Você está na página 1de 22

l rTHçs '.

Düd -q'';t'"''''/I'A

MARTIN KEMP

Tradução:
MARCAINÊS DUQUE ESTRAOA

JORGE ZAHIAR EDITOR


gracqos e fábulas talvez tenham sido apresentadosem esqueces
na corte. Sabemosque ele participou de pelo menosum debate
sobre artes realizado na corte de Sforza. Impressionante e culti-
vado, certamente fazia uma bela figura
Dadas as óbvias frustrações que Leonardo causou a muitos
dos seus patronos, é bom encontrar algumas confirmações co-
2 OLHAR
moventesdo que tinha a oferecercomo homem. Os dois regis-
[ros que mais evidenciam o impacto por ele causadodatam am-
bos dos últimos anos de sua vida.
Quando esteve na Fiança, o escultor Benvenuto Cellini tes-
temunhou que

O rei Francisco, tão encantado estavacom os grandes talentos de


Leonardo,tinha tanto prazer em ouvi-lo falar que só podia ficar retrato pintado no primeiro capítulo tem seu foco
nas circunstânciasmateriais da carreira de Leo-
alguns dias sem sua companhia... Não posso resistir a repetir as
palavras que ouvi o rei dizer a seu respeito, na presença do car- nardo da Vinci, e também pretende ser uma con-
deal de Lorena e do rei de Navarra; ele disse não acreditar que já trapartida sóbria ao acúmulo de lendas. É uma car-
tivessenascido um homem que soubessetanto quanto Leonardo,
reira não muito diferente em suas circunstânciase no alcance
não só nos domíniosda pintura, da esculturae da arquitetura, de suas atividades da de outros destacados artistas-engenhei-
mas também como grande filósofo. ros-arquitetos do Renascimento -- mesmo que sua produção de
obras identificáveis não pareça ter rivalizado com a de seus pa-
Um relato "interno" é a comovente carta de Francesco Mel- res. Os registros documentais mal deixam perceber o grande
zi aos meio-irmãos de Leonardo, depois da morte do mestre: edifício intelectual e visual que ele erigiu em seus cadernos de
em 1519. notas e escritos particulares. A extensão de seu legado manus-
crito foi caindo progressivamente no esquecimento durante o
Ao honorável senhor Juliana e seus irmãos. século xvi, e só começou a aparecer plenamente a partir da
Soube que já foram informados da morte de mestre Leonardo, década de 1880. Francesco Melzi guardou como um tesouro
seu irmão, que era como um excelente pai para mim. E impossí- pilhas de papéis, encadernados ou não, que herdou e orgulho-
samente mostrava a suas visitas, e editou, sem ordena-los. al-
vel expressara dor que sinto com sua morte, e enquanto meus
guns dessesescritos sobre arte no volume conhecido como
órgãos me aguentarem, sentirei essatristeza perpétua, que se jus-
tifica pelo amor apaixonado que ele me dispensava. Todas as pes- Tratadode arte. Após sua morte, essatarefa piedosa foi mal re-
soas ficaram entristecidas com a morte de um homem tal que a compensada pela dispersão dos cadernos e desenhos. Estes se-
naturezanão tem mais o poder de produzir outro igual. E agora guiram vários destinos, sendo que mais de quatro quintos de-
o Todo-Poderoso Ihe garante repouso eterno. les se perderam sem deixar traços. Os remanescentes passaram
por várias coleçõesna Europa e foram por muito tempo mais
h
considerados como memoriais curiosos e praticamente ilegí- vina que qualquer livro teológico poderia fazer com relação ao
veis de uma lenda do que por seu real valor. próprio Deus.Nenhum conhecimento era válido se não fosse
Depois de grandes campanhaspela publicação e tradução, derivado da "experiência". Ele atribuía grande valor ao experi-
a partir de 1880, os manuscritos de Leonardo da Venci torna- mento -- embora não da maneira sistemática da moderna "ciên-
ram-se cada vez mais conhecidos dos estudiosos e do público, cia experimental". Ficava tão satisfeito com as "provas" deriva-
em tal medida que consideramos seu valor como certo, assim das da observação dos fenómenos em seu estado natural e com
como tudo que ele fez, e ponto final. Mas sãoabsolutamente ex- os resultados de experimentos pensados quanto com os testes
cepcionais. Nenhum de seus predecessores ou contemporâneos controlados usando situações especificamente planeadas. Às
produziu nada comparável em alcance, brilho especulativo e in- vezes, quando realmente realizava um teste planeado, escrevia
tensidade visual. E não conhecemos nada realmente comparável 'sperímentata" sob o desenho correspondente -- para indicar que
nos séculosque se seguiram. Muitos dos seus "desenhos" são os resultados observadoseram conclusivos.
acompanhados de palavras, assim como os longos textos que es- Há algo muito literal e aparentemente constrangedor na in-
creveu raramente deixavam de ter ilustrações. Ele escreveu de sistência com que impôs a si próprio limitar-se aos fatos tangí-
fato de um modo idiossincrático, mas a inteligência subjacente veis do universo físico, conforme percebidos pelos sentidos.
é predominantementevisual por natureza. Leonardo da Vinca Contudo, tão grande era a fertilidade da sua imaginação -- o que
era um supremo visualizador, um mestre manipulador de "es- chamava de fantasia -- que esseempreendimento "de pés no
culturas" mentais, e quase tudo que escreveu se baseava, em úl- chão" alçou võo de um modo que muito poucos artistas e pen-
tima instância, em fitos cerebrais de observação e representação. sadores conseguiram emular.
É sintomático de sua imaginação visual que ele conseguisse tra- Meu modo de entrar no grande legadodos manuscritosé
balhar com a geometriatridimensional com uma forma de mo- devotar este capítulo aos princípios que subjazem a seu pensa-
delagemde espaçoe cultura puramente mental. Por outro lado, mento -- o que ele chamavade ragioni(razões ou causas).Isso
sua aritmética era errática, quase deficiente, e ele não tinha afi- envolve necessariamentecerto grau de abstração. Essesprincí-
nidade com a linguagem simbólica da álgebra. Se não podia pios irão se realizar nos capítulos subsequentes,dedicadosaos
"ver" o objeto, não o podia fazer -- ou melhor, não considerava objetivos concretos de sua engenharia, anatomia, geologia e arte.
que ele merecesse ser feito.
Leonardo não gostavadas abstraçõesda filosofia pura, que Senso comum, imaginação e intelecto
definia ironicamente como um pseudoconhecimento "que co-
meça e termina na cabeça". Era impaciente com o dogma da teo- A única forma válida de conhecimento, para Leonardo da Venci,
logia e da religião ou com as ciências místicas, como a astrolo- era olhar para as coisas reais e os fenómenos. E ninguém jamais
gia. Aceitava a existência de um poder supremo e inefável por olhou para eles com mais intensidade ou os representou com
trás dos desígnios da natureza, identificável com Deus, mas es- maior originalidade. Entretanto, não confiava em ver simples-
tava convencido de que o conhecimento concreto não podia re- mente, como se o olho fosse uma máquina fotográfica. A con-
velar a natureza da própria divindade. O entendimento humano cepção de Leonardo era que o ato de "ver" abrangia os dois sen-
não se devia devotar a isso, porém às revelações das glórias do tidos do verbo, que são "olhar para" e "compreender". É com
desenhonatural, que falava com mais eloquência da criação di- esta última acepção, por exemplo, que dizemos "vqo que há
lógica no seu raciocínio". O objetivo de Leonardo, de ver no natureza" vem de um livreto fundamental, Sobrea pinülra, do es-
critor e arquitetoLeonaBattistaAlberti, que o escreveuem latim
sentido de compreender, só podia ser realizado pela análise da
em 1435; ele o transpôs para o italiano um ano depois, com uma
própria visão e, no sentido mais amplo, dos procedimentosda
mente. O olho era o instrumento do maior dos cinco sentidos -- dedicatória a Brunelleschi. A primeira das três partes do tratado
uma concepçãotradicional muito influenciada por Platão e de Alberti explica como usar a perspectiva geométrica para cons-

Aristóteles. Audição, Lato,paladar e olfato ficavam abaixo da vi- truir um espaçoa prior que podia depois ser preenchido com
são. O olho era o mestre analítico de todas as pesquisas visuais: objetos e figuras na escala exata, retratados segundo regras rela-
tivas à luz e à sombra. As figuras, motivos principais para a ilus-

O olho, do qual se diz ser ajanela da alma, é o principal meio tração de grandeshistórias, deviam ser pintadas com toda a
pelo qual o sensoscommünisjcentro coordenadordasimpres- perfeição anatómica e com sinais visíveis de personalidade
sões sensoriais] do cérebro pode contemplar na maior plenitude e emoções.Essemétodo de aliar procedimentos racionais com a
e magnificência o trabalho infinito da natureza, e o ouvido é o concepção imaginária de uma nova cena colocava a invenzione
em união íntima com a sciettza. A invenzione era definida como
segundo,tendo adquirido nobrezapela narração daquilo que o
a criação de algo novo, real ou plausível(numa paráfrase do gran-
olho viu. Agora, você não vê que o olho abraçaa belezado mun-
do? O olho comanda a astronomia; ele faz a cosmografial ele de orador Cícero,da antiga Romã), enquanto a scierlzaera um
guia a corrige todas as artes humanas; conduz o homem a várias corpo de conhecimentosbaseadosem princípios racionaise
regiões do mundo; é o príncipe da matemática; suas ciências são comprováveis. Num nível mais profundo, era uma aliança entre
as mais correias; ele medea distância e o tamanho das estrelas; alantasia (imaginação)e o intelZetto(o poder racional da men-
desvenda os elementos e suas distribuições; faz previsões de te). Em tudo isso, é importante ter em mente que os termos em-

eventos futuros por meio do curso das estrelas; gera a arquitetu-


pregadospor Leonardoem língua italiana têm com frequência
diferentes conotações hoje. Mantenho seus termos originais quan-
ra, a perspectivae a pintura divina. Ó criação excelsade Deus,
acima de todas as outras... E triunfa sobre a natureza, pois as do me parecevital para denotar essadiferença.
Os estudos de Leonardo da Venci sobre o cérebro e seu sis-
partes constituintes da natureza são finitas, mas os trabalhos
tema sensorial concentraram-se inicialmente em duas questões:
que o olho determinaàs mãossãoinfinitos, como o pintor de-
como essesatributos mentais poderiam ser localizados e como
monstra ao apresentar um sem-número de formas de animais,
plantas, árvores e lugares. se nutririam nos sentidos todo-poderosos. A mais antiga dessas
suas explorações anatómicas que se conhece, datada de 1489,
dedica-se ao cérebro e seus conteúdos. Dentro do crânio, repre-
Um ingrediente essencialnesseseu modo de conceber a vi-
sentado inteiro e em uma série de desenhosde uma meticulosi-
são como análise e a representação como infinitamente variada
dade maravilhosa (Figura 1) , ele localiza especulativamente as
foi um legado de sua formação na tradição artística florentina.
No rastro da invenção do sistema de perspectiva linear por várias faculdades mentais do modo que corresponde a como
acreditava que operassem. A base desse arranjo é o sistema me-
Filippo Brunelleschi, no início do século xv, a arte florentina
passou a se basear no püncípio de que o pintor usava regras ex-
dieval da psicologia das faculdades, que via os ventrículos (ca-
traídas das "raízes na natureza" para criar novas cenas de acordo vidades) no interior do cérebro como sítios de atividade mental
com princípios ordenadose racionais. A expressão"raízes na -- uma interpretação não desprovida de razão, uma vez que nos-
'T
Ell
# sa "matéria cinzenta" parece tão pouco prometedora a olho nu.
Assim, ele descreveuos ventrículos como uma série de receptá-
culos (Figura 2) dispostos em termos de processamento.O pri-
meiro movimento era o das impressões sensoriais que chegavam
à impressiva (um receptor que, como podemos imaginar, regis-
trava uma impressão, assim como a cera morna recebe a marca
de um sinete). A {mprensivapareceter sido o acréscimofeito por
Leonardo ao antigo sistema e desempenhavaa função registra-
dora previamente atribuída ao sensilscommunis,em que os da-
dos dos cinco sentidosjuntavam-se para serem sistematicamen-
te coordenados. O "sensocomum", no arranjo de Leonardo, era
realocado na segunda câmara, onde desempenhavasua função
de comparação ponderada, ao lado dalantasia, do intelZetto e da
volontã (movimento voluntário). A alma, com a qual Leonardo,
fora isto, não se importava muito, tambémficava nesselugar
central. Finalmente, a memoriareside no "frasco", no final da
sequência.Embora mais tarde ele tivesse injetado cera nos ven-
trículos de um cérebro de boi e compreendido que o arranjo de
três vasos era muito mais simples, continuou fiel aos fundamen-
tos básicos da psicologia medieval das faculdades.
A vantagem do sistema de Leopardo da Venci é que ele for-
necia uma confirmaçãofisiológica do trajeto da informação, da
naturezaaté o cérebro,com o nervo óptico situado na posição
privilegiada de via de comunicação mais curta e mais direta com
as faculdadesracionais e imaginativas. O sistema também forne-
ce um mecanismopelo qual os dadosque o intelecto extrai dos
sentidos podem ser recombinados nalantasia e enviados na ou- BI
W
tra direção. O que está "em primeiro lugar na imaginação" fica
:i; l:::
assim "nas mãos". A voZontàestá capacitada para traduzir as in-
venções mentais em formas tangíveis, primeiro em desenhos e a
seguir pinturas, esculturas e construções -- e em uma infinidade 1. Crânio humano seccionado, Wltlckot Royal Libraly, 19057
de artifícios mecânicos.O sistemacomo um todo opera com o
fluxo e o refluxo da "força vital" ao longo do núcleo central, ou
medulla, dos nervos, envolvendo um intercâmbio dinâmico de
input sensorial e output muscular. Na Última Ceia, quando os
T discípulos ouvem consternados Cristo anunciar que será traído
por um deles, o input das palavras e o output da ação não pode-
riam ser interpretados de forma mais dramática.

Oolho

E quanto à "janela da alma" propriamente dita? Como esta,que


era a mais excelsa das invenções da natureza, devia desempe-
nhar sua função divina?
Ao longo de suasdiferentes concepçõessobre a estrutura
interna do olho, Leonardo trabalhou com o princípio irremoví-
vel de que ele devia ser um instrumento construído com preci-
sãogeométrica para acompanhar a própria luz. De certa forma,
quanto mais simples, melhor. Sua primeira concepção da enge-
nharia óptica do olho era que a esferacristalina, ou humor ví-
treo (a lente, em nossa terminologia), repousa concentricamen-
te no interior do humor aquoso e das camadas do olho. Através
da pupila, que controla o ângulo da visão, ele receberiaa "pirâ-
mide visual" -- isto é, o feixe de raios que convergem de um ob-
jeto ou uma superfície para um ponto. Esta era a concepção
defendida por Alberti. O olho era desenhadopara extrair a pirâ-
mide da confusão de raios que partiam do objeto para todas as
partes do ar. Quanto mais afastado o mesmo objeto estivesse do
olho, mais estreito seria o ângulo que a pirâmide enviava ao
olho, e menor o objeto Ihe pareceria (Figura 3). Se considerar-
mos a luz emanando de um objeto na forma de ondulaçõescon-
cêntricas, a pirâmide ficará progressivamente mais estreita a ca-
z. BaseadaemLeopardo,Crânio humano seccionado vertical e da ondulação que se afaste do objeto. A diferença de tamanho,
horizonta[mente, e olhos. Wín(Zsoç Roya] Library, ] ]2603 como a perspectiva ensinava ao pintor, seria proporcional à sua
distância até o olho. Ela também dizia que o poder das emana-
ções do objeto -- ele as chamava de "espécies", conforme a tra-
dição medieval da ciência óptica -- diminuía à proporção que
elas se afastavam desse objeto. A teoria óptica responde não só
pela diminuição sistemática das coisas de acordo com as regras
da perspectiva linear, mas também pela perda de nitidez e das
cores das coisas muito distantes. Junto com as qualidades de ve-
ladura da umidade do ar, a perda da definição das cores estápor
'"©F
trás dos efeitos mágicos da "perspectiva aérea" nas suas paisa- #'.'!'
gens desenhadas ou pintadas (Prancha 5).
Desta concepção sobre o olho e sua pirâmide, à qual ade-
riu na décadade 1490, Leonardoprogrediu, por volta de 1508,
para uma interpretação mais complexa e sutil da forma e da fun-
ção do olho. Convenceu-setambém de que a pirâmide não po-
dia literalmente terminar em um ponto no olho, uma vez que o
ponto não tem, tecnicamente, uma dimensão, e poderia resultar
apenasna perda da separaçãoentre "espécies"no aparato ópti-
co. Assim, recorreu à noção de uma superfície receptiva (de lo-
calizaçãodiversificada, e que não deve ser confundida com a
nossaideia da retina). Considerou que o olho e sua pupila ope-
ravam como uma comera obscura (uma caixa sem luz, com um
furo, semelhante às primeiras máquinas fotográficas). Ele sabia
que em uma comera dessasa imagem se formava de cabeça para
baixo, e concebeu, a título experimental uma série de procedi-
mentos ópticos destinados a reinverter a imagem (Figura 4)
A passagemmais complexa dos raios dentro do olho, em parte
baseadanos textos medievais de óptica, explicava o fenómeno
como a impossibilidade de um objeto delgado ocultar maior
número de formas distantes ao se aproximar do olho, e a nossa
capacidade de ver através da malha desfiada de um tecido.
Ao mergulhar na impressionante massade escritos medie-
vais sobre ciência óptica a partir de lbn al-Haytham (Alhazen),
filósofo islâmico em atividadeno final do séculox e no início do
século xi, Leonardo também ampliou sua compreensão das "ilu-
sõesvisuais". Este ramo da óptica trata dos fenómenosgerais,
como a nossaincapacidade de ver algo que se move com muita
velocidade e de perceber com clareza coisas muito brilhantes ou
Retrato de Leortardo da Vittci
muito escuras. Também explica efeitos específicos como a "per-
sistência da visão", que ocorre quando olhamos para algo que se
move depressa.Leonardo da Vinci descreveu a aparência osci-
lante de uma faca quando é enfiada numa tábua e golpeadade

HI
...x'
}''"F'":

&

-;.,,''::.{
r

h',
J-l-.í.

3. Mapa de fmola

2 Decoração da Salta deZleAsse (detalhe)


V
&31r$=ê;.d#t81iiM

4. Virgem do fuso ("Madona


receia") (acima)

Sant'Ana, a Virgem e o Menino


6. Estudos de turbulência na água
(detalhe da paisagem ã direita da
cabeça de santa Alta) (esquerda)

#
7 EsMdo de manga para o braço direito da Virgem em Sant'Ana
a Virgem e o Menino

8. Demonstração conjugada dos sistemas respiratório, vascular e


genífo-tlrÍrlário do coto /eminino
9 Mapa de barcaça, represa e margem darlificada

n-)Hq,.
.-,8'''9

Baseadaem Leonando,Pirâmide radiante emanando de um objeLO


circular. Paria, Instifut de France, Ms Ashburham 11,6v

10 Mapa do rio .4mo a lestede Florença e traçado para üm canal


um lado para o outro, assim (nas palavras dele) como as cordas
de um alaúde em vibração. Ele também observou que uma to-
cha acesa,ao ser girada no ar, deixa uma trilha circular de luz
no nosso olho, e que podemos ver as imagens entre os raios de
uma roda em movimento. Sua explicação era que a ímprensiva
não conseguia reagir depressao bastante para acompanhar as
pegadasópticas dos objetos. Essesefeitos ultrapassavam, às vezes
com alguma frustração, os objetivos práticos da pintura, mesmo
nas mãos de Leonardo da Vinci(mas não para Velásquez, um
século mais tarde), e ele admitiu que pertenciam ao domínio
exclusivo dos "especuladores"dos fenómenos ópticos. Talvez,
como percebeucadavez mais, já no final de sua carreira, sua
amadapintura tivesselimites visuais definidos, afinal.
Fossem quais fossem as complexidades difusas da percep-
ção nas suas teorias mais tardias, o fato de que o olho trabalha-
va de modo geométrico permaneceu inviolável. E destinava-se a
ver as maravilhas da luz e da sombra que nos falam do mundo
exterior. Ele estudou sistematicamente os efeitos da luz em cor-
pos únicos e múltiplos a partir de fontes únicas e múltiplas de
tamanho, forma e distâncias variadas. Foi essaa basepara sua
reformulação do modo de descrevera luz e a cor na pintura, por
4. Basca(Zaem Dupla interseção de raios de luz no olho, de Leopardo. meio do desenvolvimento de um sistema "tonal" em que os fun-
País, Instituí de France, ZbfsD 1 0v damentos de luz e sombra tinham precedência sobre a cor para
obtenção do que chamou de Felino (mais ou menos o equiva-
lente a "plasticidade"). Leonardo olhava o modo como a sombra
projetada diminuía de intensidade quanto mais distante estives-
se do corpo opaco que a projetava obedecendo à lei de diminui-
ção proporcional que se aplicava indiferentemente à luz e a ou-
tros sistemasdinâmicos. Elaborou a intensidade relativa da luz
em superfícies segundo o ângulo de impacto, e mapeou os res-
saltos secundários de luz na transição de superfícies iluminadas
para áreasde sombra. Usou esteúltimo fenómeno para explicar
a chamada lumes cinererüm (luz mortiça) do lado escuro da Lua,
que presumiu corretamente ser o efeito do reflexo da superfície
da Terra. Seusestudosda luz batendo nos contornos de um ros-
to a partir de um ponto luminoso (Figura 5) mostram que ele
aspirava criar formas modeladas de acordo com um sistema se-
melhante ao de traços nos gráficos de computador. Quanto mais
direta a "percussão",para usar o próprio termo de Leonardo,
maior a intensidade da luz -- embora a regra hoje aceita seja, co-
mo sabemos,a lei do co-seno de Lambert, do século xvul, e não
a regra simples da proporção, de Leonardo. Para ele, o resulta-
do da percussão era sempre proporcional ao seu ângulo de im-
pacto. Assim, uma luz oblíqua não iluminada uma superfície
tão fortemente quanto uma luz que caísseperpendicularmente
sobre ela. A mesma regra se aplica a um golpe desfechado com
uma espada,o pulo de uma bola ou o martelar de um prego na
madeira. Neste último caso,o comprimento do prego enterrado
na madeira também será proporcional ao peso da cabeçado
martelo e à força com que o braço desfereo golpe.
A proporção era o modo pelo qual o desenhoperfeito de
Deus se manifestava em todas as formas e poderes da natureza.
As belezasdo desenho proporcional haviam sido uma preocupa-
ção central para os arquitetos, escultores e pintores florentinos
pelo menos desde os tempos de Brunelleschi. Leonardo da Vinci
foi o primeiro a ligar a noção do artista de belezaproporcional
ao conjunto mais amplo de açãoproporcional de todos os pode-
res da natureza. A fonte de maior autoridade quanto à propor-
ção no desenho arquitetõnico era o autor romano Vitrúvio. Co-
mo guia supremo da concepção de beleza para o arquiteto, 5. Baseadaem Impactos angulares da luz sobre um rosto, de l,eonardo
Vitrúvio chamavaa atençãopara o modo como o corpo huma- W[n(Zsoc Roya] LíbraU, ]2604r

no, com braços e pernas estendidos,podia ser inscrito dentro de


um círculo e um quadrado, as figuras geométricas mais perfei-
tas. Nesse esquema, as partes componentes do corpo podiam ser
vistas como se estivessem organizadas de acordo com um siste-
ma de dimensõesrelacionadas, no qual cada parte -- digamos, o
rosto -- estaria numa razão simples e proporcional às demais. Na
nova apresentaçãofeita por Leonardo, o esquemade Vitrúvio
(Figura 6) tornou-se uma realização visual definitiva e é ampla-
mente usado na imagética popular como um símbolo do dese-
nho "cósmico" da estrutura humana. Como disse Leonardo, o
desenho proporcional do corpo humano é análogo às harmonias
da música, que tinham seu fundamento na razão cósmica des-
crita pelo matemático grego Pitágoras. Era a base matemática da
música que dava a esta seu mais sério argumento, entre as artes,
para rivalizar com a pintura -- embora ele tenha se visto em di-
ficuldades para mostrar que as harmonias musicais deviam ser
ouvidas em sequência,e não, como na pintura, apreciadassi-
multaneamente, com um só olhar.

De pé e em movimento

Nem é preciso dizer que Leonardo não se satisfezcom a anti-


ga fórmula de Vitrúvio, e tentou definir o que acontecia com
as nossas proporções quando adotávamos diferentes posições,
tais como sentar. Mais do que isso, ele estabeleceuo desenho
proporcional da arquitetura num esquemamuito mais amplo
que aquele que mantém as coisas vivas em equilíbrio harmo-
nioso. Como escreveuàs autoridadesda catedral de Melão
quando tentou, sem sucesso,obter a encomenda para a abóba-
da em cruz:

É necessário aos médicos, que são os guardiões dos doentes,


compreendero que o homem é, o que a vida é, e o que a saúde
é, e de que modo o equilíbrio e a harmonia desseselementosa
mantêm, e como, similarmente, quando estão fora de harmonia,
ela é prqudicada e destruída, e quem tiver um bom conheci-
mento das acima mencionadas característicasestará mais apto a
curar do que quem não o tem... O mesmo se exige de uma cate-
dral que sofre -- ou seja,médico-arquiteto que entende bem o que
6. Demonstração do desenho geométrico do corpo humano, baseada
um edifício é e de que regrasum edifício cometoderiva, e de on- em Vitrúvio. \kneza, Accademia
de essas regras são traçadas, e em que número de partes são di-
vididas... Eu me empenharei...para satisfazer-vos,em parte com
a teoria e em parte com a prática, mostrando algumasvezes os
efeitos a partir das causas,algumasvezesafirmando princípios
com experimentos, fazendo uso, como é conveniente, da autora
dado dos antigos arquitetos.

Podemos desconfiar que os responsáveis pela encomenda


ficaram um pouco surpresos ao receber uma explanação sobre
medicina, mas, para Leonardo da Venci, o equilíbrio harmónico
de um corpo vivo, no qual tudo devia estar na devida propor-
ção, e o desenho harmonioso de um edifício perfeito eram basi-
camente a mesma coisa. É essesenso dos fundamentos comuns
que explica o sentimento "orgânico" de seus melhores desenhos
arquitetõnicos -- principalmente aqueles para "templos" com
abóbadascentrais, em que as permutaçõescomplexas de sólidos
geométricosse aglomeramem torno de um núcleo, como o
exoesqueletode alguma espécienova de organismo.
Em nossostermos, o trabalho do arquiteto tem mais a ver
com a estática que com a dinâmica. Por exemplo, o desenhista-
construtor precisaria compreender as razõesda pressão para ci-
ma exercida pelas pedras em diferentes pontos de uma abóbada.
Leonardo também se valia muito das análises teóricas mais abs-
tratas da estática, favorecidas pela "física" medieval, tais como a
matemática dos braços da balança. Na Idade Média, Jordanus de
Nemore havia exposto a regra segundo a qual, para que os dois
braçosestqam em equilíbrio, o comprimento dos braços, mul-
tiplicado pelo peso, deve ser igual. Isso quer dizer que um peso
de um quilo e meio colocado numa unidade de distância de um 7. Baseadana Demonstração composta de pesos sobre braços
de balança, de Leonando.Milho, Biblioteca Ambrosíana, Código
ponto de suspensãoficaria em equilíbrio com um peso de meio
Atlântico, 235r
quilo colocado a uma distância de três unidades. A multiplici-
dade das combinações de diversos pesos a distâncias variáveis
que Leonardo traçou (Figura 7), à primeira vista parece enfeitar
demaisa explicação,para além de qualquer aplicaçãoútil.
Contudo, se encararmos essasvariações como exercícios com-
plexos da magia das proporções-- como a música inerente à
ciência dos pesos--, o esforço que ele dedicou a elas se torna
mais compreensível. Muito disso se aplica também a suas mui-
tas variações de múltiplas roldanas, que são sistema dinâmicos
com utilidade prática na elevaçãode pesos,como pedras gran-
Quando a força era aplicada a um objeto, era óbvio por que
des, mas que ele estudou até a exaustão teórica.
ele se movia. Ficava menos claro por que o objeto continuava a
As proporções estáticassó poderiam nos levar ao entendi-
se mover ao ser separadoda força. Por que, por exemplo, uma
mento da natureza das coisas. A "força", agente imaterial e invi-
pedra atirada continuava a voar pelo ar quando removida da
sível, responsável por proporcionar movimento a todas as coisas
mão ou da catapulta que a arremessara?A resposta do final da
vivas e a dotar as coisasanimadascom a aparênciade vida era
Idade Média para isso, e adotada por Leonardo, era o impetus.
em última instância bem mais fundamental. Era a força -- "nas-
Quando um objeto móvel era submetido à força, ele recebiauma
cendo na violência e morrendo na liberdade" que transporta-
certa quantidade de impetus, exatamente como um objeto colo-
va todas as coisas para além da posição que lhes é natural e que
cado acima de uma chama receberia uma cerca quantidade de
interrompia seu estado natural de repouso. O esquema dentro
calor. O impefus se esgotaria progressivamente, como o calor no
do qual ele caracterizoua força era inteiramentetradicional.
corpo, o que determinaria seu comportamento, em termos de
Decorria das teorias aristotélicas que prevaleceram até as refor-
velocidade e distância, a um certo período de tempo. O tempo
mas introduzidas por Galileu e Newton nos séculos seguintes."
que o impefuslevaria para se esgotar estava sujeito às mesmas
Segundo esse esquema, a disposição básica dos quatro elemen-
leis proporcionais da luz projetada -- estamos trabalhando com
tos a partir dos quais toda a matéria se compõe era concêntrica.
um certo tipo de perspectiva do impetLls.
No centro ficava a Terra, cercada sucessivamente por esferas de
O comportamento era inexorável -- isto é, o projétil devia
água,ar e fogo. Cadaelemento encontravaseu nível natural e,
necessariamente viajar uma certa distância num certo tempo,
caso transportado para fora desse nível, "desqaria" ativamente
independentemente de sua trajetória. Assim, o trajeto em zigue-
a ele regressar. Por isso a pedra cai do ar, e o fogo ascende. Mes-
zague de uma bola quicando seria o mesmo, em termos de dis-
mo que houvesseuma perspectiva de que, a longo prazo, esses
tância e tempo, que o de uma bola que não quicasse.A distân-
elementos pudessem acabar se acomodando em uma concentri-
cia de fato percorrida pelo projétil seria proporcional à força que
cidade estável, a situação presente era continuamente dinâmica.
o movia -- pelo menosem teoria. Leopardo acaboupercebendo
O divino relógio que punha tudo em movimento, ou a mão me-
que a proposição aristotélica de que um corpo movido por uma
tafórica que manipulava os elementos num movimento turbu-
força duas vezes maior percorreria duas vezes uma determinada
lento ainda tinham muito a fazer.Ou, para descrevero cenário
distância não podia se aplicar na prática. Caso contrário, os ca-
nas palavras de Leonardo da Vinci, o "Motor Primeiro", agente
nhões grandes conseguiriam disparar pequenos mísseis a enor-
máximo da mobilidade cósmicaque circunscreviaos limites fi-
mes distâncias, o que, verificou ele (e qualquer atirador poderia
nitos do universo, era a expressãodireta do ato divino de põr as Ihe dizer), não acontecia. Embora tenha reconhecido o dilema
coisas em movimento, fosse ele perpétuo ou não.
de conciliar a teoria com suaquerida "experiência", elenão en-
contraria uma saída para resolve-lo dentro dos limites da teoria
R

O que o autor chama de "reforma" de Galileu (1564-1642) foi a verihcação dinâmica que herdara
empírica de que a Tema se move. Disso decorreram os princípios da física di- Havia tambémcasosem que o movimento não diminuía.
nâmica, que ele também estudou e examinou em seusDiscursos(1638). A re- Um deles era a aceleraçãode um corpo que cai. Mesmosem
fonna introduzida por lsaac Newton (1642-1727) foi a descobertada gravita-
conseguir explicar o conceito de gravitação, Leonardo pelo me-
ção universal. (N.T.)
nos podia submeto-la à sua lei da proporcionalidade. Ele racio-
cinou que o corpo, ao cair, ganharia incrementos de velocidade livro 3 dos canais subterrâneos [vmel ;
de acordo com a lei da pirâmide invertida -- isto é, a velocidade livro 4 dosriosl
em cada estágio seria diretamente proporcional à distância per- limo 5 da natureza das profundidades;
corrida. A queda se daria de acordo com uma espéciede pers- livro 6 dos objetos [como obstácu]os ao f]uxo da águas
pectiva invertida, na qual algo se torna maior à medida que se limo 7 dos cascalhos;
distancia do ponto de partida. Outra anormalidade era o vórti- livro 8 da superfície da igual
ce, ou redemoinho, que ele observou se acelerar em direção ao livro 9 das coisas que se movem nela;
centro de revolução, e às vezes de maneira mais impetuosa. livro 10 dos meios de renovação dos rios
Nesse caso, a explicação estava na rápida concentração de {mpe- lido 11 doscondutos;
tus num círculo cadavez mais estreito, daí resultando que ele só livro 12 dos canais
poderia se esgotar em revolução furiosa, acelerando, em lugar livro 13 das máquinas movidas a água;
de desacelerardo modo normal. livro 14 de como a água ascende;
livro 15 das coisasconsumidas pela água.
O vórtice
Aqui, como em outras ocasiõesem que planeou a estrutura de
O fenómeno do vórtice tornou-se tema de intenso interesse pa- seus tratados, o ideal era o de um enciclopedista medieval, mas
ra Leonardo. Ele foi instintivamente levado a suas propriedades seus instintos para a complexidade e o inter-relacionamento dos
formais e sentiu-se atraído intelectualmente por suas extraordi- fenómenoscontinuamenteminavam o objetivo de uma síntese
nárias implicações para a dinâmica. Como movimento caracte- ordenada. Ele não queria, afinal, ser acusado de "compendiador'
rístico de um elemento"dentro de si mesmo" ou sqa, quando Ninguém que tivesse feito uma lista de 64 termos descriti-
ele não é removido para outra esfera --, o vórtice se manifesta vos da água em movimento poderia ser acusado disso. A lista
por toda a natureza. Dos três elementos naturalmente móveis, a começa: "ressalto, circulação, revolução, rotação, volteio, reper-
água era ao mesmo tempo o mais fácil de observar e o mais dra- cussão,submersão, encrespamento, declinação, elevação,depres-
maticamente inserido nas vidas humanas, tanto do ponto de vis- são, consumação, percussão, destruição...". O efeito é semelhante
ta construtivo quanto destrutivo. Leonardodevorou uma enor- a uma peça de uma aliteração poética, na qual o extravasamen-
me quantidade de observaçãoe especulaçãoao movimento da to verbal e a torrente de sons passam a assumir a natureza do
água turbulenta. A certo ponto, anunciou que definira "730 próprio fenómeno.O que ocasionouesseextravasamentofoi
conclusões sobre a água" em oito fólios do manuscrito conheci- um esforço mais limitado de chegar a definições precisas de pé-
do como Códigode l.eicester(de propriedadepor muitos anos lago (mar, grande lago), ./lume (rio), torrente (correnteza), caria-
dos condes de Leicester). Dedicou-sea põr alguma ordem no le (canal),Jonti(fontes), margíne(margem), riba (praia), lago
caoscrescente,imaginando um esquemapara esseplaneado li- (lago), paZüdi(pântanos), grotte (grutas), caveme (cavernas),
vro sobre a água: pozzi(poços), stagni(poças), baratri(abismos) e proceZle(tem-
porais). Cada termo é combinado com uma definição em uma
livro l da água em si mesmas ou duas sentenças,e ele se preocupavaparticularmente em di-
livro 2 do mar: ferenciar aquelesque podiam ter um duplo sentido. Então se
voltou para os processos:poZtlZamerlfi
e sürgimenti(borbulha- as enchenteseram uma ameaçaséria. Como "mestre da água'
mentos e afloramentos), sommergere (submersão), e ínfersega- consultado pelas autoridades de Veneza e Florença, Leonardo da
tione d'acque (interseção de águas), cada um com suas defini- Vinci lutou para conseguirreunir a teoria e a prática, aspirando
ções.Finalmente, mergulhavaem sua lista de 64 termos com o a comprovar por que os vórtices estavam acabando com as mar-
que pode ter sido uma sensaçãode crescente desespero, uma vez gense a mostrar como o poder inexorável da água em movimen-
que não forneceu definições detalhadasde nenhum deles. to deveria ser usado para a obtenção dos resultados desejados,
Suastentativas de categorizar e descreveras formas inten- em lugar de se opor à sua natureza. Contudo mesmo o mestre
samente complexas da água em movimento de turbulência lem- mais bem equipado ficava sem ação quando os elementos se mo-
bram um velho jogo de salão que consistia em desafiar alguém viam nas maioresescalas.Finalmente, nenhuma força humana
a descrever uma escada em caracol sem mover braços e mãos e foi de valia quando os ventos se desencadearam no ar, trazendo
sem outra ajuda visual. Ele não tinha esperançasde que as pa- água, pó, folhas, ramos e até mesmo árvores inteiras num caos
furioso de cacofonia visual
lavras servissem como veículos descritivos para um fenómeno
de tal complexidade, e sentiu que apenas seus desenhos pode-
riam fornecer explicações visuais adequadas . Que o ar escuro e triste sqa mostrado, castigado pela agitação de
Os mais complexos de seus estudos desenhados (Prancha ventos contrários e convulsionados, misturados com o peso da
6) não sãoalgo como fotografias miraculosasfeitas pelo olho. chuva incessante, e trazendo de roldão inúmeros galhos extirpa-
dos das árvores e misturados com incontáveis folhas. À toda vol-
mas representam uma síntese intrincada de observações e cons-
truções teóricas que não podem ser separadasumas das outras. ta podem-se ver velhas árvores arrancadas pelas raízes e desnu-
Eles apresentam a reconstrução dos "efeitos a partir das causas' dadaspela fúria dos ventos. As ruínas das montanhas podem ser
como disse em sua carta às autoridades da catedral, mas com vistas, esquadrinhadas pela correnteza dos rios, desabando sobre

a experiência direta dos efeitos sempre presenteem seu proces- essesrios e bloqueando os vales; os rios em declive explodem e
inundam muitas terras e seus habitantes.
so de visualização. Eles possuem uma beleza extraordinária em
sua coreografia espacial do impetus. No caso, os espirais aquáti-
cos estão dançando não só a sua própria música, mas também o A série Desenhosdo dilúvio, que data da última fase de sua vida,
combina a análise distanciada e a imersão emociona! de um mo-
acompanhamento das bolhas esféricasde ar, que foram empur-
radas para baixo, para dentro do reino estrangeirodo líquido, do que é compartilhado apenaspelos grandesmestresdo inteZ-
letto e da farltasia.
antes de saltarem alegremente à superfície numa série de peque-
nas explosões. Em sua análise,a forma do vórtice pode ser resumida em
A interação humana com a água era complexa e vital ao dois componentes:a direção primária do movimento em linha
mesmo tempo, de um modo que perdemos de vista, em geral, no reta; e o movimento giratório que faz com que o elementoen-
tempo presente. Ela proporcionava a maior fonte de poder; seu contre sua própria massa. De modo característico, essaformula-
transporte de um lugar para outro, àsvezes pela criação de uma ção o faz lembrar de algo mais:
nascenteartificial, era questão de vida ou morte para os agricul-
tores (e para aqueles que apenasprecisam de um gole); o mane- Observe o movimento da superfície da água, que repete o do ca
jo da água nos rios e canais era um importante favor de renda; e belo, e que tem dois movimentos, um dos quais responde ao pe
se das mechas de cabelo e o outro à direção dos ondas; esta água
faz dois redemoinhos, que em parte respondemao ímpetosda
corrente principal, enquanto a outra responde ao movimento in-
r l«ia;?l 'e:9i: «M.

cidental de dellecção.

18 ~ ;11::il:;.B:â$1N
Não só o cabelo: a configuração em hélice se insinua em to-
dos os fenómenos nos quais estão envolvidos os componentes
lineares e curvos. O movimento (ou caimento) da manga de
uma roupa, na qual uma camadafina, diáfana,cobre longitudi-
nalmente um forro mais pesado, se ergue e cai em uma série de
colinas e vales dispostos de modo helicoidal (Prancha 7). Quan-
do Leonardo da Vinci desenha A Estrela de Belém, as folhas de
uma planta prqetam-se de seu núcleo em curvas enroscadase
graciosas, que são talvez mais demonstrativas da filotaxia em es-
piral que qualquer planta em situação natural.
Tais fatos constituem lições necessáriasa quem desenha o
que pertence ao domínio do humano. Quando decidiu desenhar
uma cabeleira para a graciosa companheira deJúpiter, na pintu-
ra hoje perdida de l.eda e o cisne,ele elaborou suntuosas va-
riações artificiais de espirais indistinguíveis de cabelo e água
(Figura 8). Como para enfatizar a continuidade entre as coisas
artificiais e as naturais, os fios de cabelo, que escapam das mar-
gensfrontais da cabeleira e surgem pelasaberturas no centro das
B
volutas laterais, celebram a mesma tendência para encurvar-se :k

que Leonardo ampliou no desenho compacto de tranças e espi- .g

rais. Sendo ele quem era, sentia que devia desenhar a parte de
trás da cabeleira, para que a compreensãofosse total. Ele sem- 8. Estudo para a cabeleirade l.eda emLeda e o cisne
pre sentia como se tivessede responder a perguntas que iam WindsoC Roya[ Libral], ]25]6
além daquelas que inspiram diretamente as necessidadespráti-
cas de compor uma determinada imagem. Bem que os podero-
sos patronos deviam duvidar de sua capacidadepara terminar
alguma coisa num intervalo razoável de tempo -- embora, neste
caso, Leda tenha sido terminada, para aparecer como o bem
mais valioso da lista de Salase tornar-se um item estimado da sa-
la de banhos de Francisco i, em Fontainebleau. Seria irónico se
o ambiente aquático da suite de aposentosde Francisco tivesse
círculo. Leonardo da Vinci trabalhou infatigavelmente nessepro-
acelerado sua conclusão. blema e em outros enigmas envolvendo áreas curvilineares e
áreasdelimitadas por linhas rotas, adorando diversas estratégias.
;Necessidade", "quantidade contínua" e As vezes pressentia que o prêmio estava bem ao seu alcance. an-
o primado da geometria tes de desaparecer
de novo no horizonte. O que emergiude
muitas de suaspáginasde improvisações geométricas foram for-
Governar tudo o que podemosver é um princípio primordial.
mas próximas às da natureza -- conchas e flores, especialmente.
Este é o princípio da "necessidade".Ele dita que a forma sem- A fim de explicar o desenho das formas na natureza, como
pre se adapte perfeitamente à função na natureza, sem insufi- determinadoem princípio pelo supremoCriador,os números
ciência ou redundância; compele cada força a se expandir no não pareciam proporcionar as soluções que Leonardo buscava.
modo mais direto que Ihe é disponível; prescreveque o mais Eles eram, a seus olhos, bons para contar e determinar propor-
simples desenho deve atingir um determinado fim; e deve ser ções em estática e dinâmica, mas a quantificação não era a prin-
respeitado por todo realizador de coisasartificiais. "A necessida- cipal preocupaçãoda sua ciência. Quando ele procurava saber
de é a dona e professora da natureza; a necessidade é o tópico e como as conchas assumem uma forma helicoidal. como as fo-
a inventora da natureza, a curva, a regra e o tema".
lhas e pétalas se originam das hastes, e por que uma válvula car-
A arquitetura universal da necessidadeé a geometria. Para díaca funciona com perfeita economia, a análise geométrica for-
entender o primado que Leonardo da Venciconfere à geometria, necia os resultados que desqava. Esse substrato geométrico do
precisamos perceber por que ele a reverenciavaacima de qual- desenho de Deus podia ser expresso diretamente na arte de
quer outra áreada matemática. Ele reconheceuque o número é Leonardo, fornecendo os fundamentos para o formato das coi-
importante e interessou-se muito pelas proporções numéricas sasque ele observavano mundo natural, e que desqava regis-
tal como expressas na música. Mas o número era, em última ins- trar do modo mais perfeito em desenhos,pinturas, esculturase
tância, inferior à geometria, uma vez que a aritmética dependia na arquitetura. Veremos isso ocorrer repetidamente nos capítu-
da "quantidade descontínua", enquanto a geometria lidava com los seguintes
a "quantidade contínua". O número era limitado a unidades se- A expressão suprema da majestade da geometria reside nos
paradas,e não o tipo de coisasque avançavadiligentemente, e cinco sólidos regulares (ou "platónicos") reverenciados na filo-
faltava-lhe a magia das proporções geométricas, que lidam com sofia e na matemática clássicas. Eles são os únicos corpos sóli-
superfícies, formas e espaço- Para Leonardo, havia algo superior dos compostos de polígonos idênticos e simétricos em torno de
na razão da diagonal de um quadrado (Vjn) se comparada a
seus vértices. São eles o tetraedro (quatro triângulos eqüiláteros,
uma razão do tipo 2:1. Ele sabia que a V2 não podia ser expres- ou sqa, a pirâmide), o hexaedro(seisquadrados,ou sqa, o cu-
sa aritmeticamente, uma vez que constitui o que chamamos de bo), o octaedro(oito triângulos eqüiláteros), o dodecaedro(12
número irracional. Não percebeu, contudo, que a razão mate- pentágonos) e o icosaedro (20 triângulos eqüiláteros). Eles po-
mática entre o raio e o diâmetro de um círculo (hoje designada
dem ser cortados -- quer dizer, fatiados simetricamente a partir
como a) era irracional, impedindo-o de calcular a quadratura dos vértices, de forma a se transformarem em sólidos gemi-regu-
do círculo -- isto é, de conquistar o antigo prémio para quem lares. Leonardo ficava particularmente fascinado quando a di-
criasse um quadrado absolutamente idêntico em área a um dado visão de dois poliedros diferentes resultava no mesmo corpo
semi-regular, ou "arquimediano". Por exemplo, as divisões do
dodecaedro e do icosaedro produziam um icosidodecaedro com-
posto por pentágonos e triângulos alternados (Figura 9).
Leonardo ficou diretamente enredado pela intrigante mate-
mática e as belezasformais dos corpos regulares e semi-regula-
res quando colaborou com o matemático Luca Pacioli, que che-
gou à corte dos Sforza em 1496. O principal projeto dos quatro
anos de Pacioli em Melão era o tratado De divina proporcione
(Sobre a proporção divina), o qual discorria sobre a geometria
dos cinco sólidos considerandoque elespodiam ser relaciona-
dos com a chamada razão divina (também chamada de razão áu-
rea). Esta é a razão (em números irracionais) que resulta quando
uma linha é dividida de tal forma que a parte mais curta estápa-
ra a porção maior assim como a parte maior está para o todo.
A razão divina não podia ser expressa em termos das "quantida-
des descontínuas" dos números. Embora Leonardo não conce-
desse a essarazão qualquer status privilegiado acima das razões
geométricas, ele sem dúvida ficou encantado com as "quantida-
des contínuas" envolvidas no desenho dos sólidos. Fez para
Pacioli uma série de ilustrações, conhecidas em dois manuscri-
tos e publicadas em primeira ediçãoem 1509.
O que Leonardo da Vinci concebeu foi um caminho alta-
mente habilidoso para mostrar os sólidos em perspectiva, siste-
maticamente sombreados como se fossem objetos reais, e não
diagramas geométricos. Ele também inventou um meio de evi- g- BaseacZa
na Versão esquemática de um icosaedro, de Leortando.
denciar as configurações espaciaisdessessólidos sob a forma de em De divine proporcione. FZormça(PagartiusPagarias), ]509
esquemas, em que cada face era tratada como uma janela emol-
durada. As ilustrações testemunham seus dotes para a visualiza-
ção espacial. Fica evidente, em outras folhas de desenhos nas
quais experimenta diferentes configurações e divisões, que ele
era capaz de praticar essageometriatridimensional dentro de
sua cabeça, pensando os corpos como se fossem objetos reais e
concretos. Leonardo se mostrava mais fascinado ainda pelo que
chamava de "transformação" -- ou seja, quando um dado volu-
me de material numa forma definida era rearrumado em outra
forma. Um belo exemplo, caracteristicamenteinesperado, é sua
descobertade que, quando um cubo em material maleável é
comprimido firmemente ao longo de um eixo perpendicular a
uma das faces -- por exemplo, um cubo de cera pressionado
por uma placa de vidro colocada sobre ele --, acaba se transfor- -lç+''u-'v,4 4'1rNAm..
mando num cilindro chato. Ainda a quantidade contínua!
Leonardo da Vinca sustentava que tudo se move em um es-
.«.lq,.à ,*-.}T'~':«
paço contínuo, e que essemovimento não pode ser desmembra- $. «õ «i4 .«,'X..:,~ .b',?
do em etapas separadaspor números. Olhando para a figura
humana, ele viu como o sistema composto de dobradiças nas
juntas principais dos ombros, cotovelos, quadris ejoelhos resul-
tava numa série de extremidades orbitantes, como os epiciclos
que haviam sido inventados para salvar o modelo ptolomaico de
céus em movimento giratório. É uma visão que podemos razoa-
velmente descrever como cinematográfica. Podemos perceber
que Leonardo teria adorado ver seusdesenhosse moverem, e às
vezes, como em seus sucintos esboçosde um homem martelan-
do (Figura 10), ele chega o mais perto possível do efeito de uma
sequência contínua
.r''b
De certo modo, a "quantidade contínua" serve como metá-
io. Pequenos esboços de um homem martelando. Win(ZsocRoyal
fora perfeita para o sistema de pensamento pessoal de Leonardo Líbrary, ]9]49-52v
da Vinca. Ele nunca olhou para nada sem pensar em alguma
coisa mais. Tudo existia numa continuidade de causae efeito,
sob o comandoda necessidade,a qual, longe de causarunifor-
midade entre as coisas criadas, resultava na variedade mais as-
sombrosa de formas adequadas a executar funções incontáveis
em qualquer canto do mundo natural.

Você também pode gostar