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Livro Sermo vulgaris: a jornada das traduções da Bíblia de volta à língua do povo

(Cachoeira, BA: Ceplib, 2013).

A NOVA VERSÃO INTERNACIONAL


E OS MANUSCRITOS DA BÍBLIA

Milton L. Torres

A Nova Versão Internacional (NVI) é uma tradução relativamente nova das


Escrituras Sagradas feita por uma equipe composta de mais de cem tradutores que
trabalharam diretamente com os melhores manuscritos do hebraico, aramaico e grego. A
equipe de tradutores foi formada a partir de uma reunião organizada por um comitê da
Associação Nacional de Evangélicos, no Trinity Christian College, em Palos Heights,
Illinois, em 1965. Tradutores foram, então, escolhidos a fim de representarem as diversas
denominações religiosas, incluindo os anglicanos, assembleias de Deus, pentecostais,
episcopais, batistas, luteranos, menonitas, metodistas, nazarenos, presbiterianos e
wesleyanos, mas sem a participação de tradutores da IASD. Em 1966, a SBI (também
conhecida pelo termo latino Biblica), fundada em 1809, passou a patrocinar o projeto.
Antes de se iniciar o processo tradutório, criaram-se equipes
transdenominacionais de tradução, ficando cada uma responsável por um livro específico
da Bíblia. Cada tradução foi posteriormente revisada por três grupos diferentes de
revisores. Para fazer parte dessas equipes de tradução e revisão, os estudiosos tiveram
que declarar seu compromisso com a autoridade e infalibilidade da Bíblia como Palavra
de Deus. Segundo o comitê editorial da NVI, a primeira preocupação dos tradutores foi
com a precisão da tradução e sua fidelidade ao pensamento dos escritores bíblicos
(COMMITTEE, 1984, p. 1). Desejava-se, entretanto, uma versão que fosse mais do que
uma tradução palavra por palavra. Por essa razão, amostras da tradução foram
apresentadas a diversos tipos de pessoas (jovens, velhos, pessoas com alto nível
educacional, pessoas com pouca instrução formal, ministros, leigos, etc.), com a
finalidade de colher suas reações ao texto traduzido. O objetivo era que a NVI tivesse
uma linguagem atualizada, mas sem regionalismos ou gírias, e que a tradução fosse
contemporânea, mas não excessivamente presa a um momento específico do tempo.
Os tradutores tiveram acessos às melhores edições críticas dos manuscritos da
BH e do NT. Para a tradução da BH, o foco recaiu sobre o texto massorético (TM)
padrão. Apesar disso, consultaram-se, ainda, os rolos do Mar Morto, o Pentateuco
Samaritano, a LXX, a versão grega de Áquila, a versão grega de Símaco, a versão grega
de Teodósio, a Vulgata, a Peshitta, os Targuns e a Juxta Hebraica de Jerônimo. Para o
NT, consultaram-se os melhores textos impressos do NT Grego. Várias notas de rodapé
foram incluídas a fim de explicar as incertezas acerca do texto original e propor
alternativas de tradução. Por seu compromisso com a precisão da tradução em relação
ao texto original nas línguas bíblicas e sua tentativa de vertê-lo para uma linguagem atual
e facilmente compreensível, Ekdahl (1993, p. 101-103, 106) coloca essa versão bíblica
entre as que podem ser lidas tanto por “alguém que tenha um bom conhecimento da
Bíblia e do português e queira sentir o mesmo prazer que os leitores do original sentiram”
quanto por “alguém com pouco interesse pela Bíblia ou que a esteja lendo pela primeira
vez”, e até mesmo por um pregador que esteja preparando seu sermão.
O projeto concluiu o NT em 1973 e a Bíblia completa em 1978, que sofreu uma
pequena revisão em 1984, outra em 2005 (conhecida como TNIV) e uma última revisão
em 2011. As revisões foram motivadas principalmente pelo desejo de optar por uma
linguagem inclusiva de gênero, uma das principais críticas antes dirigida à NVI
(ASSOCIATED PRESS, 2009). Dessa forma, a expressão “sons of God”, na versão em
inglês, passou a ser “children of God”.
Segundo o Dr. Kenneth L. Barker, secretário da comissão editorial da NVI, nos
quatrocentos anos de sua existência (desde 1611), a King James Version (KJV), principal
tradução da Bíblia para a língua inglesa, vendeu 350 milhões de cópias. Em apenas
quinze anos, a NVI vendeu 100 milhões de cópias. Esse sucesso de vendas, explicado
primeiramente com uma referência ao interesse despertado no coração das pessoas pela
Palavra de Deus, também se atribui à qualidade da tradução. Enquanto versões como a
KJV, New Standard Bible (NSB) e New King James Version (NKJV) adotaram
abordagens literais de tradução, isto é, palavra por palavra, e versões como a GNB e
Bíblia Viva (BV) adotaram uma abordagem excessivamente livre de tradução, a NVI
conseguiu ocupar um terreno intermediário, alcançando um bom equilíbrio entre a
abordagem literal e a abordagem livre de tradução (BARKER; PALMER, 1991).
Apesar do crescente prestígio da NVI como Bíblia de estudo e devoção, mesmo
antes de sua publicação, essa versão recente das Escrituras Sagradas recebeu ataques
por parte daqueles que se opuseram ao tipo de manuscritos gregos que serviram de
base para seu processo tradutório. Essa controvérsia gira, portanto, principalmente em
relação à tradução do NT.

CONTROVÉRSIAS SOBRE MANUSCRITOS DO NT


Os dois últimos séculos possibilitaram a descoberta de alguns manuscritos
(principalmente do NT) que impactaram a compreensão que se tinha, até então, do
processo de transmissão do texto bíblico ao longo dos séculos. Dentre essas
descobertas, o achado, em 1844, de um manuscrito do século IV, o assim-chamado
Códice Sinaítico, a Bíblia completa mais antiga em existência, impulsionou o
desenvolvimento da ciência agora conhecida como crítica textual. Além do Códice
Sinaítico, podem-se mencionar também as descobertas do Códice Washingtoniano, em
1906 (MILLER, 1960, p. 198-199); do Códice Koridethi, em 1913 (MILLER, 1960, p. 200);
dos assim-chamados papiros Chester Beatty (principalmente p46), na década de trinta;
dos papiros Bodmer (p66, p72, p74 e p75), por volta de 1956 (BRUCE, 1964); e dos rolos do
Mar Morto, na década de cinquenta (MARTELLO, 2004). O Códice Washingtoniano é
constituído de quatro manuscritos do quarto ou quinto século, adquiridos, em 1906, de
um negociante do Cairo, por C. L. Freer, de Detroit, razão por que são chamados, às
vezes, de manuscritos Freer (MILLER, 1960, p. 199). Com várias peculiaridades, o
Códice Washingtoniano ordena os evangelhos de acordo, provavelmente, com sua
popularidade, isto é, Mateus, João, Lucas e Marcos (KENYON, 1964, p. 78-79). O Códice
Koridethi, pertencente aproximadamente ao século VIII, é tardio e inclui apenas os
evangelhos, mas se tornou historicamente importante por comprovar a existência de uma
tradição de cópia dos manuscritos bíblicos associada com a cidade de Cesareia
(MILLER, 1960, p. 305-306). Os papiros Chester Beatty podem ser datados no século II
ou III e contêm três porções do NT, incluindo pedaços dos evangelhos, do livro de Atos,
das epístolas paulinas e do Apocalipse (MILLER, 1960, p. 200-202). Os rolos do Mar
Morto, por sua vez, não continham, obviamente, nenhum manuscrito do NT (SHANKS,
1993; WISE; ABEGG JR.; COOK, 1996).
A comparação do texto que serviu de base para as versões bíblicas até então
mais populares, o TR, com os manuscritos descobertos naquele período mostrou, além
de qualquer dúvida, que os copistas da Bíblia haviam cometido vários erros no processo
de cópia e transmissão do texto bíblico. Esses erros podem ser catalogados em pelo
menos cinco modalidades principais: erros de ortografia (facilmente identificáveis e
geralmente de pouca consequência para o processo de transmissão); inversões do tipo
“Jesus Cristo” e “Cristo Jesus”; harmonizações (através das quais um copista tirava parte
do texto de um autor, especialmente de um autor sinóptico, e o inseria no texto de outro
autor, provavelmente motivado pelo desejo de reparar o que julgava ser um
esquecimento por parte de outro copista); acréscimos litúrgicos (isto é, bênçãos e
fórmulas litúrgicas que o copista se habituara a ouvir na igreja e que, ao copiar, julgava
terem sido omitidas pelo descuido de outro copista, o exemplo mais famoso disso sendo
a fórmula litúrgica final incorporada ao Pai Nosso, em Mt 6:13); e glosas transferidas para
o texto (isto é, explicações que um copista havia dado na margem do texto e que outro
copista inadvertidamente incorporava ao próprio texto, os exemplos mais famosos sendo
as explicações contidas em Jo 5:4 e 1 Jo 5:7). Esses acréscimos não parecem ter
originado de nenhuma intenção fraudulenta por parte dos copistas. Trata-se
simplesmente de descuidos, no caso dos erros ortográficos e inversões, ou da
incorporação de material tão persuasivo e coerente que os copistas pensavam que fazia,
de fato, parte do original.
O que se descobriu com o estudo científico dos manuscritos do NT foi que os
manuscritos mais antigos, copiados principalmente na cidade de Alexandria, constituíram
uma modalidade menos susceptível às alterações editoriais. O clima seco de Alexandria,
uma cidade grega no Egito, contribuiu para que tais manuscritos fossem também
preservados das intempéries. Por outro lado, o tipo bizantino de texto, copiado
principalmente na cidade de Constantinopla, se mostrou mais vulnerável aos acréscimos.
É possível, de fato, traçar a evolução desses acréscimos por meio de procedimentos
crítico-textuais. Dessa forma, se determinou a genealogia dos manuscritos. O tipo
alexandrino de texto, que predominou do primeiro ao oitavo século, engloba papiros (isto
é, rolos feitos com uma espécie de papel preparado a partir do junco) e códices unciais
(isto é, livros de pergaminho escritos com letras maiúsculas, sem a separação das
palavras e sem a acentuação dos vocábulos). Destes, os principais são o Códice
Sinaítico, descoberto em 1844 e 1859, no mosteiro de Santa Catarina, no Sinai, datado
no século IV e hoje guardado no Museu Britânico; o Códice Vaticano, também datado no
século IV e guardado na Biblioteca do Vaticano desde 1481; e o Códice Alexandrino,
datado no século V, presenteado por Cirilo Lucar, patriarca de Constantinopla, a Charles
I, em 1627, e transferido para o Museu Britânico, em 1757, onde se encontra guardado
até hoje (KENYON, 1964). O tipo bizantino de texto, que predominou do século nono até
a invenção da imprensa, engloba principalmente os códices cursivos (isto é, livros de
pergaminho escritos com letras minúsculas, com a separação das palavras e com a
acentuação dos vocábulos). A invenção da letra minúscula provocou, de fato, uma
verdadeira revolução na arte de copiar manuscritos. A partir do século IX, o texto
bizantino floresceu como nunca antes (tabela a seguir). Embora fosse amplamente
copiado a partir do século IX, o texto bizantino nunca chegou a se difundir por uma região
tão ampla quanto aquela à qual chegou o TA (TA). Além disso, a queda do Império
Romano do Oriente limitou a sua influência. Mesmo assim, com a invenção da imprensa,
o texto bizantino veio a se transformar no TR, o assim-chamado “TR”, que serviria de
base para muitas das traduções modernas, inclusive a KJV.

séculos papiros unciais cursivos


2 2 0 0
2/3 5 1 0
3 28 2 0
¾ 8 2 0
4 14 14 0
4/5 8 8 0
5 3 36 0
5/6 4 10 0
6 7 51 0
6/7 5 5 0
7 8 28 0
7/8 3 4 0
8 2 29 0
8/9 0 4 0
9 0 53 13
9/10 0 1 4
10 0 17 124
10/11 0 3 8
11 0 1 429
11/12 0 0 33
12 0 0 555

O parágrafo anterior se esforçou para, de forma bastante resumida e superficial,


apresentar o relato que se considera padrão no estudo da transmissão do texto bíblico.
Apesar da coerência desse relato, a decisão dos tradutores contemporâneos de traduzir
privilegiando o TA (isto é, os manuscritos mais antigos e confiáveis) gerou uma teoria de
conspiração que, assim como outras teorias que presumem que o homem nunca chegou
à lua, que Elvis Presley ainda está vivo e que o próprio governo norte-americano
derrubou as “Torres Gêmeas”, conquistou o imaginário popular. Como especialista
assevero, no entanto, que há mais possibilidades de que estas teorias estejam certas do
que a ideia de que o TA faça parte de uma conspiração malévola para eliminar
passagens teologicamente vitais da Bíblia. Em certo sentido, como afirmou Kutilek (2001,
p. 27), o apego a certas traduções não reflete nada mais do que a busca humana por
certeza. Apesar disso, a defesa da primazia de um tipo de tradução pode acabar gerando
mais incerteza e, na maioria dos casos, ignorância e obscurantismo em pessoas que
passam a exigir de Deus algo que Ele nunca prometeu: a infalível e perfeita preservação
das Escrituras no processo de transmissão e tradução do texto bíblico.
O primeiro estudioso a fazer a defesa da KJV (e do texto bizantino) diante da
crescente popularidade do TA entre os estudiosos da crítica-textual foi Benjamin G.
Wilkinson (na época, diretor da Faculdade de Teologia da instituição que, mais tarde,
seria a Universidade Andrews). Foi dele a ideia de aplicar a passagem de Sl 12:5-7 à
preservação do texto bíblico (KUTILEK, 1990, p. 1-7), assim constante na KJV:
5
For the oppression of the poor, for the sighing of the needy, now will I arise, saith the
6
LORD; I will set him in safety from him that puffeth at him. The words of the LORD are
7
pure words: as silver tried in a furnace of earth, purified seven times. Thou shalt keep
them, O LORD, thou shalt preserve them from this generation for ever.
5
Pela opressão do pobre, pelos suspiros do necessitado, eu me levantarei agora, diz o
6
SENHOR; eu o protegerei daquele que lhe deseja mal. As palavras do SENHOR são
7
puras: como prata provada numa fornalha de terra, purificada setes vezes. Tu as
protegerás, ó SENHOR, tu as preservarás desta geração para sempre.

O inglês da KJV, insensível à concordância de gênero dos pronomes pessoais, o levou a


pensar que o v. 7 ainda se referia às palavras de Deus (WILKINSON, 1930). No entanto,
no hebraico, o pronome oblíquo associado aos verbos “proteger” e “preservar”, no v. 7,
faz referência ao “pobre” e “necessitado” mencionado no v. 5 (KUTILEK, 1983). Isso fica
claro quando comparamos essa passagem com o texto equivalente na versão ARA:
5
Por causa da opressão dos pobres e do gemido dos necessitados, eu me levantarei
6
agora, diz o SENHOR; e porei a salvo a quem por isso suspira. As palavras do
7
SENHOR são palavras puras, prata refinada em cadinho de barro, depurada sete vezes.
Sim, SENHOR, tu nos guardarás; desta geração nos livrarás para sempre.

Essa incompreensão do texto original o levou a crer que a passagem estivesse


estabelecendo o fato de que Deus preservaria as palavras da Bíblia e não a mensagem
bíblica. Embora equivocada, essa posição foi adotada por muitas pessoas que não
tinham como verificar a exatidão de suas conclusões quanto ao texto hebraico. De
qualquer forma, a tese de seu livro depende principalmente de dois tipos de argumentos:
em primeiro lugar, ataques ad hominem contra Wescott e Hort (WILKINSON, 1930, p. 90-
97), os dois estudiosos ingleses que questionaram a confiabilidade do TR e, por
extensão, do texto bizantino; e, em segundo lugar, ataques ao NT da ERV, publicado em
1881. Além disso, Wilkinson (1930) declarou que a Velha Latina (e não a Vulgata) teria
sido a Bíblia dos valdenses e que a Velha Latina teria grande correspondência com o TR.
Ambas as declarações são absolutamente equivocadas, embora tenham sido repetidas
várias vezes por outros autores desde então (KUTILEK, 2001, p. 44).
A tese de Wilkinson (1930) passou despercebida por muito tempo no meio
evangélico até que foi plagiada por Jasper J. Ray, um autor batista que nunca cita suas
fontes. Ray (1955) simplesmente repete as ideias de Wilkinson (1930), sem lhe dar
crédito pelas mesmas (HUDSON, 1991, p. 1-4). É provável que, depois disso, David O.
Fuller tenha entrado em contato com Ray e, a partir daí, tenha também adotado a tese de
Wilkinson, defendendo-a em suas próprias publicações (1970; 1973; 1978, entre outras),
uma (1970), inclusive, em parceria com Ray. Peter Ruckman, influenciado por Ray, se
tornou, logo depois disso, o defensor mais ardoroso, destemperado e despreparado da
ideia de que a KJV é a única Bíblia em que o leitor pode confiar. Entre os ensinamentos
equivocados de Ruckman, podem-se incluir suas declarações de que a KJV nunca foi
submetida à legislação de direitos autorais (KUTILEK, 1993, p. 5-8), que o Códice
Vaticano é uma falsificação católica (KUTILEK, 1994a, p. 5-6), que a LXX foi traduzida no
século III A.D., e não no século III a.C. (KUTILEK, 1994b, p. 1-4, 12), e que a Bíblia de
Lutero contém 1 Jo 5:7 (KUTILEK, 2001, p. 48).
A crítica textual tem dado uma enorme contribuição para a recuperação do texto
original da Bíblia. No entanto, longe de ser um empreendimento exclusivamente piedoso,
o mesmo esforço tem sido envidado também na recuperação dos textos originais de
autores seculares como Homero, Platão e Virgílio, entre outros (CLARK, 1918). De fato,
a mesma metodologia aplicada pela crítica textual ao estudo da transmissão do texto
sagrado também encontra lugar no estudo da transmissão dos textos de autores
seculares, e praticamente com as mesmas consequências. E não poderia ser diferente.
Se deixarmos uma Bíblia exposta à chuva, ela vai se molhar como qualquer livro. Se a
deixarmos exposta ao sol, ela vai ficar tão ressecada quanto qualquer outro livro. Se a
submetermos ao fogo, ela vai se queimar. Isso se dá porque não há nenhuma promessa
de Deus de que as Bíblias, seus manuscritos ou suas traduções seriam individualmente
preservados. Da mesma forma que a Bíblia sempre foi susceptível às intempéries da
chuva, sol e fogo, seu texto também foi susceptível aos erros dos copistas, que, em
muitos sentidos, são bastante semelhantes àqueles cometidos pelos copistas seculares
(MILLER, 1960). Assim, soam ridículas as alegações de que a aplicação das importantes
descobertas arqueológicas e crítico-textuais ao estudo da transmissão do texto das
Escrituras Sagradas faz parte de uma elaborada e diabólica conspiração para apagar
verdades cruciais da Bíblia. Ao contrário disso, a crítica-textual é justamente uma
salvaguarda à correta preservação do texto sagrado. Quando chove, a Bíblia precisa de
um abrigo contra a chuva. Quando faz sol inclemente, a Bíblia precisa de sombra.
Quando há um incêndio, a Bíblia precisa de proteção contra o fogo. Ao ser lida, precisa
de cuidado para não ser mal interpretada. Ao ser copiada, precisa de atenção e diligência
para que não haja erros. Se os houver, precisa da crítica textual para consertá-los.

CONTROVÉRSIAS SOBRE CIDADES


Faz parte da estratégia daqueles que querem diminuir a importância do TA apelar
para uma correspondente difamação da cidade de Alexandria. Por isso, estabelecem
uma oposição em que a cidade de Antioquia, na Síria, é idealizada como sendo uma
metrópole onde o cristianismo foi preservado como religião pura, e a cidade de
Alexandria, descrita como centro pagão egípcio e ponto de partida para a corrupção das
tradições cristãs e das Escrituras Sagradas. O texto bizantino foi copiado principalmente
nas cidades de Constantinopla e Antioquia (MILLER, 1960, p. 301). Para reforçar a
conexão entre o texto bizantino e a cidade de Antioquia, alguns alegam supostas
semelhanças do Diatessarão e da versão siríaca, conhecida como Peshitta, com o texto
bizantino. Obviamente, a versão siríaca passou pelo mesmo processo de bizantinização
que o texto grego sofreu, daí as semelhanças existentes. Ao se tomarem os manuscritos
mais antigos da siríaca, nota-se que eles se assemelham muito mais ao TA do que ao
texto bizantino.
De fato, a cidade de Antioquia, longe de ser um local em que se conservava um
tipo puro de cristianismo, foi o berço de vários hereges, dentre eles Ário, que se
transferiu, depois, para Alexandria e acabou expulso pelos cristãos daquela cidade por
atacar a divindade de Jesus (TORRES, 2011, p. 123-130); Marcião, que se instalou em
Antioquia, depois de sua conversão em Roma, e de onde disseminou, no segundo
século, suas ideias de que era impossível reconciliar o Deus da BH com o Deus do NT
(VON HARNACK, 1990); e Nestório, monge de Antioquia que ensinou, no século V, que
havia duas pessoas em Jesus (uma divina e outra humana). É uma ironia que Alexandria
tenha sido, de fato, o lugar onde os hereges de Antioquia encontraram mais ferrenha
oposição. Atanásio de Alexandria enfrentou o mundo inteiro, até o Imperador de Roma,
para defender a divindade de Cristo, e Ciro de Alexandria se tornou fervoroso
combatente do nestorianismo. Além disso, há evidência de que Antioquia foi o ponto de
partida do gnosticismo cristão (PERRIN, 2007).

CONTROVÉRSIAS SOBRE VERSOS


Uma reclamação comum dos que atacam a NVI por sua maior dependência do
TA do que do texto bizantino é que a NVI e outras versões dependentes daquele texto
teriam suprimido versos teologicamente importantes, especialmente versos do NT que
asseveram a divindade de Cristo, ou drasticamente alterado sua tradução (VEITH, 2009).
Trata-se, porém, de uma confusão causada pela suposição errônea de que, em virtude
de uma passagem não constar do corpo principal do texto, ela tenha sido omitida ou
apagada completamente. Contudo, não é isso o que ocorre de fato. Eu consultei três
impressões diferentes da NVI, em inglês (a edição ordinária, de 1984; a segunda edição
da Serendipity Bible para pequenos grupos, de 1989; e a edição River of Light, de 1995)
e duas, em português (a sexta impressão da Bíblia Sagrada Universitária, de 1993; e a
edição de bolso, de 1998). Em todos os casos, mesmo na edição de bolso, os versos
supostamente omitidos da NVI encontram-se no rodapé e as dúvidas pertinentes à
tradução devidamente explicadas.
Fica evidente, portanto, que o deslocamento de passagens que não se encontram
nos melhores manuscritos para o rodapé não constitui omissão ou apagamento desses
versos nem tampouco uma distorção das Escrituras. Em vez disso, o que temos é uma
forma mais transparente e informativa de apresentação da evidência disponível oriunda
dos manuscritos. Trata-se de uma alternativa muito mais adequada do que permitir que
essas passagens duvidosas fiquem no corpo do texto, deixando a impressão de que há
completa unanimidade a seu respeito.
Além disso, há inúmeros casos em que o TA faz uma declaração mais enfática da
divindade de Cristo do que o texto bizantino. Um exemplo disso é Judas 5. O TR,
baseado no texto bizantino, traz a seguinte leitura:

Ὑ ῆ ὲ ὑ ᾶ ύ , ἰ ό ἅ ά , ὅ ὁ ύ ὸ ἐ ῆ
Αἰ ύ ώ ὸ ύ ὺ ὴ ύ ἀ ώ .

Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo, uma vez por todas, que o
Senhor, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu, depois, os que não
creram [ARA, que, neste caso, segue o TR].

Já o TA (especialmente nos códices Vaticano e Alexandrino) traz uma declaração


explícita da participação de Cristo no êxodo, colocando-o, portanto, em condições
idênticas às de Deus, o Pai:

Ὑ ῆ ὲὑ ᾶ ύ , ἰ ό ἅ ά ,ὅ Ἰη ῦ ὸ ἐ ῆ Αἰ ύ
ώ , ὸ ύ ὺ ὴ ύ ἀ ώ .

Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo, uma vez por todas, que
Jesus, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu, depois, os que não
creram [ARA, alterada para refletir a leitura do TA].
De fato, embora pertencente ao TA, o papiro p72, datado entre os séculos III e IV,
abertamente declara a divindade de Cristo nesta passagem:

Ὑ ῆ ὲ ὑ ᾶ ύ , ἰ ό ἅ ά , ὅ Θ ὸ Χ ό ὸ ἐ ῆ
Αἰ ύ ώ , ὸ ύ ὺ ὴ ύ ἀ ώ .

Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo, uma vez por todas, que
Cristo Deus, tendo libertado um povo, tirando-o da terra do Egito, destruiu, depois, os que
72
não creram [ARA, alterada para refletir a leitura do papiro p ].

Enquanto a KJV e as Bíblias baseadas no texto bizantino geralmente nada falam sobre
as variantes textuais de Judas 5, a NVI apresenta uma nota de rodapé que menciona
essa leitura como possibilidade.
Pode-se, porém, fazer a legítima indagação: como é possível crer nas conclusões
de especialistas, se estes nem sempre são inteiramente fiéis aos princípios cristãos?
Wilkinson (1930), por exemplo, levantou vários questionamentos acerca da integridade
de B. F. Westcott (1825-1901), bispo de Durham, e F. J. A. Hort (1828-1892), professor
da Universidade de Cambridge, os dois estudiosos que comprovaram a inferioridade do
texto bizantino. De fato, Westcott e Hort foram importantes porque foram os pioneiros da
crítica textual. Contudo, sua obra está amplamente ultrapassada e nenhuma Bíblia atual
tem como base exclusiva o seu texto crítico. Estudiosos como Nestle e Aland (ALAND;
ALAND, 1995), entre muitos outros, aperfeiçoaram as ideias de Westcott e Hort, tendo
conseguido desenvolver princípios sólidos de interpretação crítico-textual. Westcott e
Hort criam na existência de um tipo neutro de texto, de origem supostamente egípcia e
representado principalmente pelo Códice Vaticano (MILLER, 1960, p. 301). Sabe-se,
hoje, que nunca houve um texto neutro. Todos os manuscritos foram suceptíveis às
vicissitudes de sua transmissão. Por isso, é preciso cotejar os diversos manuscritos,
incluindo até mesmo os do texto bizantino, a fim de decidir, caso a caso, que variante
deve ser preferível. Ou seja, embora se saiba, hoje, que o TA é geralmente superior ao
texto bizantino, não se pode garantir, sem cuidadosa comparação, que, de fato, o seja
em todos os casos.
Além disso, mesmo que as acusações levantadas contra Westcott e Hort de que
estes se envolveram em pesquisas sobre discos voadores e sessões mediúnicas sejam
verdadeiras, as conclusões a que chegaram foram verificadas por inúmeros estudiosos
cristãos que, quanto se possa humanamente afirmar, são pessoas ilibadas e dignas de
confiança. De fato, por mais importante que seja a vida devocional e espiritual de uma
pessoa, não se precisa dela para se afirmar se um pedaço de papel é mais velho ou não
do que outro. Ainda assim, o fato é que, quando eram jovens universitários, Westcott e
Hort fizeram parte de um grupo de pesquisa que procurava investigar cientificamente o
sobrenatural. Não há evidência de que eles se comunicassem com espíritos ou entidades
sobrenaturais nessas reuniões. A pesquisa consistia em ouvir o testemunho de pessoas
que supostamente haviam tido experiências sobrenaturais. Os dois jovens amigos
acabaram se desencantando com o grupo de pesquisa e, após negarem sua crença na
metodologia empregada pelo grupo, o abandonaram, conforme informação constante nas
cartas que Hort escreveu a esse respeito e foram preservadas por seu filho Arthur Hort
(HORT II, 1896). De qualquer forma, eles participaram dessa pesquisa muitos anos antes
de se tornarem especialistas nos manuscritos da Bíblia. A esse respeito, o próprio
Westcott (1893, p. 11) se manifestou da seguinte forma:

Há muitos anos tive a oportunidade de investigar os fenômenos espíritas com cuidado, e


cheguei à inevitável conclusão que me senti motivado a expressar em resposta a sua
circular. Parece-me que a esse respeito, como em todos os assuntos espirituais, a Escritura
Sagrada é nosso supremo guia. Eu observo, então, que, embora mistérios espirituais
estejam constantemente registrados na Bíblia, não há o menor incentivo para que os
busquemos. O caso, de fato, é bem o contrário disso. Não posso, portanto, senão
considerar a aproximação voluntária a seres que supostamente mantêm comunicação com
os homens por meio de médiuns como ilícita e perigosa.

Considerações Finais
A NVI envolveu um enorme esforço acadêmico, pessoal e espiritual da parte de
estudiosos competentes e de uma editora, a Zondervan, que conta com muita
credibilidade no mercado editorial. Para produzi-la, os tradutores contaram com as
melhores edições dos textos críticos e com o acesso às principais descobertas
arqueológicas que iluminaram recentemente nossa compreensão das Sagradas
Escrituras. Trata-se, com efeito, de estudiosos com credenciais para lidar com as línguas
bíblicas e com a arqueologia. Obviamente, a tradução não é isenta de problemas. Afinal
de contas, nenhuma tradução é totalmente isenta de problemas. Apesar disso, pode-se
dizer que constitui um esforço honesto e competente para verter a Palavra de Deus da
forma como sempre foi desejada por Deus, isto é, numa linguagem capaz tanto de
comover e inspirar o leitor mais exigente quanto de transformar e enriquecer a vida do
leitor mais simples.

Referências

ALAND, Kurt; ALAND, Barbara. The text of the New Testament: an introduction to the
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