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1.

Escolástica
1. Contexto

Por volta do ano mil, a Europa passa por inúmeras modificações que
afetam sua estrutura social, econômica e política. Invasões vikings,
pragas e pestes, pressões advindas do mundo árabe foram decisivas
para que o velho continente passasse a se reestruturar e, nos anos
seguintes, passasse a ser o continente que dominaria o mundo.
Do ponto de vista filosófico, inúmeras mudanças nutriram o ambiente
intelectual da época. As escolas e monastérios nascidos durante as
reformas de Carlos Magno, as universidades criadas à luz das
Figure 1: Amaury de Bene foi condenado à
instituições do norte da África e o renascimento árabe impulsionaram fogueira por ensinar Aristóteles em 1210

o crescimento intelectual ocidental. Filósofos como Ibn Rushd (1126 a 1298) deram origem a grandes
tradições de cópia e comentário das obras de Aristóteles – obras que a este ponto estavam praticamente
perdidas no ocidente. A medicina árabe também progredira enormemente. Nesse ambiente, ocorre uma
formulação da educação européia fundada no trívio ou no quadrívio. O trívio dediacava-se ao ensino da
gramática, retórica e a dialética; o quadrívio tinha a aritmética, a geometria, a astronomia e a música como
disciplinas obrigatórias. Como podemos imaginar, elas direcionavam as pessoas ao que chamamos hoje de
linguagens ou matemáticas.
Entretanto, não devemos imaginar que toda a riqueza do mundo árabe tenha sido imediatamente aceita no
mundo cristão. Os escritos de Aristóteles foram durante um bom período vistos como proibidos e nefastos.
Basta lembrar de Amaury de Bene, professor que foi queimado junto aos seus alunos por ser um estudioso
das obras naturalistas de Aristóteles em 1210. Muito dessas disputas se dá também em função dos anseios
de controle sobre a ciência que as ordens da igreja tinham.
2. Velhos problemas, novos métodos
Podemos dizer que a Escolástica foi um movimento filosófico que seguiu o projeto de conciliação da fé e da
razão, tal como a Patrística iniciara. O que muda agora é que a gradual aceitação dos textos de Aristóteles irá
promover uma mudança em termos de método e paradigma. A observação, o empirismo e a lógica irão cada
vez mais formar o caminho que a futura revolução científica iria traçar.
A Escolástica tem uma certidão de nascimento reconhecida no argumento ontológico de Santo Anselmo. Tal
argumento será depois retomado por São Tomás de Aquino e até mesmo por Descartes. A ideia que passa a
ser perseguida é que provas racionais da existência de Deus podem ser dadas, basta que o intelecto entre
em uma via que conduza ao reconhecimento de Deus como um ser necessário e perfeito.

2.1. São Tomás de Aquino


Tomaso D’Aquino, Tomás de Aquino (1225 – 1274) era filho do Conde de Aquino. O
jovem Tomás viveu em uma época em que a Europa vivia sob a ameaça da invasão
do imperador Mongol Kubilai Khan cujo desejo fundamental era unir toda a terra
sob o domínio de um mesmo céu. Aquino teve uma educação voltada para o
ingresso na ordem do Beneditinos, tal como seu pai teria programado. Contudo, ao
viajar para Nápoles, tomou conhecimento da ordem dos Dominicanos. Seus irmãos,
sabendo de seus planos para trocar de ordem, buscaram corrompê-lo para que não
mais pudesse ser membro da igreja. Contudo, Tomás manteve-se fiel ao propósito
e foi estudar junto aos dominicanos, tal como desejava.
Nesse período, a Patrística agostiniana era tida como a palavra absoluta da fé cristã e do estudo Teológico,
no entanto, Tomás de Aquino iniciou sua carreira por uma apresentação dos textos de Aristóteles por uma
via indireta.
O aparecimento de Tomás no mundo filosófico se deu por meio de uma
crítica a Ibn Rushd, também conhecido como Avicenas. O filósofo árabe-
ibérico argumentava que todas as almas eram na verdade uma só. Aquino
sustentou que as almas eram individuais, pois se assim não fosse não
haveria espaço para um julgamento divino. Em sua segunda grande crítica,
Aquino argumentou contra o argumento aristotélico da eternidade do
mundo. Segundo Tomás, o mundo – conceito que reúne nossa existência
carnal e no céu – passou a existir em um determinado ponto, pois sua
existência teria iniciado ao modo como é narrado no Gênesis e seria eterna
porque não tem fim e não porque não tem começo.
Contudo, ainda que estes estudos tenham sido contundentes e apresentado
Aquino ao mundo filosófico, a sua grande obra é a Summa Teológica. Nessa Avicenas foi um dos comentadores mais
relevantes das obra de Aristóteles
obra Aquino estuda e comenta as obras de Aristóteles e os evangelhos a fim
de abordar todos os aspectos da vida cristã. Desde crenças de fundo
metafísico até questões éticas são tratas nessa gigantesca coleção de obras.
Na Summa Teológica vemos uma emulação do modo como os debates eram travados nas universidades
européias, portanto é comum encontrar “vozes” defendendo argumentos contrários. Ao final, a construção
é uma rica dialética entre formas de conceber as questões e suas respostas.
Nessa obra vemos duas grandes adaptações do pensamento aristotélico. Em primeiro lugar, vemos que o
projeto de construir uma Sabedoria e uma ciência do ser enquanto ser, torna-se a ciência do estudo racional
de Deus. Deus passa a ser entendido como o ser enquanto ser, pois ele é colocado na posição de primeiro
princípio criador de todos os seres, imanente em todas as coisas e criador do sentido e finalidade das almas.
Além disso, veremos que a finalidade da vida cristã será compreendida também como a Eudaimonia.
Contudo, aqui a felicidade é a execução de uma vida permeada de virtudes cristãs, onde a fé, a esperança e a
caridade – o amor a Deus por meio do amor à comunidade – são as virtudes fundamentais. O sumo bem,
isto é, o bem comum é buscado por meio de um rei que seja virtuoso a ponto de ser capaz de guiar as
pessoas ao desenvolvimento da virtude.
Ora, em todas as coisas ordenadas a algum fim, é preciso haver algum dirigente, pelo qual se atinja
diretamente o devido fim. Com efeito, um navio, que se move para diversos lados pelo impulso dos ventos
contrários, não chegaria ao fim de destino, se por indústria do piloto não fosse dirigido ao porto; ora, tem o
homem um fim, para o qual se ordenam toda a sua vida e ação. Acontece, porém, agirem os homens de
modos diversos em vista do fim, o que a própria diversidade dos esforços e ações humanas comprova.
Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim. – São Tomás de Aquino, Carta ao Rei de Chipre

3. 2. As Cinco vias da Prova da Existência de Deus


Nosso interesse na Summa Teológica torna-se específico quando abordamos uma série de argumentos
clássicos de Tomás de Aquino. Tomás criou o que ficou conhecido com 5 vias para a prova da existência de
Deus. Consiste em 5 argumentos que visam mostrar que Deus é um ser que necessariamente existe, pois
sem postular essa existência inúmeras realidades ficariam sem explicação. Os argumentos partem da análise
do movimento, do conceito de causa-efeito, da dependência que seres contingentes tem de um ser
necessário, do conceito de perfeição e realidade e por fim do conceito de finalidade.
A primeira prova parte da constatação de que todo movimento tem um motor que leva algo da potência
ao ato. Além disso, nada pode ser motor e movido segundo o mesmo aspecto. Assim, se algo dá origem a
uma vida, esse algo é o motor de uma nova vida, que irá se mover em função desse princípio de movimento.
Contudo, se o motor se move, é necessário pressupor que ele tem um motor que o moveu. Se seguíssemos
assim, chegaríamos ao infinito pensando que sempre há um motor mais fundamental movendo algo. Porém,
se assim fosse, não haveria um primeiro motor que inicio a série de movimentos. Logo, deve haver um
primeiro motor que tudo move e que não é movido por nada mais. O nome desse ser é Deus.
"Por cinco vias pode-se provar a existência de Deus. A primeira e mais manifesta é a procedente do
movimento; pois, é certo e verificado pelos sentidos, que alguns seres são movidos neste mundo. Ora, todo
o movido por outro o é. Porque nada é movido senão enquanto potencial, relativa- mente àquilo a que é
movido, e um ser move enquanto em ato. Pois mover não é senão levar alguma coisa da potência ao ato;
assim, o cálido atual, como o fogo, torna a madeira, cálido potencial, em cálido atual e dessa maneira, a
move e altera. Ora, não é possível uma coisa estar em ato e potência, no mesmo ponto de vista, mas só em
pontos de vista diversos; pois, o cálido atual não pode ser simulta- neamente cálido potencial, mas, é frio em
potência. Logo, é impossível uma coisa ser motora e movida ou mover-se a si própria, no mesmo ponto de
vista e do mesmo modo, pois, tudo o que é movido há de sê-lo por outro. Se, portanto, o motor também se
move, é necessário seja movido por outro, e este por outro. Ora, não se pode assim proceder até ao infinito,
porque não haveria nenhum primeiro motor e, por consequência, outro qualquer; pois, os motores
segundos não movem, senão movidos pelo primeiro, como não move o báculo sem ser movido pela mão.
Logo, é necessário chegar a um primeiro motor, de nenhum outro movido, ao qual todos dão o nome de
Deus." AQUINO, T. Suma Teológica.
O segundo argumento parte da noção de causa eficiente. Aquino nos diz que uma causa eficiente não pode
ser causa de si mesma, pois seria anterior a si mesma. Do mesmo
modo, as causas não podem regredir até o infinito, pois senão não
haveria uma causa eficiente e nem um efeito. Assim, é necessário
reconhecer que deve haver uma causa inicial e a ela dão o nome de
Deus.
A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois,
descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres
sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma coisa seja
causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não
pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o
infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é
causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e
como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas
eficientes não houver primeira, não haverá média nem última.
Figure 2: São Tomás de Aquino ao lado de
Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem Aristóteles e dos Apóstolos por Lippo Memmi
efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é (c.1340)
falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus.
A terceira prova parte da distinção entre um ser contingente e um ser necessário. Ela argumenta que os
seres contingentes têm origem em outros seres contingentes. Contudo, o primeiro ser contingente não pode
ter tido origem em um ser contingente, pois senão esse seria o segundo e não o primeiro ser contingente.
Desse modo, deve haver um ser necessário e ele é Deus.
A terceira via, procedente do possível e do necessário, é a seguinte — Vemos que certas coisas podem ser e
não ser, podendo ser geradas e corrompidas. Ora, impossível é existirem sempre todos os seres de tal
natureza, pois o que pode não ser, algum tempo não foi. Se, portanto, todas as coisas podem não ser, algum
tempo nenhuma existia. Mas, se tal fosse verdade, ainda agora nada existiria pois, o que não é só pode
começar a existir por uma coisa já existente; ora, nenhum ente existindo, é impossível que algum comece a
existir, e portanto, nada existiria, o que, evidentemente, é falso. Logo, nem todos os seres são possíveis, mas
é forçoso que algum dentre eles seja necessário. Ora, tudo o que é necessário ou tem de fora a causa de sua
necessidade ou não a tem. Mas não é possível proceder ao infinito, nos seres necessários, que têm a causa
da própria necessidade, como também o não é nas causas eficientes, como já se provou. Por onde, é forçoso
admitir um ser por si necessário, não tendo de fora a causa da sua necessidade, antes, sendo a causa da
necessidade dos outros; e a tal ser, todos chamam Deus.
A quarta prova parte da noção de perfeição. Afinal, se os seres do mundo apresentam graus de perfeição,
isso é um sinal de que ela deve ter um grau máximo. Aquilo que é perfeito encontra-se no grau máximo de
bem, verdade e nobreza.
A quarta via procede dos graus que se encontram nas coisas. —
Assim, nelas se encontram em proporção maior e menor o bem,
a verdade, a nobreza e outros atributos semelhantes. Ora, o mais
e o menos se dizem de diversos atributos enquanto se
aproximam de um máximo, diversamente; assim, o mais cálido é
o que mais se aproxima do maximamente cálido. Há, portanto,
algo verdadeiríssimo, ótimo e nobilíssimo e, por consequente,
maximamente ser; pois, as coisas maximamente verdadeiras são
maximamente seres, como diz o Filósofo. Ora, o que é
maximamente tal, em um gênero, é causa de tudo o que esse
gênero compreende; assim o fogo, maximamente cálido, é causa
de todos os cálidos, como no mesmo lugar se diz. Logo, há um
ser, causa do ser, e da bondade, e de qualquer perfeição em tudo
quanto existe, e chama-se Deus.
Por fim, a última prova permite reconhecer Deus como um ser que desenha e planeja a realidade. A ideia de
uma realidade criada por um ser enquanto ser que cria segundo finalidades é provada neste argumento.4A
quinta procede do governo das coisas — Pois, vemos que algumas, como os corpos naturais, que carecem de
conhecimento, operam em vista de um fim; o que se conclui de operarem sempre ou frequentemente do
mesmo modo, para conseguirem o que é ótimo; donde resulta que chegam ao fim, não pelo acaso, mas pela
intenção. Mas, os seres sem conhecimento não tendem ao fim sem serem dirigidos por um ente conhecedor
e inteligente, como a seta, pelo arqueiro. Logo, há um ser inteligente, pelo qual todas as coisas naturais se
ordenam ao fim, e a que chamamos Deus.
3.2. A Querela dos Universais.
Uma discussão que ao longo de séculos foi travada no interior das tradições platônica
e aristotélica foi a origem e o significado de termos universais. Platão acreditava que
os termos universais eram derivados de formas reais que existiriam no mundo das
ideias. Aristóteles, por sua vez, acreditava que a união da matéria e da forma,
poderia ser desmembrada pelo intelecto, dando origem aos termos universais.
Desde Boécio, os argumentos dividiam-se entre os defensores de uma visão Figure 3: Guilherme de Occam, o doutor
realista e uma nominalista. invencível por Aldrian Mimi (2022)

Realistas, como Platão e Aristóteles, acreditam que a matéria e a forma são constituintes dos seres, por isso,
quando pensamos em termos universais nossa mente opera uma separação entre ambas. A phantasia é o
movimento de abstração mental que, segundo Tomás de Aquino, permite intuir o universal a partir do
conhecimento da forma.
Os nominalistas têm um posicionamento que apela a ideias menos complexas. A simplicidade de suas
explicações são uma virtude de sua teoria. Para eles, os universais são intuídos e projetados pela mente
humana na realidade. Não há universais na realidade, mas somente na mente humana que fabrica conceitos
para compreender a complexidade do mundo. Guilherme de Ockham, por exemplo, defendia tal posição e
sua postura foi fundamental para iniciar a caminhada em direção ao que chamariam de Revolução Científica.

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