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Revista Brasileira de

ISSN 1517-5545 Terapia Comportamental


2003, Vol. V, nº 2, 195-213 e Cognitiva

A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior


(1957) de B. F. Skinner
The functional analysis of verbal behavior in Verbal Behavior
(1957) by B. F. Skinner

12
Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Verbal Behavior (1957), de B. F. Skinner, propõe uma análise inovadora do comportamento verbal.
Este artigo procura expor e exemplificar alguns dos conceitos e processos apresentados nesta obra
para a análise funcional do comportamento verbal, tais como: conceito e classificação do
comportamento verbal, sua análise funcional, a causação múltipla, o papel da audiência, o
pensamento verbal, a comunidade verbal, a consciência, entre outros. Utilizam-se exemplos
quotidianos e literários do comportamento verbal. Faz-se uma breve menção aos temas que têm
sido pesquisados na área do comportamento verbal, assim como a algumas das dificuldades
específicas de seu estudo. São propostas algumas questões de estudo.

Palavras-chave: Verbal Behavior (1957), de B. F. Skinner; análise funcional do comportamento


verbal; operantes verbais; linguagem.

Abstract

Verbal Behavior (1957), by B. F. Skinner, provides an innovative analysis of verbal behavior. This
article presents and demonstrates some of the concepts and processes included in this work on the
functional analysis of verbal behavior, such as: the concept and kinds of verbal behavior within a
functional analysis and their organization, multiple causation, the role of the listener (audience),
verbal thought, the verbal community, conscience, among others. Daily and literary verbal
behavior are used as examples. Some of the questions that have been researched in the area of
verbal behavior, as well as some of the specific difficulties of its study, are briefly mentioned and
discussed.

Keywords: Verbal Behavior (1957), by B. F. Skinner; functional analysis of verbal behavior; verbal
operants; language.

1
Endereço para correspondência: Rua João Pessoa, 197/804 - Niterói - RJ - CEP 24220-330; E-mail: mlpassos@uol.com.br
A autora agradece a preciosa orientação da Profa Maria Amélia Matos à escrita deste texto, assim como as excelentes sugestões do Prof.
2

Marcus Bentes de Carvalho Neto e da Profa. Terezinha Bittencourt.

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Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

O exame do comportamento verbal é essencial contexto, interpretar significa especificar


para o poder teórico-explicativo da análise hipoteticamente variáveis ambientais
funcional do comportamento. É somente por funcionalmente relacionadas com a produção
essa via que esta parte da disciplina do comportamento verbal. Conseguimos
psicológica pode ser capaz de compreender, fazer isto a partir do que sabemos sobre outros
com maior sutileza, a subjetividade e também tipos, não-verbais, de comportamento e
a cultura. Qualquer ciência humana que também porque somos falantes e ouvintes.
desconsidere os dois últimos tópicos deverá Alguns de nossos exemplos serão empres-
ser justamente acusada de fragilidade e tados do clássico de J. M. Barrie, Peter Pan4,
inaptidão para lidar apropriadamente com onde se conta a história do menino que não
seu objeto. Neste sentido, o mérito de Verbal queria crescer e dos filhos do Sr. e da Sra.
Behavior (1957/1992), de Skinner, reside em Darling, Wendy, a mais velha, João, o do meio,
que sua estratégia de orientação claramente e Miguel, o menorzinho. Peter Pan os leva
reducionista não resulta em simplificação para a Terra do Nunca, onde viviam os seis
indevida do objeto de estudo. Suas teorias e meninos perdidos (Biriba, Tico, Sabido,
conceitos têm-se revelado, na prática teórico- Enrolado e os gêmeos), as sereias, os peles-
interpretativa primeiramente e, mais vermelhas com sua princesa Lírio Bravo, as
recentemente, na própria prática da pesquisa feras selvagens, as fadas e o Pássaro do Nunca.
experimental, capazes de analisar questões Ah, havia também os piratas, liderados pelo
com um grau de notável relevância e terrível Capitão Gancho!
complexidade.
O estudo skinneriano do comportamento O conceito de comportamento verbal
verbal é apresentado em Verbal Behavior como
um exercício de interpretação referenciado em Segundo Skinner (1957/1992), o compor-
formulações sobre o comportamento, tamento verbal é comportamento operante,
derivadas de rigorosos estudos experi- agindo sobre o ambiente e sofrendo as
mentais, permitindo a compreensão da conseqüências da alteração que provoca nele.
produção do comportamento verbal e Estas conseqüências - como o reforço e a
delineando caminhos para seu estudo punição - determinarão a probabilidade de
experimental. emissão futura da classe de respostas que
Neste texto, vamos tratar de alguns itens do integram o operante. O que individualiza o
estudo do comportamento verbal: seu comportamento verbal frente aos outros
conceito, sua classificação através de uma operantes é que, em seu caso, as relações entre
análise funcional, seu método de estudo, o a conseqüência provida pelo ambiente e a
papel da comunidade verbal, o condicio- resposta são reguladas por práticas culturais.
namento do falante, entre outros. Seguindo o A conseqüência é apresentada pelo ouvinte
caminho de Skinner e baseando-nos em Verbal cujo comportamento conseqüenciador já foi,
Behavior, vamos interpretar amostras de no passado, instalado por sua comunidade
comportamento verbal, tendo em mente que verbal5. Posso obter o reforço “água”, por meu
as interpretações guardam sempre certa comportamento não-verbal, andando até a
medida de arbitrariedade 3 . Em nosso cozinha, abrindo a geladeira, pegando uma
3
Estamos em posição mais confortável quando manipulamos uma variável experimental e obtemos certo efeito sobre o comportamento,
podendo afirmar com mais tranqüilidade a relação funcional que há entre os dois termos.
4
Peter Pan, de J. M. Barrie, foi publicado pela primeira vez em 1911. Utilizei a tradução para o português feita por Maria Antonia Van
Acker, da Editora Hemus. Nos exemplos retirados de Peter Pan, sublinhei os trechos para os quais queria chamar a atenção.
5
A expressão “comunidade verbal” se refere ao conjunto de pessoas cujos operantes verbais foram estabelecidos por contingências de
reforçamento semelhantes e que, por isso, partilham uma mesma língua. Embora nenhum falante tenha contato direto com toda a sua
comunidade verbal, esta se faz representar por pessoas e produtos do comportamento verbal de pessoas (livros, máquinas que se
utilizam da linguagem, etc.) com quem cada falante interage verbalmente em sua vida.

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garrafa de água, despejando água em um com as outras práticas culturais, é no efeito


copo, etc. Enfim, as relações entre meus sobre a vida do grupo, mais do que sobre a do
comportamentos e a parcela do ambiente que indivíduo, que devemos buscar as razões
preciso manipular para obter a água são pelas quais o comportamento verbal é
descritas completamente por leis relativas às modelado e mantido.
contingências de reforçamento mantidas pelo Não são necessários novos mecanismos, além
ambiente físico, como por exemplo, as leis da daqueles já estudados na modelagem e
física. Por outro lado, posso obter água através manutenção do repertório de operantes dos
de meu comportamento verbal: - Um copo com organismos em geral, para a explicação da
água, por favor6. Neste caso, as relações aquisição da linguagem. A comunidade
existentes entre meu comportamento e o verbal instala os repertórios verbais a partir
reforço não decorrem apenas das contin- dos processos de reforçamento, discri-
gências de reforçamento mantidas pelo
minação, generalização, diferenciação, etc.
ambiente físico, mas também daquelas
A investigação da aquisição da linguagem não
mantidas pela comunidade verbal a que
é orientada pelo exame do que ocorre na
pertencemos ambos, eu e o ouvinte. Este, por
interioridade do sujeito, mas, ao contrário,
sua vez, foi preparado por nossa cultura para
deve ser fiel à busca de determinantes do
apresentar-me o reforço especificado em meu
comportamento na exterioridade, pela ação
comportamento verbal e a relação entre o
do ambiente sobre o organismo, pelo exame
comportamento dele e o reforço que me vai
das contingências de reforçamento
apresentar, esta sim, será descrita adequa-
"planejadas" pela comunidade verbal. É por
damente pelas leis relativas às contingências
isso que o papel do ouvinte precisa ser levado
de reforçamento mantidas pelo ambiente
em conta:
físico7.
Falantes não são iniciadores. Nem na
evolução de um ambiente verbal, nem no
A função do comportamento verbal na vida condicionamento de falantes e ouvintes, a
humana fala vem primeiro. Para existir um falante
é necessário que antes exista um ouvinte.
(...) se os ouvintes são responsáveis pelo
A função do comportamento verbal relaciona-
comportamento dos falantes, precisamos
se à vida do homem em sociedade. Mais do atentar mais de perto para o que eles
que vantajoso para o indivíduo, ele o é para a fazem. (Skinner, 1988/l99l, p. 54)
comunidade como um todo e, por isto, esta
dispõe de práticas específicas para sua A análise funcional do comportamento
modelagem. Para Skinner (1981/1984), as verbal
culturas se modificam porque alguma prática
(por exemplo, a construção de uma Skinner critica os estudos que recorrem ao que
ferramenta, uma técnica de ensino, etc.), chama "ficções explicativas", na tentativa de
originalmente surgida no comportamento de explicar o comportamento verbal. Este seria o
um indivíduo, torna o grupo mais capaz de caso das concepções de que a linguagem serve
resolver seus problemas. Assim como ocorre
6
Nos exemplos apresentados, o itálico indica uma emissão verbal do falante, o negrito um estímulo verbal apresentado a ele, e o
sublinhado, partes do exemplo para as quais chamo especialmente a atenção.
7
É importante que se faça a distinção funcional entre falante e ouvinte. Num episódio verbal, numa interação verbal entre duas (para
simplificar vamos considerar apenas duas, mas o raciocínio é o mesmo no caso de haver mais do que duas pessoas) pessoas,
consideramos como falante aquela para cujo comportamento verbal estamos buscando as variáveis de controle. O ouvinte tem função
de audiência (isto é, pessoas em presença de quem é mais provável haver emissão verbal por parte do falante), além de prover estímulos
verbais que são discriminativos para vários operantes verbais do falante e estímulos reforçadores para estes mesmos operantes verbais.
Num dado episódio verbal, com freqüência cada pessoa funciona em certas partes como falante e, em outras, como ouvinte. A função
que a pessoa desempenha no momento determina a perspectiva que vamos adotar na análise funcional de seu comportamento naquele
momento.
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para a expressão das idéias, do significado, da to. A análise funcional do comportamento


informação, etc. Todos estes termos referem- verbal é sempre estudo do comportamento
se a acontecimentos não passíveis de verbal do falante e ouvinte concretos,
observação e, por isso, não se pode individuais, num ambiente específico e
adequadamente correlacionar o compor- conhecido, já que a utilização de textos10
tamento com eles8. As ficções explicativas são separados das situações concretas em que
geralmente alocadas no interior do foram produzidos obscurece as relações
organismo, não podem ser observadas funcionais relevantes para a explicação do
independentemente do comportamento de comportamento verbal.
que constituem a suposta explicação e A identificação e a classificação das unidades
atribuem-se a elas exatamente as caracte- do comportamento verbal baseiam-se na
rísticas do comportamento que elas são relação funcional que a resposta guarda com
chamadas a explicar. Trata-se de “causas” suas variáveis de controle. O método de
antigas que atravessaram os tempos e estudo do comportamento verbal não é
acompanharam o surgimento de disciplinas especial, adotando-se a mesma orientação
mais recentes, travestindo-se com novas experimental utilizada na investigação de
terminologias. Skinner critica toda qualquer outro comportamento operante.
compreensão do comportamento verbal que Determinam-se as unidades verbais pela
lhe atribua função comunicativa e identificação das relações funcionais que uma
representativa. Para ele, no episódio verbal, certa porção do continuum do comportamento
nada se torna "comum" a seus participantes, verbal guarda com o ambiente. Desta forma,
nem mesmo "emerge" desta unidade social, e um fonema pode ser uma unidade, assim
falar em termos de função "expressiva" e como uma palavra - ou parte dela - ou mesmo
"comunicativa" apenas obscurece, por uma frase inteira, desde que esteja
fornecer ficções explicativas, as verdadeiras unitariamente sob controle da mesma
relações que devem ser procuradas. estimulação.
Ele propõe sua alternativa: "Procuramos
'causas' do comportamento que tenham um A seleção pelas conseqüências
status científico aceitável e que, com sorte,
sejam suscetíveis de medida e de Segundo Skinner, é necessário pensar em
manipulação.9" (Skinner, 1957/1992, p. 10) diferentes conjuntos de contingências
A análise funcional do comportamento verbal complementares estabelecedoras dos
procura as variáveis independentes que operantes verbais. Essas contingências
controlam o comportamento verbal no representam um tipo de causalidade apenas
ambiente do organismo que se comporta encontrada em processos próprios de
verbalmente. Estas variáveis devem ser, organismos vivos, não de objetos inanimados
ainda, passíveis de observação e (com exceção de certas máquinas criadas
manipulação, permitindo assim não apenas pelos homens). É o tipo de causalidade a que
que se verifique sua relação de controle do Skinner chama “seleção por conseqüências”.
comportamento verbal, mas também a Encontramos três tipos de seleção por
instalação de repertório desse comportamen- conseqüências, correspondentes a três níveis

8
Já na década de 1920, o lingüista Leonard Bloomfield (1926, 1933/1961) concebeu o significado em termos estritamente fisicalistas,
como os eventos que antecedem e sucedem a emissão da fala. Alguns destes eventos ocorrem no interior dos organismos de falantes e
ouvintes (naquilo que Skinner chama “o mundo sob a pele”) e outros no exterior destes organismos. Todos estes eventos possuem
dimensões físicas. A crítica de Skinner, pois, não é adequada no que se refere a Bloomfield. Na verdade, várias das concepções de
Skinner em Verbal Behavior sofreram influência da lingüística de Bloomfield (Passos & Matos, 1998; Passos, 1999).
9
A tradução dos trechos citados em Skinner (1957) é da autora.
10
“Texto” tem aqui o sentido de produto da fala, seja ele sonoro ou escrito.

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diferentes de fenômenos, estudados por três capazes de selecionar características da


diferentes disciplinas (Skinner, 1981/1984, espécie adaptadas a estes aspectos, segundo
1990). os mecanismos da seleção natural. Aspectos
A seleção natural atua no nível filogenético, mais mutáveis do ambiente, ou novos nele,
explica a evolução das espécies, é estudada precisariam de outro mecanismo produtor de
pela biologia e representa a primeira características adaptadas. Pelo mecanismo de
formulação do modo causal de seleção por condicionamento operante, o comportamento
conseqüências. Segundo Lewontin & Levins se modifica, acompanhando esses aspectos
(1985), três princípios estão envolvidos na novos ou mutáveis do ambiente, pela
teoria darwiniana da evolução por seleção modelagem e fortalecimento dos operantes.
natural: princípio da variação (há variação de Trata-se de seleção por conseqüências porque
caracteres anátomo-fisiológicos e compor- se dá pelo efeito, sobre o operante, de um
tamentais entre os indivíduos de uma mesma estímulo que é apresentado em seguida à
espécie), princípio da hereditariedade (a resposta. O condicionamento operante
hereditariedade é parcialmente responsável permite compreender a construção e
por esta variação) e princípio da seleção modificação, pelo ambiente, do repertório de
natural (variantes diferentes deixam números comportamento operante dos organismos
desiguais de descendentes, em função da luta durante sua vida.
pela sobrevivência). A teoria genética da A seleção das práticas culturais atua no nível
evolução, posterior à de Darwin, pôde surgir do funcionamento dos grupos sociais, é
em seguida aos trabalhos de Mendel sobre a responsável pela evolução das culturas, é
hereditariedade e é inteiramente compatível estudada pela antropologia e é também um
com a teoria darwiniana, além de oferecer um modo causal de seleção por conseqüências.
mecanismo para a compreensão da variação e Práticas que surgem no nível do indivíduo,
de sua transmissão de pais para os descen- como uma nova técnica para trabalhar um
dentes (Lewontin, 1985). A mutação dos genes metal ou uma descrição da relação entre
e a recombinação dos genes de diferentes eventos da natureza ou da cultura, mostram-
linhas parentais explicam a variação genética. se úteis para a solução de problemas do grupo
A teoria genética da evolução torna mais de que faz parte aquele indivíduo. Este efeito
preciso o princípio darwiniano da seleção no grupo, não no indivíduo que apresentou a
natural, em função da qual genótipos prática, explica a incorporação desta prática
diferentes deixam quantidades diferentes de pelo grupo, que a ensina aos indivíduos que
descendência. Em resumo, a teoria da fazem parte dele. Este ensino representa um
evolução se ocupa da lenta e gradual acréscimo adaptativo ao apresentado pelo
modificação sofrida pelas espécies ao longo condicionamento operante, na medida em
do tempo. que permite, ao grupo, aumentar a variação
O condicionamento operante atua no nível inicial do comportamento, sobre a qual será
ontogenético, descreve o surgimento de novos feita a seleção pelo condicionamento
operantes e suas freqüências relativas no operante. Assim, em vez de esperar que um
repertório comportamental do organismo, é indivíduo trabalhe pela primeira vez um
estudado pela psicologia e é também um tipo metal de acordo com uma técnica já dominada
de seleção por conseqüências. A susceti- por seu grupo, o que pode nunca vir a ocorrer
bilidade do organismo ao condicionamento ou envolver um tempo demasiadamente
operante é estabelecida na seleção natural e é longo, o grupo pode promover a emissão
uma espécie de acréscimo adaptativo a ela. deste comportamento pelo ensino direto da
Aspectos do ambiente de uma espécie que se técnica.
mantêm estáveis por muito tempo são Os operantes verbais são o resultado do entre-

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laçamento dos três tipos de contingências falantes e ouvintes; em outras palavras, as


envolvidas nos três tipos de seleção por técnicas de condicionamento operante
conseqüências. No plano da seleção natural, a utilizadas. Chegamos a elas pela identificação
evolução na espécie humana de uma das condições antecedentes (privação,
inervação especial da musculatura vocal, estímulos discriminativos) e das conse-
junto com um comportamento vocal inicial - o qüências reforçadoras que a comunidade
balbucio da criança - não fortemente sob verbal torna contingentes a cada operante
controle de estímulos eliciadores (Skinner, verbal. Assim, temos:
1981/1984), fornece o material compor- l) O mando11: É o operante verbal pelo qual a
tamental. No plano do condicionamento comunidade verbal é capaz de dar ordens (-
operante, este se dá sobre este material Fale baixo! ), fazer pedidos (- Você me
comportamental, pela modelagem e emprestaria um livro?), identificar reforços
fortalecimento de operantes verbais nos necessitados pelas pessoas (- Quer que ligue o ar
falantes e ouvintes através do reforçamento. refrigerado?), fazer perguntas, dar conselhos e
No plano da seleção das práticas culturais, a avisos, pedir a atenção de alguém, etc.
comunidade verbal seleciona os operantes O repertório de mandos é construído em
verbais que devem ser instalados por situações em que, caracteristicamente, um
condicionamento operante em função da operante verbal emitido sob privação ou
utilidade desses operantes para a própria estimulação aversiva foi seguido de uma
comunidade verbal. mesma conseqüência reforçadora. Somos
reforçados por um ouvinte que nos apresenta
A classificação do comportamento verbal um copo com água quando emitimos - Água,
por favor (sob controle de privação de água) ou
A contribuição do primeiro tipo de seleção por que faz silêncio quando pedimos - Faça menos
conseqüências, o fornecimento de uma barulho... (sob controle do estímulo aversivo
espécie de material comportamental verbal “barulho”).
em estado bruto ou potencial, é comum a A emissão de mandos pelo falante é reforçada
todos os tipos de operantes verbais. A por uma determinada e específica
especificação dos dois conjuntos de conseqüência proporcionada pelo ouvinte,
contingências instaladoras e mantenedoras diretamente relacionada às condições de
dos operantes verbais, próprias do segundo e privação ou de estimulação aversiva que
terceiro tipos de seleção por conseqüências, afetam o falante. Dizemos que o mando
por outro lado, é necessária para a “especifica” seu reforço, que aparece
compreensão dos diferentes tipos de sublinhado nos exemplos: - Apague essa luz!”; -
operantes verbais. Em nossa exposição dos Você aceita um bombom?; - Aperte o botão à
tipos de operantes verbais, vamos indicar, esquerda para fazer o aparelho funcionar. Vamos
primeiro, as contingências que funcionam no ao Peter Pan, ouvir mandos de um dos
plano da comunidade verbal e dizem respeito meninos perdidos:
à utilidade que têm para ela cada um dos Biriba levantou o braço. Ele era o mais
tipos. Podemos imaginá-las, estas primeiras humilde de todos, aliás era o único
humilde entre eles, e Wendy o tratava
contingências, fazendo a seguinte pergunta: com especial delicadeza.
Qual é a utilidade deste operante verbal para a Tímido, Biriba perguntou: - Eu acho que
comunidade? As outras são aquelas eu não poderia ser o pai, não é?
estabelecidas pela comunidade verbal para - Não, Biriba.
poder instalar os repertórios verbais de Ele não era de começar, mas, uma vez que

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Skinner cria alguns neologismos para nomear os diferentes tipos de operantes verbais. São eles: mand, tact, echoic, textual, transcription,
intraverbal e autoclitic. Adotaremos as traduções encontradas usualmente na literatura de língua portuguesa de análise do
comportamento, respectivamente, “mando, tato, ecóico, textual, trancrição, intraverbal e autoclítico”.
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que começasse, tinha um jeito bobo de nossa pele.


continuar. O tato é controlado por estímulo discri-
- Já que eu não posso ser o pai -dizia com
tristeza- imagino que você não me minativo não-verbal, sendo reforçado por
deixaria ser o nenê, Miguel? reforço generalizado. Um grande repertório
- Não, não deixo - retrucou Miguel, que já de tatos é instalado nos falantes desde a
estava dentro de sua cesta. infância. Na presença de sua mãe, a criança
- Como eu não posso ser o nenê -dizia
recebe um sorriso, um afago ou é retirada do
Biriba, ficando cada vez mais deprimido-
vocês acham que eu poderia ser um berço, ao emitir o tato mãe. Dessa forma nossos
gêmeo? tatos vão sendo estabelecidos e aprendemos a
- De jeito nenhum - responderam os emitir carro, na presença de objetos com rodas,
gêmeos.- É muito difícil ser um gêmeo. assentos e certas outras propriedades, ou
- Já que eu não posso ser nada importante,
será que alguém quer me ver fazer uma colégio, frente a um prédio relativamente
mágica? grande, com várias salas, crianças, etc.
- Não - responderam todos. Wendy, João e Miguel emitem vários tatos ao
chegar à Terra do Nunca:
Observe que nossa definição de compor- - Wendy, olhe as tartarugas enterrando
tamento verbal não se relaciona com qualquer seus ovos na areia.
- Ei, João, estou vendo seu flamingo com a
topografia específica da resposta, mas com a
perna quebrada.
mediação feita pelo ouvinte na obtenção de - Olhe, Miguel, ali está sua caverna.
reforço. Desta forma, gestos, como o “levantar
o braço” de Biriba, são comportamentos Veja também quantos tatos Barrie emite para
verbais. Outro indício de que também na descrever o quarto da fada Sininho:
Terra do Nunca a comunidade verbal O leito, como ela sempre chamava a cama,
condicionava operantes verbais não vocais era um autêntico Fada Morgana, com pés
está na reflexão feita por Peter Pan, quando em clava, e as colchas eram trocadas de
acordo com as flores da estação. O
tentava descobrir para onde teriam sido espelho era um Gato-de-Botas raríssimo,
levados Wendy, seus irmãos e os meninos sendo que os colecionadores de
perdidos, todos raptados pelos piratas: antigüidades das fadas têm conhe-
Ele havia ensinado às crianças alguma cimento de apenas três destes ainda
coisa sobre sobrevivência na floresta, que intactos . (...) Havia também um
ele mesmo aprendera de Lírio Bravo e candelabro Bacará, mas só para fazer
Sininho, e sabia que, numa hora crucial vista, pois evidentemente Sininho
como esta, eles não esqueceriam. Se iluminava sozinha todo o aposento.
Sabido tivesse a oportunidade faria
marcas em alguma árvore, por exemplo, e Todas as propriedades do estímulo
Enrolado deixaria cair umas sementes
discriminativo ao qual o reforço é contingente
pelo caminho, e Wendy largaria seu lenço
em algum lugar importante. controlam o tato, de forma que um outro
estímulo que possua algumas destas
2) O tato: Permite que a comunidade verbal propriedades pode ser eficaz no controle
tome contato, indiretamente, através do funcional do operante verbal. Podemos
comportamento verbal do falante, com vários explicar a partir daí uma parte do que
aspectos do ambiente físico e cultural, usualmente é referido como “a criatividade da
inclusive com os presentes em contextos linguagem”, pois assim constituem-se
geográficos e históricos diferentes daqueles situações em que, pela primeira vez, certas
em que ela vive. É por meio do tato que propriedades de um estímulo funcionam
nomeamos os estímulos ou algumas de suas como estímulo discriminativo que controla a
propriedades, descrevendo vários dos emissão de um determinado operante. Nestes
aspectos dos ambientes externo e interno à casos, falamos de “tato estendido”.

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Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

Um exemplo é o da extensão metonímica, em umas escondidas dentro das outras, e,


que um estímulo adquire controle funcional quando você acha que abriu a última,
descobre sempre mais uma. E sua boca
sobre a resposta, porque costuma doce e irônica tinha um beijo que Wendy
acompanhar o estímulo ao qual o tato é nunca conseguira ganhar, apesar dele
contingente. Veja a extensão metonímica de estar bem ali, perfeitamente visível, logo
Barrie: no canto direito.
(...) você notará que aqui estão sete
árvores grandes, cada uma com um (Se você ler o livro, poderá descobrir quem
tronco oco, e um buraco exatamente do acabou ganhando aquele beijo...)
tamanho de um menino. Estas são as sete
Quando a precisão é importante, um
entradas para a casa debaixo da terra, que
o capitão Gancho vem procurando há procedimento cuidadoso de reforçamento
muitas luas. Será que ele a encontrará esta diferencial pode fazer com que exatamente
noite? uma ou algumas das propriedades de um
estímulo discriminativo assumam o controle
Barrie emite luas, no lugar de meses, porque o do tato, o que possui inestimável valor na
estímulo que controla o operante verbal luas atividade científica, onde são evitadas as
costuma acompanhar - ou é parte de - o extensões metafóricas e metonímicas. Os
estímulo que controla o operante verbal meses. métodos da ciência exigem o condicio-
Na extensão metafórica, uma certa proprie- namento do comportamento verbal científico
dade do estímulo, embora não aquela sobre a mediante reforço completamente gene-
qual o reforço da comunidade verbal é ralizado, com a finalidade de suprimir por
contingente, adquire controle funcional da inteiro os interesses especiais do falante,
resposta. É o que permite ao Capitão Gancho mantendo o controle do comportamento
dirigir-se da seguinte forma a seus cães: verbal apenas no meio externo a ele.
Julgando-o fora de ação por um tempo, 3) O ecóico, o textual e a transcrição: A
seus cães relaxaram instantaneamente a
disciplina e começaram a dançar modelagem dos comportamentos ecóico,
loucamente. Isto o fez acordar de textual e de transcrição cria no falante um
imediato sem qualquer traço de fraqueza repertório de unidades mínimas da fala e da
mortal, como se tivesse tomado um banho escrita importantes para pais, professores,
de água fria.
etc., porque são condição prévia necessária
- Quietos, seus ectoplasmas, ou jogo a
âncora em cima de vocês! para o estabelecimento de outros tipos de
operantes verbais -mandos, tatos, etc.
Que propriedade comum aos ectoplasmas e São controlados por estímulos discrimi-
aos cães terá permitido a Gancho parecer nativos verbais apresentados por outros
verbalmente tão inventivo? Talvez fossem falantes e por reforço generalizado. A
igualmente desprezíveis... natureza do estímulo verbal (auditivo ou
A propriedade comum entre os estímulos visual), a modalidade da resposta (vocal ou
pode não ser relativa a suas características escrita), além da maneira como se
físicas, mas a um efeito comum que eles correspondem estímulo e resposta, diferen-
provocam no falante. A boca da Sra. Darling ciam estes operantes entre si.
compartilhava com os beijos a propriedade Quando o estímulo discriminativo e o
“doce”, ou pelo menos era doce o efeito que produto da resposta verbal correspondem a
ambos tinham sobre Wendy. A Sra. Darling: um padrão físico semelhante, dizemos que há
Era uma mulher encantadora, com idéias correspondência formal entre eles. Ela ocorre
românticas e uma boca doce e irônica. Sua mais freqüentemente quando ou o estímulo
mente romântica era como aquelas discriminativo é auditivo e a resposta é vocal
caixinhas vindas do misterioso Oriente:
ou o estímulo discriminativo é visual e a

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A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner

resposta é escrita, casos em que o padrão físico correspondência formal. Reforçamos uma
do estímulo discriminativo e o padrão físico criança a pronunciar gato na presença da
gerado pela resposta podem ser muito palavra impressa gato. Em função das práticas
semelhantes (por exemplo, soam muito de escrita de cada língua, pode haver
parecido). Há correspondência ponto a ponto imperfeições na correspondência ponto a
entre estímulo discriminativo e resposta ponto, como no caso do comportamento
quando ambos têm dois ou mais compo- textual chave, controlado pelo estímulo
nentes, e o primeiro componente do estímulo discriminativo visual chave, em que o
controla o primeiro componente da resposta, primeiro tem quatro componentes (quatro
o segundo componente do estímulo controla o fonemas), ao passo que o segundo tem cinco
segundo componente da resposta, etc. (as cinco letras).
Quando há correspondência formal, há A comunidade depende do comportamento
correspondência ponto a ponto, exceto nos textual para estabelecimento de muitos de
casos em que estímulo e resposta têm apenas seus controles. Veja como Wendy se dá conta
um componente. Quando há correspondência de que é hora de dormir, quando reassume
ponto a ponto, nem sempre há seu papel de mãe depois da batalha em que os
correspondência formal, dado que a natureza meninos perdidos e Peter Pan vencem os
do estímulo e a modalidade da resposta piratas:
podem não ser semelhantes (Peterson, 1978). É claro, Wendy havia ficado de lado, sem
Estabelecemos um ecóico numa criança, tomar parte na luta, muito embora com
olhos faiscantes colados em Peter. Mas
quando pedimos a ela que repita um estímulo agora que tudo estava terminado, voltou
verbal auditivo que ela acabou de ouvir, por à sua posição de destaque. Elogiou a
exemplo, Sissi, o nome de uma amiga. Entre o todos igualmente e estremeceu
estímulo discriminativo verbal auditivo (o maravilhosamente quando Miguel lhe
mostrou o lugar onde havia morto um.
som da palavra ouvida pela criança) e a
Depois levou-os todos para a cabine do
resposta verbal da criança (sua reprodução Capitão e, apontando para o relógio de
vocal do que ouviu), deve haver correspon- parede, disse: - Uma e meia!
dência formal, exigência que fazemos para
reforçá-la. A transcrição ocorre em duas modalidades
As práticas reforçadoras de ecóicos da diferentes, a cópia ou o ditado. Na cópia, o
comunidade pele-vermelha deviam ser estímulo discriminativo verbal é visual, a
mesmo muito exigentes, ao passo que a dos resposta é escrita e há correspondência ponto
coiotes nem tanto, como podemos depreender a ponto entre os dois. Pode ou não haver
da seguinte passagem em que Barrie fala do correspondência formal, porque, embora a
silêncio da noite em que se movem os índios: natureza do estímulo e a modalidade da
Não se ouve nada a não ser quando os resposta sejam semelhantes, nem sempre o
índios resolvem dar vazão a uma padrão físico produzido por cada um deles o
fantástica imitação do uivo do coiote
solitário. Este uivo é respondido por é, como é o caso quando copiamos em forma
outros bravos, e alguns deles sabem fazê- manuscrita um texto impresso.
lo até melhor que os coiotes, que na No ditado, o estímulo discriminativo é
verdade não são mesmo muito bons auditivo e a resposta é escrita, havendo
nisso.
correspondência ponto a ponto entre eles.
Novamente em função das práticas de escrita
No caso do textual, o estímulo discriminativo
de cada língua, a correspondência ponto a
verbal que o controla é um texto escrito
ponto pode ser imperfeita, como ocorre entre
(estímulo visual) e a resposta é vocal. Entre
o estímulo auditivo chave, com quatro
estímulo discriminativo e resposta verbal, há
fonemas, e a transcrição chave, com cinco
correspondência ponto a ponto, mas nunca há
Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213 203
Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

letras. não via água e sabão já há anos. Não havia


4) O intraverbal: A comunidade verbal instala uma portinhola em cujo vidro não se
pudesse escrever com os dedos “porco
no falante respostas verbais conectadas entre imundo” sobre a camada de sujeira. E ela
si, correspondendo a conexões que aquela já escrevera em várias.
cultura particular faz entre os fenômenos
físicos e/ou culturais. Por exemplo, ao As relações de controle dos intraverbais são
estímulo verbal D. Pedro I , pode ser bastante fracas em virtude de serem, muitas
conveniente para a comunidade que se vezes, coincidentes ou conflitantes. Veja, além
conectem operantes verbais relativos ao papel de estar controlado pelo estímulo que
que esta pessoa representou na história indicamos acima, o intraverbal Brasil também
daquela comunidade. Assim, podem ser está controlado por vários outros (Maior país
conectados, entre outros: Primeiro imperador do da América do Sul; País onde nasceu Santos
Brasil, Proclamou a independência do Brasil, etc. Dumont, ou infelizmente, Um dos países com
É controlado por um estímulo discriminativo pior distribuição de renda do mundo, etc.).
verbal auditivo ou visual e estabelecido por Boa parte do trabalho escolar e também do
reforço generalizado, não havendo científico consta do estabelecimento de um
correspondência formal nem ponto a ponto repertório intraverbal. O trabalho teórico, não
entre o estímulo discriminativo e a resposta experimental, do cientista consiste na
verbal. Assim ensinamos tabuada às crianças: construção cuidadosa de um certo repertório
o estímulo verbal (auditivo ou visual) três intraverbal que pode, em seguida, funcionar
vezes dois é ocasião na qual reforçamos a como estímulo discriminativo para seu
emissão do intraverbal seis. Da mesma forma, comportamento na etapa posterior, experi-
reforçamos os intraverbais Brasil, Colômbia, mental, de seu trabalho. Assim, o operante
Chile em seguida ao estímulo verbal Países da verbal emitido por você na presença do
América do Sul. estímulo verbal O esquema de razão fixa
O intraverbal diferencia-se do tato basica- consiste em ... é um intraverbal e vai guiá-lo
mente por causa dos estímulos discrimi- quando, em seu trabalho experimental, for
nativos que controlam cada um dos dois: no submeter o sujeito a uma contingência FR... .
caso do primeiro, o discriminativo é verbal e, 5) O autoclítico: Este é o tipo de operante
no do segundo, é não-verbal. verbal por meio do qual Skinner busca
A principal diferença entre intraverbal, por explicar respostas que sugerem a existência de
um lado, e ecóico, textual e transcrição, por um sistema diretor, organizador, avaliador,
outro, reside em que entre estes três últimos e selecionador e produtor (Skinner, 1957/1992),
seus respectivos estímulos discriminativos há quando examinamos amostras mais amplas
correspondência formal e/ou ponto a ponto, o de comportamento verbal. Quase qualquer
que não ocorre no caso do intraverbal. amostra de comportamento verbal com a qual
Talvez tenha sido um controle intraverbal o estejamos lidando envolve comportamentos
que tenha levado Wendy a escrever aquelas verbais como: se, portanto, entretanto, etc. Além
palavras. Possivelmente, a situação do navio disto, há uma ordem pela qual as respostas
evocou o porco, como um tato (extensão verbais são emitidas; por exemplo, um artigo
metafórica), e este é um estímulo verbal em caracteristicamente precede um substantivo e
cuja presença muitas vezes a emissão do não o contrário: falamos O menino e não
intraverbal imundo é reforçada: Menino o . Os vários fragmentos de
Não tenho palavras para descrever o comportamento verbal são também
desprezo de Wendy por aqueles piratas.
coordenados entre si, como sugere, por
Para os meninos havia pelo menos um
certo fascínio no apelo dos piratas, mas exemplo, a concordância de gênero
Wendy só enxergava o fato de que o navio (masculino ou feminino). Se emitimos a

204 Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213


A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner

resposta verbal As é mais provável que a seguida, etc. Classificam-se também como
completemos com meninas e não com meninos. autoclíticos os fragmentos do comportamento
O autoclítico pode ser útil de várias maneiras à verbal responsáveis pelo ordenamento e
comunidade verbal, como nos casos em que coordenação de uma amostra mais ampla de
fornece: 1) elementos para o ouvinte acerca comportamento verbal, como é o caso dos
das propriedades dinâmicas (como força) do conectivos, das flexões, das preposições e da
comportamento. O autoclítico - Estou inclinada ordem das respostas verbais. Por exemplo, em
a viajar nas férias12 indica para o ouvinte a força As crianças que recebiam alimentação adequada
de minha disposição para viajar no período, apresentavam rendimento escolar superior às que
de maneira diferente da que faria o autoclítico não recebiam, encontramos conectivos ( por
- Estou decidida a viajar nas férias ; 2) exemplo: que) cuja função é a de ligar partes
informações sobre as condições que posteriores (orações subordinadas) a partes
controlam ou dão origem ao comportamento anteriores (oração principal) da emissão
verbal do falante. O autoclítico - Eu vi quando o verbal, encontramos ainda o fragmento iam
carro atravessou a pista e capotou oferece ao que comenta o fragmento receb13, indicando
ouvinte informações mais confiáveis sobre o para o ouvinte o tempo em que ocorre a ação
acidente - dependendo, é claro, de de receber e a pessoa a quem ela se refere,
circunstâncias anteriores em que, a partir de ambos (ação e pessoa) já aparecendo como
informações dadas por este falante particular, tatos em outras partes desta emissão verbal.
o comportamento do ouvinte foi adequado - O operante autoclítico é o conceito pelo qual
do que o autoclítico - Ouvi dizer que o carro Skinner trata de alguns dos temas
atravessou a pista e capotou; 3) indicações sobre tradicionalmente estudados pela morfologia e
a ordem temporal de eventos através de certos pela sintaxe, cujos dispositivos teriam, além
fragmentos do comportamento verbal do de outras, importantes funções autoclíticas.
falante que se dispõem em determinada O autoclítico e o intraverbal têm em comum
ordem seqüencial, como em - Primeiro falou um controle por estímulo discriminativo
Antônio, depois Maria. verbal com quem não apresentam
No caso do operante autoclítico, uma parte do correspondência formal ou ponto a ponto. A
comportamento verbal do falante assume o principal diferença entre os dois reside em que
controle de outra parte; esta última é então o primeiro é um operante verbal que não
chamada “autoclítico”. São comportamentos aparece sozinho, sendo controlado por outra
verbais que apenas aparecem acompanhando parte do comportamento verbal do próprio
outros comportamentos verbais. Por exemplo, falante; o segundo está controlado por um
na emissão verbal O menino correu, os estímulo verbal que pode ser resultado do
fragmentos sublinhados não aparecem comportamento de um ouvinte ou,
sozinhos em outras emissões verbais e estão eventualmente, do comportamento verbal do
determinados pelos fragmentos restantes, os próprio falante, mas, como vimos
não sublinhados. anteriormente, sua função não é a de fornecer
Assim, o autoclítico é comportamento verbal informações sobre o comportamento verbal
que comenta ou qualifica outras porções de do falante ou de ordená-lo.
comportamento verbal, ao descrever sua Selecionamos alguns autoclíticos da conversa
força, apontar suas circunstâncias contro- em que o Capitão Gancho conta ao pirata
ladoras, negar afirmações que vêm em Smee a razão de seu ódio por Peter Pan:

12
Neste e nos demais exemplos de operantes autoclíticos, não faço uma análise de todos os fragmentos de comportamento verbal que no
exemplo em questão possam ter função autoclítica, mas apenas do fragmento que interesse para o caso ou tipo de autoclítico que desejo
exemplificar.
13
Receb está em negrito porque, neste momento, estamos interessados em sua função como um dos estímulos verbais (neste caso,
produzido pelo próprio falante) que controlam a emissão do autoclítico iam.
Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213 205
Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

- Peter atirou meu braço - dizia o Capitão anterior. Neste sentido, ele é um tato e
Gancho encolhendo-se- a um crocodilo também um intraverbal.
que por acaso passava por ali naquele
momento. A causação múltipla explica parte do que
- Eu já notei que o senhor tem uma chamamos “criatividade da linguagem”,
estranha fobia por crocodilos. expressão usada para nos referirmos a
- Não é por crocodilos - corrigiu o comportamentos verbais emitidos pela
Capitão- é por aquele crocodilo em
primeira vez ou em circunstâncias não usuais.
especial. Abaixando a voz, prosseguiu: -
Ele gostou tanto do meu braço, Smee, que Já tínhamos visto ser este também o caso das
desde então tem me seguido por todos os extensões metafóricas ou metonímicas do
mares e por todas as terras pelas quais tato. Em algumas situações falamos, ainda, de
passei sempre lambendo os beiços, acaso (Skinner, 1988/1991), fator chamado a
querendo comer o resto de mim.
desempenhar papel explicativo da emissão do
operante quando se desconhecem as variáveis
Ambos os exemplos referem-se a unidades de
independentes de que é função. O acaso, aqui,
comportamento verbal sob controle de outras
tem estatuto semelhante ao que possui na
partes do comportamento verbal, a respeito
genética molecular (Jacob, l98l), dando conta
das quais constituem comentários. O primeiro
da variação inicial, nesta, das mutações e
fragmento, ou, está sob controle do Peter
combinações, e na análise do comportamento,
anterior e indica para o ouvinte quem (Peter)
da primeira emissão do operante.
executou a ação e em que época (no passado) o
fez. O segundo fragmento, Eu já notei, indica o
O papel da audiência
restante que o senhor tem uma estranha fobia por
crocodilos como uma reflexão pessoal do pirata
Outra importante variável de controle é a
Smee. O terceiro fragmento, e, está controlado
audiência, com os estímulos discriminativos
por por todos os mares e por todas as terras e
não-verbais que ela mesmo constitui e com os
indica sua união.
estímulos discriminativos verbais e os
reforços que apresenta. As variáveis de
A causação múltipla
audiência e as mencionadas acima combinam-
se para, na causação múltipla, produzir um
Variáveis isoladas como as que apontamos
comportamento verbal. O falante é, assim,
acima reúnem-se dando origem à combinação
um:
de vários fragmentos de comportamento
(...) organismo que se engaja num
verbal: comportamento verbal ou que o executa.
O comportamento verbal é usualmente o Ele é também uma localidade - um lugar
efeito de múltiplas causas. Variáveis no qual diversas variáveis se reúnem
separadas combinam-se para estender numa confluência única para produzir
seu controle funcional e novas formas de um acontecimento igualmente único.”
comportamento emergem da (Skinner, l957/1992, p. 313)
recombinação de antigos fragmentos.
(Skinner, l957/1992, p. 10; itálico no
original) Diferentes audiências controlam diferentes
repertórios verbais. Falamos coisas diferentes
O verbal treze, emitido quando estamos de maneiras diferentes se conversamos com
contando as pressões à barra de nosso sujeito crianças, com colegas, com professores, com
experimental, está controlado por estímulo nossa família.
discriminativo não-verbal (uma certa pressão Amplos repertórios verbais podem estar sob
à barra numa série), tanto quanto pelo controle da audiência. Temos uma história de
estímulo discriminativo verbal doze , reforçamento diferencial para a emissão de
produzido a partir de nosso próprio verbal operantes verbais modelados pela
comunidade de língua portuguesa, na
206 Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213
A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner

presença de brasileiros, e de modelados pela Uma parte da conduta é determinada pelo


comunidade de língua inglesa, na presença de "mundo privado dentro da pele" (Skinner,
falantes dessa língua. 1953/1985) e sua análise como um todo exige,
Por não ter repertório apropriado à pois, a consideração destes determinantes
comunidade verbal dos humanos, o Pássaro privados.
do Nunca quase não consegue oferecer seu Podemos vislumbrar uma parte do
ninho para que Peter o use como bote, pensamento verbal de Peter e perceber como
salvando-se de morrer afogado pelas águas da controla alguns de seus comportamentos,
Lagoa das Sereias: observando o que ele faz depois que Wendy e
- Eu-quero-que-você-entre-neste-ninho - as outras crianças deixam a Terra do Nunca:
dizia o pássaro falando o mais devagar e o (...) Peter continuara a tocar suas flautas
mais claramente possível - então-você- por um tempo após a partida das crianças,
poderá-chegar-até-a-margem, mas-eu- sem dúvida numa triste tentativa de
estou-muito-cansada-e-não-consigo- provar a si mesmo que não se importava.
levar-o-ninho-até-mais-perto-de-você, Depois resolveu não tomar o remédio,
você-tem-que-nadar-até-aqui. para fazer uma desfeita a Wendy. E
- O que é que você está grasnando aí? Por depois ainda deitou-se por fora das
que não deixa o ninho boiar como cobertas para desagradá-la mais um
sempre? pouco, pois ela sempre o cobria muito
O pássaro repetiu tudo de novo: - Eu- bem (já que nunca se sabe se vai ficar frio
quero-que-você... na virada da noite). Neste ponto ele quase
Foi a vez de Peter tentar bem devagar e chorou, mas lhe ocorreu que ela ficaria
claramente. revoltada se em vez disso ele risse, e então
O-que-é-que-você-está-grasnando...- e deu uma enorme gargalhada,
assim por diante. adormecendo antes de terminar.

O pensamento verbal e o “mundo privado 2) Ele escapa, em larga medida, ao controle do


sob a pele” ambiente externo ao organismo, ficando na
dependência do auto-reforçamento. É,
Durante o processo de aquisição do repertório portanto, todo um importante repertório
de comportamento verbal, a audiência, comportamental, determinante de outros
começando por reforçar as emissões de comportamentos do mesmo organismo, que
comportamento verbal aberto, passa em foge, ao menos mais diretamente, do controle
seguida, em muitos casos, a puni-lo, como do ambiente externo a ele;
também ocorria na Terra do Nunca: 3) Ele está envolvido no comportamento
Por último vêm os gêmeos, que não científico. A análise funcional do compor-
poderão ser descritos porque estaríamos
infalivelmente descrevendo o gêmeo
tamento deve trabalhar sobre esta ampla e
errado. Peter nunca soube direito o que vital parcela do comportamento humano,
eram gêmeos, e como não era permitido dando origem a uma epistemologia empírica.
ao seu bando saber alguma coisa que ele Nas palavras de Skinner:
não soubesse, estes dois eram sempre Uma das realizações últimas de uma
meio vagos a respeito de si mesmos. ciência do comportamento verbal poderá
ser uma lógica empírica ou uma
O comportamento regride, então, para o nível epistemologia científica analítica e
descritiva, cujos termos e práticas serão
de comportamento verbal encoberto, sendo
adaptados ao comportamento humano
esta uma das origens do pensamento verbal. A como um tema. (Skinner, l957/1992, p.
elucidação deste comportamento verbal 431)
encoberto é necessária por várias e
importantes razões:
1) Ele é um determinante privado da conduta.

Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213 207


Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

A comunidade verbal e a consciência outras espécies. A concepção marcadamente


naturalista do homem que defende não colide
Skinner confere à consciência papel bem com uma visão segundo a qual o mundo da
diverso do que lhe era atribuído nos outros cultura, vivamente entrelaçado com a
modelos behavioristas. Ao contrário do possibilidade de comportamento verbal,
behaviorismo ontológico que a negava - como concede à espécie humana uma posição de
em Watson - ou do behaviorismo metodo- fato ímpar em relação ao conjunto do mundo
lógico - como em Hull - que a afastava por vivo. Entre o mundo da cultura e o da
força de uma certa vinculação com o natureza não há descontinuidade, mas o
operacionismo (Abib, l985), segundo o qual primeiro emerge do segundo como efeito da
havia uma impossibilidade de dar-lhe ação do comportamento operante do homem
tratamento científico, o behaviorismo radical sobre a natureza e principalmente sobre os
de Skinner designa um papel à subjetividade outros homens. Institui-se, assim, todo um
e, em especial, à consciência. Parte-se da universo de contingências de reforçamento,
crítica de uma definição da consciência em mantido, em última instância, por seu valor de
termos de um "lugar" carente de dimensões sobrevivência, que será específico de cada
físicas, imaterial, e propõe-se outra em que grupo humano. Este universo vem a ser,
esta corresponde à descrição, pelo falante, de concretamente, o vasto conjunto de práticas
estímulos e comportamentos, incluindo a culturais pelas quais a comunidade controla e
descrição da parcela do ambiente do próprio produz boa parte do comportamento de seus
falante que não é acessível à observação direta membros, o que é feito sobretudo através do
do outro (nas palavras de Skinner, o "mundo comportamento verbal. A relação de mão
sob a pele"). dupla em que a espécie altera o ambiente e tem
Esta parte do ambiente encerrada sob a pele é seu comportamento afetado por ele em termos
fonte de estímulos, tanto quanto o é o de probabilidade de emissão futura - o que
ambiente externo a ela. A comunidade verbal, coloca o organismo tão ativo quanto o
ao condicionar o organismo humano a ambiente - é potencializada, no caso do
responder verbalmente àquilo que ocorre organismo humano, justamente pelo
nesta parte privada do mundo, dá origem a comportamento verbal, que permite as
um repertório verbal descritivo destes maiores realizações culturais, tais como a arte
estímulos privados. A consciência surge, pois, e a ciência, entregando às mãos humanas um
necessariamente vinculada à vida cultural do grande poder, nunca experimentado na
homem, com seu ambiente verbal. Sendo mesma escala por espécie alguma, de intervir
parte da subjetividade, tem papel no ambiente, transformando-o.
determinante na conduta do organismo, Para Skinner, a ciência, cujo critério de
participando das contingências de verdade é a capacidade de alterar delibe-
reforçamento na qualidade de estímulo radamente seu objeto, representa o ápice da
discriminativo e possibilitando, embora eficiência do comportamento operante e deve
apenas imperfeitamente, o autocontrole e o ser usada, na forma da análise funcional do
autoconhecimento (Skinner, 1974/1985). comportamento, para criar um ambiente que
condicione operantes mais adaptativos e gere
O comportamento verbal entre a natureza e a uma subjetividade menos constrangida
cultura (Skinner, 1955-1956). O comportamento
científico, pois, de tão grande valia
Para a análise funcional do comportamento, o adaptativa, deve ser ele mesmo tomado como
comportamento verbal determina à objeto de estudo científico pela análise
humanidade um lugar único em relação às funcional do comportamento e, em larga

208 Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213


A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner

medida, embora não inteiramente, ele é Dificuldades e possibilidades do estudo do


verbal. comportamento verbal
O repertório comportamental profissional do
cientista é composto de um conjunto de Há algumas dificuldades especiais, oriundas
operantes não-verbais - o repertório de fontes diversas, colocadas pelo estudo do
comportamental do experimentalista - que comportamento verbal. Uma, vinculada a
exercem seu efeito diretamente sobre o objeto certo momento histórico da Psicologia, foi a
natural da ciência e de outro conjunto de crítica de Chomsky (1959) a Verbal Behavior
operantes, verbais - o repertório compor- (Skinner, 1957/1992), que desempenhou um
tamental do teórico-, que consistem de papel inibidor tanto das pesquisas na área
comportamentos "manipulativos" dos dados pelos próprios skinnerianos quanto da
registrados a partir dos procedimentos aproximação de pesquisadores de áreas afins,
empíricos. Ambos geram conseqüências como os lingüistas. Analistas do compor-
reforçadoras específicas: no primeiro caso, a tamento (Knapp, 1992; Richelle, 1972-1973),
alteração efetiva dos dados produzida pela lingüistas (Andresen, 1990; Joseph, Love &
manipulação experimental das variáveis Taylor, 2001, pp. 116, 120) e filósofos (Place,
causais e, no segundo, o patamar de 1981) têm apontado o interesse
ordenamento que se obtém sobre os dados desproporcional que a crítica recebeu em
resultantes da fase experimental do trabalho relação ao texto criticado. Na verdade, muitos
(Schnaitter, l980). A modelagem do repertório rejeitam Verbal Behavior sem o terem sequer
comportamental do experimentalista, embora lido, baseados apenas na leitura do texto de
este em si mesmo seja predominantemente Chomsky. Este tipo de rejeição não está
constituído de operantes não-verbais, tem embasada em critérios adequados ao trabalho
grande dependência do comportamento científico, que requerem o conhecimento
verbal, pelo montante de abstração que daquilo que se rejeita e a justificação explícita
implica. das razões pelas quais se rejeita.
Nossa capacidade de conhecer se estende Uma outra dificuldade encontrada no estudo
porque a comunidade verbal pode estabelecer do comportamento verbal é o fato de que ele é
discriminações - algumas tão finas que só se bastante controlado por estímulos discrimi-
viabilizam pelo comportamento verbal-, nativos gerados no "mundo privado dentro da
através das quais ela coloca o organismo sob pele", além de, por ser o falante ao mesmo
controle de propriedades de estímulos do tempo seu ouvinte, receber auto-
ambiente quase que apenas isoláveis pela reforçamento. Esta esfera de fenômenos
própria linguagem, como é o caso no valioso referente ao mundo privado sempre exige
processo da abstração. Enfim, o compor- metodologia mais sofisticada para ser
tamento verbal surgiu e se mantém, porque adequadamente atingida.
tem valor de sobrevivência para a espécie: Jack Michael (1984) mencionou mais uma
O comportamento vocal certamente tem dificuldade, a relacionada à apresentação, em
várias vantagens: os animais podem Verbal Behavior, de vários tópicos de grande
responder vocalmente quando estão
complexidade -tais como agnosia,
ocupados com outras coisas, e ouvir
quando não estão olhando. Na espécie agramatismo, aliteração, etc.- e não
humana, porém, o comportamento vocal relacionados diretamente à área de análise do
é também modelado e mantido por suas comportamento. Verbal Behavior trata de
conseqüências reforçadoras. Essa é uma tantos tópicos que parecem meio
característica exclusiva, que confere à
espécie uma vantagem especial e pode, de
“estrangeiros” à análise do comportamento,
fato, explicar suas extraordinárias em parte porque compartilha seus interesses
realizações.” (Skinner, 1988/l99l, p. 155)

Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn. 2003, Vol. V, nº 2, 195-213 209


Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

com duas antigas disciplinas, a lingüística e a outras disciplinas, dependendo da questão


epistemologia. De fato, para entender grandes específica que se esteja estudando.
porções do livro, é necessário algum Apesar dos obstáculos históricos, lógicos e de
conhecimento sobre conceitos tradicionais metodologia, a investigação teórica e
destas duas disciplinas como, por exemplo, experimental do comportamento verbal vem
paradoxo heterológico (p. 320), fonema (pp. ocorrendo e se avoluma gradativamente (Day,
15ff, 63, 123), proposição (pp. 8, 78, 82, 174, l980; Eshleman, 1991; Normand, Fossa, &
228, 451), linguagem e metalinguagem (pp. Poling, 2000). As várias pesquisas são de
319). temática diversa, revelando interesses
Entretanto, o maior obstáculo ao avanço na bastante diferenciados dos pesquisadores,
compreensão do comportamento verbal tem como por exemplo: a melhoria do
sido o afastamento recíproco de disciplinas desempenho verbal das pessoas enquanto
que deveriam estar trabalhando em conjunto. ouvintes e falantes, a investigação do
Dado o papel crítico das contingências comportamento governado por regras, a
culturais na instalação e manutenção desta constituição de uma epistemologia
forma de comportamento operante, o estudo behaviorista, o comportamento verbal na
do comportamento verbal exige uma atividade do psicólogo clínico, métodos de
abordagem interdisciplinar, com a partici- alfabetização, independência funcional dos
pação, de início, ao menos da análise do repertórios de falantes e ouvintes, o ensino de
comportamento e da lingüística, além de língua estrangeira, etc.

Questões de Estudo
Quero agora que digam o que quero
dizer-te
Vamos iniciar pela leitura de uma amostra de para que escutes como quero que me
comportamento verbal emitido pelo poeta escutes.
Pablo Neruda14:
Para que tu me escutes Costuma ainda arrastá-las o vento da
minhas palavras angústia
adelgaçam-se às vezes e furacões de sonhos ainda as tombam às
como as pegadas de gaivotas nas praias. vezes.
Escutas outras vozes em minha voz
Colar, cascavel ébrio dorida.
para tuas mãos suaves como as uvas.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas
Vejo-as longe de mim, minhas palavras. súplicas.
Mais do que minhas são tuas. Ama-me, companheira. Não me
Sobem por minha velha tristeza como as abandones. Segue-me.
heras. Segue-me, companheira, nesta onda de
angústia.
Sobem, sobem assim pelas paredes
úmidas. Vão-se tingindo com teu amor minhas
Mas tu és a culpada deste jogo sangrento. palavras.
Elas estão fugindo do meu abrigo escuro. Ah, tudo invades tu, ah tudo invades.
Ah, tudo invades tu, ah tudo invades.
Vou fazendo de todas um colar infinito
Antes de ti povoaram a solidão que para tuas brancas mãos suaves como as
ocupas, uvas.
e estão mais do que tu afeitas ao meu
tédio.

14
Este é o quinto dos 20 Poemas de Amor e uma Canção Desesperada. A tradução é de Domingos Carvalho da Silva, Editora Sabiá.
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A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner

Segundo o lingüista Eugênio Coseriu Que reforço estaria sendo especificado nele?
(1968/1987), a poesia realiza todas as
possibilidades da linguagem, instauradas 2) Que contingências controlam o tato?
pelas relações que os signos lingüísticos Que importância têm os tatos para a
guardam entre si e com o mundo comunidade verbal? Veja o exemplo
extralingüístico, com as diferentes formas de sublinhado no texto do poeta:
interpretação do mundo e do conhecimento Vou fazendo de todas um colar infinito
empírico que se tem dele, etc. para tuas brancas mãos suaves como as
uvas.
Em nossa linguagem de analistas do
comportamento, diríamos que o poeta teve o
3) Examine o autoclítico:
comportamento verbal finamente modelado Sobem, sobem assim pelas paredes
por sua comunidade, de maneira que se úmidas.
tornou capaz de obter inúmeros dos efeitos
possibilitados por este comportamento. Como vimos, os autoclíticos estão sob controle
Tendo sido exposto a uma comunidade verbal de outras parcelas do comportamento verbal
sofisticada, já que em geral ele lê muito, seu do próprio falante. Neste caso, qual seria a
repertório verbal é extenso, com respostas parcela controladora?
verbais sutilmente diferenciadas por estímu-
los e, principalmente, por propriedades de 4) A amada do poeta modifica a probabilidade
estímulos bem discriminadas. Tantas de emissão de seus verbais. Como se
discriminações resultam em extensões explicaria o efeito desta variável?:
metafóricas e metonímicas não usuais, em Mas tu és a culpada deste jogo sangrento.
novas combinações de variáveis funcional- Elas estão fugindo do meu abrigo escuro.
mente relacionadas ao comportamento
verbal, sob o controle de muitas diferentes 5) Os versos abaixo possivelmente descrevem
audiências. Sorte a nossa que podemos, uma parte do “mundo privado sob a pele”, o
através de nosso repertório textual, sofrer pensamento verbal. Como se tornam
indiretamente os efeitos destas características possíveis o pensamento verbal e sua
do ambiente. descrição?
Antes de ti povoaram a solidão que
Nestas questões de estudo, vamos expe-
ocupas ,
rimentar e analisar alguns destes efeitos a e estão mais do que tu afeitas ao meu
partir do poema de Pablo Neruda, em que o tédio.
poeta relaciona seu mundo privado, sua
amada e seu comportamento verbal. Vamos 6) E, por último, a linda extensão
interpretar, imaginar as variáveis que podem metafórica:
ter controlado alguns destes verbais, sempre Costuma ainda arrastá-las o vento da
tendo em mente as ressalvas feitas, no texto angústia
e furacões de sonhos ainda as tombam às
que você acabou de ler, a esta forma de vezes.
trabalhar o dado. Vamos selecionar algumas
unidades de comportamento verbal, fazer Que propriedades, comuns ao vento e à
alguns comentários e levantar algumas angústia do poeta, poderiam tê-la produzido?
questões.
1) Você conhece algum exemplo mais
bonito de mando?
Ama-me, companheira. Não me
abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nesta onda de
angústia.

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Maria de Lourdes Rodrigues da Fonseca Passos

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Recebido em: 29/11/2003


Aceito em: 08/12/2003

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