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CALIXTO SALOMÃ O FILHO

REG ULAÇÃO DA
ATIVIDADE ECONÓMICA

(Princípios e Fundamentos
Jurídicos)
2“1 edição,
revista e ampliada

:=__ã MALHEIROS
=== EDITORES
REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA
(Princípios e Fundamentos Jurídicos)
© CALIXTO SALOMÃO FILHO

ISBN: 978-85-7420-8 9-8

Direitox reservadox dem: edição por


MALHEIROS EDITORES LTDA.
Rua Paex de Araújo. 29. conjunto [7]
CEP 04531-940 — São Paulo — SP
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:qua Estúdio Gráfico Ltda.

Capa
Criação: Vânia Lúcia Amato
Arte: PC Editorial Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
OI .2008
PARTE I — FUNDAMENTOS E PRINCÍPIOS

Capítulo !
TEORIA DA REGULAÇÃO:
RAIZES E FUNDAMENTOS

]. Introdução. 2. As escolas clássicas“ sobre regulação: 2.l Escola


do Interesse Público — 2.2 Escola Neocla'ssica ou Econômica da re­
gulação. Origem do movimento de desregulamentação. Crítica. 3.
Apontamentos para elaboração de uma teoria da regulação: 3.I
Setores não-regulamentáveis. Prestação de serviço diretamente pe­
lo Estado — 3.2 Regulação e proteção da difusão do conhecimento
econômico: 3.2 .! Regulação como “due process Clause" no com­
po econômica — 3.2.2 Regulação e teoria do conhecimento econô­
mico — 3.2.3 Regulação estrutural e regulação neoclássica — 3.2.4
Regulação e desenvolvimento econômico: a) A concepção jurídica
do desenvolvimento: fundamentos e princípios básicos — I)) Princí­
pios desenvolvimentistas na Constituição.

1. Introdução
No sistema brasileiro jamais houve tentativa de formulação de
uma teoria geral da regulação. A razão para tanto éjurídica e simples.
Trata-se da tradicional concepção do Estado como agente de duas fun­
ções diametralmente opostas: a ingerência direta na vida econômica e
a mera fiscalização dos particulares. A prestação de serviços públicos,
de um lado, e a vigilância do mercado, através do poder de pol feia, de
outro, sempre representaram para os administrativistas a totalidade
das funções que o Estado poderia exercer. Em um mundo de dicotomia
entre a esfera privada e a esfera estatal não havia por que descrer da
precisão de tal análise.
Nesse cenário, a preocupação com a regulação, mesmo quando
presente, não dava asas a uma manifestação doutrinária ou, mesmo, a
uma preocupação prática. O próprio termo “regulação" é, de resto, rara­
20 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

mente usado,' e, quando o é, geralmente é identificado à auto-regula­


ção ou desregulamentação?
Não e' esse o sentido que se pretende dar ao termo no presente
trabalho, por duas razões bastante simples.
A primeira delas éo fato de a teoria da regulação, quando bem
aplicada — exatamente o contrário do que tem ocorrido até o momen­
to —, poder representar exatamente a contribuiçãoª'mais útil de um
Estado que decide retirar-se 'da'intervençãoeconômica direta (através
da prestação de uma” gama baStante variada de'serviços') para sua fun­
ção de organizador das relações sociais e econômicas e que, por outro
lado, reconhece ser, para tanto, insuficiente o mero e passivo exercício
de um poder de pol ícia sobre os mercados.

1. Os poucos trabalhos em direito antitruste a utilizar o termo “regulação" e pro—


curar estndá-Io no sentido material são de endereço eminentemente pratico, preocu­
pando—se mormente com questões procedimentais como o funcionamento das agên­
cias reguladoras e conllitos de competências entre agências reguladoras e órgãos de
defesa da concorrência (v. B. Moura Rocha, "Regulação de infra—estrutura e defesa
da concorrência: proposta de avaliação", RDM l12/85—92; P. Mattos e l). Coutinho,
“Os desafios da reforma regulatória brasileira", Revista da Pós-Graduação da Facul­
dade de Direito da USP l/7l (: ss.; e G. Oliveira e C. M. da Silva Pereira Neto. "Re­
gulation and competition policy: towards an optimal institutional configuration in the
Brazilian tcleeommunieations ind ustry", Brooklin Journal oflnrernacíonu/ Law 25/3 l |
e ss.). O termo é também utilizado em perspectiva mais teórica pelos administrativis­
tas, relacionado, no entanto, a regulação dos serviços públicos (v. H. I,. Meirelles,
Direito Administrativo Brasileiro, 33“ ed., p. 334; M. S. Z. Di Pietro, Parcerias na
Administração Pública, pp. 52-53). Finalmente, é utilizado pelos teóricos do direito
econômico em perspectiva mais ampla. seja para reconstruir algumas de suas escolas
(v. F. Nusdeo. Fundamentos para urna Codificação do Direito Económico. em espe—
cial o Capítulo ll), seja para desconstruívlo, identificando o termo as tendências neo­
liberais desregulatórias (v. E. R. Grau, 0 Direito Posto 6 o Direito Pressa/70310, 6" ed.,
pp. l32— l33). Mais recentemente tem sido utilizado com visão mais teór'iea.ai|1da que
fortemente influenciada pela visão neoclássica ou institucionalista norte-amerieaim.
2. Essa identificação entre regulação e auto-regulação ou desregulamenlação
adota como pressuposto uma noção restrita de regulação, diferenciada do conceito de
regulanwnração. Essa distinção é apresentada por Eros Grau:
“Literalmente, desregular significa, no caso, não dar ordenação a atividade
econômica, ao passo que desregulamenmr. no caso, deixar de fazê—lo atraves de pre­
ceitos de autoridade. ou scja,jur|'dicos (...).
"(...).
“(...). O mercado não seria possível sem uma legislação que () protegesse e uma
racional intervenção, que assegurassc a sua existência e preservação" (0 Direito Por­
te e o Direito Pressa/rosto, 6ª' ed., pp. l35- I 36).
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS ZI

A outra razão — mais um defeito que uma qualidade da referida


teoria —-justifica, da mesma forma, a opção pelo estudo e desenvolvi­
mento de uma teoriajuri'dica da regulação. Trata—se da influência que a
teoria econômica da regulação de origem marcadamente norte-ameri­
cana tem tido sobre a formulação do modelo brasileiro de organização
dos setores privatizados. A febre das agências por que passa o país e a
aparente crença no poder dessas agências de corretamente organizar as
relações econômicas nesses setores invocam a concepção econômica
mais liberal da função da teoria da regulação. Suas conseq'úências e
seus perigos devem ser convenientemente avaliados e sopesados.
Pelas razões expostas acima, a acepção que se pretende atribuir
ao termo “regulação”, a fim de estudar as concepções a seu respeito
que têm influenciado o sistema brasileiro, é bastante e propositada—
mente ampla. Engloba toda forma de organização da atividade econô­
mica através do Estado, seja a intervenção através da concessão de
serviço público ou o exercício de poder de pol ícia. A concepção am­
plajustifica-se pelas mesmas razões invocadas acima. Na verdade, o
Estado está ordenando ou regulando aatividade econômica tanto quan­

util uantidade rod mo uand


do concede ao particular ªrestaçª) de serviços públicos e regula sua
edita regmsnoexerciciodopoder,d_poucimdnumsml5 assim,
incorreto formular uma teoria que não analise ou abarque ambas as
formas de regulação.
A nomenclatura utilizada não é, no entanto, meramente conven­
cional. Tem umajustificativa de fundo. A adoção de conceitosjamais
pode sejustificar de um ponto de vista formal , devendo sempre partir
de uma razão substancial, que unifique o conceito a partir da identi—
dade dos interesses e dos problemas que devem ser disciplinados.
No campo econômico a utilização do conceito de regulação é a
correspondência necessária de dois fenômenos. Em primeiro lugar a re­
dução da intervenção direta do Estado na economia, e em segundo o
CFCSCIant O O mowmento de concentração CCOHÓmICH.
Ambos os aSpectos serão dmeste trabalho.
A título de introdução, é importante apenas chamar a atenção para a
linha tênue que separa antitruste e regulação em tempos de concentra­
ção econômica. A experiência histórica mostra a dificuldade de con­
trole do comportamento dos monopólios seja pelas vias regulatórias
tradicionais (controle de preços), seja pelas vias de direito antitruste tra—
dicionais (controle dos comportamentos anticoncorrenciais). lmpõe-se,
22 REGULAÇÃODAATWIDADE ECONÓMICA—

então, a atenuação da linha divisória entre regulação e antitruste. Na


verdade, é de rigor uma regulação mais incisiva do ponto de vista con­
correncial, que inclua" seus princípios e reforce sua aplicação, fazendo
frente às necessidades específicas da regulação de situações de con­
centração de poder econômico. ' “
Essas afirmações teóricas têm profunda correspondência no mun­
do real. Significam, na verdade, que, pro'gr'essivãínente, mais setores
formalmente nãofregulados “devem se submeter a uma disciplina anti­
truste incisiva que não se limite a sancionar atos ilícitos, mas passe a
impor comportamentos (o que, como se verá, é típico da disciplina
regulatória). Essa tendência se faz sentir em novas teorias de direito
concorrencial, como a essential facility doctrine, que propõe verda­
deira linha de conduta obrigatória para os monopólios (obrigação de
contratar a preços competitivos), isto e', verdadeira regulação da ativi­
dade do monopolista.
Faz-se sentir também em casos concretos. No famoso caso AT&T,
regulação e antitruste precisaram ser aplicados conjuntamente para
atingir uma solução conveniente (v., infra, Capítulo IV, n. 1.3.1). Mais
recentemente, no rumoroso caso Microsoft tem sido freqiientemente
cogitada a possibilidade de regulação do sistema operativo, bem con­
siderado de verdadeiro uso público. Isso leva à necessidade de elabo—
ração de uma teoria regulatória que leve em conta esses princípios
concorrenciais, reforçando-os e moldando—os às suas necessidades.
Um tal postulado não tem por consequencia, por outro lado, afir­
mar que os princípios concorrenciais traduzam os objetivos exclusivos
da regulação. Obviamente, essa tem freq'úentemente funções de tutela
de certos objetivos específicos (higidez do mercado, segurança) ou de
imperativos de redistribuição de renda que não podem ser convenien­
temente disciplinados pelos princípios concorrenciais.
E imperativo, portanto, estabelecer, em linhas gerais, limites aos
princípios regulatórios e as formas possíveis de uma interação. Esse
será outro objetivo (ou pretensão) do presente trabalho.

2. As escolas clássicas sobre regulação


Tendo em vista a ampla definição de regulação apresentada, é
possível revisitar ambas as escolas que tradicionalmente procuram es­
tudar o funcionamento do Estado na economia, analisando—as critica­
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 23

mente dentro de um mesmo espectro teórico. Esse estudo é — repita-se


— o único que permite uma análise crítica das tendências hoje mais in­
fluentes no ordenamento estatal brasileiro, e requer, portanto, aborda­
gem acurada, sistemática e principiológica, exatamente para servir de
contraponto às doutrinas excessivamente economicistas que nos têm
invadido.
Essas duas escolas são, respectivamente, a Escola do Inleresse
Público e a Escola Neoclássica da regulação.

2.1 539919.fo ["fârêféifãitíêªeo


A escolha da denominação “Escola do Interesse Público" é pro—
posital. Ela evidencia o fato de que a justificativa para a regulação,
entendida no sentido amplo supradescrito, nada tem a ver com a pre­
servação do mercado. O objetivo é primordialmente a busca do bem
público, definido de formas diversas.3
A definição de interesse público é multifacetada — ora política,
ora econômica —, não permitindo que a mesma seja colocada em ter­
mos precisos. Aliás, a experiência prática põe em sérias dúvidas a
existência de um conceito — verdadeiro e coerente — de interesse pú­
blico para fins de intervenção do Estado na economia.
Exatamente por essa dificuldade, a Escola do interesse Público
ganha importância através do desenvolvimento jurídico. Na verdade,
não seria exagerado identificar a Escola do Interesse Público à Escola
do Serviço Público, pelo menos na forma como é aplicada no Brasil.
Essa identificação não é perfeita, pois nem sempre e não necessaria­
mente em todos os sistemas a preocupação com o interesse público se
traduz juridicamente no exercício de serviços públicos.
A noção de serviço público nasce na França com Hauriou, em
l92l .“ Em uma concepção bastante incipiente, Hauriou definia servi­

3. Note-se que a Escola do Interesse Público não se confunde com a teoria da


public choice. Essa última tem caráter marcadamente liberal e negativista em relação
à atuação do Estado. Constitui. na verdade, a base teórica para construção posterior
da teoria neoclássica, motivo pelo qual não receberá tratamento em separado no pre—
sente trabalho. V.. a respeito dessa teoria. a aprofundada análise de F. Nusdeo, Fun­
(lamentos para uma Codificação do Direito Econômico, pp. I l9 e ss.
4. Cabe ressalvar que Hauriou não é o iniciador da Escola do Serviço Público.
mas se encontra estreitamente vinculado a essa Escola, por ser o primeiro autor da
24 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

ço público como “serviço técnico prestado ao público de maneira re—


guiar e contínua para satisfazer a ordem pública por meio de uma or­
ganização pública”. ª
A Escola do Serviço Público começa a ganhar contornos mais
definidos com Leon Duguit. A relevância desse autor, que o transforma
em peça fundamental no desenvolvimento dessa Escola, está na im­
portância por-ele atribuída à noção de serviço público. A noção de
serviço público em Duguit é evidentemente “hipertrofiada”.ª Para ele
a própria noção de Estado confunde—se com a de serviço público, che­
gando a afirmar que o Estado é apenas “uma cooperação de serviços
públicos organizados e controlados por governantes".7
Essa afirmação é de grande importância. Ainda que, em teoria,
hipertrofiada, ela fundamenta a linha prevalecente no direito adminis­
trativo continental europeu— e brasileiro— de utilizaç㺠do regime de
servi o e ai form_a d_e ão da economia. “
Não é por acaso. portanto, que o principal discípulo de Duguit —
Gaston Jeze — estrutura todo o direito administrativo francês a partir

escola francesa a estabelecer a noção de serviço público. A característica marcante da


Escola do Serviço Público — inexistente na teoria de Hauriou — é a identificação do
direito administrativo com a noção de serviço público. Hauriou. apesar de estabele­
cer o conceito, mantém ainda uma clara separação das esferas englobadas pelo direi­
to administrativo, das quais os serviços públicos são apenas uma parte.
5. “On peut definir le service public “un service téchnique rendu au public d'une
façon réguliere et continue pour la satisfaction de I'ordre public et par une organisa­
tion publiquc'" (M. Hauriou. Pre'cis de Droit Administrarife! de Droit Public, p. 25).
6. M. Caetano. Manual de Direito Ad/iiinisrrarivo. vol. 2, p. i .068.
7. "On aperçoil dês la notion de service public: c'est toute aetivité dont l'accom­
plisscment doit être assuré. re'gle' ct contrôle par les gouvernants, parce que I'aecomplis­
sement de cette activité est indispensable à la réalisation ct au développement de
I'interdépcndance sociale, et qu'cllc est de thlc nature qu'elle ne peut être rcaliséc
completement que par l'intervention de la force gouvernante" (P. M. N. i.. Duguit.
Traíra” de Droit Constituriamie! , vol. 2, p. 55).
8. Ressalve—se que a inlluência da Escola do Serviço Público no direito admi­
nistrativo continental europeu e no brasileiro não diz respeito a redução de todas as
atividades estatais à noção de serviço público no caso dos ordenamentos supracitados,
mas sim à importância conferida a essa forma de intervenção do Estado na economia,
Contrariamente à doutrina da Escola do Serviço Público, as doutrinas atuais. como a
adotada por Marcello Caetano (Manual de Direito Adliiilxislralivo, vol. 2, p. I.069),
mantiveram a personalidade do Estado, permanecendo os serviços públicos apenas
como instrumento do exercício dessa autoridade Atcstam que o Direito pátrioé cin­
lormado pela herança conceitual da Escola do Serviço Público mas estao longe de
ter adotado o conceito hipertrofiado de Duguit.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 25

da noção de serviço público. Esse autor, preocupado com a incerteza


causada pela noção sociológica de serviço público desenvolvida por
Duguit, introduz noção maisjurídiea de serviço público, que posterior—
mente será identificada à noção de serviço público formal .” A noção de
serviço público, segundo essa orientação, está ligada à idéia de presta—
ção de serviço em regime de direito público.“
Há, aqui, outro elemento fundamental para o estudo da teoria da
regulação. É a partir da colocação do regime de direito público no cen­
tro da noção de serviço público que se teoriza a mais importante (e
mais deletéria) forma de regulação da economia: a concessão de servi­
ço público.
Na verdade, no sistema de direito administrativo atual, duas são
as formas de regulação: a concessão do serviço público e o exercício
do poder de polícia. Ambas têm origem histórica absolutamente diver­
saWcia nasce com o Estado Moderno Liberal do século
XIX. Resulta da crença de que 0 Estado pode regular simplesmente
através de uma atuação passiva, de limitação da liberdade dos particu—
lares. O exercício dos serviços públicos — e, em especial, a concessão
de serviços públicos — ganha destaque em um momento histórico com­
pletamente diverso, isto é, no início do século XX, com o Estado So—
cial. Constatada a impossibilidade de o Estado realizar diretamente
todos os serviços, desenvolveu-se a idéia de concessão de serviço pú­
blico, baseada na construção teórica do regime de direito público ao
centro da noção de serviço público.

9. A doutrina brasileira divide-se. basicamente, em dois pólos. Alguns autores


adotam um conceito formal de serviço público e outros optam pela definição material.
Em defesa do conceito formal — atividade realizada sob regime de direito público —
arvora-se H. L. Meirelles (Direito Administrativo Brasileira. 33" ed.. p. 330). Os
doutrinadores brasileiros que adotam um conceito material também são significati­
vos. Cite-se. por exemplo. C. A. Bandeira de Mello e E. Grau (v.. respectivamente:
Curso de Direito Administrativo, 24'] ed., p. 656, e A Ordem Econômica na Constitui­
ção de [988 (Interpretação e Crítica), |Z" ed., p. I03).
10. "L'idée du service public est intimemcnt liée avec eclle du procede de droit
public. (...). Dire que. dans telle hypothese, il y & service public, c'est dire que, pour
donner satisfaction réguliere et continue à telle catógorie de besoins d'intérêt général.
les agents publics pcuvent appliquer les procédés du droit public. c'est-a-dire un regime
juridique spécial et que I'organization du service public peut être modil'iée à tout instant
par les lois et rêglements sans qu'aucun obstaele insurmontable d'ordrc juridique puis—
Se s'y opposer" (G. Jéze, Les Príncipes Générawr du Droit Administralif, p. 2).
26 REGULAÇftopa ATIVIDADE ECONOMICA
Ora, é fácil ver que essa origem histórica distinta das formas de
regulação da economia pelo Estado causa problemas de monta.
De um lado, a concepção. claramente liberal e passiva do poder de
polícia não é suficiente para atender às necessidades de sistemas eeo—
nômicos com tantas imperfeições estruturais como são as modernas
economias capitalistasl Deoutro, o regime de concessão de serviço
público parte-de uma imperfeição de fundo quase insolúvel. Assenta
suas bases na crença de que é possível transformar agentes privados
em persecutores do interesse público. Sendo inviável o Estado realizar
todas as atividades econômicas, ele passa a delega-las aos particula­
res, acreditando que pode controIá-los através de um regime de direito
público. Base fundamental para que esse regime funcione é a possibi:
lidade de previsão dos fins da atividade econômica pelo Estado. E
necessário, portanto, teorizar o conhecimento econômico, prevendo
com precisão o fim das atividades dos particulares.
As razões pelas quais essa última crença é teoricamente incorreta
serão analisadas mais adiante. Quanto à primeira, por ora basta notar
que a experiência empírica com o controle dos agentes privados atra­
vés do regime jurídico do direito público é muito pobre. Se o regime
das concessões iria substituir com vantagem o mercado, estabelecen­
do fins públicos para os agentes particulares, sua eficácia tem sido
muito limitada. Esse regime tem, de um lado, originado a captura do
poder concedente pelo concessionário, que, logo após a licitação, tor­
na-se monopolista daquela atividade." De outro, tem-se mostrado ine­

I I. Segundo a capture theory. que aponta para a “captura" do regulador pelo


regulado — daí sua denominação —, a regulamentação, apesar de ter seu fundamento
central no interesse público, se fosse direta. acabaria por ser submetida aos interesses
da indústria regulamentada (v. R. Posner, “Theories ol" economic regulation". The
Bell Journal of Economics and Management Science 5/335). Para uma interessante
análise dos diversos posicionamentos envolvidos nesse debate. v. F. Nusdeo, Funda­
mentos para uma Codificação do Direito Económico, em especial Capítulos ll e III.
Em face da ineficácia da regulamentação direta da atividade do particular, os repre­
sentantes da Escola de Chicago propõem que a intervenção estatal ocorra através do
controle pelo Estado de entrada no mercado. O modelo clássico dessa modalidade de
intervenção é proposto por Demsetz e tem como base o estabelecimento de um pro­
cesso competitivo de licitação para ingresso no mercado. Esse modelo é conhecido
como Demsetz Auction (v. H. Demsetz. “Why rcgulate utilities", Journal of Law and
Economics [ 1/55). A idéia central dessa corrente é que a regulamentação. ao impor a
utilização do sistema competitivo no momento de entrada do mercado, estaria eum­
prindo seu objetivo: correção das imperfeições mercadológicas. A prática, entretanto,
demonstrou a pouca utilidade da alternativa de controle da entrada para os objetivos
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 27

ficaz, pois, a cada controle erigido, o concessionário desenvolve duas


ou três formas de contorna—lo. Controles de preço são contornados
através da diferença de qualidade, de continuidade, de atendimento ao
usuário ete.
Finalmente, além das duas críticasjá apresentadas, há uma última
crítica ao modelo da Escola do Interesse Público, que, aliás, informa
as demais. Trata-se da falta de sistematização'2 decorrente da diversa
origem histórica das diferentes formas de regulação. isso faz com que
a regulação ora peque pelo excesso, ora pela falta: ou há a prestação
direta da atividade pelo Estado em áreas que poderiam ser repassadas
aos particulares (desde que com severa regulação), ou há a simples e
inútil concessão de serviço público.

2.2 Escola Neoclássica_WáWLaçãa


Orig—ér—n'dô ino—vimento de desregulamentação. Crítica
Sob a denominação genérica de Escola Econômica da regulação
escondem-se várias tendências, com dois pontos fundamentais em co­
mum: a negação de qualquer fundamento de interesse público na regu­
lação e a afirmação do objetivo de substituição ou correção do merca—
do através da regulação.
Na verdade, a teoria econômica da regulação, orientada pelo neo—
classicismo, crê poder prever os resultados e, conseqtientemente, indi­
car os fins da atividade econômica. A regulação serve apenas como
substituto do mercado. O regulador e ou deveria ser capaz de reprodu­
zir um mercado em laboratório ou, melhor dizendo, nos gráficos de
oferta e demanda. Evidentemente, porque baseada na crença cega no
mercado, para tal teoria a regulação só será necessária enquanto não

Visados, pois a garantia de preços competitivos através da licitação é de curto prazo.


Critica-se basicamente o fato de não ser possível, em especial em setores nos quais
as variações de custos são substanciais, estabelecer um contrato de longa duração
para controle de preços. O resultado é a necessidade de uma regulamentação gover­
namental constante para que os preços se mantenham competitivos. Isso, no entanto,
ultrapassa em muito o rigor da regulamentação direta, criticada por esses mesmos
teóricos. V., para uma crítica completa das hipóteses e conclusões econômicas do
Demsetz Auction, O. Williamson, “Franchise bidding for natural monopoly", in The
Economic Institutions of Capitalism. p. 326.
l2. A sistematização dá-se em torno da noção de serviço público, e não da regu­
lação (v., para o tratamento dessa questão no Direito Brasileiro. nota 9, supra).
28 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

existir solução de mercado"mais'eficiente. Por essa razão, como se


verá, nela encontra—se o sêmen dos movimentos desregulatórios.
A fundação da Escola Neoclássica da regulação é geralmente atri­
buída ao famoso trabalhode G. Stigler, “The theory of economic regu­
lation”.'3 Essa afirmação é só em parte verdadeira. Na verdade, um
estudo dessa Escola não pOde prescindir da leitura de dois importan­
tíssimos trabalhos, precursºres da teoria econômica da regulação.
O primeiro, de Stigler e C. Friedland, publicado em l962,'4 é ex­
tremamente cético em relação aos efeitos da regulação dos monopó­
lios. Procuramos autores efetivamente demonstrar a ineficácia da re­
gulação de monopólios no setor de energia elétrica. A importância dos
mesmos está na negação da efetividade da regulação como substituti­
va do mercado.
O segundo trabalho é ainda mais importante. Nele está a idéia bási­
ca a ser mais tarde desenvolvida por Stigler no famoso estudo supra­
mencionado. Trata-se do artigo de H. Demsetz, “Why regulate utili—
ties”.'S Esse trabalho, cético em relação a regulação, propõe que o Estado
regule através da realização de leilões para a prestação de serviços. É o
famoso Demsetz Auction, já criticado,“ e que tanto influenciou o siste­
ma de licitação para concessão de serviço público. Cabe ressal var que,
apesar da importância da doutrina para o regime de concessões, o ponto
mais influente do referido trabalho é o final, no qual Demsetz sugere
que a regulação, via de regra, serve nada mais nada menos que à prote­
ção da indústria, e não a qualquer motivo de interesse público.
Esse é o ponto de partida do artigo seminal de Stigler sobre a teo­
ria da regulação. Nele o autor aprofunda de maneira até então inusitada
a persecução de interesses privados da indústria através da regulação.”
Poucos anos mais tarde, Posner desenvolverá, usando pressupostos de
Stigler, a ainda mais pessimista teoria da captura, segundo a qual, na
verdade, os interesses privados, ainda que não prevaleçam nO início,
acabam por sobrepujar os motivos de interesse público, pois as agên­

I3. G. Stigler, “The theory of economic regulation", T/Ie Bell Journal of Econo—
mics and Management Science 2.
I4. Stigler e C. Friedland, “What can regulators regulale? 'l'hc cusc Ol' eletrici­
ly", Journal ofLaw & Economics 5,
l5. H. Demsetz, "Why rcgulate utilities", Journal aflaw & Economics ll.
l6. V. nota l l, supra.
l7. Stigler, "The theory of economic regulation", The Bell Journal of Econo­
mics and Management Science 2/3.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 29

cias acabam por se sujeitar a influência dominante dos regulados — ou


ser capturadas pelos seus interesses."
Esse início bem neoliberal de reflexão teórica a respeito da teoria
da regulação influencia todo o seu desenvolvimento posterior. Em um
primeiro momento, enquanto ainda não é possível criticar o próprio
movimento regulatório, orienta—o decisivamente para uma lógica do
mercado.
Assim, toda a lógica do raciocínio e da aplicação do direito regu—
latório direciona-se para a correção e reprodução aperfeiçoada dos
efeitos de mercado. Forma-se, ao longo dos anos, na doutrina e na ex­
periência aplicativa concreta, uma farta casuística a respeito da regu­
laçãof Essa casuística aparentemente não é guiada por princípio algum,
a ponto de a doutrina relevante entender que a justificativa da regula­
ção deve ser buscada nas relações (do tipo quase que contratual) entre
regulador e regulado.“)
O ponto comum e sistematizador dessa casuística, no entanto,
existe, e está exatamente na crença na possibilidade de reprodução das
condições de mercado através da agência regulatória naqueles setores
em que essas condições não podem ser produzidas naturalmente. Deve
haver regulação, portanto, em setores caracterizados por monopólios
naturais, nos quais há informação inadequada ou condições estruturais
que levem a uma concorrência excessiva ou predatória.
Em pouco tempo tornam—se evidentes os defeitos dessa forma de
regulação. A reprodução em laboratório das regras de mercado revela­
se impossível. Nesse momento, são as próprias origens teóricas dessa
Escola a indicar o caminho a ser trilhado. É a desregulamentação ou
desregulação. Se o mercado é a solução considerada ideal e sua repro­
dução teórica não é possível , então, o melhor é fazer com que o merca­
do funcione por si só. Surge naturalmente, da ratio da regulação liberal , ,
a desregulação. Ambas têm a mesma origem e a mesma inspiração.
Assim, o neoclassicismo da Escola de Chicago está, evidente­
mente, por trás dos movimentos de desregulamentação ou desregula­
ção. Por essa mesma origem histórica e ideológica, a desregulação
Vem geralmente acompanhada da auto-regulação. A desregulação faz­

l8. R. Posner, "Taxation by regulation", The Bell Journal of Economics- and


Management Science 2.
l9. V., nesse sentido, G. L. Priest, “The origins ol" utility regulation and the
'lhcorics ol" regulation' debate", Journal of Law and Economics 36/294.
30 REGULACAO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

se através de mecanismos de auto- regulação, exatamente porque é


através da auto— regulação que se pretende criar as condições ideais
para tornar efetiva a 'mão invisível” do mercado. Assim, muitos dos
movimentos de desregulamentação optam pela criação de bolsas de
negócios, ao formato das bolsas de valores, que concentram todas as
operações e criam regras internas de auto- -regulação no sentido de aper­
feiçoar o mercado. Essa é a primeira característica sensível de desre­
gulação: a opção por sistema de auto- -regulaçãó que seja capaz de ten­
tar criar um ambiente semelhante a concorrencna perfeita. A recriação
das condições de mercado “em laboratório" muda, portanto, de forma,
mas não de conteúdo.
Há também no movimento de desregulamentação (e essa é a se­
gunda característica saliente do sistema) uma clara preocupação com
os custos de transação. Assim, todos os movimentos desconcentrati—
vos, especialmente os realizados na linha vertical (a chamada “desver­
ticalização”), estão limitados pela preocupação com os custos de tran­
sação.20 Ou não se realizam por inteiro, ou, então, são limitados por
medidas compensatórias. É o caso, por exemplo, do que foi feito no
setor elétrico brasileiro no final dos anos 90 do século passado. Naquele
período optou-se pela desverticalização acompanhada pela criação de
sociedades privadas, formadas pelos participantes do mercado, encar—
regadas de resolver os problemas técnicos de conexão entre os vários
elos da cadeia produtiva (geração, transmissão, distribuição). Criou—se,
também, o mercado atacadista de energia (MAE), que deve funcionar
como uma perfeita bolsa de valores, auto—regulada e em concorrência
perfeita.“ Tal sistema, criado com o objetivo evidente de eliminar cus­

20. Os custos de transação são determinados pela diferença entre o valor dos
custos de realizar uma transação no mercado e no interior da empresa (O. Williamson,
“Franchise bidding !" or natural monopoly", T/u: Economic lm'rirurions ofCapitalix/n,
pp. ID! e ss.).
21. O modelo brasileiro de reestruturação do setor elétrico leve inspiração ex­
plícita no modelo inglês. Esse foi o primeiro e mais grave problema. Procurou—se
aplicar um modelo baseado na utilização de energia termoelétrica em outro baseado
na utilização de energia hidroelélrica. Nesse último, ao contrário do primeiro, é im­
possível estocar energia. Isso torna muito mais difícil a concorrência livre, nos mol­
des do mercado smithiano. Fundou-se o modelo brasileiro em dois pilares básicos: a
desverticalização e a auto-regulação. Na verdade, a presidir ambas esteve a lógica neo­
clássica. Não houve ênfase na concorrência, mas sim na reprodução das condições de
mercado, como se o mercado fosse capaz de controlar vazão de rios e quantidade de chu­
vas. Ao contrário, deveria ter havido — isso, sim — uma preocupação na criação efetiva
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS Ill

tos de transação, é um convite e um incentivo à oligopolização dos


mercados.

de um sistema concorrencial com pluralidade de agentes, em um setor onde não há


condições naturais propícias para tanto. Assim, no caso da desverticalimção não há ên­
fase na imposição coercitiva de condições efetivas de concorrência e na proibição de
formação de monopólios inter-regionais. O que há é a tentativa de fazer com que os
agentes resolvam de forma cooperativa os problemas surgidos da desverticalização. Os
custos de transação mais elevados surgidos com a desverticalização não foram comba—
tidos através de medidas coneorrenciais, mas, ao contrário, através da criação de uma
pessoajurídica (ONS — Operador Nacional do Sistema Elétrico) que eongregou todos
os participantes do mercado (criado em 26.8.1998. sob a forma de associação civil, o
ONS tem como seus integrantes as empresas de geração, transmissão, distribuição,
importadores e exportadores de energia elétrica — Lei 9.648, de 27.5. | 998). Foi conce­
dida ao mesmo responsabilidade pela coordenação e controle da operação das instala—
ções de geração e transmissão de energia elétrica nos sistemas interligados brasileiros,
atividades regulamentadas pelo Decreto 2.655, de 2.7. I 998. Ressalve—se que, além das
empresas do setor, são também integrantes consumidores e o Ministério de Minas e
Energia, como membro participante, com poder de veto em questões que conflitem
com as diretrizes e políticas governamentais para o setor (o funcionamento da associa­
ção foi autorizado pela Resolução 351 ,de l ! .ll .l998, da Agência Nacional de Energia
Elétrica). Antes que uma forma integrada de resolução de problemas, essa solução po­
de, excepcionalmente, sem regras concorrenciais claras, ter sido um convite à carteli­
zação do mercado. O mesmo ocorreu com o outro princípio, o da auto-regulação. Or­
ganizou-se o MAE — Mercado Atacadista de Energia (previsto no art. I2 da Lei 9.648,
de 27.5.1998; regulamentada pelo Decreto 2.655, de 2.7.l998, e instituído pelo Acor­
do do Mercado Atacadista de Energia). A idéia era que funcionasse. a partir de 2003.
como uma verdadeira bolsa, concentrando transações e criando condições próximas à
concorrência perfeita. Para tanto, a energia comprometida com os contratos iniciais
(cujos valor e quantidade são regulados) passaria, progressivamente, a ser livremente
comercializada no mercado. A meta que deveria ser atingida era a comercialização de
toda a energia disponível do pais no MAE. Foram duas as principais formas de nego­
ciação: os contratos bilaterais. livremente negociados pelas partes e registrados no MAE
(diferentemente dos contratos iniciais — antigos contratos de suprimento —, que eram
totalmente regulamentados pelo Governo), e o Mercado de Curto Prazo, no qual era ofe­
recida a energia disponível no mercado e não negociada nos contratos bilaterais. O gran­
de problema é que a formação de um verdadeiro mercado auto-regulável tem certas
premissas básicas: informação completa e atomização dos agentes econômicos são exem—
plos. Nenhuma dessas premissas esteve, entretanto, eficazmente garantida na regula­
ção do setor. Quanto às informações, não basta (como faz o documento básico do MAE)
afirmar o objetivo de disseminar informações (o documento básico do MA b homolo­
gado pela Resolução 18, de 28.1.1999, da ANEEL, dispõe que: “Preços diferentes
Serão definidos para cada submercado. Esses preços relletirão o custo marginal de
energia de curto prazo de cada submercado, referido aos seu Centro de Gravidade
(CG), através da aplicação de fatores de perda de transmissão"; com relação ao sub­
mercado de geração térmica, por exemplo. dispõe que: “As usinas termoelétricas for­
necerão ao ONS seus dados de custo de combustíveis. sem considerar os reembolsos
32 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

As falhas dessa concepção neoclássica sãofhoíe, evidentes. A re­


produção em laboratório de condições de mercado é inviável, seja
através da regulação ou da auto—regulação.22
Há, também, o fato-inegável de que concentração exclusiva na
lógica de merCado desviaas atenções de outrºs-_e fundamentais objeti­
vos que deve ter aação regulatória do Estado na economia. E a eles
que se dedica o tópico a'seguir.

3. Apontamentos para elaboração de uma teoria. da regulação


A exposição das teorias clássicas da regulação parece ter criado
um impasse.
De um lado, criticou—se a Escola do Interesse Público, pela sua
concentração em torno da noção de serviço público e por sua crença

da Conta e Consumo de Combustí veis dos sistemas interligados (CCC). os correspon­


dentes rendimentos térmicos e os dados de disponibilidade. que constituirão suas in­
formações básicas paraa otimização do sistema e a determinação dos preços do MAE.
As usinas cujos custos de combustíveis I'orem cobertos pela CCC deverão ter seus
dados aprovados pela ANEEL. As infonnações de custo de produção e de rendimento
térmico poderão ser diferenciadas de acordo com o nível de produção das usinas e ser
revistas anualmente ou na ocorrência de fatos relevantes"). É preciso estabelecer garantias
para tal. Ora. é sabido ser impossível ter acesso à estrutura de custos de agentes econômi­
cos verticalmente integrados. que podem diluir e mascarar nas várias esferas produtivas
os vários componentes dos custos. Portanto, o requisito da informação liga-se ao segundo
requisito. da atomização dos agentes econômicos. que devem operar em um mercado de
concorrência perfeita. Nesse aspecto a regulação também não foi feliz. O estabelecimento
de um patamar numérico lixo (20% — Resolução 94 da ANEEL) é sabidamente insuli­
ciente para identificar situações de controle de fato ou de influência dominante.
22. As atividades de coordenação e controle da operação da geração e da trans—
missão de energia elétrica, que integram o chamado Sistema Interligado Nacional ——
SIN, são executadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico — ONS. do qual
participam os titulares de concessão, permissão ou autorização. por outros agentes
vinculados aos serviços e as instalações de energia elétrica e por Consumidores Li­
vrcs conectados à rede básica. As atribuições e a organização interna do ONS são
regulamentadas pelo Decreto 5.081, de l4.5.2004, Nos termos da Lei l0.848, de
15.3.2004. a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica — CCEE foi criada para
substituir o MAE e viabilizar a comercialização de energia elétrica (v. Decreto 5. I77.
de l2.8.2004). A estrutura e a forma de funcionamento da CCEE foram disciplinadas
na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica. aprovada pela Resolução
Normativa ANEEL-109. de 26.10.2004. Nos termos do art. 4“ da citada convenção, a
comercialização de energia elétrica entre os agentes da CCEE pode ocorrer no Ain­
biente de Contratação Regulada ou Ambiente de Contratação Livre e no Mercado de
Curto Prazo, sendo que cada um deles conta com regras próprias.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 33

, desmentida pela prática — na possibilidade de controle dos agentes


privados que prestam serviço público através do regime jurídico de
direito público.
De outro, é imperioso negar aplicação a teoria neoclássica da re­
gulação, argumentado-se, no plano operativo, ser impossível e inefi­
caz pretender recriar o mercado em laboratório e, no plano teórico, ser
por demais pobre entender que a regulação se resume a esta tarefa.
A conclusão seria, portanto, que os fundamentos apresentados por
essas Escolas são demasiadamente limitados, por priorizarem apenas
um dos aspectos da regulação. Tal reducionismo leva a uma teoria in­
completa. Em virtude disso, temos que admitir a convivência dos as­
pectos econômicos e sociais da regulação e reconhecer, ainda, que a
preponderância de um sobre o outro pode variar conforme a natureza
do setor regulado É possível, então, a partir da identificação das fa­
lhas das doutrinas expostas, lançar as bases para a construção de uma
teoria mais sólida da regulação.

3 Prestação
Wlamentavets
de serwço diretamente pelo Estado
Antes que negar a conveniência e a viabilidade da regulação, a
crítica às teorias clássicas da regulação leva à necessidade de identifi­
car onde a regulação pode — ou não — funcionar. Para essa identifica­
ção não é necessário retornar ao tormentoso conceito de interesse pú­
blico no campo da teoria política e do direito do Estado. Na verdade,
é muito mais fácil identificar significado e conteúdo da função do
Estado, contribuindo juridicamente para a própria definição de inte­
resse público a partir do movimento inverso, isto é, a partir da identi­
ficação do que não pode estar sujeito às regras de mercado. Para tanto
existe um critério razoavelmente simples.
Toda vez que determinada atividade econômica tiver externalida­
des sociais, sejam positivas ou negativas (respectivamente, benefícios
ou malefícios), o mercado não será um elemento organizador eficien—
te, pois nesses casos o mercado não é capaz de recompensa-las ou
compensa—las.
O conceito de externalidaa'e é bem conhecido. Há externalidade
Sempre que determinada relação jurídica produz efeitos geralmente
não-mensuráveis a sujeitos que não participam daquela determinada
34 REGUMÇÃO. DMTIY'DAPE ECONOMICA _
relaçãojurídica. Exemplo típico é a poluição, externalidade (negativa)
causada pela produção industrial, que não atinge os produtores ou os
consumidores diretos do produto fabricado (partes na relação econô­
mica), mas, sim, os'morador'es de áreas próximasã indústria (tercei—
ros). Na área social externalidades são benefícios ou malefícios causa—
dos pela relação jurídica a grupos sociais menos favorecidos ou à
organização da sociedade como um todo.“, _,.
A idéia é, aqui , portanto, contrária aos pressupostos neoliberais. O
objetivo é francamente redistributivo. Pºuco importa se o resultado fi­
nal será um aumento ou decréscimo da riqueza global (Pareto) ou,
ainda, que exista essa possibilidade teórica de compensação (Kaldor­
Hicks). O que importa é a existência de uma relevância social na ati­
vidade, que faz com que ela não possa ser prestada pelos particulares
sem efeitos distributivos perversos.
Nessas áreas sensíveis, geradoras de externalidades sociais por
natureza, é inviável a participação do particular.
imagine-se o caso clássico da educação. Jamais o que o estudante
está disposto ou tem condições de pagar pela escola pode remunerar o
imenso benefício social trazido pela educação de cada indivíduo. Até
porque esse benefício não é passível de mensuração. lsso responde
pelos maus resultados da educação quando sujeita às regras de merca­
do — ou a escola privada desvirtua o sistema educacional , oferecendo
ensino de baixa qualidade e, portanto, deixando de produzir externali­
dades sociais positivas, ou o preço cobrado pelo ensino geralmente
torna-o inacessível à grande maioria, o que também gera grandes ex­
ternalidades sociais negativas.
Ora, toda vez que estiverem presentes estas externalidades sociais
não há possibilidade de participação do particular. E inútil tentar mu­
dar sua natureza através de regimes jurídicos específicos. Não há regi­
me de direito público que consiga mudar — ao menos no que tange às
decisões econômicas — a mentalidade individualista dos particulares.

23. Breyer apresenta a definição da seguinte maneira: "A considerable amount


of regulation is justified on the ground that the unregulaled pricc of good does not
reflect the true cost to society of producing that good. The differences between true
social costs and unrcgulated price are 'spillover' costs (or benefits) — usually referred
by economists as 'externalities"' (Regulation and its Reform, p. 23, nota 26). Para os
textos fundamentais sobre o conceito, v.. também: R. Coase, "The problem of social
cost". Journal of Law & Economics 3; E. Mishan. “”The postwar literature on exter­
nalitics: an interpretative essay". Journal of Economic Literatura 9/ |.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 35

(o mesmo raciocínio feito acima poderia ser aplicado ao setor de saú­


de, por exemplo).
O setor é, portanto, não-regulamentável. O Estado deve prestar
diretamente o serviço.

3.2 Regulação e proteção da difusão do conhecimento econômico

3.2.I Regulação como due process Clause no campo econômico


Eliminados os setores que não podem ser convenientemente orga­
nizados pelo conhecimento individual , e que devem permanecer sob a

os demais. '
tutela direta do Estado, é preciso, agora, definir como e por quê tratar

Note-se que com relação a eles — e só a eles — é que se coloca a


questão do fundamento jurídico e da forma de regulação. Só nessa
hipótese há verdadeira regulação — e não intervenção direta —, segundo
a forma clássica do art. 174 da CF.
Ora, como se verá, nesses casos o fundamentojurídico da regula­
ção está exatamente na procedimentalização da atividade econômica.
A idéia é semelhante à das correntes mais progressistas do realismo
jurídico, que, colocadas diante do problema de encontrar o fundamento
para a norma e querendo evitar a discussão em termos exclusivamente
políticos da questão, respondem defendendo a norma processual , dire­
cionada a encontrar a regra jurídica justa,24 e, assim, abrem a porta
para o desenvolvimento da due process Clause.25

24. Os realistas progressistas dividem-se em duas correntes: a chamada Escola


de Yale e a Escola de Harvard. A primeira vê na atuação do Judiciário uma valoração
pol ítica de interesses contrapostos (retomando, portanto, idéias da jurisprudência dos
interesses) (v. H. Sasswell e M. McDougal, "Legal education and public policy: pro­
fessional training in the public interest", Yale Law Journal 52/203; v. também. a
respeito, B. Ackerman, Reconstrucling American Law, 1984). A segunda, mais origi­
nal, de Harvard. vê o problema da aplicação do Direito como uma discussão de qual
a instituição mais apta a aplicá-lo (v. H. Hart e Albert Sacks. The Lega! Process.
l958). O desenvolvimento mais moderno do realismo progressista mistura, de uma
certa forma, as duas concepções. procurando identificar como a decisão judiciária
pode influenciar as instituições públicas e as instâncias de poder da economia de
mercado. aprimorando-as (cl'. O. Fiss. The Social and Political Foundations of Adju­
dicarion in Law and Human Behavior. vol. 6, n. 2, pp. I2l e ss.).
25. No direito processual o fulcro da due process Clause — o princí pio do contradi­
tório — nada mais é que uma forma de garantir a participação das partes no processo que
36 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

O que se buscará, aqui, é nada mais nada menos que o desenvol­


vimento de uma due process Clause em matéria econômica para aque­
les setores reguláveis.
Essa mudança no foco da preocupação — da busca de um objetivo
predeterminado e pré—juridico para a garantia efetiva da correção e da
lealdade da integração dos váriºs agentes econômicos no mercado e

econômica). '
de sua igualdade material em termos concorrencials— é— uma resposta
à questão do fundamento dairegulação (due process Clause em matéria

Enquanto garantia institucional26 da correção e equilibrio do pro­


cesso de interação econômica, a regulação ganha justificativa autôno­
ma. A razão é que deixa de haver um fundamento pré ou ultrajurídico
para a regulação. Suajustificati va passa a ser apenas a de criar uma i gual—
dade jurídica material, e não meramente formal, entre todos os agentes
econômicos e garantir a correção de seu procedimento no mercado.
Cabe, então, definir o modo de compatibilização de toda forma de
regulação com os valores histórica, social e constitucional mente esta­
belecidos no sistema brasileiro.
Em particular, é necessário compatibilizar tal forma de regulação
com princípios constitucionais díspares como a livre iniciativa e ajus—
tiça social (art. l70 da CF).
Dispares quando sujeitos à lógica de mercado, esses princípios
podem ser compatibilizados por uma coerente regulação. Tal regula—
ção deve — como se verá mais adiante — garantir condições para que os
agentes econômicos possam desenvolver suas atividades em condi­
ções de igualdade material.
Igualdade material quer, aqui, significar igualdade efetiva, e não
meramente formal, de oportunidades. Como se pretende demonstrar
abaixo, isso só pode ocorrer com a difusão forçada do conhecimento
econômico entre os indivíduos, que, por sua vez, só pode ser assegu­
rada através de uma garantia firme de existência de concorrência.

leve o terceiro e umjuiz a uma decisão maisjusta. V.. a respeito. o fundamental artigo de
C. R. Dinamarco. "O princípio do contraditório e sua dupla dcsti nação", in Fundzunemos
do Processo Civil Moderna. 5“ ed.. [. l, pp. l24 e ss.). Da mesma maneira, a concorrência
é a garantia de uma contestação. de uma participação de todos os agentes econômicos,
que garanta a tomada de uma decisão mais uniformizada pelos consumidores.
26. Acerca da leoria das garantias institucionais v. Capítulo V. nota l .
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 37

Como e por quê difusão de conhecimento econômico e concor­


rência se entrelaçam e como são capazes de cumprir os princí pios da
ordem econômica constitucional brasileira é o que se verá a seguir.

3.2.2 Regulação e teoria do conhecimento econômico


Se a regulação deve ser forma de garantia de um processo de in—
tegração econômica equilibrada, é preciso, sobretudo, saber como e em
quê ela se diferencia da aplicação pura e simples do direito antitruste.
Essa diferenciação e particularmente importante, pois, como se
verá, a regulação mais efetiva é a que impõe a existência de concor­
rência naqueles setores em que as condições estruturais dos mercados
impedem que essa se estabeleça somente com uma aplicação ativa do
direito antitruste. Assim, há um paralelo inegável entre o objetivo da
tutela concorrencial e a regulação de mercado. Ainda que a operacio­
nalização e a intensidade das duas tutelas sejam absolutamente distintas,
a orientação do direito concorrencial em muito pode informar a regu­
lação do mercado.
Em termos bem simples, a diferença entre direito antitruste e re­
gulação está basicamente na forma de intervenção. A atuação do direito
antitruste é essencialmente passiva, controlando formação de estrutu­
ras e sancionando condutas. Trata-se do que a doutrina administrativa
costuma chamar de atos de controle e de fiscalização, através dos
quais o Estado não cria a utilidade pública, limitando—se a fiscaliza-la
ou controla-la.” Já a regulação não pode se limitar a tal função. E pre­
ciso uma intervenção ativa, que não se restringe ao controle, mas à
verdadeira criação da utilidade pública através da regulação. A utilida—
de pública, nos setores reguláveis, consiste exatamente na efetiva cria—
ção de um sistema de concorrência."
Aqui cabe um pequeno adendo sobre a razão da crença na impo—
Sição da concorrência como moto principal da regulação nos setores
passíveis de regulação. Essa crença decorre de dois fatores que se con—
jUgam e entrelaçam para fazer da regulação concorrencial ativa um
das principais formas de atuação do Estado na economia.
Em primeiro lugar, é preciso seguir brevemente a linha evolutiva
crítica em relação às teorias que procuram conceituar e sistematizar o

27. C. A. Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 24” ed.. pp. 932 e ss.
28. V., a respeito das particularidades da regulação. Capílulos ll (: V. inl'ra.
38 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

conhecimento econômico. Tanto a teorização operada pelos marxistas


como aquela feita pelos neoclássicos demonstraram- -se imperfeitas na
teoria e ineficazes na prática. lmperfeitas porque ambas assentam suas
bases sobre pressupostos inexistentes na vida real. É o caso do papel
fundamental atribuído pelos marxistas ao fator “trabalho” no processo
capitalista de produção eda hipótese famosa da definição de “mercado
em concorrência perfeita”, absolutamente inexistentena prática, tão
cara aos neoclássicos. lneficazes foram, na prática, ambas, respectiva—
mente pela ausência de efetividade na coordenação daação e dos limi­
tes da ação do Estado e pela total incapacidade de controle do poder
econômico e redução das desigualdades por ele criadas.
Problemas e incoerências dessas teorias avolumam-se a ponto de
permitir ao principal crítico da teorização do conhecimento econômi—
co, F. Hayek, ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Esse autor afirma
nada mais que o óbvio: o conhecimento econômico é, por natureza,
prático, e o melhor conhecimento é adquirido individualmente, atra­
vés do processo de escolha, isto é, através da efetiva existência de
concorrência.29
Tal crítica, cara ao aspecto econômico da discussão, não esgota o
problema. De outro lado temos, em uma abordagem jurídica do pro­
blema econômico como a que se pretende ora realizar, a necessidade
de reconhecimento da importância do elemento jurídico na organiza­
ção social . A concepçãojurídica é, de resto, uma forma eficaz de supe­
raros impasses criados pelo economicismo. O Direito vê o conhecimen­
to de maneira profundamente diversa das ciências sociais. Enquanto
para estas o conhecimento é algo eminentemente empírico, para o
Direito o conhecimento é eminentemente valorativo.
Afirmar que o conhecimento é valorativo é nada mais nada me­
nos que afirmar que os valores de uma determinada sociedade podem
influenciar e influenciam dramaticamente o conhecimento que se tem
dela. Se, como afirma a doutrina, não existe uma norma vazia sem
uma pretensão ou um interesse a proteger,30 ou seja, sem um valor que
lhe esteja por trás, então, a sociedade que conhecemos, ao cumprir
essas regras, nada mais faz que traduzir esses valores. Desse modo, a

29. F. Hayek, Individualism and Economic Order. 1948.


30. Cf. G. Calabresi, “The pointlessness of Pareto: carrying coasc further", Yale
Law Journal l00/l .2I l.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENI'OS 39

sociedade que vemos é uma representação de valores sociais demo­


craticamente estabelecidos.JI
A formação democrática de valores e regras deve ser coletiva. “Co­
letiva” não significa necessariamente estatal. Pode referir—se a grupos
maiores ou menores de pessoas. lsso não significa que esse conheci­
mento seja teórico, não vindo da prática ou artificial. O Digesto ro­
mano, obrajurídica mais duradoura e influente da história da Humani­
dade, nada mais é que a compilação estruturada de casos práticos :“2
Essa definição da relação entre valores e conhecimento da socie­
dade é bastante cristalina no campo econômico. Como visto, a prote­
ção da concorrência leva à descoberta da verdadeira utilidade dos
produtos e das melhores opções para o consumidor. O valor “concor—
rência” influi, portanto, duplamente sobre a realidade — primeiro mo­
delando-a, e em seguida permitindo seu conhecimento.
Essa última frase cria uma aparente perplexidade. O normal pare­
ce ser o processo inverso — primeiro conhecer e depois modelar. Não
assim no direito concorrencial. A regra jurídica, aí, é eminentemente
instrumental. A afirmação da concorrência como valor fundamental
(modelagem) garante a liberdade de escolha e informação mais abun­
dante possível para o consumidor. Ele, então, sozinho, descobrirá a
solução mais adequada para suas necessidades.
Aplicada genericamente, essa afirmação da força cognitiva do
Direito implica uma transformação do próprio Direito. Transformação

3 l . Superados os determinismos marxista e neoclássico. sobra como explicação


necessária para a formação jurídica dos valores apenas o elemento histórico. Esse
elemento histórico não determina positivamente o Direito, mas o inlluencia drastica—
mente. Tem duas características importantes que o diferenciam de outras tentativas de
explicação da formação das normas jurídicas. Primeiro. prescinde de um legislador
estatal, dotado de princípios iluministas, como queriam os jusnaturalistas. Aproxima­
se mas não se identifica com a Escola Histórica da Pandectística alemã. Esta via no
Direito não um produto do legislador estatal. mas sim um pedaço de uma estrutura
mais ampla. como originária do inconsciente coletivo dos povos (aus dem kol/ekrive
Unbewusslseis der Võlker zu erblii/ten — V. F. Wieacker. Privalrec/ttgcsc/iic/zle der
Neuzeit, p. 358). Esse elemento indeterminado é exatamente a ação do indivíduo e,
sobretudo, dos grupos organizados na formação do Direito. É a formação do Direito
ª partir de iniciativas difusas, muitos mais aptas a identificar e coletar os valores so­
ciais que uma administração central.
32. É exatamente esse valor histórico individual (no sentido de não-estatal) que
pretende resgatar a Escola Histórica do Direito (v., nesse sentido, F. Wieaeker, Priva­
rrec/zrgesc/zic/zte der Neuzeir, pp. 348 e ss.).
40 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONOMICA

necessária, pois o Direito tem importante papel cognitivo. Um sistema


jurídico que pretende possibilitar a sociedade corrigir a si mesma pre­
cisa necessariamente permitir a essa sociedade conhecer a si própria.
Em um sistemajurídico assi-rn idealizado as regras jurídicas mu­
dam necessariamente de natureza. Não é mais possíVeILque prevale­
çam as regras mandamentais do antigo Estado Liberal. O ordenamen­
tojurídico passa a ser formado, precípuamente,de regras institucionais
e procedimentais. A mudança institucional é, então, obtida não por um
experimentalismo político vaiio'de valores-e de discussão política,
mas, sim, de um bem-estruturado e debatido Conjunto de valores e
regras institucionais.
As regras institucionais e procedimentais contém em si valores
democraticamente estabelecidos e debatidos. Por outro lado, não pre—
definem a solução mais conveniente. Ao mesmo tempo em que dão
estabilidade ao sistema e garantias ao cidadão, permitem o experi—
mentalismo social e institucional. O Direito assim concebido leva à
— e não decorre da — solução mais justa. E sistema a um tempo mais
seguro — pois tem instituições seguras — e mais flexível,já que permi—
te seu próprio aperfeiçoamento.
É exatamente isso que procura fazer a teoria jurídica do direito
concorrencial. Garantindo a instituição (concorrência) e seu efetivo
desenrolar através de regras comportamentais e estruturais (que são
procedimentais na medida exata em que não impõem um resultado,
efeito ou comportamento, mas apenas garantem que o relacionamento
entre os concorrentes se dê de forma leal e equânime, sem prevalência
de uns sobre os outros), essa teoria pretende assegurar a possibilidade
de os agentes econômicos coordenarem suas relações da forma mais
justa e eficiente.
A possibilidade de efetiva competição é, portanto, um valor fun—
damental da regulação. Na sua aplicação deve o Estado agir com
energia, garantindo a efetiva existência de concorrência.”

33. Essa posição concorrencial intervencionista. exatamente porque institucio­


nal e procedimental, pode ser considerada inclusive supra-ideológica. A experiência
histórica indica nesse sentido. Muito do consenso em torno do modelo de capitalismo
social alemão do imediato pós—guerra atribui-se ao consenso político-ideológico I'or—
mado em tomo das idéias ordoliberais sobre concorrência e sobre 0 intervencionismo
do Estado através do direito concorrencial. É na luta contra os monopólios que os
socialistas democráticos alemães identificam o elemento social do direito concorren­
cial (v., nesse sentido, 1. Gotthold, “Neuere Entwicklungen der Wettbewcbstheorie —
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 41

É importante ressaltar que a afirmação da importância da prote­


ção institucional da concorrência pela regulação não significa a des­
coberta de um valor único para a regulação, mas de um valor mínimo.
Como se verá nos capítulos subseq'úentes, há vários outros valores a
serem perseguidos através da regulação.
A preocupação com a concorrência em especial justifica-se. Tra­
ta-se de um valor mínimo naqueles setores em se considera possível
atribuir a agentes econômicos privados a iniciativa econômica. Míni­
mo porque é o único a permitir o conhecimento, a avaliação crítica — por
consumidores e concorrentes —, dos demais valores que deve a regu­
lação perseguir.

3.2.3 Regulação estrutural e/regulação neoclássica


Compreendido o sentido mínimo da regulação aqui propugnado
(ora denominada “regulação estrutural”), é fundamental distingui—la
da forma de regulação propugnada pelos neoclássicos.
Comojá visto, o cerne da teoria neoclássica em matéria de regu­
lação está em propor a desregulação e a auto-regulação do mercado
(v. supra, n. 1). Ora, isso é exatamente o oposto do que se propõe ao
propugnar por uma aplicação ativa dos princípios concorrenciais. Isso
é importante que se diga, pois com freqiiência os neoclássicos procu­
ram sustentar ser a sua também uma concepção pró-concorrencial.
São duas as críticas fundamentais ao pensamento neoclássico,
formuladas a partir de um raciocínio concorrencial coerente. A pri­
meira —.que não interessa analisar no momento — é referente aos pres­
supostos econômicos da definição de bem-estar do com-mnidor, que
são, segundo esses doutrinadores meramente teóricos, insuscetíveis
de ocorrer na realidade. A segunda, de interesse imediato, é relativa ao
próprio conceito de concorrência. Não é possível atribuir ao sistema

kritischc chcrkungcn zur ncovlibcralen Thcoric dcr Wcltbcwcrbspolilik". ZHR


l45/286, expresso: “Es war die historischc Leislung dcs Ordolibcrzilismus dcr 40cr
und SOcr .lahrc, wescntlich dazu beilragcn zu habcn. I'tir cinc kapitulistischc Wirls­
chal'tsordnung cincn brcitcn gescllschaltlichcn Konscns her/.uslcllcn. Angcsichts der
gcschichllichcn Erfahrungcn der Dcuschcn mit cincr kartellicrtcn und konzcnlricrtcn
Wirlschal'l konnle dcr Ordolibcmlismus ªdcn lradilioncllcn Anlikapilalismus in Deuts­
chland' nur deswegcn chrwindcn helfcn. wcil er— anders als dcr fruhcrc Liberalismus
— dem Staut dic Ausgabc zuschricb, private wirtschaftlichc Machtposilioncn zu vcrhin­
dcrn, zu bckãmpfcn. noll'alls zu zerschlagen und wcnigslcns zu Libcrwachcn").
42 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA _ _
econômico qualquer tipo de objetivo econômico predeterminado — co­
mo a eficiência, por exemplo. isso porque o sistema econômico não é
um sistema cujos efeitos,_ todos eles, podem ser previstos e aqueles de­
sejáveis selecionados, de modo aºorientar a feitura e apliçação da lei.
As bases para essa afirmação são diversas. A primeira delas vem,
sem dúvida, da primeira crítica mencionadaacima, ou seja, da hoje
largamente reconhecida (inclusive entre os próprios teóricos neoclás—
sicos) inaceitabilidade de muitos dos pressupostos do modelo de con­
corrência perfeita por eles idealizado. Pode-se dizer que hoje há consen­
so no meio econômico no sentido de que ao menos duas das premissas
básicas desse modelo - a homogeneidade dos produtos e a informação
completa dos agentes — são inexistentes e irrealizáveis.34 Ora, negadas
as premissas, porque inexistentes na realidade, o modelo passa a ter
utilidade apenas como critério de determinação de relações causais
em matéria econômica, mas não como forma de orientação de condu­
tas. Trata—se, portanto, de uma teoria com valor analítico, no máximo,
mas não preceptivo. O modelo neoclássico oferece, portanto, um con­
veniente exemplo dos riscos da fixação de objetivos legais com base
em dados puramente econômicos.
Porém, mais que baseada em uma crítica à teoria neoclássica, a
afirmação da imprevisibilidade dos efeitos do sistema econômico está
baseada em uma concepção fundamental . A grande vantagem da exis­
tência de concorrência está exatamente no fato de que a transmissão
da informação e a existência de liberdade de escolha permitem desc—(»
brir as melhores opções existentes.JS Ora, fundamental para a existên­

34. Os próprios teóricos da Escola de Chicago aceitam a incontestável crítica aos


pressupostos da teoria neoclássica (sobretudo homogeneidade de produtos e informa­
ção perfeita). Entre aqueles mais ortodoxos expande—sc o uso de artifícios verbais para
escapar dos críticos. R. Bork, por exemplo, ao analisar os sentidos da palavra "compe—
lição”. critica a utilização da noção neoclássica de situação em que o vendedor ou o
comprador individualmente considerado não pode inlluenciar o preço do produto
(concorrência perfeita), com base na irrealidadc de seus pressupostos. No entanto,
identifica sua noção preferida de concorrência em "any state of affairs in which con—
sumer welfare cannot be increased by moving to an alternative state of affairs" (The
Anlimu'r Paradox. p. 6 l). Ocorre que em seu modelo a situação ótima de bem—estar do
consumidor (ou seja. a situação em que seu bem—estar não pode ser acrescido) é defi­
nida a partir do modelo de concorrência perfeita. Assim sendo, sua definição é apenas
uma fórmula verbal que lhe permite escapar das fraquezas. por ele mesmo detectadas,
da tradicional fórmula neoclássica.
35. É essa a essência do Eurdeckungsverfahren de Hayek. que, obnubilado pela
sua militância antiestatal. deixou de notar que esse efeito só poder ser obtido pelo
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 43

ela de um processo de livre escolha e de descoberta das melhores op­


ções do mercado não é apenas a existência de um preço não-alterado
por condições artificiais de oferta e de demanda — que represente, por­
tanto, a utilidade marginal do produto (como querem os neoclássicos)
,, mas também que exista efetiva pluralidade real ou potencial de es­
colha entre produtos, com base em preço, qualidade, preferências re­
gionais etc. A possibilidade de escolha assume, portanto, um valor em
si mesma. Os velhos mitos existentes contra uma aplicação pronuncia­
da da concorrência como valor institucional parecem desaparecer.
A importância do valor institucional da concorrência também
pode ser vista de outra forma. O modelo neoclássico pressupõe que
seja possível conhecer a utilidade para cada consumidor de cada pro­
duto antes de o produto ser consumido. Assim, um produto é adquiri­
do porque ele tem utilidade, e não um produto tem utilidade porque
ele e' adquirido.
Segundo a teoria aqui defendida, essa última afirmação — e não a
primeira — é que é a correta. Parece bastante óbvio, e é exatamente
isso que significa a concorrência como um processo de descoberta:
quanto mais alternativas de produtos o consumidor puder examinar e
descartar, tanto mais sua escolha será plena de informações relativa­
mente à sua preferência.
Ora, se assim e', então, se não houver alternativa para escolha de
um produto, não é possível saber quanto a alternativa não-escolhida
traria de utilidade para o consumidor. E, mesmo que a alternativa exis­
ta, só é. possível saber o nível de utilidade para o consumidor após o
momento que essa alternativa é exercida.36
Essa premissa teórica e aceita pela própria nova economia insti­
tucional (que sequer representa uma ruptura total com a tradição neo­
clássica). A racionalidade limitada e o oportunismo nas condutas só

direito antitruste, c não pelo mercado, funcionando autonomamente (Individmilixm


and Economic Order. p. 106).
36. CF.. nesse sentido, F. Denozza, que, em face dessa constatação, conelui,des—
cortinando uma falha de fundo da tese neoclássica: "ln un'impostazione che pone al
centro i desideri del singolo indivíduo e l'utilità (0 i dollari) che il singolo guadagncrà
in conseguenza di certe decisioni, il valore delle cose non puô essere stabilito (: priori
(& ben noto che esistono imposlazioni diverse, Ie teorie c.d. oggetive del valore, come
Ia marxiana teoria del valore Iavoro, ma & altretanto noto che essi conducono verso
lidi assai Iontani da quelli predilctti della scuola di pensiero in esame)" (“Chicago,
l'cl'licienza e H diritto antitrust". Giumxprudunza Commercial l988 (11. I), p. 23).
44 REGULAÇÃO (_)A ATEYUDADE EÇONÓMlCA . . “

fazem a utilidade tornar-se mais incerta e mais dependente de uma


verificação empírica.37
Se é assim, então, o único—instrumento capaz de suprir essa carên­
cia de informação do consumidor é exatamente a concorrência. Só a
existência de pluralidade de escolhasé sensível à variação nos gostos
do consumidor e eStá disponível. a se modificar em função dessas mu­
danças. Só a concorrência é capaz? de suprir o enorme—vazio informa­
tivo proporcionado pelo mercado.
Não é difícil identificar em tal tipo de afirmação uma tentativa de
justificação processual da função da concorrência. Exatamente por se
tratar de garantia institucional de um processo de livre escolha, em
última análise de um processo de conhecimento dos melhores de mer­
cado, a concorrência ganhajustificação própria. No modelo institucio­
nal a concorrênciajustifica-se, então, pelos fins básicos a que se destina
(conhecimento econômico), e não por razões pré ou suprajurídicas.
Exatamente como o due process, garantia procedimental dajustiça, a
concorrência, garantia procedimental do conheci mento, no campo eco­
nômico ganha justificativa autônoma.
Conseq'úentemente, a concorrência. e não o mercado. e' o valor
institucional a ser protegido. A possibilidade de escolha tem um valor
social, que não pode ser negado, devendo ser necessariamente reco—
nhecido pelo Direito. O mercado, por outro lado, não necessariamen­
te leva a esse resultado. É aí que o Estado deve intervir, garantindo a
primeira, e não o segundo.
O raciocínio faz, então, círculo completo e retorna ao seu ponto
de partida. Visto dessa forma, como garantidor da concorrência e não
do mercado, o Direito reassume aquele papel redistributivo ou garan­
tidor da igualdade de condições nas relações econômicas, que sempre
lhe incumbiu.

37. Os representantes mais progressistas da escola do novo institucionalismo


eeonômieoja aceitam expressamente a dificuldade e até impossibilidade de estabele­
cimento de valores a partir de regras econômicas. admitindo que valores culturais e
morais têm influência grande o sulicientc sobre o comportamento econômico e as
instituições para impedir esse tipo de presunção. Essa tendência está presente com
particular ênfase na Escola Nórdica da nova economia institucional. Cl'. 'l'. Eggerts­
son, “The economics ol" control and the costs ol" property rights", in Rig/its to Nature
— Ecological. Economic, Cultura! and Political Principles of Institutions for the En­
vironment, p. I57 (l67).
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 45

É importante repetir que, com isso, não se está querendo substi­


tuir o pretenso cientificismo e universalismo das regras econômicas
por regras jurídico-estruturais com características semelhantes. O ra­
ciocínio concorrencial não é uma teoria geral, que impõe sua filosofia
a todo o sistema. Ele afronta um problema particular em uma situação
peculiar: garante escolhas individuais amplas e informadas em um
ambiente no qual se acredita que os objetivos não devem ser predefi­
nidos, mas devem revelar-se nas escolhas individuais dos particulares.
Naqueles ramos ou setores onde pareça oportuno o recurso a instru­
mentos diversos de escolha, ou onde existam objetivos considerados
irrenunciáveis, o direito antitruste nada tem a dizer.”
No campo da regulação do funcionamento dos mercados as regras
de concorrência desempenham exatamente as duas funções descritas
acima: facilitar a escolha individual e reconhecer o elemento valorati—
vo no processo de escolha. Em primeiro lugar, possibilitam a escolha
individual; e, em segundo, sendo regras eminentemente procedimen­
tais, permitem a descoberta das melhores opções econômicas através,
única e exclusivamente, de seu próprio exercício. Uma vez atribuída
importância a uma regra de procedimento econômico, permitem a par­
ticipação individual (do consumidor) no processo de escolha dos obje­
tivos econômicos. Finalmente, cumprem um terceiro e fundamental
objetivo: o de difundir o conhecimento econômico, necessariamente
redistributivo. A difusão de conhecimento é incompatível com a exis­
tência de poder econômico. A democracia cognitiva proporcionada
pela concorrência traduz-se também em maior isonomia econômica.
É importante notar que essa participação individual na definição
dos objetivos econômicos não significa uma relativização absoluta
desses objetivos econômicos. Ao contrário, para que a escolha indivi­
dual possa efetivamente ocorrer é necessário que a regulação garanta
a isonomia econômica. A difusão do conhecimento econômico e in­
compatível com a existência de poder econômico. Daí por que a pers­
pectiva institucional da regulação (e da concorrência) impõe a aplica­
ção de um princípio redistributivo.
É preciso entender a existência de alternativas e a liberdade de
escolha como valores em si , inadmitindo o poder econômico e exigin­
do que ganhos de escala sejam repartidos com o consumidor (admitin­

38. Cl". F. Dcnozza, "Chicago. l'el'l'icicnza e H diritto anlilrust". Giuruxpmdwiza


Commercial l988 (n. 1). p. 34.
46 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMIÇA . . »,
do-se, portanto, a eficiência só no sentido distributivo, e não alocativo),
ao mesmo tempo em que não se permite que o processo de interação
econômica leve à exclusão social (exigindo-se, portanto, que compro­
missos de desempenho inclúam regras estritas de garantiade emprego,
isto e, cumprindo com rigor o disposto no art. 58, 5 lª, da lei concor­
rencial).
Assim entendida, a concepção estrutural ,da regulação "leva não só
à preservação da escolha e liberdade econômica individual , mas tam­
bém, como se verá, ao cumprimento da função sºcial da empresa (cf.,
infra, Capítulo lll, n. 2).
É fácil ver que uma tal concepção da regulação vai bem além de
uma mera aplicação de princípios concorrenciais aos setores regulados.
Reconhecer a necessidade de difusão do conhecimento econômico exi­
ge, de um lado, uma intervenção estrutural sobre centros de poder eco—
nômico que vai muito além do direito antitruste. Exige, em alguns ca­
sos, intervenção interna às organizações, diluindo situação de poder.
Pressupõe também processo de inclusão econômica por via regulatória.
Em suma, para que a aquisição de conhecimento econômico se torne
acessível a todos, uma visão estruturalista do processo econômico é
fundamental. É preciso que o Direito e, em especial, a regulação eco­
nômica caminhem além de uma perspectiva meramente compensatória
de sua própria função Não basta— e é, de resto, muito ineficaz— apenas
compensar efeitos econômicos e sociais negativos de desvios que cons—
tantemente se produzem. É preciso influir diretamente sobre as estrutu—
ras que produzem esses desvios, através da diluição do poder econômi­
co dos particulares. Trata-se de requisito mínimo para assegurar a
governabilidade do sistema econômico.
Isso faz da elaboração regulatória uma verdadeira pol í tica pública a
ser levada adiante pelo profissional do Direito, que deve, então, reassu—
mir seu papel de formulador de políticas públicas para o desenvolvi­
mento. Como já visto, a indução do desenvolvimento é fundamental
para economias estruturalmente subdesenvolvidas; e indução só é pos­
sível com combate às condições estruturais da economia que favorecem
a concentração do poder e, portanto, a ingovernabilidade econômica.

3.2.4 Regulação e desenvolvimento econômico


Em particular tratando-se de teoria do desenvolvimento, a neces­
sidade e a premência da contribuição jurídica são bastante evidentes.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 47

O embate entre deterministas da teoria do subdesenvolvimento,


decisionistas da teoria da dependência e institucionalistas, a propugnar
em pólos opostos e com metodologias opostas os mesmos objetivos
(desenvolvimento), põe a nu as respectivas insuficiência e necessidade
de sua complementação por um modelojurídico de desenvolvimento.
Só a introdução de valores pode minar o pessimismo determinista,
iluminar o total relativismo dos decisionistas e eliminar a crença nos
resultados econômicos dos institucionalistas. Por outro lado, qualquer
teoriajurídica desenvolvimentista que se preze não pode desconsiderar
esses importantíssimos movimentos e estudos sobre subdesenvolvi­
mento, dependência e instituições. Tem, ao contrário, muito a haver
desses em matéria de método e análise da realidade. Há aí, portanto,
uma relação duplamente virtuosa entre análise econômica ejurídica.
Pois bem. Da análise histórico-estrutural da economia brasileira,
algumas conclusões podem ser retiradas. Duas delas merecem desta—
que, pela sua importância para a análisejurídica que se fará a seguir.
Em primeiro lugar, sério obstáculo ao desenvolvimento nesses países
é o alto grau de concentração de poder econômico. Isso faz com que
os fluxos de capital permaneçam fechados dentro de determinado se­
tor econômico, não se espalhando pela economia, não gerando o efeito
multiplicador de consumo e não permitindo o desenvolvimento. A se—
gunda observação, tão útil quanto a primeira, é que o elemento dinâ­
mico das nações subdesenvolvidas em geral, e do Brasil em particular,
está na demanda, e não em inovações no processo produtivo. Ao con—
trário dos países desenvolvidos, que calcaram seu progresso em uma
demanda (internacional) ilimitada e para os quais, portanto, o que im­
portava eram as inovações de oferta, os países subdesenvolvidos de
hoje se vêem diante de um sistema internacional de trocas desiguais.
Conseq'úentemente, só o desenvolvimento da demanda pode im­
pulsionar o progresso econômico desses países. Ocorre que o desen—
volvimento da demanda é tarefa de instituições jurídicas, e não de
dogmas econômicos. O esgotamento do processo econômico de subs­
tituição de importações, que nada mais é que uma tentativa econômica
de dar impulso à demanda,39 deve—se também à falta de estruturas jurí­
dicas para sustenta-la.

39. A importância da demanda interna como moto propulsor do desenvolvimen­


to 6 um dos elementos descnvolvimentistas centrais na visão de C. Furtado ("Desen­
volvimento e subdesenvolvimcnto“, in Cinqiienra Anos de Pensamento na CEPAL.
vol. ll, p. 260).
48 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA
Essa conclusão nada mais faz que confirmar o que foi dito há
pouco a respeito do conhecimento econômico. Em uma sociedade
acostumada a ter suas preferências» ou gostos definidos pela metrópole
não existem formas naturais de pesquisa das preferências _eçonômicas.
Só o desenvolvimento da demanda interna permite, então, desenvol­
ver esse processo de conhecimento, incluindo e chamando larga legião
de pessoas a participar da eScolha social. _._
.lá a conclusão da teoria da dependência dá—se, por assim dizer,
por antonomásia. A bela demonstração da ligação'entre "as forças pol i'—
ticos da “periferia” e os interesses dos países hegemônicos se esvanece
ao cair a teoria — comojá dito — num decisionismo político total. O re—
lativismo moral e ético-econômico das decisões com base nele toma—
das tem consequencias funestas para a ordem econômica. Os dados
analíticos da teoria são extremamente úteis para a construçãojurídica.
Particularmente a idéia do desenvolvimento dependente associado,
aplicada em países caracterizados por enorme concentração de poder
econômico, leva a uma enorme capacidade de influência desse poder
nas decisões sobre os rumos regulatórios. O decisionismo político as­
sociado ao poder econômico cria um enorme risco de captura das ins—
tâncias políticas e regulatórias pelo poder econômico. E necessária,
então, a clara definição de um substrato valorativo social capaz de li­
mitar esse risco.
Enfim, da teoria institucional é possível retirar lição importante.
Regras de convivência — formal ou informalmente impostas — têm for­
te relevância para o processo de desenvolvimento. Elas devem ser
também estudadas & essa luz. Novamente aqui é preciso repetir, isso
não significa que a construção institucional deva ser feita em torno de
um resultado econômico pré-determinado a ser obtido através dessas
instituições. Ao contrário, a busca do conhecimento econômico será o
objetivo central.

a ) A concepção jurídica do desenvolvimento:


fundamentos e princípios básicos
As teorias desenvolvimentistas, com sua análise diferenciada da
realidade, requerem uma construção jurídica também adaptada à rea—
lidade específica do subdesenvolvimento.
Essa realidade específica exige a difusão forçada do conhecimen­
to econômico. A razão está na própria análise econômica do subdesen­
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS 49

volvimento, há pouco procedida. A existência de centros propulsores


de desenvolvimento baseados na demanda (consumidores) não é com­
patível com concentração do conhecimento econômico.
Entenda-se, assim, que, particularmente nessas economias, de­
senvolvimento econômico só pode ser obtido pela difusão do conheci­
mento econômico. A formação do conhecimento econômico já é natu­
ralmente difusa na sociedade. Conseq'úentemente, é a concentração
excessiva do conhecimento que leva a graves ineficiências alocativas.
É essa razão, e não a tão propalada ausência de eficiências típicas de
mercado, a responsável pelo relativo sucesso das experiências de eco­
nomia centralizada.
Confrontada essa constatação com a existência de absoluta con­
centração de poderes estrutural em tais economias, o segredo para o
desenvolvimento está exatamente em descobrir um método para eli­
minar essas imperfeições estruturais através da difusão do conheci­
mento econômico. Sendo essas imperfeições estruturais decorrentes
exatamente da inexistência de processo de formação de conhecimento
econômico e de escolha social próprias, o principal objetivo de uma
teoria jurídica desenvolvimentista deve ser exatamente este.
É preciso revisitar o Estado Moderno, para esmiuçar mais a fundo
o que significa, sob esse novo enfoque, e qual a profundidade de seu
papel regulatório em economias subdesenvolvidas. Nelas não parece
haver dúvida sobre a necessidade de propulsão do Estado do processo
de desenvolvimento. Não se trata, no entanto, da propulsão anticíclica
do tipo keynesiano. É necessária uma propulsão apta a resolver ou mi­
nimizar os problemas estruturais dessas economias e, ao mesmo tem­
po, apta a difundir o conhecimento econômico. Será preciso, então, re—
pensar o modelojurídico de propulsão econômica estatal.
Dessas considerações emergem duas preocupações — uma de for­
ma, outra de fundo. A preocupação de fundo estimula a indagar dos
princípios que devem reger o esforço desenvolvimentista (na maneira
supradefinida). Seguindo a concepção aqui defendida, estes são, basi­
camente, três.
O primeiro princípio é, sem dúvida, o redistributivo. O resultado
mais saliente e incontestável da análise histórico— estrutural é a convrc—
ção de que, nos países subdesenvolvidos, alterações de demanda, e
não alterações no processo produtivo, são os grandes elementos pro—
pulsores do crescimento. Conseqúentemente, não hájustificativa para
50 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONOMICA

centrar & filosofia regulatória em torno da eficiência. Ela deve necessa­


riamente ser direcionada precipuamente à redistribuição, única forma
de expandir, de modo estruturado e linear, o consumo pela sociedade.
Ao fazê-lo, elimina também as ineficiências alocativas da concentração
do conhecimento econômico, na medida em que expande a base de
coleta de dados sobre preferências individuais.
É óbvio — e quase que dispensa menção— ofatode que, muito
mais que instrumento para o desenvolvimento, a idéia de redistribui—
ção integra o próprio conceito de desenvolvimento.40 É fi losoficamen­
te impensável e historicamente errôneo imaginar que é possí vel disso­
ciar desenvolvimento econômico e distribuição de seus frutos.
O mesmo deve ser dito em relação ao segundo princípio. Trata—se
da diluição dos centros de poder econômico e político e da conseq'úente
difusão de informações e conhecimento por toda a sociedade. Reco—
nhecida como grande foco de dependência — para os dependentistas
em função da ligação dos centros políticos de poder da periferia ao
poder dos países centrais“ e para os estruturalistas em função da ten­
dência estrutural à manutenção e concentração da riqueza nos setores
ligados ao poder econômico, sem difusão pela economia e sem produ­
ção de efeito multiplicador42 —, a definição dos centros de poder assu­
me valor central em qualquer política desenvolvimentista.
Da outra parte, a difusão do conhecimento econômico é reconhe­
cidamente forma mais adaptável à crítica e redirecionamento constan­
te do processo desenvolvimentista no interesse específ i co de cada eco­
nomia. A descoberta econômica e social proporcionada pela difusão

, ' 'ªw—
do conhecimento só é possível caso se obtenha efetiva diluição dos
centros de poder. É, portanto, outro dos objetivos centrais da constru—
çãojurídica desenvolvimentista.
Finalmente, o terceiro princípio é o estímulo à cooperação. Não
parece haver duvrda de que, para que a esfera economica possa se
autocontrolar, com certo grau de independência da esfera pol ítica, são

40. É generalizada a adoção. hoje em dia. em estudos econômicos e até estatís­


ticos, da distribuição de renda como critério para aferição do desenvolvimento (v. M.
Wolfe. “Abordagens do desenvolvimento: de quem e para quê?". in Cinqiienra Anos
de Pensamento na CEPAL, vol. ll. pp. 715 e ss.).
4l. F. H. Cardoso e E. Falelto. “Dependência (: desenvolvimento na América
Latina". in Cinqiienra Anos de Pensamento na CEPAL. vol. II, pp. Sl ! e ss.
42. Cf., nesse sentido C. Furtado, Formação Econômica do Brm'il. pp. 78 e ss.
e l5l e ss.
TEORIA DA REGULAÇÃO: RAÍZES E FUNDAMENTOS Sl

necessárias a introdução de princípios cooperativos na esfera econô­


mica e a eliminação do individualismo exacerbado. Além disso, estru—
turas cooperativas também têm um efeito positivo sobre o processo de
difusão de conhecimento, na medida em que — como se verá — permi­
tem comparações interpessoais de utilidade diretas.

[) ) Princípios desenvolvimentistas na Constituição


Problemajá bastante antigo em matéria de princípios da ordem
econômica está na aparente anodinia do texto constitucional , que, refe­
rindo-se a princípios por vezes absolutamente díspares (livre iniciativa
e justiça social), parece dar bem pouca orientação concreta à atuação
dos agentes na ordem econômica.
A idéia de orientar o processo econômico no sentido do conheci­
mento das melhores opções econômicas pode auxiliar um pouco na
resolução desse impasse. Sob a ótica da teoriajurídica do conheci men­
to econômico, todos os princípios do art. 170 da CF representam op­
ções econômicas básicas oferecidas a sociedade, entre as quais deve
haver a escolha. A doutrina mais abalizada, com razão, afirma que a
definição por uma ou por outra se dá na interpretação e aplicação con­
creta dos princípios, verdadeira revelação de seu conteúdo, onde de­
vem ser levados em conta aspectos históricos, a considerar as necessi­
dades sociais do país.43 Ora, isso corresponde nada mais nada menos
que ao processo de conhecimento dos valores sociais, realizado pelo
aplicador do Direito.
Ocorre que -— e, nesse ponto, a presente visão do processo de de­
senvolvimento econômico tem muito a contribuir — o aplicador não é
representante legítimo da sociedade para todas as opções econômicas,
sociais e individuais. De um lado, não há eleição para a escolha dos
aplicadores e, de outro, as escolhas econômicas realmente efetivas são
aquelas realizadas por todos, sem intermediários.
Torna-se fundamental , então, que o processo de decisão econômi­
ca se expanda pela sociedade. É preciso permitir e incentivar a difusão
do conhecimento econômico. Ora, se assim é, então, destaque devem
ter os princípios constitucionais que permitam essa difusão. Esses prin­
cípios serão instrumentais à escolha de quaisquer outros dos princí­

43. Cl". E. Grau. A Ordem Econômica na Constituição de l988. São Paulo, Ed.
RT, l99l, pp. l70 e ss.
sz REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

pios do mesmo art. 170, escolha que poderá ser feita desde que haja
democracia econômica garantida por esses princípios.
Identificar esses princípios não é fácil, pois muitos podem ter — e
têm —- influência indireta nessa difusão de conhecimento,. Em forma de
tentativa. pode-se ati rmar que aqueles ligados diretamente à consecu­
ção desse objetivo instrumental sãota redistribuição (art. 170, VII), a
diluição dos centros de poder econômico (concorrência e defesa do
consumidor — art. 170, IV e V) e a cooperação (art. 114, 5 29). Todos
eles, de diversos pontos de vista, incluindo cidadãos na escolha econô—
mica, impedindo que uns possam unilateralmente determinar a esco—
lha econômica de outrem ou permitindo o exercício de uma outra or­
ganização social não naturalmente conseguida pelas interações sociais,
contribuem para que a escolha econômica se difunda — e, portanto,
para que o processo de concretização dos princípios do art. 170 se
torne viável para toda a sociedade. Aí está a razão concreta para a
concentração das atenções nesses três princípios. E o que se fará abai­
xo, no Capítulo 111, dedicado aos princípios.
Capítulo II
_ TEORIA DA REGULAÇÃO:
CLASSIFICACAO DOS SETORES REGULADOS

] . Regulação de mercados dominados. 2. Regulação de mercados de


acesso e permanência controlados.

Uma vez afirmados necessidade e objetivo mínimo da regulação,


é preciso indagar quais suas formas de realização. Para isso é necessá—
rio identificar, primeiramente, os problemas que a regulação deve se
propor a resolver em cada setor econômico.
Como visto acima, é tarefa mínima da regulação garantir, de for—
ma ativa, condições básicas de concorrência. Essa necessidade pode
se fazer sentir de forma premente em duas situações diversas. Em pri­
meiro lugar quando existem condições estruturais que impedem o es­
tabelecimento da concorrência. Em segundo, quando as mesmas con—
dições estruturais não impedem que se crie a concorrência, mas fazem
com que esta se torne instável. No primeiro caso trata-se da chamada
regulação de posições dominantes; e no segundo, a regulação daquilo
que aqui se convenciona chamar de regulação de mercados instáveis.
Essa lista, evidentemente, não esgota as hipóteses regulatórias.
Existem inúmeras outras, motivadas por razões específicas de interes­
se público. A todas elas não se pode dar coerente tratamento sistemá—
tico. Limita—se, então, a presente análise àquelas que têm em raciocí­
nios e princípios concorrenciais um de seus fundamentos básicos (e
mínimos) de existência.
“»?

I . Regulação de mercados dominados


A primeira delas é a chamada regulação dos mercados (la/nina—
dos. Para bem compreende-la é preciso, de início, identificar como ela
se diferencia da explicação econômica tradicional para a regulação.
54 REGULAÇÃO DAVAIlYlpADE ECQNÓMICA _ ___
Na teoria econômica da regulação a existência dos chamados mo­
nopólios naturais é eleita comojustificativa central para a regulação. '
Uma explicação dessa natureza é insustentável, pelas razões que
invoca e pelos elementos que a compõem. ­
As razões utilizadas desviam o foco principal da questão. A regu­
lação não visa a eliminar falhas do mercado, mas, sim, a estabelecer
uma pluralidade de escolhas e um amplo acesso ao conhecimento eco­
nômico, quejamais existirá em um mercado livre.
Também o conteúdo é insuficiente. A descrição de natureza eco­
nômica que se dá aos monopólios naturais não é apta a identificar as
situações que tornam imprescindível a intervenção regulatória. A mera
existência de custos irrecuperáveis não garante, por si só, a autoprote­
ção de que o monopólio necessita para que sua ação não possa ser
atingida pela tradicional ação antitruste.2 Os custos irrecuperáveis re­
querem especial atenção com o problema da existência de barreiras a
entrada naquele setor em que haja qualquer concentração econômica.
Requerem, também, cuidado com as condutas anticoncorrenciais. Não
impõem, no entanto, uma intervenção regulatória.
Não assim quando existem condições estruturais que tornam a
posição de determinados agentes econômicos infensa a qualquer ero­
são. Nessa hipótese não se pode confiar na tradicional ineficiência ou
“preguiça tecnológica” dos monopólios, que permitem, em setores de
alta tecnologia, que novos e ágeis agentes econômicos estejam dispos­
tos e possam efetivamente ameaçar a posição dominante do monopo­
lista. A condição estrutural básica para que essa autoproteção ocorra é
a existência de uma rede natural ou artificial, física ou virtual, de du­
plicação inviável. A duplicação é inviável não apenas e não precípua­
mente pelos altos custos nela envolvidos. Ocorre que, além dos altos
custos, as redes criam os chamados “retornos crescentes de escala",

l. O'. G. Stigler, “The theory of economic regulation”. The Bell Journal of


Economic; and Management Science 2/3; e R. Posner. “'l'hcorics ol' economic regula­
tion". The Bell Journal of Economics and Management Science 57335.
2. Como uma outrajustil'icativa para o tratamento diferenciado dos monopólios,
argumenta-se que os monopólios naturais definem-se exatamente como setores em
que a competição pode ser ruinosa ou autodestrutiva (cl'. R. Ely, Our/ines of Econo­
mics, 1937). Aponta—sc, além disso, a cxislência de custos irrecuperáveis à entrada de
competidores no mercado (v.: W. Sahrkey, The Theory of Natural Monopoly. I982; .l .
Panzar, "Regulation. dercgulation and economic efficiency: the case of the CAB". in
G. Burgess Jr., Antilmsr and Regulation. 1992).
TEORIA DA REGULAÇÃO: CLASSlFlCAÇÃO DOS SETORES REGULADOS 55

isto é, quanto mais consumidores fazem parte da rede, mais útil é ela
para o próximo consumidor? Dessa forma, não há qualquer estímulo,
seja do ponto de vista do custo ou da utilidade, para o consumidor es—
colher a rede concorrente. A sua construção é, então, inconveniente.
Se assim é, então as redes já construídas passam a desempenhar um
papel fundamental. Só nelas poderá se desenvolver qualquer tipo de
concorrência e só através delas o consumidor poderá ser atendido.
Essas redes são o elemento básico para a dominação dos mercados por
parte dos agentes econômicos que as detêm.

3. Esse fenômeno ocorre por excelência nos chamados serviços de rede, em que
todos os consumidores vão se integrando a uma rede única. cada vez mais completa
e mais útil para cada um. Exemplo extremo é o do sistema de telefonia. que, na prá­
tica, só tem utilidade se todos os usuários estiverem interligados à mesma rede. É
importante observar, no entanto. que desenvolvimentos tecnológicos recentes têm
tornado possível para certos serviços a criação de redes sem l'io e. conseqttentemcnte,
a duplicação de redes. É o caso do sistema WiMax. Nessas hipóteses especiais, cuida­
dos regulatórios são necessários para que não haja concentração cruzada entre redes
(v.. a respeito, inl'ra, item 2.3 do Capítulo IV).
Exatamente por esse seu fator congregador e polencializador de utilidade. tem
duas externalidades (efeitos involuntários). A primeira consistente no fato de que,
quanto mais consumidores se agregam à rede, mais útil ela se torna para cada um
deles. Basta, para isso. imaginar a Internet e o crescimento do número de seus usuá­
rios. A segunda é uma externalidade indireta. Em face da existência de mais consu­
midores, mais serviços se agregam à rede, tornado-a cada vez mais útil. É novamen­
te o caso da Internet, que tem cada vez mais provedores de novos serviços e
informação. A explicação teórica das externalidades direta e indireta e sua aplicação
a teoria dos monopólios naturais encontra—se em M. Katz e C. Shapiro. "Systems
competition and network effects", Journal of Economic Perspectives 8/93. O princi­
pal problema no caso dos retornos crescentes de escala ocorre caso a rede, que é o
centro e fulcro dos retornos crescentes de escala e das externalidade positivas, não
seja de acesso disponível a todos, pois, provavelmente, o concorrente que vai preva­
lecer é aquele que chegar primeiro ou tiver, antes de qualquer outro, forma de conse­
guir uma vantagem competitiva para seu sistema ou produto. Essa é a teoria do cami­
nho critico (critical pat/1), elaborada originariamente em l989 por Brian Arthur
(“Competing technologies, increasing returns and lock ins by historical events", Eco­
nomic Journal 99/ l l6). Certos economistas de renome. ligados à lªlseola de Chicago,
sustentam ainda hoje que. exatamente por se bascarem em eventos naturais, em casos
de monopólios naturais não deveria haver interferência. Sua subsistência serviria ao
bem-estar do consumidor. Essa tese é sustentada pelo Prêmio Nobel de Economia
Kenneth Arrow em sua declaração de l7.l .l995 a favor do compromisso de desem­
penho então firmado com a Microsoft Corporation e que estava sendo criticando pelos
concorrentes (v., a respeito, .l. Lopatka e W. Page, “Microsoft. monopoliyation and
network externalities: some uses and abuses ol' economic theory in antitrust decision
making". The Autitrust Bulletin 40/333).
56 REGULAÇÃO DA ATlVlDADlE ECQNÓMICA _ _ _,

É importante utilizar o termo “dominação” exatamente para dife­


renciá— lo de monopólio. É possível que existam até mesmo vários con­
correntes no mercado, _que, no entanto, dependam, para concorrer, da
utilização da referida rede. O conceito de dominação tem por base a
idéia mais ampla e jurídica de dependência,“ enquanto 0 Conceito eco­
nômico de monopólio faz uso do estrito conceito de poder no merca­
do, definido em termos neoclássicos. -_..
Pode-se afirmar, portanto, que o objetivo básico da regulação nes—
sa hipótese é a criação de um ambiente concorrencial em uma situação
econômica na qual este não existe e estão presentes fortes empecilhos
ao seu estabelecimento. Essa definição influenciará toda a construção
de princípios da regulação a ser desenvolvida e ajudará a demonstrar
a necessidade de diferenciação clara entre função e conteúdo das re­
gras concorrenciais e de regulação.
Definidos a utilidade e o objetivo básico da regulação nessa hipó­
tese, há que se indagar qual ajustificativa constitucional de sua aplica­

4. A dependência caracteriza—se pela inexistência de alternativas razoáveis e suli­


eientes para o agente econômico ou consumidor sujeito à negociação. Portanto, ao con­
trário do poder no mercado neoclássico, não é um conceito absoluto. Também, ao in­
verso do poder econômico, que abrange necessariamente todos os agentes econômicos
e/ou consumidores que atuam naquele determinado mercado como eontmponto nego­
cial do monopolista (compradores se este for vendedor, e vice-versa), a dependência
pode referir—se a um só agente econômico que, em função de sua relação espeeíliea com
outro, dele se tornou dependente. Essa definição não torna e nem poderia tornar o con­
ceito de dependência subjetivo. A inexistência de alternativas não e' determinada a partir
das preferências subjetivas de um determinado agente econômico. mas baseada em rica
casuística que permite a determinação empírica da inexistência objetiva de alternativas.
Assim é que se pode dividir as hipóteses de dependência em absolutas e relativas. clas­
silicando entre as primeiras aquelas em que há vinculação de todos os agentes econô­
micos em tun determinado mercado, e entre as últimas as hipóteses de vinculação espe­
eílica. Entre as hipóteses de dependência absoluta classifica-se aquela oriunda do poder
econômico nos mercados. Entre as hipóteses de dependência relativa deslaca—se a de­
pcndência empresarial. A expressão “dependência empresarial" serve para designar
aquelas relações contratuais — de direito ou de fato — de longa duração, que criam vín­
culos econômicos duradouros entre as partes. Daia razão de a denominarmos dependên­
cia cmpresarial. A continuidade da relação e sua habitualidade dão a ela um evidente
caráter empresarial. incompatível com a disciplina estática dos negócios jurídicos. Hi­
pótese clássica de dependência empresarial é a do contrato de fornecimento de longo
prazo, em que o fornecedor adapta suas instalações industriais em função de necessida—
de espceil'tcas do comprador. Dessa definição decorre naturalmente que a aplicação do
conceito de dependência empresarial não é absolutamente possível em relação a novos
entmntes no mercado (cl'. K. Marken, in lmmenga/Mestmaeker, GWB Kommentar,
Miinchen. Beck, l992, sub & 26.Abs. 2. Rdn. l27. p. l.269).
TEORIA DA REGULAÇÃO: CLASSIFICAÇÃO DOS SETORES REGULADOS 57

ção. No caso da regulação das posições dominantes ajustificativa está,


obviamente. no regime constitucional dos serviços públicos. Como já
visto, idealmente só devem passar para a esfera particular aqueles ser—
viços sem externalidades sociais, que podem ser controlados pelo
mercado. Uma vez transferidos para a iniciativa privada, não é útil
nem eficaz — também pelas razões já expostas — aplicar-lhes um regi—
me de direito público. E preciso, então, transmudar o regime de servi­
ço público dos setores monopolizados para um regime de regulação
institucional das atividades em que há posições dominantes.
Ocorre que esses serviços continuam a ser constitucionalmente
denominados de serviços públicos,s ainda que sua disciplina tenda,
uma vez privatizados, a uma progressiva regulação.

5. As diversas alterações realizadas por emendas constitucionais possibilitaram


a inserção das empresas prestadoras de serviço público no Programa Nacional de
Desestatização. como atesta o art. 2". lll . da Lei 9.49l/l997. que revogou a Lei 8.03 !!
1990. Pode-se falar, em síntese, de duas principais alterações: a possibilidade de
concessão de serviços públicos a particulares e a inclusão das empresas estatais no rol
das empresas privatizáveis. Literalmente: “Poderão ser objeto de desestatização, nos
termos da lei: (...) serviços públicos objeto de concessão, permissão ou autorização".
Note-se. portanto. que a lei não aboliu os serviços públicos, mas os inseriu no proces­
so de desestatização, e continua a considera-los enquanto lais mesmo quando presta­
dos por empresas privadas. Todas essas alterações tiveram por fim possibilitar a
concessão de serviços públicos a particulares, a fim de viabilizar a privatização das
estatais brasileiras. Essa legislação foi complementada pela Lei 8.987/l995. que re­
gulamentou o art. 175 da CF. permitindo que tanto a concessão quanto a permissão
sejam dirigidas a pessoas jurídicas ou consórcios de empresas, tanto públicas quanto
privadas (a lei não faz qualquer tipo de restrição). Feitas essas alterações. promulgou­
se a Lei 9.074, de 7.7.l995. que determinou quais os serviços de competência de
União que se sujeitarão a concessão ou permissão (que tiveram previsão cspccílica.
por não serem serviços públicos. mas atividades econômicas) e regulou, também. a
concessão dos serviços de energia elétrica. A previsão genérica para os serviços de
energia elétrica da Lei 9.074 foi complementadas pela Lei 9.427, de 26.l2.l996. que
instituiu a Agência reguladora do setor e regulou as concessões. O serviço permanece
como serviço público. como atesta 0 art. 3" , IV, da última lei. que reza: “Além das
incumbências prescritas nos arts. 29 e 30 da Lei n. 8.987. de l3 de fevereiro de I995,
aplicáveis aos serviços de energia elétrica. compete especialmente à ANEEL: (...) lV
— celebrar e gerir os contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos de
energia elétrica. de concessão de uso de bem público, expedir as autorizações. bem
como fiscalizar, diretamente ou mediante convênios com órgãos estaduais. as conces—
sões e a prestação dos serviços de energia elétrica" (grifamos). Com relação às tele­
comunicações a regulação veio com a Lei 9.472/l997. uma vez aberta a concessão do
serviço público aos particulares com a Emenda Constitucional 8/l995. O dispositivo
de lei nesse segundo caso é mais cuidadoso, e fala em “serviço em regime público".
53 REG ULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

Sob essa ótica, o art. l75 da CF pode ser reinterpretado para abri—
gar os novos princípios regulamentares entre as atividades sujeitas a
concessão. Aqui, portanto, análises de lege lata e de lege fere/ida
unem-se para compor o'quadro regulamentar. O art. l7.5_ da CF deve
ser interpretado no sentido de permitir uma intervenção regulamentar
muito mais abrangente nos contratos,— em prol da introdução efetiva da
concorrência e do amplo acesso aos serviços. É possível.re—gul ar dire—
tamente os contratõs de concessão e fiscalizar seu cumprimento, as
relações entre concorrentes e consumidores, mesmo que-isso implique
forte dirigismo contratual (profundo a ponto de impor determinado
tipo de contratação) .“

2. Regulação de mercados de acesso


e permanência controlados
Em ausências das referidas condições estruturais que causam a
dependência de uma rede e, conseqiientemente, a dominação de mer­
cado, pergunta—se: há outros setores onde há necessidade de preocupa­
ção eom uma regulação que garanta difusão do conhecimento econô­
mico, isto é, regulação que inclua também princípios concorrenciais?
A resposta é afirmativa. Esses setores existem. São aqueles seto­
res em que, por diversas razões de ordem pública, a entrada e a per­
manência são controladas. O Estado, para garantir a segurança e a
integridade física e econômica dos indivíduos e da nação, estabelece

e não em “serviço público”. Literalmente, reza o art. 18: “Cabe ao Poder Executivo,
observadas as disposições desta Lei. por meio de decreto: l — instituir ou eliminar a
prestação de modalidade de serviço no regime público, concomilanlcmcnte ou não
com sua prestação no regime privado; ll — aprovar o plano geral de outorgas de ser­
viço prestado no regime público; lll — aprovar o plano geral de metas para a progres­
siva universalização de serviço prestado no regime público; lV — autorizar a partici­
pação de empresa brasileira em organizações ou consórcios intcrgovernamcntais
destinados ao provimento de meios ou à prestação de serviços de telecomunicações".
lmpreeisão técnica ou não, haja vista a dificuldade de caracterizar tais serviços como
serviços públicos após as referidas alterações, o fato é que permanece, ainda que
bastante alterado, o regime de serviços públicos.
6. A Lei 8.987, de 13.2.1995, regulamentando o art. l75 da CF. dispõe. em seu
art. 23, que serão cláusulas essenciais do contrato de concessão, dentre outras. aque—
las relalivas ao modo. forma e condições de prestação do serviço (inciso ll), aos cri­
térios. indicadores, fórmulas e parâmetros definidores da qualidade de serviço e ao
preço do serviço. Cf., a respeito, infra, Capítulo lll. n. I.2.2. “b".
TEORIA DA REGULAÇÃO: CLASSIFICAÇÃO DOS SETORES REGULADOS 59

condições de entrada e permanência no mercado. Não raro, dita regras


de comportamento. Portanto, a referência, aqui, a mercados controla­
dos diz respeito ao controle de acesso e permanência neles exercido.
Essa regulamentação visa a garantir a higidez e a segurança do
mercado. Esse é o fundamento das regras de controle. O problema é
que, para chegar a essa garantia de segurança, cria normalmente, por
si só, condições propícias à formação de posições dominantes. Limi—
tado 0 acesso, protegido estará o setor da concorrência externa. Por
outro lado, as condições de permanência, voltadas à garantia da pou—
pança ou segurança dos cidadãos, levam a regulamentação a privile­
giar as empresas sólidas e de grande dimensão.
É preciso, então, desenvolver regras ou interpretações de regras
que permitam evitar que esse tipo de aparato regulatório leve a total
dominação dos mercados por alguns agentes econômicos e ao abuso
dos consumidores.
Aqui, portanto, a regulação serve não para criar a concorrência,
mas para impedir que esta desapareça em um ambiente que cria condi—
ções propícias para tanto. Como se verá, os princípios concorrenciais
acabam sendo semelhantes aos princípios aplicáveis a regulação de si—
tuações dominantes, exatamente pela necessidade comum de transfor—
mar e adaptar o direito antitruste a situações de muito maior risco
concorrencial.
Desse modo, a disciplina regulatória nesses setores enfrenta um
problema bastante sério, que consiste exatamente na dificuldade de
conciliar os dois objetivos: higidez e concorrência. Essa conciliação é
possível desde que se entenda que, na verdade, para proteger os con­
sumidores e a própria higidez do mercado não é possível abrir mão da
garantia da existência de concorrência. Existente uma pluralidade de
agentes, e não um mercado monopolizado ou oligopolizado, nenhuma
quebra poderá pôr em risco o sistema. Da mesma forma, a concorrên­
cia predatória, ainda que temida e combatida, também não será uma
ameaça iminente ao sistema.
Bastante reveladores — tanto da tendência enviesada que tem as­
sumido a regulação nesse tipo de setor como da possível via de solu­
ção — são o setor bancário e o setor aéreo.
No primeiro a higidez financeira dos participantes do mercado
tem sido a única e exclusiva preocupação. Note-se que, ao menos no
setor financeiro, a tensão entre higidez e concorrência é artificial, e
60 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

não real. Prova disso é a confusão" "conceitual que lhe está na base.
Nessa matéria é muito importante não confundir a necessidade de
regulação concorrencial com outra preocupação, também bastante re­
levante, que é o estudo dos requisitos de funcionamento interno das
organizações sujeitas a regulação. Em matéria de regulação do sistema
financeiro é comum encontrar a afirmação de que não é conveniente
restringir ou limitar estrúturas monopolisticas ou oligopolísticas de
grandes bancos ou instituições financeiras, pois. isso seria contrário à
higidez do sistema. Além de ilógica, essa afirmação encerra enorme
confusão conceitual. A garantia de higidez de instituições financeiras
se faz através de requisitos organizativos internos, ou seja, normas
sobre capital mínimo, alavancagem etc. A regulação da concorrência,
com a limitação do poder econômico das instituições, é um elemento
externo que impede a concentração econômica, limita o poder econô­
mico das instituições financeiras e, conseqúentemente, protege o con­
sumidor de abusos. Além disso, como também já discutido em outra
sede, diminuindo o poder das grandes instituições e sua influência so—
bre a sociedade, diminui o risco de contágio do sistema por problemas
e dificuldades de uma instituição financeira em particular.
No segundo a desregulamentação tem sido a tônica, levando a
graves riscos ao funcionamento do setor e à própria segurança dos
usuários do sistema. Em ambos os casos há total falta de compromis­
so com o estabelecimento de um real ambiente de diluição do poder
econômico e, por razões diversas, os resultados têm sido parcos e
geralmente inconvenientes, levando a profundas crises nos respecti­
vos setores.“ Nesses setores a atuação estatal mais coerente seria bem

7. O conjunto de medidas de regulamentação bancária no Brasil após o Plano


Real é bastante ilustrativo desse problema. Diagnosticado que o setor bancário no
Brasil se encontrava “inchado" em função da inflação, uma série de medidas regula­
mentadoras visou a "enxugar" o setor, para evitar os efeitos perversos da estabilização.
Assim, o nivel de capital mínimo dos bancos subiu, e outras medidas do gênero foram
tomadas. Diante do curto prazo estabelecido para que os pequenos bancos se adaptas­
sem às mudanças, esses não conseguiram arcar com os niveis maiores de capitalização,
nem com o aperto de liquidez bancária. O resultado imediato nos é apresentado por R.
L. "l'roster. segundo quem "as instituições solventes e viáveis economicamente tiveram
sua continuidade comprometida". O autor faz longa análise do equivocado diagnóstico
que ensejou as mudanças descritas (v. R. L. Troster, “Regulamentação bancária brasi­
leira: situação atual e perspectivas", Anais do Seminário Internacional sobre Regula­
ção e Defesa da Concorrência no Setor Bancário, promovido pelo CADE e pela AS­
BACE nos dias 30 e 3 l .3.l999. em Brasília). No caso, importa apenas a contraposição
entre a busca da garantia da higidez do setor em detrimento da preservação da concor­
TEORIA DA REGULAÇÃO: CLASSIFICAÇÃO DOS SETORES REGULADOS 6l

diversa. De um lado, é preciso uma fiscalização ativa de correção de


procedimentos financeiros e de segurança em geral. De outro lado, é
preciso uma atuação direta do órgão regulamentar que previna os
comportamentos estratégicos.

rência no mesmo. O problema regulamentar torna-se crítico quando a regulamentação


(: capaz de erigir barreiras, consistentes exatamente na quantidade de capital. a entrada e
permanência de concorrentes brasileiras no mercado, ao mesmo tempo em que faz
desaparecer todas as barreiras legais aos grandes concorrentes estrangeiros. A essa
eliminação seletiva de barreiras à entrada dirigem-se as críticas de 'l'roster: "Apesar de
a Constituição ser explicita quanto à eliminação de barreiras à entrada no sistema bali­
cário, hoje convivemos com um critério ambíguo. Por um lado, instituições nacionais
eficientes e solventes são eliminadas em razão de não possuirem escala, e por outro é
permitida a entrada de instituições estrangeiras sem critérios explícitos definidos"
(idem. p. 348). O resultado imediato das medidas pós-Plano Real de regulação do setor
bancário foi um fraco desempenho no periodo de setembro a dezembro! I 994. caracte­
rizado como a pior crise que o setorjá teve. A comparação de balanços nesse periodo
mostra que houve um efeito assimétrico no crescimento dos depósitos e das operações de
crédito, que foi muito maior para os bancos maiores (dados disponíveis no SISBACEN).
Dos anos 90 do século passado para cá a pol itica de concentração financeira claramen­
te perseguida pelo Banco Central tem mostrado seus resultados. Descomunal aumento
dos lucros dos bancos, em percentual incompatível com o crescimento da economia
brasileira. e enorme rigidez das taxas de risco cobradas pelas grandes instituições li­
naneciras (os spreads“). com consequências negativas sobre as taxas de juros nos em­
préstimos sobretudo àqueles grupos menos capazes de negociar taxas dejuros c mais
carentes de capital — consumidores e pequenas empresas. Os impactos negativos sobre
os niveis de consumo e investimento e, conseqtientcmentc, sobre o crescimento do
pais são bastante visíveis. V.. para uma análise cconomc'trica da relação entre taxas de
juros e concentração de mercado, S. M. Koyama e E. K. Toonoka, Relação entre Taxa
de Juros e Participação de Mercado segunda (: Modalidade de Crédito — Avaliação de
Três Anos do Projeto Juros e "Spread " Bancário, Brasilia. Banco Central do Brasil.
2002; v.; também, para uma análise mais ampla dessa relação. com outros dados eeo­
nômicos: B. Abbott Muller. Concorrência no Setor Bancário Brasileiro. 2007.
8. A transformação operada no setor aéreo brasileiro em l998 é outro exemplo
paradigmático. Nele há diversas barreiras à entrada, referentes aos altos investimentos
exigidos no setor e a regulação estatal. O ano de l998 marca a abertura do setor aéreo.
cujas consequências puderam ser constadas, em especial, nas tarifas praticadas na
ponte aérea Rio/São Paulo. O ingresso da TAM nesse mercado encerrou o domínio das
três empresas que, em forma de pao/, operavam em tal nicho (VARIG, VASP e
TRANSBRASIL) e deu inicio a uma guerra de preços. O período subseqtiente é mar­
cado por aumentos paralelos de preços. dando a entender que. seja por colusão invo­
luntária ou cartel expresso, os participantes do mercado "aprenderam" que a guerra de
preços pode ser lesiva a todos. O mesmo processo parece ter sido iniciado após a cn—
trada da Gol no mercado — período inicial de forte concorrência, seguido de aprendi­
zado e diminuição da concorrência. Isso significa que as perspectivas de que ojogo
seja colusivo com intervalos de concorrência são bastante expressivas. Para uma des­
crição detalhada da desregulamenlação do setor v. Capítulo III. nota 32, infra.
62 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMlCA

Em vista desses problemas, parece bastante evidente a necessida—


de de compatibilizar a tutela da segurança e higidez do mercado com
o combate às estruturas monopolisticas e oligopolísticas. Tal compa­
tibilização é necessária,.pois, como visto, a própria garantia de higi­
dez do sistema requer a existência de concorrência. É preciso levá-la
a cabo em várias frentes distintas.
Em primeiro lugar, é necessário atuar sobre as estruturas, criando
condições que dificultem os comportamentos estratégicos. É necessá­
rio, então, selecionar as barreiras a entrada existentes no setor (isto é,
exatamente o contrário do que vem sendo feito nos já mencionados
setores), mantendo exclusivamente aquelas realmente imprescindí­
veis à garantia da segurança e higidez. Essa última tarefa, apesar de
aparentemente limitada, e de fundamental importância para o funcio—
namento de tal tipo de disciplina regulatória. Se o objetivo é, com efei—
to, impedir os comportamentos estratégicos, então, é preciso que se
combata preventivamente seu mais mortal inimigo: as barreiras à en­
trada que bloqueiam exatamente toda a concorrência potencial e seus
efeitos benéficos para o mercado em questão,” garantindo ao agente
econômico o sucesso de sua predação.
De outro lado, é preciso combater de maneira preventiva certos
comportamentos estratégicos, tanto os tendentes a eliminar os concor­
rentes do mercado como aqueles que convidam à colusão.
Pode-se dizer que os agentes seriam, nesses mercados, estrutural—
mente incentivados a práticas anticoncorrenciais, pois a existência na—
tural de barreiras à entrada, somada às condições instáveis da deman—
da, faz com que esses mercados sejam particularmente suscetíveis a
práticas anticoncorrenciais Tanto a colusão quanto a eliminação de con­
correntes são práticas prováveis. A colusão acompanha, via de regra, as
barreiras à entrada e a eliminação de concorrentes, com especial ênfa­
se à predação, que acompanha setores de demanda instável.

9. São dois os efeitos negativos das barreiras à entrada sobre o mercado. Com
relação aos concorrentes. na presença dessas barreiras. há uma diminuição da possi­
bilidade efetiva de concorrência, pois, sendo eficazes as barreiras, o poder monopo­
lislico poderá ser exercido sem ser ameaçado pela entrada de um novo concorrente
no mercado. Além disso, há o efeito negativo para os consumidores, que não rece­
bem qualquer benefício oriundo do ganho adicional de eficiência proporcionado
pelas barreiras (v. C. Salomão Filho. Direito Concorrencial — As Estruturas, 3“ cd..
pp. l85 e ss.).
TEORIA DA REGULAÇÃO: CLASSIFICAÇÃO DOS SETORES REGULADOS 63

É preciso, então, desenvolver instrumentos que previnam colusão


e predação. A reflexão doutrinária sugere alguns, que, se bem utiliza­
dos, podem levar a interessantes resultados.
Evidentemente, esse tipo de tutela não é suficiente. Ao lado dela,
é importante desenvolver regras que garantam a higidez e segurança
dos sistemas. Tais regras terão tanto maior facilidade de ser impostas
e cumpridas quanto menos dominante for o poder econômico dos agen—
tes regulados em cada um desses setores. Aí mais uma demonstração
da complementaridade da tutela da higidez e do combate estrutural ao
poder econômico nesses setores.
Capítulo III
TEORIA DA REG ULAÇÃO:
PRINCÍPIOS GERAIS

]. Princípio da dihisão do conhecimento econômico: l./ Princípio do


acesso necessário: l.l .] Relações entre concorrentes — l .2 Função
social da propriedade dos meios de acesso ao mercado: significado
especÚ'ico: ! .2.l Co—propriedade dos bens de acesso - /.2.2 Compar­
tilhamento dos bens de acesso: a) Restrição ao direito de propriedade.
Compartilhamento e fruição — b) Compartilluunento (: uso: o dirigismo
contratual — c) Compartilhamento e direito de disposição — l.3 Apli­
cação institucional do direito antitruste: [J.] Concepção "per se"
dos ilícitos antitruste — l .4 Condutas em espe'cie: / .4.l A regulação da
negociação compulsória — I 42 Regulação da predação — 1.4.3 Regu­
lação da colusão: a teoria dos jogos e suas limitações — l .5 Conclusão.
2. Regulação, desenvolvimento e redistribuição. 3. Princípio da coo­
peração: 3.1 A cooperação como escolha individual — 3.2 Condições
para a cooperação — 3.3 Papel do Direito no impulso à cooperação
— 3.4 Características regulatórias — 3 5 Conclusão: cooperação e teo­
ria do conhecimento econômico.

A tarefa de tentar identificar princípios gerais para a regulação


não é simples. No seu caminho está o tradicional dilema entre, de um
lado, generalidade e conseq'tiente dificuldade de tradução em elemen­
tos de utilidade aplicativa e, de outro, excessiva especificidade e con­
seqúente incompatibilidade com a variada gama de necessidades dos
vários setores envolvidos.
A opção, aqui, há de ser pela maior generalidade. O problema da
tradução em elementos de utilidade aplicativa será enfrentado, ao me­
nos parcialmente, tentando-se indicar nuanças específicas para cada
setor. Claro está, no entanto, que essa fraqueza só poderá ser totalmen—
te eliminada com um estudo específico e pormenorizado dos princi­
pais setores regulados — o que se pretende fazer em volumes posterio­
res a este estudo.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 65

]. Princípio da difusão do conhecimento econômico


De todos os princípios mencionados no Capítulo I, este é, sem
dúvida, o mais amplo e pleno de conseqtiências estruturais. Desdobra—
se em várias regras e princípios e mesmo, em certos casos, em instru­
mentos estruturais específicos de diluição do poder econômico.
Passar-se—á, a seguir, a estudar seus vários desdobramentos.

I .! Princípio do acesso necessário


Para traçar as características gerais desse princípio é preciso, de
início, identificar como e por quê a análise antitruste tradicional não é
capaz de dar resposta conveniente ao problema do acesso tanto para
concorrentes como para consumidores. A seguir, é preciso determinar
como esse princípio se revela na relação com os consumidores. Final­
mente, é necessário identificar que modificações devem ser feitas na
disciplina contratual para garantir a solidez de tais regras.

l .l .1 Relações entre concorrentes


Envolvendo a conexão a uma determinada rede, basicamente, um
problema de garantia de contratação, os ilícitos antitruste normalmente
relacionados a esse problema são os de recusa de contratar e discrimi­
nação entre coneorrentes. Há inúmeros outros (como subsídios cruza­
dos, venda casada etc.) que ocorrem com freqtiência no setor mas que
não afetam diretamente o direito à conexão à rede, aqui identificado
como problema regulatório fundamental.
O instrumento antitruste original de tutela da conexão é a recusa
de contratar.[ A insuficiência desse tipo de disciplina para uma garan­

I. V., em especial, "Southern Paeil'tc Comm. Co. vs. A'l'&'l“', 556 FSupp. 825
(l983). Nesse sentido. v. também as determinações da FCC, Amond/nen! of Part 2] of
the Commission '.r Rules. A discussão sobre concorrência e regulação na Europa já
avançou um passo além disso, e a grande discussão diz respeito ao caráter antieoneor­
rencial das negociações de interconexão. A Comissão Européia, inclusive. estabeleceu
um documento específico para orientar a aplicação das regras coneorreneiais aos acor­
dos de acesso às redes de telecomunicações (Notice 98/C 265/02). A razão para tanto
é simples: “So far as the application ol" art. 85 is concerned, generally intereonneetion
agreements tend to be predominantly pro-competitive in nature, in that they support
the communication ol" messages from a customer ol" one network to the customer ol'
another and, where infrastructure competition exists. promote customer choice ol" net—
66 REGULAÇÃO DA ATIVIDADEIECONÓMICA

tia ativa de conexão é evidente. Em primeiro lugar, como o próprio


nome deixa bastante claro, trata—se de disciplina aplicável quando há
um comportamento negativo. Não é possível garantir um efetivo di­
reito de contratar. A disciplina visa apenas a sancionar aquelas situações
em que há negativa injustificada, motivo pelo qual a casuística 'mais
freqiiente desse ilícito se constrói em torno das relações contratuais
continuadas que são abruptamente e injustificadame'nte interrompidas.
Essa interpretação — Iimitativa 4“ dada ao ilícito “recusa de contratar"
deve-se àjá tradicional “postura das correntes mais tradicionalistas de
aplicação do direito antitruste (capitaneadas pela Escola de Chicago)
de evitar qualquer confronto entre a aplicação do direito concorrencial
e a mais ampla liberdade de iniciativa.
A extensão da disciplina da recusa de contratar para uma obriga—
ção ativa de contratar se dá em sede antitruste através da chamada
essential facility doctrine,2 que, na verdade, fornece as bases para o

work operator. On the other hand. depending on the symmetry of the relationship of
the interconneeting parties (relative market position and bargaining power) there
exists the possibility for abusive practices collusive arrangements which might taint
the agreement" (Colin D. Long. Telecommmiications Law and Practice. p. 20 l ). Vale
mencionar que após o Tratado de Amsterdã o art. 85, anteriormente mencionado.
corresponde ao art. 8]. Da mesma forma, o art. 86 ao art. 82, e o art. 90 ao art. 86.
2. A doutrina das essentialfacilities surgiu nos EUA. no início do século XX. e
tem como caso seminal o “United States vs. Terminal Railroad Association", de l9l2
(224 US 383). O caso é descrito da seguinte maneira: ”The Court required joint own­
ers 0!" a railroad switching junction to afl'ord competing railways access to it upon
such just and reasonable terms and regulation as will (...) place every such company
upon as nearly an equal plane as may be with respect to expenses and charges as that
oeeupied by the proprietary companies". O primeiro caso da Suprema Corte a aplicar
a essential facilities a'ocrrine a uma facility I'ornecida via cabo, um marco histórico
com relação à interconexão na energia elétrica e telecomunicações. foi o "Otter 'l'ail
Power Co. vs. United States" (4I0 US 366). A Orler Tail fornecia. em regime de mo­
nopólio, energia elétrica para o mercado local. A empresa recusou—se a vender energia
para os revendedores locais. bem como recusou que os mesmos utilizassem suas li­
nhas de transmissão de energia elétrica para que estes adquirissem a energia de for­
necedores distantes. A Suprema Corte entendeu que as linhas de transmissão da Offer
Tail eram anemia/facilities, e a recusa. no caso em tela, violava a Seção 2 do Sher­
man Ac! (v. M. K. Kellog,.l.Thorne e P. W. Huber, Federal Telecom/nunica/ions Law,
pp. I39— I40). Ã diferença do instituto concorrencial da recusa de contratar. a BHE/lv
rial facilities docrrine considera a recusa de contratar ilícita em todos os casos em que
haja o controle pelo sujeito ativo de um meio de produção imprescindível e insubsti—
tuível para a produção de determinado bem final e seja tecnicamente e economica­
mente possível coloca-lo à disposição do sujeito passivo. V. "MCI Communications
Corp. vs.AT&T", lO4$.C1234 (l983); v. também os comentários em H. Hovcnkamp,
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 67

desenvolvimento da disciplina regulatória. A essential facility cloctrine,


ao romper com o caráter essencialmente passivo da disciplina anti­
truste, permite o desenvolvimento da disciplina regulatória.J Nota-se
aqui , portanto, mais uma vez, aquela aproximação entre teoria regula­
tória e disciplina antitruste interventiva, destacada no início.
A essential facility doctrine foi desenvolvida para aquelas situa­
ções identificadas pela doutrina econômica como de monopólio natural,
em que há um bem (geralmente uma rede) de tal importância que é
impossível minimamente competir sem que exista acesso a esse bem.
Como originariamente elaborada, contém quatro requisitos de
aplicação. Em primeiro lugar, é preciso que exista controle de um bem
fundamental para a concorrência. Também deve haver impossibilida­
de prática e/ou econômica de duplicação do referido bem (e aqui en­
tram as considerações — sobretudo econômicas — relativas aos mono­
pólios naturais). Terceiro requisito óbvio e o da negativa de uso do
bem fundamental. Finalmente, é preciso que haja possibilidade física
e técnica de fornecer a interconexão.
É importante notar — e aqui está, evidentemente, o ponto fraco da
referida teoria — que não há exigência de que seja fornecido acesso em
igualdade absoluta de condições com os próprios serviços ou com a

Economics and Federal Anlitrust Policy, pp. 274 e ss.: "Most of the things found by
Courts to be essential facilities have fallen in one of three elassilicalions: (|) natural
monopolics orjoint venture arrangements subject to significant economics ol" scale;
(2) structures. plants or other productive assets that were created as part ol" a regula—
tory regime, whether or not they are properly natural monopolies; or (3) structures
that are owned by the government and whose creation or maintenance is subsidized".
Apenas a primeira categoria (dos monopólios naturais) escapa de uma certa conver­
gência com os setores submetidos a privatização no sistema brasileiro. Não à—toa, é
exatamente nesse categoria que se encontram as mais ilustrativas e interessantes
discussões sobre essa teoria.
3. A lei alemã de defesa da concorrência (Gesetz gegen Wettbewerbsbes­
c/rrãnknngen) positivou a doutrina da essential facility, antes existente apenas na
casuísta concorrencial. 0 & l9,Abs. 4. Nr. 4, reza: “Ein Missbrauch liegt insbesonde­
re vor. wenn ein marktbeherrschendes Unternehmen als Anbieter oder Naehl'rager
einer bcstimmten Art von Waren oder gewerblichen beistungen sich weigert, einem
anderen Unternehmen gegen angemcssenes Entgelt Zugang zu den eigenen Netzen
oder anderen lnl'rastruktureinrichtungen zu gewa'hren, wenn es dem anderen Unter­
nehmen aus rechtliehcn oder tatsãchlichen Grtinden ohne die Mitbenutzung nicht
mõglich ist, aul' dem vor— oder nachgelagerten Marktals Wettbewerber des markt­
beherrschenden Unternehmen naehweist, dass die Mitbenutzung aus betriebsbeding­
ten oder sonstigen Griinden nicht mõglich oder nicht zumutbar ist".
68 REGULAÇÃO DA AJ'lVLDADEHEÇONÓMICA ,

conexão fornecida a empresas ligadas que se queira beneficiar. São


admissíveis certas diferenças, desde que razoáveis (e o critério de ra­
zoabilidade é bastante flexivel).4 É. na flexibilidade do critério que
podem se centrar as principais críticas à aplicação direta de5sa teoria
na esfera regulatória. Não apenas admitem-se as justificativas regula­
res, como necessidade de impedir ofree riding, como justificativas
absolutamente subjetivas, tais como: inexistência de poder econômico
dos agentes,5 falta de espaço, inCapaCidade financeira, possí vel redu—
ção do volume das atividades ou dos padrões étiCOs“ e,'por fim', o ar­
gumento de que a eficiência gerada pelo não-compartilhamento é maior
se comparada aos custos incorridos em virtude do compartilhamento.7
Nessa hipótese, é bastante evidente que a questão teórica permanece
em segundo plano. Em primeiro plano desponta a tradicional aversão
da doutrina concorrencial à invasão das liberdades — contratual e de
iniciativa — do particular. A amplitude desmesurada e assistemática
atribuída à discriminação lícita entre concorrentes é, na verdade, uma
compensação à disciplina considerada excessivamente “interventiva”
da essential facility docrrine.
Evidentemente, essa excessiva permissividade da discriminação
deve ser afastada em sede regulatória. A admissão, ainda que teórica,
da diferenciação entre preço e serviço prestado e fator que elimina em
absoluto a possibilidade de concorrência no setor. Isso porque, como

4. A razoabilidade da recusa de interconexão pode ser analisada com base em


critérios objetivos e subjetivos. Os critérios objetivos são, essencialmente, dois: (i)
está justilicada a recusa se a interconexão implicar prejuízo do dono da facility; ou
(ii) se a interconexão implicar o aproveitamento, por parte dos concorrentes. dos be­
nefícios obtidos através do investimento inicial e dos resultados de pesquisas sem que
haja qualquer ônus para esses. São ilustrativos dos critérios objetivos os seguintes
casos: “Almcda Mall lnc. vs. Houston Lighting & Power Co.", 6IS F.2d 343 (1980);
“Berkey Photo lnc. vs. Eastman Kodak Co.“. 603 F.2d 263 (1979); “Memorex Corp.
v.t'. IBM Corp.", 636 F.2d |.I88 (|980) (v, M. K. Kcllog, .I. Thorne e P. W. Huber,
Federal Telecammunicatians Law. p. l40, notas 6—7). Além disso, há a razoabilidade
de recusa com base em critérios subjetivos. São esses segundos critérios que dão
margem para a possibilidade de fornecimento de acesso desigual à rede. Os seguintes
casos são representativos do fato de que não há exigência de oferta de interconexão
em condições iguais a todos os agentes: “United States vs. AT&T", 524 ESM/:p. I336,
(I98I); “Southern Pacific Comm. Co v_r. AT&T". 740 F.?d 980 (I984).
5. “Associated Press vs. United States", 326 US l (I945). pp. 49-52.
6. “Providence Fruit & Produce Building Inc. vs. Gamco Inc.", 344 US 817
( 1952). p. 487.
7. “Hecht vs. Pro-Football Inc.",436 US 956 (I978).
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 69

se sabe, o comportamento típico nesses mercados e exatamente o que


tende à diferenciação e à discriminação. Dessa forma, fica limitada a
concorrência. O desenvolvimento tecnológico e retardado, pois o in­
vestimento em tecnologia se dá geralmente para criar formas de impe—
dir ou dificultar o acesso à rede."
É necessária, portanto, uma intervenção regulamentar ativa, que
garanta iguais condições de uso da rede. Evidentemente, a melhor so­
lução seria a da rede entendida como um bem público, à qual todos
têm livre acesso.” Só assim seria possível dar às redes a importância
que merecem.
Quando isso não ocorre, geralmente por razões ligadas ao interes­
se em maximizar os resultados econômicos obtidos com as pri vatiza­

8. llustrativo desse tipo de desvirtuação da finalidade do investimento em tee­


nologia é o caso Microsoft. É basicamente ao fato de, em l98l , a Microsoft ter sido
indicada como a provedora olicial de sistemas operativos do novo computador pes­
soal (PC) que acabava de ser lançado pela IBM que é atribuída sua dominação, até
hoje. desse mercado. A partir do aproveitamento desse evento histórico, e baseada em
evoluções de tecnologia que sempre visaram à criação de incompalibilidade de rede
para outros concorrentes. chegou a Microsoft à sua presente posição de dominação
(v., para o histórico completo das práticas comercias e de mercado da Microsoft. K.
Baseman, F. Warren Boulton e G. Woroch. “Microsoft plays hardball: the use ol" ex­
clusionary pricing and technical incompatibilily to maintain monopoly power in
market for operating system software", The Anrirrust Bulletin 40/273 e ss.).
9. Essa característica fica bastante clara no setor de telecomunicações. Com
efeito, “in the US the driving force behind the achievement ol' interconnection was
private litigalion initiated by prospective competitors of the established carriers as
well as regulatory action, acceptance was ultimately won for the notion that the com­
petition in the provision of inter-state services which interconnection would make
l'easible would be in the public interest. ln Canada, the process which led to the intro­
duction ol" competition followed a similar course. Outside North America. the pattern
has been somewhat different. There has not been the same propensity to introduce
competition through litigalion and regulatory intervention. Rather, rel'orming govern—
ments have tended to create appropriate Iiberalization framework (with the honourablc
exception of New Zealand ) and then procced to issue licenses to compete with the
established operator on the basis ofa new set of rules and conditions created specil'i­
cally for the new operators competitive environment. These rules have also recognized
that new operators competing with the incumbent telecommunications organization
(TO). whether or not government-controlled, will not always have an easy time rea­
ching negotiated arrangements with the monopolisl. Typically there l'ore they have
reserved that disputes between competing operators on issues subject to regulation
— such as interconnect and local access — should be resolved by the regulators them­
selves" (v. Colin D. Long, Telecommunicalions Law and Practice. p. l90). O Brasil,
sem dúvida. inclui-se entre esses últimos países.
70 REGULAÇÃO DA :ATlYlDADE ECONÓMICA_
ções (o que é, claramente, uma excrescência), a solução tem de ser a
elaboração e a aplicação ativa de um princípio geral de amplo acesso.
Os resultados da regulação são, nesse caso, no entanto, incertos.
É o que ocorre na regulamentação do setor de telecomunicações
brasileiro. Releva mencioná— lo, por ser emblemático das possibilida­
ativa da interconexão. '—
des e dificuldades existentes na estruturação de uma regulamentação
Ciente das dificuldades de aplicação efetiva das regras de interco­
nexão, editou o regulador brasileiro um regulamento geral de intercone­
xão que procura criar uma obrigatoriedade ativa de interconexão. Para
criá—la o regulador sentiu a necessidade de, na declaração dos princí­
pios a reger a interconexão, afirmar o caráter quase-público das redes.
No art. 28 do Regulamento Geral de Interconexão (Regulamento apro­
vado pela Resolução ANATEL-40, de 23 .7.l998), além da afirmação
da obrigatoriedade da interconexão, af irma-se que as redes “devem ser
organizadas como vias integradas de livre circulação”; e, no inciso lll,
que “o direito de propriedade sobre as redes e condicionado pelo dever
de cumprimento de sua função social”.
Apesar dessa solene e ousada declaração de princípios — como, de
resto, com frequencia ocorre no sistemajurídico brasileiro —, sua ope­
racionalidade concreta fica muito limitada pelas próprias regras que
pretendem atuá-los. O maior problema está, evidentemente, na possi—
bilidade de livre negociação dos contratos, prevista no art. 7ªz do Re­
gulamento de Interconexão. Livre negociação e livre acesso são con­
ceitos de difícil compatibilização, especialmente quando um dos
agentes é monopolista. Enquanto o primeiro pressupõe a disponibili­
dade pelo detentor da concessão das redes, 0 segundo a nega. Na ver­
dade, a compatibilização só seria possível através da admissão de bom
nível de dirigismo contratual Uma aplicação coerente desses princí­
pios só pode ser feita através de revisão dos princípios jusprivatísticos.
É o que se fará no n i .2 .2, “b", infra.

I .2 Função social da propriedade dos meios de acesso


ao mercado: significado específico
De há muito inserido em nosso ordenamento constitucional, o
princípio da função social da propriedade teve por longo tempo apli­
cação muito limitada. Aplicado ao clássico conceito romano de pro­
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 7l

priedade estática, permitia limitação ao uso do bem e à sua disposição.


Explica—se sua larga aplicação em matéria de desapropriação.
Essa limitação, como corretamente demonstrou F. K Comparato
no clássico artigo “Função social da propriedade dos bens de produ­
ção”, restringe por demais a verdadeira aplicação do princípio. Esse
princípio refere-se também — e, talvez, sobretudo — à propriedade dos
bens de produção, isto é, ao exercício do poder de controle empresa­
rial.“) Aí, a função social passa a significar uso da propriedade em
benefício de terceiros.
A classificação bens de consumo/bens de produção não esgota, no
entanto, a variedade de bens que podem estar sujeitos a aplicações
várias do princípio da função social. Existem também os chamados
bens de acesso, isto é, bens de cuja utilização depende a possibilidade
de poder concorrer naquele mercado. Em relação a esse bem de acesso
deve-se falar, sem dúvida, em função social , consistente não apenas em
sua boa utilização, mas também em sua disponibilização a terceiros.
A função social ganha, aqui, um terceiro sentido. Como visto, tra­
tando-se de bens de consumo, “função social” significa restrições ao uso
e, por vezes, até disposição coercitiva do bem. Ao se falar em bens de
produção a idéia é a utilização do bem em benefício da comunidade.
Finalmente, ao se falar em bens de acesso a “função social” sig­
nifica uma limitação muito mais incisiva ao direito de propriedade.
Trata-se da obrigatoriedade de compartilhamento dos bens dos quais
depende o acesso.
Aqui, função social e institucionalismo se vinculam. Pode-se ad—
mitir que o puro e simples acesso de vários concorrentes ao mercado
cumpra uma função social desde que se compreenda a concorrência
como um processo institucional que, de um lado, garante as eficiên­
cias distributivas e, de outro, assegura que a concorrência não resulte
em um processo de exclusão social (v., supra, Capítulo I, n. 3.2.3).
Um compartilhamento assim entendido em uma perspectiva ins­
titucional tem duas formas diversas de se expressar: ou pela co-pro­
priedade efetiva dos bens fundamentais ao acesso ou pela garantia de
acesso através da restrição do direito de propriedade do titular (único)
da rede.

10. Cf. F. K. Comparato, “Função social da propriedade dos bens de produção",


RDM 63/7l e ss.
72 REGULAÇÃO DA ATIVIDADEECONÓMICA, , . _,

l.2.l Co-propriedade dos bens de acesso


Uma primeira alternativa existente é o estabelecimento de co­
propriedade dos bens de acesso. Nessa alternativa, todos aqueles agen­
tes que dele dependem têm propriedade sobre o bem fundamental.
Em termos econômicos, adotando—se o raciocínio da nova teoria
institucional ,essa solução, sem dúvida, diminui os custos—de transação,
evitando as longas negociações de acesso, interconexão e comparti­
lhamento de infra-estrutura. * ' '
Por outro lado — e exatamente por diminuir os custos de transação
—, essa solução traz consigo outros problemas típicos de uma concen­
tração vertical. Será tanto mais perigosa quanto mais concentrado for
o mercado das empresas que utilizam a rede ou o bem cuja proprieda­
de é compartilhada.
A razão para isso é bastante simples. Muitas vezes é o poder de
mercado do comprador (chamado countervailing power) a impedir o
exercício do poder monopolista por parte do vendedor. Nesse caso, é
possível que a aquisição do comprador pelo vendedor ou grupo de
vendedores sirva para eliminar o empecilho ao exercício do poder mo—
nopolista (decorrente do cartel) por parte do vendedor.
O poder compensatório funciona não apenas como forma de impe—
dir o exercício do poder decorrente do cartel , mas também como forma
de impedir sua própria constituição. Com efeito, elemento-chave para o
funcionamento de qualquer estrutura oligopolista e' a transmissão com­
pleta e rápida de informações sobre preço e quantidade produzida pelos
oligopolistas. Existindo claramente um oligopsônio, o incentivo para a
criação do oligopólio é enorme. Para empresas quejá podem se organi­
zar para adquirir em conjunto insumos ou fornecer em conjunto servi­
ços, trocar informações sobre condições de venda do produto final é
muito simples. O “custo de informação” é bastante baixo.
Em função de todas as dificuldades estruturais, esse modelo não
tem sido muito utilizado.'| Sua aplicação, sobretudo naqueles setores
nos quais a propriedade por apenas um agente econômico demonstra­
se, na prática, inviável, não deve ser excluída.

ll. Cf.. para uma argumentação em favor dessa utilização nas telecomunica­
ções. citando o exemplo do sistema de comunicações por satélite, S. SlLirmcr. Nr:!zzu­
gang und Eigentumsrechte in der Tele/(ommunikarion, I997.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRlNCÍPlOS GERAIS 73

Por esse motivo, esse tipo de solução tem dois requisitos funda—
mentais para ser minimamente viável: (i) em primeiro lugar, que o
mercado não seja oligopolizado. Sendo muitos os participantes, a fis­
calização do cumprimento de qualquer acordo é muito improvável e,
portanto, a possibilidade de cartelização é remota; (li) é necessário
desenvolver remédio estrutural-societário que permita limitar o risco
de utilização do bem fundamental como instrumento de cartelização e
abuso do consumidor.

| 2.2 Compartilhamento dos bens de acesso


Exatamente por esse risco de cartelização, as soluções baseadas
na contraposição de interesses entre os concorrentes são as preferidas.
Daí a fórmula mais comumente usada ser a venda do bem fundamen­
tal a um concorrente e a obrigatoriedade de compartilhamento com os
demais.
Esse compartilhamento deve ser amplo. O fato de determinado
agente econômico ser o titular da rede não significa (i) que dela possa
fazer uso exclusivo e nem, tampouco, (ii) que possa exigir o que bem
entender para fornecer o acesso.
É importante notar que o termo “compartilhamento” , aqui empre­
gado, refere-se tanto ao acesso às redes operadas por terceiros (a chama­
da interconexão) como ao uso de infra-estrutura de terceiros (0 cha­
mado compartilhamento de infra-estrutura). A denominação genérica
do termo “compartilhamento” e utilizada, então, para diferencia—lo da
co-propriedade, deixando claro que na hipótese de compartilhamento
há propriedade da rede por um só agente, que, de diversas formas,
deve permitir que algum ou alguns dos elementos do direito de pro­
priedade (portanto, uso, gozo e fruição) sejam detidos por terceiros
(concorrentes). Há uma clara limitação ao direito de propriedade, que
a seguir será examinada em suas variadas formas.

a) Restrição ao direito de propriedade.


Compartilhamento e fruição
Das limitações aos três elementos que compõem o direito de pro­
priedade (uso, fruição e disposição), a limitação a fruição é talvez a
mais grave, sobretudo em um sociedade capitalista. Limitar a fruição
74 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMlCA

significa que o preço da ligação à rede não pode ser imposto pelo
monopolista.
O preço do acesso tem, assim, caráter central e é indissociável do
próprio dever de garanti-lo.'2'Não se trata'apenas de impedi_r_que o ti­
tular do bem aufira lucros exorbitantes em decorrência de sua posição
dominante. Resultado igualmente danoso decorrerá da cobrança de
preço excessivo emfunção da inexistência de concorrência.- .
O poder econômico por ele detido permite a transferência dos cus­
tos aos agentes que estão 'no estágio seguinte da cadeia de produção,
comprometendo a competitividade destes e a própria fruição dos bens
que estariam sendo produzidos. A depender do setor no qual se esteja,
o impacto destes custos poderá repercutir por toda a economia.
Assim, o cumprimento do dever de oferecer o acesso só estará ple­
namente caracterizado quando o titular do bem conseguir suprir os
agentes econômicos que dele dependem de forma equivalente à que
ocorreria caso existisse um mercado competitivo. Só assim os efeitos
nocivos da existência de uma essential facility serão eliminados.
Essa conclusão teórica encontra reconhecimento expresso em
legislações que procuraram disciplinar por via regulamentar o proble­
ma trazido por estes bens.
Digno de nota é o é 24, ele o é 39, da Tele/(omniunikationsgesetz,
o qual estabelece que as tarifas de interconexão e acesso às redes de
telecomunicações devem, necessariamente, ser baseadas nos custos
para o fornecimento eficiente deste acesso. No 5 7 da Telekom/nani­
kations-Entgeltregulíerngsverordnung, de ! .lO. I996, esta exigência
é especificada ao se vedar uma modificação de tarifas de serviços
relativos ao acesso às redes que injustificadamente prejudique as opor­
tunidades competitivas das empresas que dependem deste acesso.
Este tratamento da questão no Direito Alemão reflete o próprio
direito comunitário europeu. No já citado comunicado da Comissão
das Comunidades Européias sobre a fixação de preços de intercone­
xão é bastante clara a orientação no sentido de que estes devem refle­

12. É oportuno destacar a disciplina do acesso às redes de telecomunicações


(um exemplo paradigmático de essential facility) no direito comunitário europeu.
Aqui, a fixação do preço cobrado na interconexão foi percebido como tão fundamen­
tal para o desenvolvimento de condições de livre acesso às redes que a Comissão das
Comunidades Européias editou comunicado específico estabelecendo critérios parao
estabelecimento deste preço (Commission Communication 98/C 84/03).
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAlS 75

tir um preço competitivo (isto é, o preço que seria praticado no mer­


cado se houvesse pressões competitivas sobre os agentes que controlam
a rede). Esta conclusão decorre de forma expressa da recomendação
de que sejam considerados os custos variáveis médios futuros de lon­
go prazo.IJ Acrescenta-se, ainda, a recomendação de que sejam toma­
dos em consideração os preços mais baixos praticados em outros
Estados-membros na avaliação das tarifas propostas pelas operadoras
às autoridades nacionais.
lnexiste um parâmetro de preço competitivo (exemplo: preços no
mercado internacional); a medida utilizada deve ser o custo total mé—
dio dos produtos. Trata-se, como tem salientado a doutrina,|4 do subs­
tituto mais próximo do custo marginal, e, portanto, da situação mais
próxima do ponto de equilíbrio em concorrência perfeita. Permite,
portanto, uma boa aproximação dos preços concorrenciais.

b) Compartilhamento e uso: o dirigismo contratual


A existência de bens cuja utilização é condição essencial para
prestação de determinado serviço cria a obrigatoriedade de limitar o
uso dos referidos bens. Ter acesso necessário a determinados tipos de
bens implica limitar o uso do proprietário, que deve compartilha-lo
com os demais (potenciais) concorrentes.
Isso significa que o titular da rede deve obrigatoriamente contratar
com o concorrente. Mais do que isso, esse contrato deve conter cláu—
sulas que permitam o efetivo acesso. O Direito Brasileiro contém prin­
cípio geral nesse sentido, constante do art. 73 da lei geral de telecomu—
nicações, segundo o qual qualquer prestador de serviço de interesse
coletivo tem o direito de utilizar a infra-estrutura de outros prestado­
res de serviços de interesse público, de telecomunicações ou não, para
construir suas redes, a preços e condições justos e razoáveis.

l3. Na Recomendação 98/ I 95/EC da Comissão estes são justificados da seguin­


te forma: "lnlerconneetion costs should be calculated on the basis ol" forward-looking
long run average incremental costs, since these costs closely approximatc those of an
el'l'icicnt operator employing modern technology. lnlerconneetion charges which are
based on such costs may include justilied “mark-ups' to cover a portion 01" lhe for­
ward-looking joint and common costs of an el'l'icient operator, as would arise under
competitive conditions". Orientação semelhante foi adotada pela Federal Communi­
cations Conunission norte—americana a partir da InterCºn/recriou Order de 8.9. I996.
l4. D. Turner, “'l'he definition ol" agreement under the Sherman Aet: eonseious
parallelism and refusals to deal“, Harvard Law Review 75/655.
76 REGULAÇÃO DA_ATJvipApr5_ECQNõMICA . . _,

Qualquer prestador de serviços de telecomunicações de interesse


coletivo tem, portanto, o direito de exigir de qualquer empresa que
explore serviços de interesse público— não só telecomunicações, mas
também energia elétrica, gás e petróleo e rodoviário, por exemplo — que
permita a instalação de redes e equipamentos de telecomunicações em
postes, dutos, condutos, e servidõesdesses últimos.
Por outro lado,“ todos os prestadores de serViços de'telecomunica­
ções de interesse coletivo são obrigados a permitir que outros presta­
dores de serviços de telecomunicação de' interesse coletivo utilizem
seus postes, dutos, condutos, para instalar suas redes.|S
Esses dois enunciados legislativos são nada mais que duas ver—
tentes do princípio do obrigatório compartilhamento da infra-estrutu­
ra, ou seja, a possibilidade de uso da infra-estrutura dos demais titula­
res de redes de qualquer espécie para construção de redes próprias. O
primeiro refere-se ao compartilhamento externo (com outros servi­
ços), e o segundo ao compartilhamento interno, com os próprios ser—
viços de telecomunicações.
O princípio geral do compartilhamento de uso completa-se com o
tão popular princípio da interconexão, segundo o qual não só a infra­
estrutura, mas também a própria rede, nela incluídos os meios técnicos
para transmissão de informações, deve ser compartilhada, podendo o
concorrente a ela se ligar e por ela transmitir suas informações (art. 28
do Regulamento de Interconexão). Essa possibilidade não pode ser
negada nem dificultada pelo titular da rede. Uma alternativa a essa
possibilidade — essa, não-obrigatória no Direito Brasileiro — é a loca­
ção da própria rede (ou de algumas de suas frequencias).
A lei geral de telecomunicações (Lei 9.472, de 16.7.1997) prevê
essa possibilidade em seu art. I55: “Para desenvolver a competição,
as empresas prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse
coletivo deverão, nos casos e condições fixados pela Agência, dispo­
nibilizar suas redes a outras prestadoras de serviços de telecomunica­
ções de interesse coletivo”.
O mesmo princípio do compartilhamento, amplamente formula­
do, encontra-se em outras leis, como a lei do petróleo (Lei 9.478, de
6.8.l997), que prevê, em seu art. 58: “Facultar-se-á a qualquer inte­

l5. Regulamento Geral de Interconexão, art. I2. chulamcnlo aprovado pela


Resolução ANATEL-40. de 237.998.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 77

ressado o uso dos dutos de transporte e dos terminais marítimos exis­


tentes ou a serem construídos, mediante remuneração adequada ao
titular das instalações”.
Esse princípio genérico incluído nas várias leis setoriais nada
mais é que a atuação do princípio constitucional da livre concorrência
(arts. 170 e 173 da CF), não estando limitado, portanto, aos serviços
de telecomunicações.Aliás, a amplitude do principio do livre compar­
tilhamento de redes torna essa intenção bastante evidente.
Mas o compartilhamento não se faz sentir apenas na obrigação de
contratar. Influência há — e deve haver — também nas cláusulas con­
tratuais. A garantia de acesso não pode ser apenas formal, deve ser
também material.
Várias normas servem para garantir materialmente o comparti­
lhamento das redes no sistema regulatório brasileiro. A título de exem­
plo, pode-se citar o art. 68 do Regulamento de Interconexão, que
prevê, em seis incisos, conteúdos mínimos necessários do contrato de
interconexão. Outro bom exemplo e' o setor de energia elétrica. O art.
9º da Lei 9.648, de 27.5. l998, impõe a separação de conteúdo entre o
contrato de compra e venda de energia elétrica e contrato de transmis­
são e distribuição, exatamente para evitar qualquer forma de restrição
de acesso à rede de distribuição.
Essa é a razão de se afirmar que o fenômeno do compartilhamen­
to se faz sentir através de um amplo dirigismo contratual. Dirigismo
contratual que se revela, como visto, tanto na obrigação contratual
como no conteúdo da contratação.
É interessante notar, por outro lado, que esse tipo de regulação
implica uma mudança de rumos do dirigismo contratual e, de fato, o
reconhecimento de seu mais amplo aspecto.
O fenômeno do dirigismo contratual'ª tem sido tradicionalmente
associado à defesa do consumidor. A associação entre ambos remonta

I6. A expressão “dirigismo contratual" tem, na verdade, um significado amplo


e outro mais restrito. Em sentido amplo significa qualquer forma de imposição obri—
gatória de cláusulas contratuais. É nesse sentido amplo que as regras de proteção ao
consumidor são normalmente qualificadas como dirigistas. Em um sentido mais es­
trito — e talvez mais preciso —, distingue a doutrina moderna entre dois tipos de ordem
pública contratual: a ordem pública de proteção e a ordem pública de direção. A or­
dem pública de proteção destina-se a impor cláusulas contratuais que protejam grupos
socialmente desfavorecidos nas negociações contratuais, É nesse primeiro grupo que
78 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONOMICA ?
ao crescimento da sociedade de massa e ao crescimento da contrata—
ção em massa. Essa contratação põe em risco o consumidor, que, via
de regra, não pode discutir ou negociar cláusulas. O dirigismo contra­
tual serve, então, para compensar aposição economicamente fragili­
zada do consumidor e sua debilidade negocial, estabelecendo cláusu­
las que devem estar obrigatoriamente incluídas nos contratos.
A defesa do consumidor, ainda que seja a mais popular fonte de
dirigismo contratual, não é única, e nem sequer a básica. O dirigismo
contratual é, na verdade, apenas manifestação'de'um fenômeno mais
amplo, há muito identificado pela doutrina civilística como “fuga do
contrato”. “Fugir do contrato” significa, na verdade, a tendência a bus­
car a proteção de regras institucionais (status), e não a instável prote­
ção das regras contratuais (situação).'7 Trata-se da exigência social
que prevalece sobre a liberdade contratual.
Essa proteção institucional pode assumir várias formas. Um bom
exemplo dessa institucionalização está no direito societário. O aumen­
to do tamanho das empresas e, sobretudo, a necessidade de participa­
ção na sociedade de pequenos investidores, com pouca possibilidade
de renegociação do contrato (contrato social), tornaram necessária
uma fuga do paradigma contratual para um status institucional con­
creto, com regras básicas imutáveis. Passa-se, então, da concepção
contratual à concepção institucional do vínculo social.
A mesma migração da situação contratual para o status institucio­
nal ocorre no campo regulatório. As mesmas razões que criam a posi—
ção dominante do mercado impõem uma reação em sede contratual . A
situação contratual não e' mais suficiente para garantir livre acesso e
condições equânimes de contratação. O aparato regulatório deve, en­

sc cnquadrariam as principais regras impositivas do Código de Defesa do Consumi­


dor. .lá o segundo grupo é formado por aqueles objetivos necessários da ordem eco­
nômica (exemplo: justiça social, repressão ao abuso do poder econômico e à domina­
ção dos mercados ele.) que devem encontrar respaldo também nos contratos. Essa
segunda forma de intervenção permite não apenas a prcdeterminação de certo conteú—
do básico do contrato como. também, a própria imposição da contratação. É nesse
grupo que se incluem as disposições regulatórias (v., a respeito da diferença ordem
pública de proteção e de direção, R. Lorenzetti, "Análisis crítico de la autonomia pri­
vada contraclual", Revista de Direito do Consumidor l4/5- ! 9, pp. l3 e ss.).
17. V., a respeito, o interessante trabalho de P. Rescigno. “Siluazionc e status“
ncII 'esperienza contrattuale", Rivista di Diritto Civile (I973). p. 222. Para um contra­
ponto, v. G. B. Ferri, “La “cultura“ del contralto e le strutlurc del mercado", Rivista
de! Diritto Commercio/e I I- I2/843. pp. 856 e ss.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 79

tão, estabelecer proteção institucional para o acesso ao mercado. A


proteção institucional deve dirigir-se a todas as variáveis que possam
causar descompasso concorrencial. Por outro lado, é também necessá­
rio que se explicitem em regras concretas na relação contratual entre
os agentes, que permitam dar atuação a esses princípios gerais.'“
Por óbvio, em termos teóricos isso significa distanciar-se do para­
digma liberal que concebe os contratos como forma de expressão da
autonomia da vontade. É Imperioso reconhecer sua influência na esfe—
ra social e, portanto, a necessidade de normatização” dos contratos,
isto é, a inserção de cláusulas que permitam compatibilizá— los com um
mundo em que pretendem e podem influir. Esse último ponto deve ser
muito bem compreendido. É absolutamente vão crer, sobretudo em
setores regulados — e com especial força naqueles setores em que há
uma clara dominação do mercado —, que o contrato influencia apenas
a relação das partes. Exemplificativamente, um contrato de intercone­
xão firmado entre o detentor de uma rede fixa de telecomunicações e
aqueles concorrentes que a ela precisam se interconectar influencia a
esfera de milhares de consumidores e outros tantos concorrentes, exis—
tentes e potenciais. A regulação deve servir, então, a compatibilizar a
negociação privada contratual com seus efeitos públicos.

0 ) Compartilhamento e direito de disposição


O terceiro e último dos componentes do direito de propriedade
também é afetado pelas regras de compartilhamento. Trata-se da regra
sobre disposição.

l8. No Brasil essa institucionalização tem—se limitado, até agora. à submissão


dos contratos a agência regulatória e à possibilidade de esta vir a estabelecer regras
sobre condições contratuais. Citem-se, a título de exemplo. as regras aplicáveis ao
contrato de transmissão e distribuição de energia do setor elétrico brasileiro. A Lei
9.648, de 27.5.I998, dispõe, em seu art. 9“, parágrafo único, que: "Cabe à ANEEL
regular as taril'as e estabelecer as condições gerais de contratação de acesso e uso dos
sistemas de transmissão e de distribuição de energia elétrica por eoneessionz'trio. per­
missionário e autorizados". Tal regra é complementada pela Resolução ANEEL-281 ,
de l.I0.I999. que estabelece, em seu art. 3", Vl, que: “O Operador Nacional do Sis­
tema Elétrieo — ONS, além das atribuições que lhe foram atribuídas pela Lei n. 9.648,
de 27 de maio de I998, regulamentada pelo Decreto n. 2.655, de 2 dejulho de l998,
e pela Resolução n. 351 . de I I de novembro de l998, deverá celebrar, em nome das
empresas de transmissão, os contratos de uso dos sistemas de transmissão e firmar,
como interveniente, os contratos de concessão, encaminhando os de uso para homo­
logação da ANEEL".
80 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMlCA

De um lado, é impossível permitir a livre disposição da rede, e


isso as regras administrativas já garantem. Ao seu titular são impostas
regras específicas (geralmenteligadas ao amplo acesso de consumi­
dores), que tornam a rede incindível do exercício da empresa.")
Tratando— —se de bem de produção, a incindibilidade entre empresa

ferida sem a outra. —..


e propriedade atinge seu ponto máximo, não podendo uma ser trans­

Por outro lado, e pela mesma razão, a disponibilidade dos titula­


res de direito de uso sobre suas quotas—partes tem de ser mais ampla.
A sublocação de rede, ainda que devendo ser autorizada, não pode fi­
car ao arbítrio do proprietário. 0 amplo acesso impõe uma mais fácil
e ágil circulação do direito de uso, que não pode ser obstaculizado
pelo proprietário.
Nesse sentido, as regras civilísticas sobre sublocação e cessão de
uso, que sempre exigem o consentimento do proprietário para sua rea­
lização, devem ter interpretação muito estrita?“ O não-consentimento
para a sublocação e a cessão de uso só é admissível com justificativas
pró-concorrenciais. O amplo acesso é a regra, e não a exceção.

l9. O art. lOI da lei geral de telecomunicações prevê que a alienação. oneração
ou substituição dos bens reversíveis dependerão de prévia aprovação da Agência. De
outro lado. em matéria de telecomunicações a maioria dos contratos de concessão
contém disposições especílicas relativas aos bens vinculados ã concessão (isto é. aque­
les fundamentais ã prestação do serviço —- e que. portanto. são reversíveis). A conces­
sionária só poderá utilizar bens dessa natureza que não sejam de sua propriedade mc­
diantc autorização da ANATEL. a qual pode dispensar essa exigência nos casos e
hipóteses previstos na legislação. Quando houver risco à continuidade do serviço ou
impedimento de reversão dos bens vinculados a ANATEL pode exigir, para autorizar
a contratação de um terceiro. que o respectivo contrato contenha clausula pela qual o
proprietário se dirija, em casos de extinção da concessão, a manter o contrato e sub­
rogar os direitos à ANATEL,. O requisito, portanto, claramente. não é a manutenção da
propriedade da rede. mas o controle de sua destinação, isto e', a capacidade de garantir
que seja utilizada para os lins a que foi vinculada. O controle ou vinculação da desti­
nação nada mais é que um dos aspectos clássicos do direito de disposição.
20. De acordo com a lei de locações, é vedado ao locatário ceder, sublocar ou
emprestar a terceiros o imóvel locado sem o consenti mento do locador (Lei 8.245/ | 99I ,
art. l3). De acordo com os princípios do direito civil. a sublocação sem autorização
do locador pode levar à rescisão integral do contrato. por violação de dever legal (2“
TACivSP. 7ªI C..Al 389.562.j. 3.1.1993). Essa lei aplica—se aos contratos de locação.
cessão de uso e empréstimo de infra-estrutura nos setores regulados quando esses se
referirem a imóveis urbanos. Citcm-se a título de exemplo de infra—estrutura necessa­
ria para instalação de redes os postes urbanos.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS Bl

I .3 Aplicação institucional do direito antitruste


O terceiro e importantíssimo princípio regulatório inspirado por
considerações de ordem concorrencial é, de certa forma, decorrência
de tudo o que foi dito até agora.
É, por outro lado, princípio que pode e deve ter aplicação imedia­
ta, na medida em que propõe uma aplicação diferenciada dos princi—
pios e regras do direito da concorrência em sede regulatória.
Trata-se de solução compatível com nosso sistema legal,já que
todos os setores cuja regulação tem um fundamento concorrencial
mínimo não escapam ao controle concorrencial. Ocorre que a aplica­
ção dos princípios concorrenciais constitucionais e da própria lei
concorrencial é diversa tratando-se de setores regulados. Isso é decor­
rência do caráter mais interventivo exigido do direito antitruste em
mercados mais concentrados. É o que se verá a seguir.

I .3.1 Concepção per se dos ilícitos antitruste


A regra da razão em matéria concorrencial é, sem dúvida, a mais
importante e talvez única unanimidade na doutrina nacional. Desde o
famoso estudo de B. Shieber,2I salvo discordâncias quanto à utilização
da expressão “regra da razão”,22 considera a doutrina majoritária não
ser suficiente para caracterizar a ilicitude de certa conduta a sua sim­
ples verificação formal.
E nem poderia deixar de ser deste modo. A regra da razão tem
duas partes distintas e duas justificativas específicas que não podem
ser dissociadas do direito antitruste moderno, por uma razão muito
simples. São elas que garantem a possibilidade de produção de efeitos
anticoncorrenciais; e, portanto, só em ausência delas é possível presu—
mir um objetivo anticoncorrencial. A regra da razão é, portanto, uma
garantia fundamental de legalidade da punição administrativa.
Os dois componentes da regra da razão são, respectivamente, a
existência de poder no mercado e as justificativas (concorrenciais ou
extraconcorrenciais) para o ato.

2l. B. Shicbcr. Abusos" de Poder Econômico. 1966.


22. T. S. Ferraz Jr.. “bei de defesa da concorrência — Origem histórica e base
constitucional", Revista dos Mestrandos da Universidade Federal da Balaia 2/69.
82 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

A primeira delas é a existência e/ou possibilidade de criação do


poder econômico. Esse requisito faz todo sentido quando se trata de
ilícitos de dominação e/ou abuso de situação de dominação. Neles,
inexistente a situação'.real ou potencial de poder, o controle concor­
rencial é desnecessário e ineficaz, exatamente porque o'objetivo/ne­
cessidade da persecução desse ilícito é evitar a formação/utilização
abusiva do poder. inexistente o póder, não existerazão para persecu­
ção do comportamento. Assim., é" imperativo que se pesquise a fundo
a existência, ou não, de poder no mercado.
O segundo componente da regra da razão deriva de imperativo
lógico e de política econômica.
O imperativo lógico consiste na inexistência dejustificativas pró—
concorrenciais para o ato. Em sua presença, o ilícito, obviamente, se­
quer se verifica.
Mas não são apenas concorrenciais as justificativas tradicional­
mente admitidas. Também as extraconcorrenciais ou de política eco­
nômica. O que não falar, por exemplo, da eficiência, em seu sentido
distributivo? Em um sistema econômico que convive com vários im­
perativos de política econômica esse elemento é até que compreensí­
vel em sede antitruste.“ Desse modo, é sempre admissível justificati­
va que, ainda que admitindo certo dano concorrencial, demonstre a
existência de benefício mais que compensador para outro objetivo de
política econômica.
Não é difícil intuir que tudo muda tratando-se de regulamentação
(ou, mesmo, caso se adote uma perspectiva mais institucional e inter­
vencionista do antitruste). Em primeiro lugar, como já visto, nos seto­
res de que ora se trata a regulamentação e necessária exatamente por
não haver condições mínimas de existência/manutenção da concor­
rência sem ela. Assim, o poder no mercadojá é um dado, não precisa
ser pesquisado. Desaparece, portanto, o primeiro dos elementos da re­
gra da razão.
A compreensão genérica da desnecessidade do segundo elemento
da regra da razão não é tão direita. Na verdade, ela só ocorrerá quan­
do da exemplificação de ilícitos que se fará abaixo. De todo modo, o
que se pode dizer é que nenhuma justificativa extraconcorrencial é

23. Para suas limitações, v. C. Salomão Filho. Direito Concorra/teia! — As Es—


truturas, 3ª ed., pp. 20l e ss.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 83

admissível tratando-se de setores regulados. Essa conclusão decorre


da própria prevalência do raciocínio institucional nesse tipo de regu­
lação. Se a inexistência ou a pouca firmeza institucional da concorrên­
cia nesses setores levam, como já visto, ao raciocínio institucional,
então,justificativas extraconcorrencias para restrições concorrenciais
não devem ser, via de regra, admissíveis. Em outras palavras, a perse­
cução per se da existência da concorrência justifica—se pela própria
razão de ser da regulação. A concepção institucional do princípio
concorrencial coloca-se como barreira intransponível à sua instru­
mentalização por objetivo de política econômica.
Esta é uma regra geral. Não é de se excluir, especialmente em re­
lação aos objetivos endógenos e expressamente declarados no sistema
concorrencial, uma aplicação conjunta de certos objetivos de política
econômica com os princípios concorrenciais. Note-se que aqui se ma­
nifesta outra diferença. Propugna-se pela aplicação conjunta dos prin­
cípios concorrencial e extraconcorrencial, e não pela substituição de
um pelo outro, como ocorre com freq'úência em matéria antitruste.24
As justificativas extraconcorrenciais podem e devem ser avaliadas e
admitidas apenas quando compatibilizáveis com os objetivos concor—
rencuais.
Em termos positivos, o que foi dito acima corresponde a um vir­
tual descolamento do art. 2l da lei concorrencial do art. 20 da mesma
lei, quando aplicados a setores regulados. Esse descolamento é impe­
rioso não porque o art. 20 deixe de ser aplicável, mas porq ue os requi­
sitos ali exigidos (em especial a dominação do mercado) estão presen­
tes per se, decorrendo da própria estrutura do mercado. Desse modo,
a prática de atos previstos no art. 21, nas situações aqui discutidas,
conduz e produz naturalmente os efeitos previstos no art. 20. ,.

1.4 Condutas em espécie


Aqui, não é o caso de analisar uma a uma as condutas anticoncor—
renciais. Interessante é verificar a tendência geral de adaptação das
regras concorrenciais em sede regulatória.

24. Para entcndê-lo basta ver a oposição que é identificada na doutrina antitruslc
mais liberal entre e [ciência e concorrência (v. R. Bork, The Anrirrusr Paradox. pp. 50
e ss.) e como essa visão tem prevalecido na aplicação concreta do direito antitrustc.
84 REGULAÇÃO DA ATlVlDA DE ECONÓMlCA

O caso mais ilustrativo é, sem dúvida, o da própria recusa de


contratar. Como foi visto no n. l.l . l , supra, a mudança operada no ilí—
cito “recusa de contratar” constitui o fulcro do próprio desenvolvi­
mento da noção de regulação com base em princípios concorrenciais,
& ponto de constituir a base do desenvolvimento do princípio do aces­
so necessário. O desenvolvimento do ilícito “recusa de contratar" na—
da mais é que uma demonstração do movimento geral da regulação
nessa área: para longe da racionalidade microeconômica— neoclássica
e para perto de uma imposição'geral de acesso e de concorrência.
O mesmo pode—se observar nos três grandes grupos de ilícitos
concorrenciais (ao menos aqueles tendentes à dominação dos merca—
dos, os mais preocupantes tratando-se de regulação): a negociação
compulsória e a predação (entre os atos de exclusão) e a colnsão.

l.4.l A regulação da negociação compulsória


Dentro da categoria genérica da negociação compulsória estão
englobados vários tipos de condutas: a exclusividade, a recusa de con—
tratar, a venda casada, a negociação recíproca etc. Em todas elas há uma
tônica comum: a dependência de um determinado concorrente em rela—
ção a outro, fazendo com que o primeiro perca sua liberdade contratual ,
sendo forçado de várias formas a contratar compra de serviços do ven—
dedor para ter determinado bem (negociação recíproca), a não contratar
quando a contratação lhe é necessária (recusa de contratar), a contratar
apenas com determinado agente do qual depende (exclusividade) ou a
adquirir outro produto do mesmo agente para ter o produto de que pre­
cisa (venda casada). Em todos os casos a dependência econômica gera
a dependência jurídica e a inexistência de liberdade contratual.
Por essa razão é que no direito antitruste tradicional todas as preo­
cupações voltam-se para determinar se existe, ou não, dominação. Exis—
tente a dominação, desaparece imediatamente o primeiro dos pilares da
regra da razão. Soblaria, então, apenas o segundo, isto é, a existência de
justificativas para o comportamento, compatibilizáveis com os objetivos
concorrenciais. Tratando-se de negociação compulsória, essa justificati­
va. na prática, resume-se à proteção contra o chamadofree-riding.
A proteção contra ofree-riding e', em certas hipóteses de restrição
da liberdade contratual, a proteção necessária a um investimento que
seria aproveitado sem custo caso a prática fosse considerada ilícita.
Assim, uma vedação per se a exclusividade poderia restringir o inves—
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 85

timento em tecnologia, infra-estrutura ou vendas, pois O agente eco­


nômico saberia que sem — por exemplo — a cláusula de exclusividade
o benefício econômico do mesmo investimento poderia ser obtido
sem custo pelos seus concorrentes.
Essa situação não se verifica em campo regulatório por várias
razões. Em primeiro lugar, de um certo modo, as redes e os retornos
crescentes de escala que estas proporcionam já representam um free­
riding. O simples fato de cada consumidor a mais constituir um acrés—
cimo de utilidade para o próximo consumidorjá é um benefício para
o qual o titular da rede não fez qualquer investimento. Assim, não há
que se pensar em recuperação de investimentos através de restrições
adicionais às já limitadas liberdades contratuais dos concorrentes que
dependem dos titulares das redes.
Desaparecida a justificativa, a punição torna-se, na prática, rela—
tiva exclusivamente à conduta, ou, por assim dizer, uma punição per
se — a não ser, é óbvio, que exista alguma justificativa (não ligada à
defesa genérica do free-riding) para aquela situação específica. Essa é
a interpretação que deve ser dada ao art. 2! da lei concorrencial quan­
do aplicada aos setores regulados.

1.4.2 Regulação da predação


Por “regulação da predação” devem ser entendidas aquelas regras
destinadas a evitar ou prevenir a predação de concorrentes. Tratando­
se de comportamento predatório essas regras são de extrema necessi­
dade, por duas razões.
Em primeiro lugar porque, exatamente em função da regra da ra­
zão, a punição da predação em sede antitruste é bastante rara. Os crité­
rios para reconhecimento da existência da predação utilizados, em es­
pecial aqueles que servem para determinar se a predação efetivamente
levará a uma situação de dominação, são extremamente ri gorosos .25

25. A teoria mais extremada e mais liberal a respeito da prática de predação é


— como não poderia deixar de ser — defendida pela Escola de Chicago. Ilustrativa da
posição da Escola de Chicago 6 a idéia de que o rebaixamento de preços é uma prá­
tica saudável que deve ser incentivada, e não punida. Os três trabalhos mais conheci­
dos (: citados nessa linha são os de .l. McGee. "Predalory pricc cutling: the Standard
Oil (NJ) case", Journal (7wa and Economics l37/I68 e ss.; R. Bork. Thu Anrilrnsl
Paradox, pp. 144 e ss.; e F. Easterbrook, “Predatory strategies and counterstratcgics".
University of Chicago Law Review 48/265 e ss. Segundo esses teóricos. podem cxis—
86 REGULAÇÃO DA ATIVJDAPI? _ECONÓMICA

Por outro lado (e essa é a segunda razão acima aventada), a pre—


dação é a prática mais comum tratando-se de setores dominados.
Existente uma rede,,a maneira mais efetiva de impedir qualquer com­
petição é criar barreiras (sobretudo tecnológicas) a que os concorren­
tes venham a ter efetivo acesso a ela. A chamada “predação-tecnoló­
gica" e, nesses mercados, a regra geral .?“

tir casos em que esse rebaixamento e estratégico, mas eles são tão marginais que não
é conveniente persegui-los. Em primeiro lugar porque corre-se o riscode atingir hi—
póteses em que o rebaixamento e' pró-competitivo (casos que, segundo esses mesmo
teóricos, são a maioria numérica). Além disso, a prova da prática de preço predatório
e muito complexa. Os dados empresariais sobre custo de produtos e formas de conta­
bilização de investimentos em pesquisa e desenvolvimento são meras estimativas,
não oferecendo dados seguros para elaboração de presunções econômicas. Além
disso, dados estruturais como poder econômico e barreiras à entrada são também in­
certos. não fornecendo indicios seguros (v. F. Easterbrook, “Predatory strategies and
counterstrategies", University of Chicago Law Review 48/265). Easterbrook, após
desenvolver todos esses argumentos, afirma, peremptório: “if there is any room in
antitrust law for rules of per se legality, one should be created to eneompass predatory
eonduet. The antitrust offense of predation should be forgotten" (pp. 336-337). Final­
mente — e mais importante de tudo —, a prática de preços predatórios, segundo esses
mesmos autores, seria despida de razoabilidade econômica para o predador. Isso por
qualquer ângulo em que se analise a questão. Caso os preços predatórios sejam pra­
ticados por agente econômico que não detém poder no mercado (mas apenas poder
financeiro), as perdas que deverão ser incorridas até a eliminação do(s) coneorrente(s)
que dete'm(êm) a maioria do mercado serão tão grandes que tornarão o estratagema
inviável. Inversamente, caso o agente econômico detenha poder no mercado, a estra­
tégia também será inconveniente, pois as perdas por ele incorridas serão proporcio­
nais ã participação por ele detida no mercado, e, portanto, muito maiores que as das
vitimas da predação (cf. R. Bork, The Anfitrust Paradox, pp. l49 e ss.). Muitos dos
casos históricos no Direito Americano em que houve condenação foram reavaliados
por essa corrente doutrinária, procurando-se demonstrar que não houve predação. Em
especial, após reavaliar alguns casos históricos em que houve condenação por preda­
ção (Standard Oi! (: Gunpowder Trust), chegam à conclusão que não houve predação
de preço. Ampliando o raciocínio. afirmam que não há necessidade de preocupação
com os preços predatórios, pois uma empresa, operando racionalmente, sempre con—
siderará mais conveniente adquirir o concorrente que elimina-lo através de predação.
É essa a conclusão a que chega ]. McGee, “Predatory price cutting: the Standard Oil
( NJ) case", Journal of Law and Economics I37/168. Também H. Elzinga, analisando
novamente o caso do trust da pólvora (Gunpowder Trust), chega a conclusão de que,
na realidade, não houve predação (v. “Predatory pricing: the case of the (iunpowder
Trust", Journal ofLaw and Economics l3/233 e ss.).
26. É exatamente essa a principal acusação contra a Microsoft, a de predação
tecnológica. Em seus produtos principais o investimento não teria sido em novas
tecnologias para o consumidor, mas em novas tecnologias para criar incompalibilida­
des. Esses investimentos não eram — e nem poderiam ser — repassados ao consumidor.
Assim, caracteriza—se a prática de preço inferior ao custo.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 87

Por outro lado, nos setores de acesso controlado o próprio limite a


expansão do mercado e da oferta, comparado a inexistência de limite a ex—
pansão da demanda, leva a que a concorrência tenda a ser destrutiva ou
predatória.27 O problema é grave a ponto de se sugerir dispositivo regu—
latório que impeça os aumentos de preços que se seguem a reduções .ºªAs
dificuldades práticas de administração desse critério e a inexistência de
regra expressa nesse sentido sugerem um outro tipo de solução.
E a solução é novamente uma reinterpretação dos princípios e re—
gras concorrenciais aplicáveis aos setores regulados. Poder financei—
ro/possibilidade de eliminação do concorrente, os tradicionais com­
ponentes da regra da razão tratando—se de setores regulados, decorrem
diretamente das condições estruturais já descritas. São elas razão para
a própria regulação. Se é assim, resta apenas diferenciar as situações
em que reduções de preços representam, ou não, tentativas reais de
concorrência.
Para tanto a doutrina econômica tem fornecido importantes sub­
sídios,29 de modo a ser, hoje, possível considerar resultado pacífico
que a prática de preços abaixo do custo variável médio não pode ter
objetivo pró—concorrencial.
Assim, tratando-se de setores regulados com as características
estruturais acima descritas, a prática anticoncorrencial ilícita de pre­
ços predatórios pode ser determinada diretamente a partir dos preços
praticados.

27. Comojá mencionado acima, as ll utuações de demanda são uma das maiores
causas econômicas de concorrência predatória.
28Ç W. Baumol, “Quasi-permanence of price reductions: a policy l'or prevention
of predatory pricing", Yale Law Journal 89/ I e ss.
29. O pressuposto que norteia esse entendimento é a idéia de que, depois de
eliminar a concorrência com preços predatórios, a empresa recuperará os prejuízos
com preços monopolisticos. A constatação da possibilidade de recuperação dos pre­
juízos sofridos, todavia. é de difícil operacionalização, dada a dificuldade de consta—
tação do custo marginal do produto. Diante desta diliculdade, Phillip Areeda e Do­
nald 'l'urner propuseram como base de cálculo dos preços predatórios o custo variável
médio dos produtos, que é facilmente calculado pelas empresas (para a elaboração
original dessa doutrina, cl'. P. Arccda e D. F. 'l'urncr, "Predatory pricing and practices
under Section 2 ol" the Sherman Act", Harvard Law Review 88/697). Derrubou-se.
com isso. o entendimento neoclássico segundo o qual a cobrança de preços predató­
rios era benéfica ao consumidor. A crítica, todavia. não abandona os pressupostos
neoclássicos de racionalidade absoluta dos agentes econômicos, e deve, por isso, ser
vista com ressalvas. Há que se considerar, ainda, que preços acima do custo variável
médio podem ser também predatórios.
as REGULAÇÃO DA ATIVIPAQEEÇQNQMIÇA , . _,
l.4.3 Regulação da colusão: a teoria dos jogos
e suas limitações
O tratamento jurídico atual da colu'são repousa primordialmente
sobre a teoria dos jogos. Em matéria de oligopólios sua primazia é
incontestada desde a atribuição do Prêmio Nobel a J. Nash pelo estu—
do dos jogos não-cooperativos e sua aplicação aos oligopólios. .
Paradoxalmente, é'exatamente a centralização (defendida por Nash)
das atenções da teoria dos, jogos e da teoria dos oligopólios com ex­
clusividade em torno da idéia de jogo de estratégia individual uma das
principais razões de seu pequeno poder explicativo, especialmente em
setores regulados. Desde que von Neumann, em seu célebre livro The
Theory of Games and Economic Behaviour?" lançou a pedra funda­
mental para o estudo das relações econômicas a partir do raciocínio
matemático, duas eram as vias possíveis de desenvolvimento.
Uma primeira via seria procurar determinar jogos que tivessem
resultado matemático certo (ao menos no que tange à definição de
ponto de equilíbrio). Essa foi a única linha adotada pela teoria dos
jogos desde o famoso artigo “The bargaining problem", de .|. Nash.“
A conseq'tiência foi, sem dúvida, tornar matematicamente mais rigo­
rosa a análise do comportamento dos oligopólios. Sua utilidade como
forma de previsão de comportamentos e, no entanto, muito limitada.
A razão é simples. Houve pouquíssimo desenvolvimento da idéia
oposta, a segunda linha de desenvolvimento possível da teoria dos
jogos: a análise de como, quando e por quê os agentes econômicos coo­
peram. Na teoria de Nash a cooperação é atitude eventual e rara, só
justificável desde que em linha com a estratégia individual dos agen­
tes. Ocorre que muitas vezes as condições estruturais e jurídicas fa—
zem com que a única estratégia possível seja a coletiva.
A teoria baseada na estratégia individual contém, portanto, pres—
supostos discutí veis e seguramente inaplicáveis a setores regulados. A
maior razão para tanto é que pressupõe um moto único no comporta­
mento dos indivíduos. Trata-se da estratégia individual, orientada a
indicar a melhor decisão em face da estratégia a ser adotada pelo
competidor.

30. ]. von Neumann c O. Morgcnstern, The Theory of Games and Economic


Behaviour, l944.
Sl. ]. Nash, “The bargaining problem", Econometrica I8/l55 e ss.. l950
(original), consultado em H. Kuhn, Classics" in Game Theory, pp. 5 e ss.
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRlNCÍPlOS GERAIS 89

Ocorre que esse pressuposto não é, de maneira alguma aplicável,


a toda e qualquer hipótese de inter-relacionamento econômico em am­
biente oligopolizado. Olhar para o comportamento do outro, seja ad­
versário, seja co-partícipe em qualquer forma de interação social , antes
de ser uma forma de descobrir comportamentos aconselháveis, é um
modo de adquirir conhecimento.
A teoria dos jogos, a partir do estudo empi rico dos comportamen—
tos, de sua sistematização e organização, é mais apta, portanto, a forne­
cer dados para elaboração de uma teoria do conhecimento, e não para
uma teoria dos comportamentos.
Uma vez compreendido esse postulado óbvio de comportamento
econômico — isto é, que primeiro o agente adquire conhecimento, para só
então orientar seu comportamento —, é possível redirecionar as atenções
das teorias dos jogos. Se isso é verdade, a determinação do comporta­
mento dos indivíduos não é influenciada exclusivamente por um objetivo
estratégico individual. Sua disposição e seus objetivos,são grandemente
influenciados pela concepção que têm dessa realidade. E preciso primeiro
que o indivíduo descubra o modo de funcionamento do mercado, para
depois definir sua forma de atuação (individualista ou cooperativa). O
conhecimento que se tem da realidade — esse, sim — é determinado pela
observação dos comportamentos alheios e de sua comparação.
Ora, é fácil entender por que em mercados regulados a observação
dos comportamentos alheios — isto é, a experiência em campo econô­
mico — leva a um jogo cooperativo, e não de estratégia individual. O
fundamento para a regulação (ao menos no seu aspecto concorrencial)
nos mercados regulados nada mais é que a existência de condições
estruturais que possibilitam uma concorrência predatória (demanda va—
riável, barreiras à entrada etc.). O exato oposto, portanto, do compor­
tamento colusivo.
Ocorre que a possibilidade de predação leva diretamente à neces­
sidade de cooperação explícita e não à colusão eventual como mera
decorrência de comportamentos estratégicos individuais convergentes.
A ameaça de concorrência predatória tem efeito direto na compreen­
são do agente econômico. Este passa a entender que qualquer compor­
tamento não-cooperativo pode levá—lo a uma guerra predatória, com
conseqtiências extremamente negativas. A cooperação explícita e for­
mal é, então, necessária exatamente porque a percepção da existência
de liberdade para concorrer pode devolver os agentes a uma situação de
concorrência predatória, inconveniente para todos.
90 REGULAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÓMICA

A observação do comportamento dos agentes no passado faz, por­


tanto, concluir pela necessidade de cooperação. Faz descobrir a realida­

objetivos. L”
de. E de sua compreensão que surgem os padrões de comportamento.
A consequencia é, naturalmente", que a regulação deve ter dois

Em primeiro lugar, é preciso criar condições estruturais que evi—


tem as crises de superprodução e, conseqiientemente, a concorrência
predatória. As barreiras à entrada eisua eliminação, se necessário, devem
ser cuidadosamente reguladas, para evitar o agravamento de crises de
oferta (entenda-se como “crises de oferta”, aqui, tanto crises de super­
produção como crises de escassez .”

32. O sistema de transporte aéreo brasileiro é um exemplo claro dos efeitos


maléficos que a regulação pode trazer para o mercado. iniciada em l992, a abertura
do setor foi marcada principalmente pela flexibilização das tarifas e das possibilida­
des de exploração de linhas de transporte aéreo regular. Os efeitos da superprodução
estão diretamente relacionados a flexibilização da exploração das linhas aéreas. Vale
mencionar que anteriormente o transporte aéreo brasileiro estava dividido em linhas
regionais, especiais e nacionais. A l1exibilização decorreu das alterações instituídas,
gradativamente. em cada um desses setores. Dentre as principais mudanças citem-se
as sofridas pelas linhas regionais, que estiveram durante longo período sujeitas a
clara restrição territorial. O território nacional era dividido em cinco áreas de explo—
ração exclusiva. nas quais não poderia atuar qualquer outra companhia aérea. Da
mesma forma, as companhias aéreas que ali atuassem não poderiam explorar outros
territórios ou linhas nacionais e especiais (Decreto 76.590, de dezembro/1975, regu­
lamentado pela Portaria 22/GM5, de 7.1.I976, e posteriormente pela Portaria 956/
GMS, de l9.l2.l989). Em um primeiro momento da flexibilização foram abolidas as
restrições para as companhias aéreas regionais se tornarem nacionais (a Portaria
GMS, de l7.5.l990, revogou expressamente o art. 6“ da Portaria 956, de I9.12.l989,
que impunha essas restrições). Posteriormente, também foram abolidas as restrições
territoriais. e as empresas regionais passaram a poder atuar em todo o território na­
cional (Portaria 687/GM5. de 15.12.l992). Manteve-se, todavia, a distinção entre li­
nhas regionais e nacionais. A mesma Portaria 687/GM5 introduziu a definição de [i—
n/zas regionais como aquelas “caracterizadas pela afluência ou complementaridade“
às nacionais, ou que ligassem "duas ou mais localidades não servidas pelas linhas
nacionais" (anteriormente o transporte regional era definido como “linhas e serviços
aéreos de uma região, que destina-se a atender às localidades de baixo e médio po­
tencial de tráfego" — Portaria 956/GM5, de l9.l2.l989. art. |“). Anos mais tarde, a
Portaria 504/GC5, de 12.8.1999. eliminou a restrição, e permitiu expressamente que
as linhas aéreas domésticas regionais pudessem ligar “dois centros populacionais e
econômicos". Foram justamente essas mudanças na regulamentação que permitiram
às empresas regionais expandir suas atividades no território nacional. Da mesma
forma. elas possibilitaram o ingresso de novas empresas no mercado regional. Com
efeito, o número de participantes do mercado regional passou de 5 em I99l para l8
em I999 (IV Plano de Desenvolvimento do Sistema de Aviação Civil. p. 3 l). A aber­
TEORIA DA REGULAÇÃO: PRINCÍPIOS GERAIS 91

Em segundo lugar, em presença de comportamentos paralelos,


deve-se pressupor a intencionalidade a partir de dados econômicos,
sem se ater a difícil — se não até impossível — demonstração do obje­
tivo colusivo.
Em presença dos fatores estruturais já mencionados (exemplo:
barreiras à entrada e possibilidade de excesso de oferta — demanda
variável), o mero comportamento paralelo não-eventual basta para
caracterizar o ilícito concorrencial. Por outro lado,justificativa acei­
tável é apenas a existência de crise estrutural que torne imprescindível
a cooperação.33

] .5 Conclusão
Em conclusão, a análise dos princípios concorrenciais da regula­
ção parece evidenciar dois fatos muito importantes.

tura dos mercados de linhas aéreas nacionais. regionais e especiais l'oi gradualmente
aumentando com a flexibilização. Se, por um lado, esse fenômeno levou ao acirra—
mento da competição no setor aéreo, simultaneamente — como não poderia deixar de
ser —, levou também à elevação do volume de oferta. Na medida em que essa evolu­
ção não foi acompanhada nas mesmas proporções por crescimento da demanda, a
consequência que se seguiu foi uma crise de superprodução, c a guerra tarifária dela
decorrente, no início de l998. Seguiram—se o comportamento paralelo dos concorren­
tes já considerado em nota anterior (cf. nota 8 do Capítulo ll) e a forte elevação de
preços para o consumidor li nal. Mais recentemente, o poderio econômico das empre—
sas atuando em mercado pouco regulado levou à evidente captura da Agência regula­
dora (ANAC, criada pela Lei I I .182. de 27.9.2005). incapaz de fazer frente aos de­
sejos dos regulados e garantir um minimo de qualidade e segurança ao serviço.
33. Frente a uma situação de crise aguda em determinado setor da economia, a
lei concorrencial considera aceitável a formação do chamado carta! de crise, assim
delinido como um acordo entre empresas para fins de controle ou manutenção da
capacidade produtiva. Em especial as Cortes européias têm aceitado esse tipo coope­
ração entre empresas em casos específicos (ef. Re Synthetic Fibers [ I984l O.! L
207/I7; BPCL/ICI [ I985| ZCMLR 330). A aprovação dessa conduta, em um primeiro
momento, parece ser uma exceção à Lei 8.884/1994, pois permite uma concentração
aparentemente anticoncorrencial. Há, entretanto,justificativa concorrencial para essa
aparente exceção: caso não seja permitida a cooperação. a saída de agentes em decor­
rência da crise implicaria maior concentração do poder no referido mercado. O cartel
de crise não é, portanto. uma exceção aos princípios concorrenciais, mas é uma ver—
dadeira aplicação destes. Nesse sentido, v. C. Salomão Filho. Direito Concorrencia/
—As Estruturas, 3ª ed., pp. 2l4-2l5. Saliente-se. ainda. que a possibilidade de coope­
ração de empresas em caso de crise estrutural pode ser insuliciente para a solução do
problema do setor. Em virtude disso, em alguns casos a saída possível para a crise
será a concentração empresarial.

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