registro panorâmico da carreira do arquiteto, dessa vez mais focado na era pós
CTRS158 (1992-2010).
alguns antecedentes

Rio de Janeiro, 16 de março de 1957. É divulgado o resultado do concurso do Plano


Piloto de Brasília. Vencedor: projeto n. 22, arquiteto Lucio Costa. Naquele mesmo ano,
aos 25 anos de idade, o arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, recém formado159,
parte em direção ao Planalto Central para uma empreitada que mudaria radicalmente
os rumos de sua trajetória proissional. Na mala, “uma porção de livros, uma régua,
um esquadro, um bolo de projetos dos apartamentos”160 e uma missão: construir a
superquadra 108 sul. Ao comentar esse momento, Lelé assim se manifesta:

A Superquadra 108, na qual eu trabalhei, foi designada para o IAPB. Elas foram
designadas já em Brasília, sendo que cada Instituto de Aposentadoria tinha o
compromisso de construir pelo menos duas, a exemplo do IAPB que icou com a 105
108 e a 109. Só o IPASE (Instituto de Pensões e Aposentadoria dos Servidores do
Estado) que tinha quatro superquadras, mas os outros tinham só duas.161

Embora Lelé não soubesse exatamente em que termos se daria essa incumbência,
aceitou a indicação do IAPB162, onde trabalhava com Aldary Toledo163, Luigi Pratesi e
outros arquitetos, e se mudou para Brasília. O contato prévio de Lelé com Toledo,
então diretor da seção de arquitetura do IAPB, foi determinante para promover a
ambientação do jovem arquiteto no contexto formal e ideológico da arquitetura
moderna praticada no Rio de Janeiro à época, linguagem que mais tarde viria a ser
conhecida como Escola Carioca.164

Em Brasília, o ritmo frenético das obras e a solidão implacável do Planalto Central


davam o tom dos trabalhos que avançavam noite adentro, na expectativa de cumprir
o exíguo prazo de três anos e cinco meses estabelecido por Juscelino Kubitschek
para a inauguração da cidade. A pressão que recaia sobre os arquitetos e engenheiros
das obras icava a cargo de Israel Pinheiro, mineiro de Paracatu e velho amigo de
Juscelino. O engenheiro chefe da Novacap165 era temido por seu temperamento
autoritário e a maneira rude com que acompanhava as etapas da construção.

Naquele momento, a adoção de métodos racionalizados surge como reposta rápida


e crucial às exigências de tempo e economia, questões vitais para o sucesso do
desaio empreendido pelo Presidente JK e toda sua equipe. Conforme relatos em
entrevista a Ana Gabriella Guimarães, Lelé explica que:

[...] pela primeira vez eu senti a necessidade de trabalhar em termos de


racionalização, não só para reduzir os custos, mas sobretudo para reduzir os
prazos. A primeira providência que tomei foi fazer acampamentos pré-fabricados
para poder implantar rapidamente os canteiros. Eu fui responsável pela montagem
de todo o acampamento, e naquela época o acampamento era uma cidade. Nós
tínhamos 2.000 operários que tinham que morar lá, ter refeitórios, lavanderia, todas
as coisas. Então precisávamos construir uma pequena cidade que Brasília não
tinha. Durante a construção da superquadra ainda não existia nenhuma experiência
sobre industrialização e o desperdício de madeira era brutal para fazer o concreto.166
Dessa forma, percebe-se que o início do envolvimento de Lelé com a racionalização
da construção se deu mais por uma questão circunstancial e de necessidade, que
propriamente por uma decisão voluntária. Fica evidente que a partir da experiência de
Brasília Lelé passa a agregar ao seu peril proissional as características do arquiteto
do canteiro de obras, mais do que o de prancheta, “mantendo incólume o compromisso
com a resolução construtiva da obra”, sem contudo perder o componente artístico,
próprio da proissão. “Se pensarmos que é exatamente a obra ediicada, vivenciada
em todo seu rigor e precisão, que conferiu à Arquitetura até hoje seu valor artístico,
poderá nos parecer exótica uma pretensa incompatibilidade entre arte e técnica.”167

106 a universidade

Tradicionalmente apontada como o local em que realiza suas primeiras obras autorais,
a Universidade de Brasília teve um papel fundamental no aperfeiçoamento das
técnicas de racionalização ensaiadas por Lelé no canteiro da 108 Sul. De 1962, data
de criação da UnB, até 1965, ano em que se demite junto com outros 223 professores168,
Lelé avança consideravelmente no campo da pré-fabricação, realizando, nestes
termos, os Galpões de Serviços Gerais (SG-09, SG-11 e SG-12), em 1962, e, no ano
seguinte, os Edifícios de Apartamentos para Professores da UnB, a Colina.

No entanto, antes mesmo de passar a atuar integralmente na implantação da


Universidade, Lelé realiza em 1958 aquele que seria seu primeiro projeto na nova
capital: a residência César Prates, no Lago Sul. César Prates foi dono de cartório,
amigo e assessor de JK (segundo Lelé, tanto para assuntos proissionais como para
a boemia)169. O costume do então Presidente de acompanhar semanalmente o
andamento das obras, geralmente acompanhado por Prates, fez com que Lelé
mantivesse uma relação muito estreita com o tabelião, tornando-se grandes amigos.

Em seguida veio o convite para realizar sua residência. Trata-se de uma casa de dois
andares com presença marcante de materiais rústicos como a pedra bruta e a
madeira. Alguns elementos nesse projeto apontam para um repertório típico da Escola
Carioca, como os vastos panos de muxarabis170 na fachada oeste dos quartos, a
aplicação de materiais distintos em grandes superfícies (como a pedra aparente ou o
tijolinho) e a excelência da marcenaria em portas e janelas.

As portas pivotantes em madeira instaladas entre o hall de entrada e a sala de jantar


serviriam como um ensaio ao mesmo padrão de fechamento adotado na entrada dos
dezenove aniteatros situados ao longo do bloco A do Instituto Central de Ciências, o
ICC, projeto de Oscar Niemeyer, cujas obras iniciaram em junho de 1963 sob
supervisão de Lelé, responsável pelo acompanhamento dos trabalhos e detalhamento
dos componentes. Nesse conjunto, destaca-se um elemento que nos chama a
atenção pela simplicidade e pela primorosa execução: a escada.

O escadaria de acesso ao pavimento superior na Residência César Prates, em


madeira, com planta tradicional (ortogonal), em dois lances com patamar de descanso,
Imagem 1 – Escada Residência
César Prates, projeto de João
Filgueiras Lima, 1958. Fonte: Joana
França, 2011

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revela um engenhoso sistema de sustentação do conjunto, e das partes, desenvolvendo-


se no espaço de forma graciosa pela leveza dos jogos entre cheios e vazios, onde os
“cheios” resultam em iguras geométricas bem deinidas (trapézios, triângulos,
quadrados e retângulos), apontando para uma intenção plástica do arquiteto integrada
ao elemento de circulação vertical propriamente dito.

Inserida na modulação da própria residência (3,35m), a escada integra-se à marcação


vertical do guarda-corpo no piso superior, de tal maneira que seus montantes
reforçados prolongam-se até o patamar de descanso, que por sua vez permanece
suspenso. No quesito apoio, veriica-se que o conjunto em madeira não toca o chão
no nível térreo, tampouco se apoia na parede adjacente ao segundo lance. O que
acontece ali é que as cargas verticais estão distribuídas em quatro linhas de apoio:
uma no encontro da escada com o pavimento superior, ixada por meio de chumbadores
diretamente na viga de concreto; uma no patamar de descanso, cujos montantes são
ixados na próxima viga (a 3,35m de distância da anterior); e duas no térreo, por meio
de parafusos que a conectam ao chão.

Basicamente, é por meio de encaixes e parafusos que todas as partes do conjunto se


unem. Os degraus foram organizados de maneira intercalada, ora apoiados, ora
suspensos pelas travessas horizontais que compõem o guarda-corpo da escada. À
exceção das placas de fechamento lateral (patamar) e de fundo, pintadas de branco
para se distinguirem do restante em madeira maciça e aparente, todos os componentes
da escada participam ativamente de sua sustentação.

A experiência de Lelé com a concepção e detalhamento da escada, e de outros


elementos, da Residência César Prates já apontaria para uma tendência que iria se
conirmar anos mais tarde: a vocação do arquiteto para o planejamento meticuloso e
interessado em todos os níveis da obra, da estrutura ao acabamento.
Em meados de 1962, Lelé recebe um convite de Oscar Niemeyer para integrar a
equipe responsável pela construção da Universidade. A partir dali, o jovem arquiteto
deixaria os canteiros da Asa Sul para instalar-se no campus da UnB, dando início a
uma nova e importante jornada de sua trajetória proissional. Ao falar de suas
atribuições ali, o arquiteto explica:

Eu fui pra lá como professor. Eu já fui indicado por Oscar com as seguintes funções:
coordenador do curso de pós-graduação, secretário executivo do Centro de
Planejamento e responsável pelo curso de técnica da construção. Eu tinha essas
três incumbências.171

Inicialmente, Lelé se ocupou do detalhamento e acompanhamento das obras dos


108 galpões para serviços gerais projetados por Oscar Niemeyer, destinados a abrigar o
Instituto Central de Artes e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (ICA/FAU).
Construídos em 1962, o conjunto composto por cinco blocos de apenas um pavimento
– sendo um maior de 2.400 m2 (SG-01), três médios de aproximadamente 900 m2 (SG-
02, SG-03 e SG-10) e um menor, de 250 m2 (SG-08) –, foi pioneiro no uso da tecnologia
da pré-fabricação no Brasil. Erguidos em tempo recorde, em média 45 dias cada, os
blocos alinham-se no centro da Universidade de forma discreta e seguindo uma
estrutura pavilionar modulada.

O pavilhão SG-10 abriga o Centro de Planejamento (CEPLAN), que até hoje mantém
suas funções originais: planejar e gerenciar a organização física da universidade. Dali
saiu a grande maioria dos projetos que compõem o conjunto arquitetônico da UnB.
O entusiasmo nos primeiros anos da universidade e a crença inabalável no potencial
da pré-fabricação criaram uma espécie de efervescência construtiva dentro do
Campus, cujo epicentro era justamente o CEPLAN, comandado por Oscar Niemeyer
e sua equipe formada por Alcides da Rocha Miranda, João Filgueiras Lima, Glauco
Campelo, Ítalo Campoiorito, Carlos Machado Bittencout, Virgilio Sosa, Abel Carnaúba,
Oscar Kneipp, Evandro Pinto, entre outros.

No entanto, é sobre o pequeno auditório (SG-08) que vamos nos ater nesse momento.
Ali encontra-se um conjunto de cadeiras remanescentes da fundação da universidade,
e que talvez pela simplicidade, e até mesmo pelo tempo decorrido, acabaram
esquecidas ou, na melhor das hipóteses, desapercebidas. Mas antes de adentrarmos
o auditório, vejamos o que nos revela o exterior do edifício.

Diferentemente dos demais blocos, o auditório é o único que apresenta uma


coniguração distinta no quesito acesso. O recuo da entrada principal cria uma espécie
de hall que favorece o encontro das pessoas antes e depois das apresentações, ao
mesmo tempo em que resgata uma tradição, guardada as devidas proporções, dos
foyers presentes em grande parte dos teatros e salas de espetáculos. Delimitado pelo
exterior por um conjunto de placas delgadas em concreto, dispostas em sequência
como brises-soleil, o hall de entrada de aproximadamente 55m2 de certa forma
enobrece o pequeno auditório, destacando-o no conjunto.
À exceção da entrada, externamente o edifício segue o mesmo princípio dos blocos
maiores: basicamente uma composição estruturada por dois elementos – paredes em
placas pré-moldadas e vigas de cobertura protendidas, ambos em concreto –,
dispostos em uma modulação longitudinal de um metro.

A associação das placas em peril “u” constitui o muro externo que encerra o edifício
propriamente dito. As paredes internas, por sua vez em alvenaria, recebem as
instalações elétricas e hidráulicas, que no caso do auditório servem à cabine de
projeção e banheiros (no CEPLAN, banheiros e copas). As vigas de cobertura, com
seção de 12 por 40 centímetros, foram moldadas in loco em formas de madeira
compensada. Essas peças, protendidas pelo método Freyssinet, vencem vãos de 12
metros de comprimento com balanços simétricos.
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Ao adentrarmos, nos deparamos com um espaço extremamente simples, cujos
materiais seguem o mesmo padrão dos blocos vizinhos, ou seja, forro de isopor, piso
em granitina, janelas em venezianas de ferro, e paredes em placas pré-moldadas de
concreto pintadas de branco. Internamente, uma cabine de som e luz se situa próxima
à entrada, um palco ao fundo e oito ileiras de cadeiras, totalizando 112 lugares.

Imagem 2 – Cadeiras do auditório


do Departamento de Música da
UnB, projeto de João Filgueiras
Lima, início anos 1960. Fonte: José
Luís Serzedelo, 2014

As cadeiras do auditório do Departamento de Música da UnB nos chamam a atenção


pela simplicidade de sua concepção e pela harmonia do conjunto. Projetadas por Lelé172
no início dos anos 1960, essas cadeiras, juntamente com a mobília dos apartamentos
da Colina, sobre as quais falaremos em seguida, integram as primeiras iniciativas do
arquiteto envolvendo design de móveis exclusivos para edifícios da Universidade.
Em relação aos materiais empregados na execução, e seguindo a tradição do
mobiliário moderno no Brasil, veriica-se que o conjunto de cadeiras é constituído
basicamente por madeira maciça, ferro e couro sintético, o courvin. Ao comentar o
uso do couro na produção do mobiliário moderno no Brasil, Alexandre de Melo assim
se manifesta:

É visível que o uso do couro na época, mais que estabelecer uma transição entre
diferentes graus de industrialização, contrabalanceando a assepsia dos novíssimos
cromados e restaurando o “calor” necessário ao móvel, era também o único
material maleável, resistente e reinado fora os tecidos de algodão tingidos e
costurados. Os polímeros e tecidos sintéticos apareceriam anos depois para
destituir qualquer tentativa de estabelecimento de uma escola internacional.
110
No histórico da cultura material brasileira é preciso reconhecer que o movimento
induzido pelas tiras173 sugere analogias ao mesmo movimento alcançado pela rede
indígena. Talvez pelo balanço ou pela acomodação do couro que acaba por
deformá-lo, típico da rede, quase que como registrando o contorno de seu
proprietário.174

Talvez o aspecto mais inusitado no desenho dessa cadeira “coletivo-unitária” seja a


maneira como Lelé concebeu as ileiras enquanto peças únicas, nas quais todos os
assentos compartilham o mesmo espaldar, constituído por uma longa travessa em
madeira de seção trapezoidal.175 Esse recurso, econômico e soisticado, é corroborado
pela membrana em courvin dos assentos que, tal qual a batuta de um maestro,
imprime movimento, ordem e ritmo ao conjunto, em oposição à linearidade do encosto.

Apoiada em três pontos, um posterior junto ao encosto e dois laterais junto aos braços
da cadeira, a membrana em courvin propicia um assento confortável aos usuários, na
medida em que se molda ao corpo da pessoa sentada, que por sua vez permanece
suspensa, como num balanço. Essa mesma membrana trespassa os braços do
conjunto, de um assento ao outro, ixando-se por meio de parafusos às peças duplas
em madeira que constituem os braços.

A engenhosidade de Lelé nesse projeto revela-se também na maneira como ele


equacionou a estabilidade do conjunto. Partindo do princípio que quanto menos
apoios maior a diiculdade em equilibrar as forças que agem sobre a peça, e que,
segundo as leias da Estática176, para um corpo entrar em equilíbrio, a resultante das
forças deve ser nula, Lelé propõe apenas uma linha de apoio, representada aqui por
uma barra tubular em ferro fundido disposta simetricamente sob os braços em
madeira maciça.

O peso do usuário, transferido pela membrana em courvin aos braços e espaldar da


cadeira, é descarregado até o solo por meio de uma sequência alinhada de barras
tubulares em ferro fundido que sustentam todo o conjunto. Essas barras são ixadas
diretamente no desnível (espelho) do piso do auditório através de espessas lamelas,
também em ferro, soldadas à barra principal e parafusadas no piso por ambos os lados.
Um dos aspectos que contribuem para a percepção de leveza do conjunto, além da
adoção dos componentes delgados, são os espaços vazios encontrados entre eles.
Tanto os braços da cadeira como o espaldar, ambos em madeira, não se comunicam
diretamente. A união desses dois elementos se faz por meio de pinos cilíndricos,
através dos quais passam os parafusos que conectam ambas as peças.

Apesar das partes em ferro fundido da cadeira sugerirem uma aproximação maior
daquele objeto com o design contemporâneo internacional, no qual o emprego de
tubos em aço inox e peças galvanizadas ganhavam cada vez mais espaço no mercado
e nos meios de comunicação, é a madeira que transmite toda a “modernidade” do
conjunto, obviamente dentro dos parâmetros nacionais. Sobre este assunto, Alexandre
de Melo explica:
111
O móvel moderno no Brasil tem a madeira como elemento fundamental para a
constituição de sua linguagem, seja no plano funcional, técnico e construtivo
(sintaxe), seja no plano formal, expressivo e simbólico (semântica). Essa condição
procede, aparentemente, da abundância de espécies veriicadas no seu vasto
território e da forte presença da madeira no cotidiano do país, remontando à sua
herança colonial. Situação que conigurou o que podemos entender como uma
“tradição”, baseada no binômio mão-de-obra e produção artesanal, abrangendo
os utensílios para o uso cotidiano, o mobiliário e a própria casa.177

A questão do uso da madeira está intimamente ligado ao início da própria Universidade.


Os primeiros prédios erguidos no atual Campus Darcy Ribeiro foram produzidos com
o sistema pré-fabricado em madeira, desenvolvido pela OCA, empresa criada pelo
arquiteto Sérgio Rodrigues no Rio de Janeiro em 1955. Rodrigues projetou três prédios
que icavam próximos à atual Faculdade de Educação (FE), dos quais:

Dois deles serviram como alojamentos provisórios de professores e assistentes, e


mais tarde, com o fechamento da Universidade em 1965, foram invadidos pelos
estudantes. O terceiro, de planta quadrada, abrigou um pequeno restaurante. A
partir de 1963, os professores gradativamente deixam os barracões da empresa
OCA para se dirigirem às novas residências, projetadas por Lelé, recém concluídas
utilizando a inédita tecnologia de pré-moldagem no Brasil, a Colina Velha.178

edifício de apartamentos para professores – Colina (1963)

O projeto dos quatro blocos de apartamentos para professores da UnB, conjunto


conhecido como Colina, foi realizado por Lelé em 1963 e seguiu os mesmos princípios
de racionalização empregada nos principais prédios da Universidade. A exemplo do
Instituto Central de Ciências, cujo detalhamento esteve sob sua responsabilidade, a
pré-moldagem dos prédios da Colina foi feita com peças de concreto protendido de
grandes dimensões, tendo sido empregadas vigas longitudinais com vão de 13
metros de extensão.
Localizadas no extremo norte do Campus, conforme o previsto no plano urbanístico
de Lucio Costa, as residências para professores foram propostas para serem
construídas em etapas, em virtude de alguns aprimoramentos de ordem técnica,
construtiva e espacial incorporados ao projeto. O objetivo foi garantir a desejada
lexibilidade dos espaços internos atendendo às mais variadas composições familiares
dos futuros moradores. A rigidez do conjunto arquitetônico não poderia se reletir em
suas unidades. Partindo dessa premissa, estava previsto no projeto original, além dos
fechamentos em placas de concreto pré-moldadas ixas, o uso de divisórias179
removíveis que se adaptassem facilmente às necessidades de cada família, fugindo,
em princípio, do estigma da planta rígida. Os apartamentos variam em área segundo
três tipos: pequeno (2 quartos), com 84 m2, médio (2 quartos + 1 reversível), com 108
m2 e grande (3 quartos + 1 reversível), com 144 m2.
112
O sistema construtivo adotado utiliza os conjuntos de circulação vertical, fundidos
no local, como elementos de contraventamento e rigidez da construção. Esses
elementos suportam as estruturas pré-moldadas, que constam de vigas de seção
“U” protendidas de 13 toneladas, formando conjuntos rotulados tipo “Gerber” com
vãos de 13 e 15 metros. Neles se apoiam as lajes nervuradas, também protendidas,
que constituem os pisos dos apartamentos. As vigas “U”, nos extremos do bloco,
são ixadas nos pilares por pinos de aço.180

A fachada em cobogó181 de concreto armado resgata um elemento de origem árabe,


aclimatado no país durante o período colonial e amplamente utilizado na arquitetura
moderna brasileira. Bastante difundido em Brasília, seu uso foi regulamentado pelo 1º
código de obras da cidade, conforme explica Sylvia Ficher:

Em atendimento ao disposto no Código de 1960 – “As áreas de serviço deverão ter


elementos vazados que as protejam da visibilidade externa e impeçam a colocação
de roupas para secar nos peitoris...” –, nesses blocos também é sistemático o
emprego dos chamados “cobogós”. Na Brasília dos primeiros anos foram
empregados com tal entusiasmo que muitos prédios têm suas fachadas dos fundos
completamente revestidas por cobogós, camulando inclusive janelas de
dormitórios. E pode-se encontrar alguns casos sui generis, como o Bloco A da SQS
114, que possuiu as duas alternativas – frente e fundos – lado a lado em uma
mesma fachada; ou a SQS 205, na qual quase todos os blocos têm suas fachadas
principais voltadas para o exterior da quadra, de tal maneira que ao se adentrá-la
vê-se quase que apenas grandes superfícies de elementos vazados.182

Devido à oferta de móveis na cidade recém inaugurada, Lelé desenvolveu um


mobiliário ixo básico para equipar todos os apartamentos da Colina. Segundo a
professora Sylvia Ficher, moradora do Bloco D entre os anos de 1984 e 2000,

a disposição das paredes no apartamento seguia o módulo adotado na estrutura


do prédio, de 1 metro. A mobília dos apartamentos, assim como os demais
acabamentos do prédio, era extremamente simples; não havia excessos nem luxos.
O desenho de todo o mobiliário ixo – estantes da sala, mesa da copa-cozinha e
guarda-roupas nos quartos – é de excelente qualidade e as peças, todas em
madeira, foram muito bem dimensionadas.
113

Imagem 3 – Estante apartamento


Colina (tipo I), UnB, projeto de João
Filgueiras Lima, 1963. Fonte: José
Luís Serzedelo, 2014

As paredes internas são constituídas por placas duplas de ibrocimento, com


montante de madeira interno, pintadas de branco. Contudo, o fechamento entre o
corredor e os quartos é feito pelo fundo de madeira dos próprios armários, o que
funciona como um lambri em tom escuro, o qual, juntamente com as portas,
contrasta com o branco das paredes e com o cinza do concreto aparente das lajes
e das vigas no teto, tanto as transversais como a duas maiores, longitudinais.183

A simplicidade extrema dos móveis dos apartamentos da Colina pode ser entendida
como um relexo da própria proposta arquitetônica do edifício, construído com poucos
componentes e com uma boa dose de otimismo e coniança num método até então
pouco difundido no Brasil do início dos anos 1960, a pré-fabricação.
Esse mobiliário possui um alinhamento estético que, em certos aspectos, o aproxima
dos ideais propagados pela Bauhaus, nos quais a racionalidade e objetividade dos
projetos se uniam para dar forma a peças essencialmente funcionais. Contudo, não
se pode dizer que houve uma adesão ideológica e/ou estética por parte de Lelé aos
princípios da escola de Weimar e Dassau. Mesmo porque, segundo Alexandre Melo184:

A escola alemã Bauhaus pouco repercutiu sobre a forma do móvel no universo


brasileiro. Mesmo o alcance de formas inovadoras por meio do uso de chapas de
compensado, aços tubulares cromados e um aparente desenho que emanava
meios de produção objetivos e sistemáticos, o estilo racional proposto pela Bauhaus
não se converteu em um procedimento de projeto no Brasil.185

114 O que vemos no design despojado de Lelé são preocupações compartilhadas


não com o desenho em si, mas com o ideário da escola alemã, onde ampla
utilização, agilidade de distribuição e montagem, além do fator econômico, eram
componentes fundamentais.

outras incursões de Lelé no universo do design

Talvez uma das mais importantes investidas de Lelé no universo do design de


equipamentos tenha sido o projeto para a cama-maca da Rede Sarah de Hospitais
do Aparelho Locomotor. Concebida em parceria com o arquiteto Alex Peirano Chacon
em meados dos anos 1970, a cama-maca foi desenvolvida para atender a necessidade
de mobilidade dos pacientes em tratamento, como parte fundamental do chamado
progressive care186, a política de tratamento que revia o conceito de terapia intensiva
na busca por melhores resultados para doenças do aparelho locomotor. Sobre esse
assunto, Lelé comenta:

No anteprojeto, iz uma exposição de motivos ao Ministério da Saúde manifestando


a ideia de desenvolver uma cama-maca, sem o que esse hospital não ia funcionar.
Tivemos que criar um organismo de pesquisa de equipamentos, o EquipHos. Esse
projeto, de 1976, ainda foi feito no meu escritório, como proissional liberal. Foi tão
caro esse projeto, era difícil estabelecer custos. Tive que montar dentro do meu
escritório um setor de design de equipamentos, para o qual convidei o arquiteto
Alex Chacon e o antropólogo Roberto Pinho. Roberto para administrar essa parte
toda, e Alex, para desenvolver os projetos. Depois tinha de executar. No desenho
da cama-maca, que participou mais foi o Alex Chacon.187

Desse projeto surgiu o EquipHos (Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de


Equipamentos Hospitalares), criado como uma estrutura componente da própria
Rede Sarah (1976-80), da qual faziam parte a Unidade Hospitalar propriamente dita,
atualmente chamado de Sarah Centro (por localizar-se na Zona Central de Brasília); a
Oicina Ortopédica, responsável pelo desenvolvimento de equipamentos para
pacientes, como próteses, órteses e coletes; e o EquipHos, cuja missão era desenvolver
todos os equipamentos hospitalares da Rede.
De acordo com o arquiteto Fábio Savastano, funcionário do EquipHos de 1977 a 1979,

tudo era projetado e executado pela fábrica em Brasília. Dos equipamentos mais
simples, como mesas, cadeiras, bengalas, triângulo de apoio, suporte para soro
isiológico, tatames, escadas para a prática de exercícios, até os mais soisticados
e atuais como a barra paralela eletrônica ajustável a cada paciente e o Ortomóvel,
uma espécie de cadeira de rodas em que o paciente, caso necessário, conseguia
se locomover ou permanecer em pé.188
Imagem 4 – Cama-maca, 1a e 2a
O desenvolvimento especíico de detalhes para componentes mais complexos, modelos, projeto de João Filgueiras
Lima com Alex Chacon, 1976. Fonte:
como pistões, dobras, conexões, e todas as peças menores que compunham os João Filgueiras LIMA. Arquitetura:
objetos, icou a cargo do arquiteto Cláudio Blois e sua equipe. Participaram do uma experiência na área da saúde.
São Paulo: Romano Guerra Editora,
EquipHos os designers François Ruprecht, Suzana Padovano, Antônio Jucá, 2012, p. 148. 115
Luciano Deviá, Antônio Carlos Corrêa, Murilo Santos Lobato (designer gráico),
dentre outros.

Segundo Savastano,

na fase inicial, e conceitual, do Sarah enquanto hospital ortopédico, o conceito de


maca-maca teve um papel fundamental. Foi a partir daquele equipamento que todo
o estudo de luxo e circulação de pacientes foi realizado. Sem a cama-maca, toda
a estratégia espacial do hospital estaria comprometida.189

Sobre a relação entre a Rede Sarah e o EquipHos, Roberto Pinho assim se manifesta:

O fato de um projeto de arquitetura hospitalar ter gerado um centro de design de


mobiliário e equipamento agregado a ele exempliica muito bem, por um lado, o
caráter totalmente inovador desse projeto e sua adequação à realidade local e,
por outro, o grau de amplitude e profundidade que [...] sempre caracteriza a obra
do Lelé.190

A ideia por trás da cama-maca é bastante simples e amplamente benéica ao paciente.


Trata-se na verdade de uma subversão da ordem hospitalar ensejada por Lelé e pelos
membros do EquipHos: a partir daquele momento, o paciente abandona a condição
ixa, encerrado dentro de um quarto, e passa a circular pelas dependências do
hospital, com total mobilidade.

Com essa nova dinâmica, começam a surgir procedimentos e alterações nas áreas
de convívio, como por exemplo corredores mais largos, grandes salões (ao invés de
saletas), ampliações de ambientes normalmente reduzidos (como banheiros),
acessibilidade plena, confecção de portas maiores e mais largas, adaptação dos
auditórios, etc.

Das funções básicas como alteamento de pé e encosto até o tratamento (realizado


de maneira individual) de membros inferiores ou superiores a partir da tração
exercida por meio de contrapesos e roldanas presas ao equipamento, tudo estava
previsto no funcionamento inicial do primeiro protótipo da cama-maca, desenvolvido
ainda entre 1977 e 1979. Sobre a segunda versão do equipamento, concebida por
Lelé, o arquiteto explica:

O novo modelo de cama-maca desenvolvido no CTRS conta com controles


eletrônicos que permitem que o próprio paciente acione os movimentos do leito, o
chamado da enfermeira e a iluminação, enquanto os movimentos do quadro
balcânico são controlados exclusivamente pela enfermagem. O sistema elétrico,
normalmente conectado à energia do hospital, possui um conjunto de baterias de
12 volts que proporcional ao equipamento uma autonomia de cerca de quatro
horas quando o paciente estiver afastado de seu posto de enfermaria. A luminária
possui um controle rotativo que permite a orientação conveniente do foco no caso
de exame, manipulação do paciente ou para leitura em qualquer posicionamento
116 do leito.191

Do período em que esteve envolvido com a criação do Hospital Sarah Kubitschek de


Doenças do Aparelho Locomotor em Brasília até o inal da década de 1980, Lelé
participou de várias experiências em torno da pré-fabricação de componentes
construtivos em Salvador, Brasília, Goiás e Rio de Janeiro, chegando a implantar
fábricas nesses locais com capacidade para produzir milhares de peças por dia.

Dentre as experiências mais expressivas dessa época estão as Fábricas da RENURB,


Companhia de Renovação Urbana, (1978-1982), e da FAEC, Fábrica de Equipamentos
Comunitários, (1985-1989), ambas em Salvador; além da Fábrica de Escolas e
Equipamentos Urbanos do Rio de Janeiro, (1984-1986). Nesse intervalo de
aproximadamente 12 anos, Lelé produziu equipamentos urbanos com as mais
variadas funções e escalas, responsáveis por promover melhorias nas condições de
vida da população através de ações comprometidos com a realidade social das
cidades em que se encontravam.

São passarelas, terminais rodoviários, paradas de ônibus, sanitários públicos,


bancas de jornaleiro, postos policiais, escolas, creches, igrejas, pontes, auditórios,
além de uma série de elementos destinados à urbanização de favelas como placas
de contenção, escadas drenantes e passarelas com fundações lutuantes sobre
áreas alagadas. Desse universo que, sem exageros, poderia equipar uma cidade
pequena, Lelé desenvolveu alguns bancos em argamassa armada, sobre os quais
vamos nos ater.

Trata-se de uma estrutura bastante simples apresentada em duas versões: uma com
encosto e outra sem. Foram projetados quatro elementos básicos: o corpo principal,
com o com comprimento máximo de 2,50m; apoios intermediários nivelados,
aprumados e ixados ao solo através de parafusos; apoios externos e braços eventuais.
Ao comentar esse projeto, Lelé assim se manifesta:

Embora o desenho proposto lembre os velhos bancos de jardim com estrutura em


ferro fundido, a solução está perfeitamente ajustada à tecnologia moderna de
argamassa armada. O dimensionamento das seções e as características da
execução exploram corretamente as possibilidades desse material.192
117

Imagem 5 – Banco em argamassa


armada, projeto João Filgueiras
Lima, 1984. Fonte: Arquivo do autor,
2014.

Facilmente encontrado em diversos pontos da Universidade de Brasília, e em algumas


quadras da cidade, o banco projetado em 1984 na fase inicial da FAEC, de peril
delgado e curvilíneo, criado para compor o programa de recuperação de praças
públicas em Salvador, acabou tornando-se um símbolo da versatilidade da argamassa
armada, atingindo espessuras mínimas nas extremidades.

Com o advento do CTRS, o Centro de Tecnologia da Rede Sarah de Hospitais do


Aparelho Locomotor (1986-1991), Lelé passou a desenhar móveis perilados em aço,
mais leves e visualmente mais elaborados, abandonando a argamassa armada como
material prioritário. Essa mudança foi parcialmente impulsionada pela própria
interrelação observada entre a organização espacial dos hospitais e o sistema
construtivo. A respeito do assunto, Max Risselada explica: Imagem 6 – Mobiliário do Hospital
Sarah Lago Norte, projeto João
Filgueiras Lima, 1994. Fonte:
Todas as partes do sistema de construção que foram desenvolvidas no CTRS estão Cláudia Estrela PORTO (org.) et
baseadas em um módulo de 625 milímetros, medida que é derivada de um padrão al. Olhares: visões sobre a obra
de João Filgueiras Lima. Brasília:
internacional para painéis. Esse módulo forma a base para o layout físico e determina EdUnB, 2010, p.20.
o posicionamento dos materiais e das peças de construção.193

Além do mobiliário e dos equipamentos hospitalares, Lelé desenvolveu, ainda no


âmbito da Rede Sarah e em conjunto com os colaboradores do EquipHos, algumas
soluções que visam ao deslocamento de pacientes, seja em longas distâncias ou
mesmo para vencer diferenças de níveis existentes entre as partes (blocos) de uma
mesma unidade. É o caso do veículo de transporte de pacientes, uma espécie de
ônibus articulado completamente acessível às cadeiras de rodas e camas-macas, do
plano inclinado, também chamado de Furnicular, e da embarcação utilizada na
unidade Lago Norte, desenvolvida por Lelé em estreita colaboração com o arquiteto
Claudio Blois. Na época, o projeto chegou a ser submetido a um engenheiro naval,
que o aprovou na sequência.

considerações finais

Este é o universo de Lelé. Um arquiteto que desde o início de suas atividades


118
demonstrou um interesse peculiar pela criação de equipamentos próprios, concebidos
nas mais variadas instâncias e escalas – do banco de praça ao hospital. O design na
obra de Lelé não é algo meramente estilístico. As soluções encontradas, fruto da
criteriosa análise do contexto, da tecnologia empregada e das características dos
materiais, convergem para o desenho de produtos funcionais e soisticados. “Sim,
soisticação, no que de mais preciso se pode obter da etimologia do termo, originário
do radical grego Sofos, e cujo signiicado é sabedoria.”194

Esses produtos reunidos como peças de um grande quebra-cabeças integram uma


arquitetura racional, legível e didática, vista normalmente como um processo contínuo
de aperfeiçoamento das técnicas construtivas ensaiadas e aplicadas ao longo de sua
carreira, consolidada como uma das poucas no panorama nacional que mantém até
hoje vínculos estreitos com a industrialização, mesmo com todas as adversidades e
incoerências da indústria da construção civil no Brasil.

Quando se pensa em industrialização, também se começa a pensar em design


como produto industrial. No design essa ideia de industrialização é forte, como
poderia ser na arquitetura se ela estivesse no mesmo estágio, mas, infelizmente,
não está. [...] Existe esse anacronismo entre o objeto que está dentro do prédio e
o prédio em si. O prédio é feito, muitas vezes, como se fazia há duzentos anos, e
os objetos que estão lá são fruto de uma era industrial, os valores são outros. É uma
contradição que existe na arquitetura.195

Se por um lado a autonomia projetual e a vocação para a produção industrial veriicada


desde as primeiras obras na Universidade de Brasília aproximam Lelé do pensamento
de Nervi, Neutra e dos grandes mestres da Bauhaus, por outro retomam sua condição
de inventor na qual, ao adotar um método de trabalho baseado na experimentação196,
inevitavelmente suscetível a erros, o arquiteto cria os próprios meios que subsidiam
sua produção em resposta ao desaio que é a própria arquitetura.
Edith DERDYK (org.). Disegno. Desen- 04/05/2011 no Instituto Brasileiro de pedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos
ho. Designio. São Paulo: Editora Senac Tecnologia do Habitat – IBTH, _texto&cd_verbete=8816
151

São Paulo, 2007, p. 198. Salvador-BA. A Companhia Urbanizadora da Nova


Max RISSELADA; Giancarlo LATORRA- Apud Ana Gabriella GUIMARÃES. João Capital do Brasil (Novacap) foi criada
165

CA (orgs.). A arquitetura de Lelé: fábrica Filgueiras Lima: O último dos modernis- pelo então presidente do Brasil, Jusceli-
152 161

e invenção. São Paulo: Imprensa Oicial tas. Dissertação de Mestrado, Escola de no Kubitschek de Oliveira, através de lei
do Estado de São Paulo: Museu da Ca- Engenharia de São Carlos, Universidade especíica, em 19 de setembro de 1956.
sa Brasileira, 2010, p. 9. de São Paulo, EESC-USP, 2003, p. 13. O objetivo era criar um órgão que se
Ibidem, p. 9. O Instituto de Aposentadoria e Pensões
nação das obras da nova Capital. Em 21
ocupasse do gerenciamento e coorde-
dos Bancários (IAPB) foi um instituto
153 162

Ana Luiza NOBRE. “João Filgueiras Li- de abril de 1960 Brasília foi inaugurada.
ma: Arquitetura como processo”. AC / previdenciário, criado no Brasil, em
154

1934, e extinto em 1966. O IAPB foi o Entretanto, para que a cidade efetiva-
Arquitetura Crítica, n. 016, São Paulo,
Portal VITRUVIUS, fev. 2006. Disponível embrião de instituições muitíssimo
muita coisa ainda deveria ser feita. A
mente funcionasse como uma capital,
em: http://www.vitruvius.com.br/ac/ maiores, e mais soisticadas, de previ-
dência, criadas posteriormente no país, Novacap continua existindo como uma
ac016/ac016_1.asp
Ibidem.
tais como o INPS, o IAPAS, e o atual empresa pública, tendo como sócios a 119
155
INSS. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ União e o Governo do Distrito Federal,
Andrey Rosenthal SCHLEE. “O Lelé na Instituto_de_Aposentadoria_e_Pensões respectivamente com 48% e 52% das
UnB (ou o Lelé da UnB)”. In: Cláudia Es- ações. Atualmente, a empresa é o prin-
156

_dos_Bancários [acesso: 16/02/2014].


trela PORTO (org.). Olhares: visões cipal braço executor das obras de
Aldary Henriques Toledo (Rio de Janei- interesse do Estado, e sua vinculação
sobre a obra de João Filgueiras Lima. ro, 1915) é, além de um arquiteto da
163

Brasília: EdUnB, 2010, p. 158-159. com a Secretaria de Obras é direta. In:


http://www.novacap.df.gov.br/sobre-a-
Para maiores detalhes, ver Max RISSE- autêntico artista que conviveu com Por-
primeira geração de modernistas, um
novacap/a-novacap.html
LADA; Giancarlo LATORRACA (orgs.).
157

Op. cit., 2010. desenho e pintura. Ao seu círculo de Apud Ana Gabriella GUIMARÃES. Op.
tinari, tendo sido este seu professor de

cit., 2003, p. 16.


166

158
O Centro de Tecnologia da Rede Sarah convivência pertenceram Oswald de
iniciou suas atividades no canteiro de Andrade, Jorge de Lima, João Cabral de Yopanan REBELLO; Maria Amélia LEITE,
Melo Neto, Lucio Costa, Attílio Corrêa Li- Maria Amélia. “O mestre-construtor”. In:
167

obras do hospital de Salvador em 1992.


A partir de 1993, foi gradualmente sen- ma, Carlos Leão, entre outros. Durante Cláudia Estrela PORTO. Op. ci.t, 2010,
do implantado em suas instalações os anos na Faculdade, Lelé e outros co- p. 53.
deinitivas, localizadas em uma área legas participavam do grupo formado 168
O pedido de demissão de cerca de 90%
plana com cerca de 800 metros de com- em torno de Toledo, ocasião preciosa do quadro docente da UnB foi encamin-
para aqueles jovens que buscavam ori- hado à Reitoria em protesto e repúdio
entações para suas atividades
primento e largura média de 100 metros,

onde está situado o hospital. Atual- acadêmicas, e ao mesmo tempo des-


disposta ao longo da encosta da colina
siderados subversivos pelas forças
ao afastamento de 15 professores con-

mente, o centro ocupa uma área frutavam da sólida formação intelectual


construída de cerca de 20.000 m2, onde o golpe de 64.
militares, que assumiram o poder após

pauta da noite abordava temas como a


do arquiteto em momentos em que a
foram instaladas as oicinas de metal- Conforme entrevista ao autor em
arte e a vida. Cf .Elane Ribeiro PEIXOTO.
169
urgia pesada, metalurgia leve, 04/05/2011. In: Adalberto VILELA. A ca-
Lelé, o arquiteto João da Gama Filguei-
ras Lima. Dissertação de Mestrado. sa na obra de João Filgueiras Lima,
plásticos. In: João Filgueiras LIMA. Ar-
marcenaria, argamassa armada e

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Lelé. Dissertação de Mestrado. Brasília:


quitetura: uma experiência na área de FAUUnB, 2011, p. 302.
saúde. São Paulo: Romano Guerra Edi- Universidade de São Paulo, FAUUSP,
tora, 2012, p. 138. 1996, p. 12. Introduzido na península ibérica durante
a ocupação moura, o muxarabi, ou mux-
170

Lelé ingressou na Faculdade Nacional Escola Carioca é o nome pelo qual par-
arabiê, é uma sacada fechada por
159 164

de Arquitetura da Universidade do Bra- treliças de madeira. À semelhança da


brasileira é comumente identiicada
te da produção moderna da arquitetura
sil (FNA/UB), atual FAU UFRJ, em 1951, ‘gelosia’ – aportuguesamento de ‘jalou-
tendo concluído seus estudos em 1955. pela historiograia. Trata-se original-
mente da obra produzida por um grupo sie’, palavra francesa que designa esse
A FNA foi criada em 1945, após separa- tipo de fechamento e signiica, muito
ção da Escola de Belas Artes. Nos radicado no Rio de Janeiro, que, com
liderança intelectual de Lucio Costa apropriadamente, ‘ciúmes’ – está para a
(1902-1998) e formal de Oscar Niemey- arquitetura assim como a burka para o
go Hospício Pedro II, na Praia Vermelha.
primeiros anos, passou a ocupar o anti-

er (1907-2012), cria um estilo nacional vestuário: permite ver sem ser visto. In:
Arquitetos como Jorge Moreira, Luiz Sylvia FICHER et al. “Blocos Residenci-
Nunes, Oscar Niemeyer, Milton Roberto, de arquitetura moderna: uma espécie
de brazilianstyle, que se dissemina pelo ais das Superquadras do Plano Piloto
Affonso Eduardo Reidy e Alcides da Ro- de Brasília”. Jornal do CREA-DF, Brasí-
cha Miranda ainda se formaram na país entre os anos 1940 e 1950, con-
lia, n. 45, out. 2004, p. 16.
tradição das Belas Artes.
nico até os anos 1930. In: http://www. Apud Ana Gabriella GUIMARÃES. Op.
trapondo ao internationalstyle, hegemô-
Entrevista realizada pelo autor com o ar- cit., 2003, p. 23.
171

itaucultural.org.br/aplicexternas/encliclo-
quiteto João Filgueiras Lima, Lelé, em
160
Conforme depoimento do próprio Lelé ao 196
Segundo Yopanan Rebello e Maria Amé-
professor Marcelo Mari, durante entrevis- as dimensões de um tijolo comum – em- lia Leite, “a convicção de Lelé quanto à
172
cimento ou argamassa, em geral com

ta telefônica realizada em 09/10/2013. pregados para a ventilação e iluminação importância da experimentação con-
Durante a conversa, Lelé conirma a auto- natural de cômodos. Sua denominação strutiva como processo consciente de
deriva do nome de uma empresa fabri- evolução proissional pode ser notada
Departamento de Música e de um grupo cante do Recife (PE), a Cobogó (Gomes, no abandono de certas soluções em
ria do projeto das cadeiras do auditório do

de cadeiras desenhadas para a Reitoria, p. 21, in SEGAWA, 1988). Alguns au-


não localizadas. tores gostam de ver no cobogó uma técnico. Tome-se como exemplo o caso
prol de outras de melhor desempenho

Em alusão à poltrona desenhada por reinterpretação contemporânea de um


adas peara apoiar as lajes de cobertura
das treliças em argamassa armada us-
Flávio de Carvalho em 1938 para a Ca-
173

colonial luso-brasileira, o ‘muxarabiê’. de forma invertida, progressivamente


componente tradicional da arquitetura
sa da Fazenda Capuava, em Valinhos,
São Paulo. In: Sylvia FICHER et al. Op. cit., 2004, p. substituídas pelos arcos multi-articula-
16.
Alexandre Penedo BARBOSA DE MELO. treliças metálicas, deinitivamente. In:
dos no mesmo material e depois as
Design do Mobiliário Moderno Brasileiro: Ibidem, p. 16.
174
182

Yopanan REBELLO; Maria Amélia LEITE.


Aspectos da Forma e sua Relação com 183
Depoimento da professora Sylvia Ficher Op. cit., 2010, p. 66.
120 a Paisagem. Tese de Doutorado. Facul- ao autor, durante entrevista realizada
dade de Arquitetura e Urbanismo, em Brasília em 26/02/2014.
Universidade de São Paulo, FAUUSP, 184
Alexandre Penedo BARBOSA DE MELO.
2008, p. 13. O.p cit., 2008.
O princípio adotado no projeto das ca- 185
Ibidem, p. 43.
deiras do Auditório da Música da UnB,
175

de 1962, foi revisto e aplicado posterior-


186
Criado pelo médico Aloysico Campos
mente por Lelé em outras ocasiões e da Paz em conjunto com o arquiteto
João Filgueiras Lima, o ProgressiveCare
mo nos casos das cadeiras do Auditório
com o emprego de outros materiais, co-
na Rede Sarah de Hospitais do Aparel-
é um sistema de tratamento implantado
da Ilha do Governador, de 1984, no Rio
de Janeiro, e nas cadeiras do Centro Co- ho Locomotor baseado no
munitário e Sindical de Camaçari, na acompanhamento intensivo de cada
Bahia, de 1987. Nesses projetos, as par-
por um único professional responsável.
paciente por uma equipe médica, e não

madeira, e os assentos em courvin, Toda evolução, diagnóstico e tratamen-


tes estruturais, originalmente em

foram substituídas por peris metálicos e to é deinido pela equipe após análise
plástico, respectivamente. Ver: Giancarlo conjunta de cada situação.
LATORRACA,João Filgueiras Lima, Lelé. 187
José Filgueiras LIMA. O que é ser ar-
São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi / quiteto: memórias proissionais de Lelé
Lisboa: Editorial Blau, 1999, p. 150-163. (João Filgueiras Lima); em depoimento
A estática é a parte da física que estuda a Cynara Menezes. Rio de Janeiro: Re-
sistemas sob a ação de forças que se cord, 2004. p. 76.
176

equilibram. Fonte: http://pt.wikipedia.org/ 188


Depoimento do arquiteto Fábio Savas-
wiki/Estática. Acesso em: 22/02/2014. tano ao autor, em entrevista realizada
Alexandre Penedo BARBOSA DE MELO. em Brasília em 25/02/2014.
Opcit, 2008, p. 13. Ibidem.
177
189

178
Adalberto VILELA. “Uma visão sobre 190
Roberto PINHO. “Lelé: um arquiteto uni-
Alojamentos Universitários no Brasil”. 5º versal”. In: Max RISSELADA; Giancarlo
Seminário Docomomo Brasil, São Car- LATORRACA (orgs.). Op. cit., 2010, p.
los, 2003. Disponível em: http://www. 52.
docomomo.org.br/seminario%205%20 191
João Filgueiras LIMA. Arquitetura: uma
pdfs/003R.pdf, p. 8 experiência na área da saúde. São Pau-
179
O sistema de divisórias removíveis no lo: Romano Guerra Editora, 2012. p.150.
interior dos apartamentos não foi exe- 192
Giancarlo LATORRACA. Op. cit., 1999,
cutado, restando apenas as placas p. 155.
193
Max RISSELADA; Giancarlo LATORRA-
itador dos espaços internos.
pré-moldadas de concreto como delim-
CA (orgs.).Op. cit., 2010, p. 110.
180
Giancarlo LATORRACA. Op. cit., 1999, 194
Yopanan REBELLO; Maria Amélia LEITE.
p. 36.
Op. cit.., 2010, p. 68.
181
De uso corrente na arquitetura brasilei- 195
José Filgueiras LIMA. Op. cit., 2004, p.
ra, tanto vernácula como erudita, os
73.
cobogós são elementos vazados – de

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