Você está na página 1de 244

INÊS249

INÊS249
INÊS249

Fundada em 1950

VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


(1907-1990) (1936-2013)

Publisher: Fabio Carvalho

ÀS SUAS ORDENS Diretor de Redação: Mauricio Lima


ASSINATURAS
Vendas
www.assineabril.com.br

WhatsApp: (11) 3584-9200


Telefone: SAC (11) 3584-9200
Redatores-chefes: Fábio Altman, José Roberto Caetano, Policarpo Junior e Sérgio Ruiz Luz
De segunda a sexta-feira,
Editores-executivos: Monica Weinberg, Tiago Bruno de Faria Editor-sênior: Marcelo Marthe Editores:
das 9h às 17h30 Alessandro Giannini, Amauri Barnabé Segalla, André Afetian Sollitto, Diogo Massaine Sponchiato, José Benedito
da Silva, Juliana Machado, Marcela Maciel Rahal, Raquel Angelo Carneiro, Ricardo Vasques Helcias, Sergio
Vendas corporativas, projetos Roberto Vieira Almeida Editores-assistentes: Larissa Vicente Quintino Repórteres: Adriana Ferraz, Allaf Barros
especiais e vendas em lote: da Silva, Amanda Capuano Gama, Bruno Caniato Tavares, Camila Cordeiro Alves Barros, Diego Gimenes Bispo
assinaturacorporativa@abril.com.br dos Santos, Felipe Barbosa da Silva, Felipe Branco Cruz, Gustavo Carvalho de Figueiredo Maia, Isabella Alonso
Panho, Juliana Soares Guimarães Elias, Kelly Ayumi Miyashiro, Laísa de Mattos Dall’Agnol, Luana Meneghetti
Atendimento exclusivo para assinantes: Zanobia, Lucas Henrique Pinto Mathias, Luiz Paulo Chaves de Souza, Maria Eduarda Gouveia Martins Monteiro
minhaabril.com.br de Barros, Meire Akemi Kusumoto, Natalia Hinoue Guimarães, Nicholas Buck Shores, Paula Vieira Felix
Rodrigues, Pedro do Val de Carvalho Gil, Ramiro Brites Pereira da Silva, Simone Sabino Blanes, Valéria França,
Valmar Fontes Hupsel Filho, Valmir Moratelli Cassaro, Victoria Brenk Bechara Sucursais: Brasília — Chefe:
WhatsApp: (11) 3584-9200 Policarpo Junior Editor-executivo: Daniel Pereira Editor-sênior: Robson Bonin da Silva Editoras-assistentes:
Telefones: SAC (11) 3584-9200 Laryssa Borges, Marcela Moura Mattos Repórteres: Hugo Cesar Marques, Ricardo Antonio Casadei Chapola Rio
Renovação 0800 7752112 de Janeiro — Chefe: Monica Weinberg Editores: Ricardo Ferraz de Almeida, Sofia de Cerqueira Repórteres:
De segunda a sexta-feira, Amanda Péchy, Caio Franco Merhige Saad Estagiários: Giovanna Bastos Fraguito, Gisele Correia Ruggero, Ligia
das 9h às 17h30 Greco Leal de Moraes, Maria Fernanda Firpo Henningsen, Mariana Carneiro de Souza, Marilia Monitchele
atendimento@abril.com.br Macedo Fernandes, Paula de Barros Lima Freitas, Sara Louise França Salbert, Thiago Gelli Carrascoza Arte —
Editor: Daniel Marucci Designers: Ana Cristina Chimabuco, Arthur Galha Pirino, Luciana Rivera, Ricardo
Horvat Leite Fotografia — Editor: Rodrigo Guedes Sampaio Pesquisadora: Iara Silvia Brezeguello Rodrigues
Produção Editorial — Secretárias de produção: Andrea Caitano, Patrícia Villas Bôas Cueva, Vera Fedschenko
Revisora: Rosana Tanus Colaboradores: Alexandre Schwartsman, Cristovam Buarque, Fernando Schüler, José
Casado, Lucilia Diniz, Maílson da Nóbrega, Murillo de Aragão, Ricardo Rangel, Vilma Gryzinski, Walcyr
Carrasco Serviços internacionais: Associated Press/Agence France Presse/Reuters
Para baixar sua revista digital:
www.revistasdigitaisabril.com.br www.veja.com

EDIÇÕES ANTERIORES
CO-CEO Francisco Coimbra, VP DE PUBLISHING (CPO) Andrea Abelleira, VP DE TECNOLOGIA
Venda exclusiva em bancas, E OPERAÇÕES (COO) Guilherme Valente, DIRETORIA FINANCEIRA (CFO) Marcelo Shimizu,
pelo preço de capa vigente. DIRETORIA DE MONETIZAÇÃO, LOGÍSTICA E CLIENTES Erik Carvalho
Solicite seu exemplar na banca
mais próxima de você.
Redação e Correspondência: Rua Cerro Corá, 2175, lojas 101 a 105, 1º andar, Vila Romana, São Paulo, SP, CEP 05061-450
LICENCIAMENTO
DE CONTEÚDO VEJA 2 890 (ISSN 0100-7122), ano 57, nº 17. VEJA é uma publicação semanal da Editora Abril. Edições anteriores:
Para adquirir os direitos Venda exclusiva em bancas, pelo preço da última edição em banca mais despesa de remessa. Solicite ao seu jornaleiro.
de reprodução de textos e imagens, VEJA não admite publicidade redacional.
envie um e-mail para:
licenciamentodeconteudo@abril.com.br
IMPRESSA NA PLURAL INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa Rodrigues, 700, Tamboré, Santana de Parnaíba, SP, CEP 06543-001
PARA ANUNCIAR
ligue: (11) 3037-2302
e-mail: publicidade.veja@abril.com.br

NA INTERNET
http://www.veja.com

TRABALHE CONOSCO
www.abril.com.br/trabalheconosco www.grupoabril.com.br
INÊS249
INÊS249

CARTA AO LEITOR

O COMBATE
NECESSÁRIO
O PAÍS TEM UMA LISTA cada vez maior de graves e ur-
gentes desafios na área de segurança. Temos uma média de
18,53 mortes para cada 100 000 habitantes, taxa compatí-
vel à de nações como Guatemala e Nigéria. Outro indicador
capaz de tirar o sono dos brasileiros é a quantidade de fur-
tos e roubos. Somente de veículos, registram-se 41 ocorrên-
cias por hora, ou seja, quase uma por minuto. Ataques de
bandidos para surrupiar celulares ganharam proporções
epidêmicas e ocorrem com frequência mesmo à luz do dia.

1|3
INÊS249

FOTOS CRISTIANO BORGES; ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL


REFORÇOS Compra de viaturas em Goiás
e câmera em PM de São Paulo: investimentos
que fazem a diferença

O clima de terror escalou ainda mais com o aumento das


atividades das facções criminosas, que passaram a dominar
várias áreas das metrópoles e começaram a usar o dinheiro
do tráfico para financiar outros ramos de negócios. Parte
desses lucros é investida para estender tentáculos de in-
fluência em direção à política e à Justiça.
Considerando-se esse contexto crítico, não por acaso a
questão da segurança se tornou o item que mais preocupa
hoje os brasileiros. Uma pesquisa Datafolha feita no fim de
março constatou que dois em cada três entrevistados (65%)
se sentem inseguros ao andar nas ruas: 39%, muito insegu-
ros e 26%, um pouco inseguros. Várias sondagens eleitorais
divulgadas nas últimas semanas em diversas cidades mos-
tram que o assunto estará no centro das inquietações dos
eleitores nas disputas municipais deste ano e, muito prova-

2|3
INÊS249

velmente, nos debates relativos aos pleitos de 2026, incluin-


do a corrida ao Palácio do Planalto.
Infelizmente, é comum que esse enorme apelo do tema
ajude na proliferação de discursos demagógicos. Medidas
populistas e açodadas fazem algum barulho, ajudando a
angariar aplausos nos palanques e curtidas nas redes so-
ciais, mas se mostram pouco eficazes na prática. É neces-
sário encarar de forma mais séria a questão, equilibrando
os esforços de prevenção e repressão, sem fazer com que o
combate ao crime atropele direitos individuais e acabe in-
crementando a barbárie vista atualmente nas ruas com a
participação da (má) polícia.
Está longe de ser uma tarefa fácil resolver o imbróglio da
segurança, é verdade, mas alguns estados vêm conseguindo
resultados elogiáveis. Conforme mostra a reportagem que
começa na pág. 22 desta edição, governos de Goiás, Rio
Grande do Sul, Espírito Santo e Santa Catarina, entre outros,
não ficaram apenas no discurso e nas promessas. Com uma
série de ações planejadas, reduziram de forma expressiva as
ocorrências policiais. A solução não passa apenas por inves-
timentos em equipamentos, em mais homens nas ruas e em
novas tecnologias, como as câmeras embutidas nos unifor-
mes dos guardas para inibir abusos e preservar os policiais.
Tudo isso é necessário, claro, mas nada vai evoluir na escala
que o país precisa sem a implementação de boas políticas
públicas coordenadas entre municípios, estados e governo
federal. Não há mais tempo a perder nessa luta. ƒ

3|3
INÊS249
INÊS249
INÊS249

ENTREVISTA ALEX GARLAND


MONICA SCHIPPER/GETTY IMAGES

“O EXTREMISMO
MATA”
O prestigiado diretor e roteirista do blockbuster
Guerra Civil fala sobre a crise das democracias, os
perigos do populismo digital e por que o cinema é
uma ferramenta para questionar o poder
RAQUEL CARNEIRO

1 | 10
INÊS249

LOGO NO INÍCIO da pandemia, em 2020, Alex Gar-


land contraiu covid-19. O cineasta inglês ficou muito de-
bilitado e, quando se recuperou, sentiu uma confusão
mental parecida com a do protagonista de Extermínio,
filme de 2002 escrito por ele. Na trama, o personagem
vivido por Cillian Murphy acorda do coma em uma Lon-
dres tomada por zumbis e criminosos. Na vida real, Gar-
land não deparou com mortos-vivos, mas ficou em cho-
que ao ver o noticiário: em meio às centenas de milhares
de mortes, diversos governantes mundiais espalhavam
fake news, e manifestações antirracistas eram reprimi-
das por policiais americanos. O mundo estava um caos.
Foi então que ele concebeu Guerra Civil, filme sobre um
hipotético (mas assustadoramente realista) conflito in-
terno nos Estados Unidos que lidera as bilheterias no
momento no país de Biden e Trump — e também no Bra-
sil. Garland, hoje aos 53 anos, iniciou carreira como au-
tor de romances — entre os quais, A Praia, um tratado
pop sobre as desilusões com as utopias modernas. Mas
foi como cineasta que atingiu a consagração: é ele a men-
te por trás de Ex_Machina, filme que examina os peri-
gos da inteligência artificial. Em Guerra Civil, Garland
faz um retrato incisivo — e polêmico — de como o extre-
mismo leva uma sociedade a se autodilacerar. Na entre-
vista, o diretor fala sobre os bastidores da produção, sua
relação com o jornalismo e como foi trabalhar com o as-
tro brasileiro Wagner Moura.

2 | 10
INÊS249

O filme Guerra Civil é narrado pelo ponto de vista de três


repórteres — interpretados por Kirsten Dunst, Wagner
Moura e Cailee Spaeny. Por que essa escolha? Existem
muitos pontos de vista que podem ser explorados em um
filme sobre guerra. Pode ser uma família tentando fugir e
sair de um lugar rumo a outro, ou um grupo de soldados
envolvidos no conflito, por exemplo. Eu escolhi esses pro-
tagonistas porque quis fazer um filme sobre o ofício do jor-
nalismo e sua importância para a sociedade. É uma profis-
são que sofre inúmeras críticas — muitas delas válidas, in-
clusive. Mas que, na verdade, enfrenta tentativas constan-
tes e desproporcionais de desmoralização. O jornalismo é
essencial para a democracia.

A que se deve sua crença nisso? Sem a liberdade de


imprensa, não há equilíbrio de poderes. A democracia é

“Guerra Civil é um alerta contra


a guerra. Porém, é ainda mais sobre
o que a precede: esses conflitos são
um produto do extremismo, seja ele
político, econômico ou religioso”
3 | 10
INÊS249

formada por leis e instituições com poderes distintos.


Cabe ao jornalismo reportar quando há um desequilí-
brio entre essas instâncias.

Apesar do tema corajoso, Guerra Civil é criticado por al-


gumas pessoas por ser um filme supostamente “isen-
tão”, que deixa em aberto sua mensagem. Concor-
da? Digo que o filme oferece respostas, mas de forma su-
til. É um aceno ao grande debate sobre o jornalismo: ele de-
ve apenas reportar o que aconteceu ou apresentar um juízo
de valor? Os protagonistas falam no filme que o papel deles
é entregar a informação e cabe a quem a recebe analisar o
que aquilo significa.

No filme, a personagem de Kirsten Dunst é uma fotojor-


nalista que se sente desolada por ter passado anos re-
gistrando os horrores da guerra pelo mundo afora com o
objetivo de alertar contra esse tipo de conflito — e então
vê seu próprio país ser atingido. É também sua intenção
alertar para a tragédia da guerra? Sim, com certeza.
Guerra Civil é um alerta contra a violência política. Porém,
é ainda mais sobre o que a precede: conflitos civis são pro-
duto do extremismo, seja ele político, econômico ou reli-
gioso. Geralmente, as pessoas são levadas ao extremo por
políticos populistas. Entre seus piores efeitos está a supres-
são dos direitos humanos. É uma escalada inevitável. Logo
a imprensa é reprimida, surgem presos políticos, o aumen-

4 | 10
INÊS249

to da violência. O extremismo mata. Quase todo genocídio


na história humana foi fruto dessa forma de ódio.

Os Estados Unidos estão perto de mais uma eleição pre-


sidencial conturbada e havia a expectativa de que Guer-
ra Civil fosse mais incisivo contra os rompantes autoritá-
rios de Donald Trump e de seus partidários republicanos.
O que pensa de quem não gostou do filme por essa ra-
zão? Eu li esse tipo de crítica de jornais progressistas. Mas
quem faz essa análise está seguindo a mesma estrada dos
extremistas. Para mim, a crise mundial hoje não é entre es-
querda e direita, mas entre extremistas e o centro.

Como assim? Veja meu caso. Eu me considero alguém


de centro. Acredito em ideologias da esquerda, como a
visão que ela tem sobre a economia de livre mercado,
sobre a sociedade — mas, por outro lado, dialogo com
meus amigos de direita. O que não tenho são amigos ex-
tremistas. Para mim, essa é a diferença: há extremismo
na direita e na esquerda e, apesar de se apresentarem co-
mo inimigos, eles se retroalimentam e precisam um do
outro para sobreviver.

Acredita que essa análise se aplica também a um país


como o Brasil? Com certeza. Ela se aplica ao Brasil, ao
Reino Unido, a Israel, Holanda, Itália, e diversos países
asiáticos. É um fenômeno do nosso tempo que se espa-

5 | 10
INÊS249

lhou pelo mundo. Optei por ambientar o filme nos Esta-


dos Unidos porque é um país enorme e muito poderoso.
O resto do mundo olha para os americanos, admirando
ou odiando — fato é que tudo que acontece por lá ecoa
na nossa direção.

Com sua trama que acompanha as manipulações de uma


androide ardilosa, Ex_Machina (2014) lançou um olhar
perturbador sobre os riscos da inteligência artificial —
hoje uma ferramenta explorada por grupos extremistas
nas redes sociais. Como analisa esse cenário, e por que
deixou o tema de fora em Guerra Civil? Foi uma escolha
não mergulhar nas razões do conflito. Mas, claro, as redes
sociais e a inteligência artificial são parte dessa engrena-
gem. Em inglês usamos a expressão “a perfect storm” (uma
tempestade perfeita) quando vários fatores se unem e cul-
minam em uma situação drástica, deixando a tormenta ain-
da pior do que ela já seria. Acho que as empresas de tecno-
logia são devastadoramente irresponsáveis no modo como
priorizam o lucro e seu poder de influência em detrimento
da responsabilidade social.

Na minissérie Devs, o senhor narra — com as devidas do-


ses de sarcasmo e espírito crítico — a história de um bilio-
nário do ramo da computação. Por que resolveu abordar
essa elite do mundo digital em sua ficção? Sou um gran-
de e incisivo crítico desses gigantes da tecnologia. Devs é

6 | 10
INÊS249

uma ficção científica sobre as possibilidades desse ramo de


estudo da física, mas eu quis no fundo mostrar quanto esses
bilionários agem com pouquíssima regulamentação e mui-
to acesso. Eles se acham o máximo e são chamados por
muita gente de gênios, mas, na verdade, não são geniais:
trata-se apenas de empresários querendo ter mais poder e
influência do que deveriam.

Wagner Moura é um celebrado ator brasileiro e tem um


papel importante em Guerra Civil, como o jornalista que
é viciado na adrenalina de perseguir a notícia. Por que
o escolheu? Eu o vi pela primeira vez em Narcos, a série
da Netflix na qual Wagner interpreta Pablo Escobar. A
produção é muito sofisticada e ele está muito bem. Quan-
do o conheci, logo nos demos bem e não tive dúvidas que
era dele o papel.

“As empresas de tecnologia são


devastadoramente irresponsáveis no
modo como priorizam o lucro e seu
poder de influência, em detrimento da
responsabilidade social”
7 | 10
INÊS249

De onde veio essa certeza? O Wagner Moura é brilhante.


É um excelente ator e uma ótima pessoa. Ele era perfeito
para o papel, pois tem um jeito brincalhão e despojado,
mas, por baixo dessa faceta, é caloroso e inteligente. Uma
personalidade que se encaixou perfeitamente no tipo de
personagem que eu imaginei.

O filme estreou no topo das bilheterias americanas,


passando dos 45 milhões de dólares por lá em duas se-
manas — um feito para uma produção independente.
Curiosamente, entre os fatores que impulsionaram es-
se resultado está o sucesso entre eleitores republica-
nos do sexo masculino. Era um estrato de público que o
senhor esperava atingir? Olha, esse filme só não deve
ser visto por crianças, pois é muito violento. No geral,
quero que ele seja visto por qualquer pessoa que esteja
disposta a chegar com a mente aberta. Sei que meus fil-
mes são provocativos, mas o que eu quero provocar não
é raiva, medo ou violência. Não quero arranjar briga com
ninguém. O que eu quero com minha obra é que as pes-
soas reflitam e questionem o poder.

Fala especificamente de poder político? Sim, mas tam-


bém de outros tipos de poder. Seja o poder das grandes em-
presas de tecnologia, seja o poder militar, ou religioso. Sem-
pre questione o uso do poder. Não quero incitar a uma pa-
ranoia, mas, sim, a uma inquietude. Todos sabemos que o

8 | 10
INÊS249

poder corrompe, não importa quem esteja com ele nas


mãos. Então, espero que as pessoas saiam do cinema refle-
tindo sobre o mundo onde vivem.

O filme é, de fato, bem violento. Acha que encontrou


um equilíbrio capaz de retratar a brutalidade humana
sem incitá-la? Existe a violência real e existe a violên-
cia cinematográfica. Uma é completamente diferente da
outra. Optei por algo mais próximo da realidade, a vio-
lência que é vista em zonas de guerra, que é muito mais
perturbadora e horrível do que qualquer filme possa
mostrar. Assim como as pessoas que, nesse tipo de con-
texto, se divertem com a dor alheia. A guerra extrai o
pior do ser humano. De novo, o filme é um alerta contra
tudo isso, não uma incitação.

Seu pai, Nicholas Garland, é um famoso cartunista políti-


co na Inglaterra e cofundador do jornal The Independent.
Ele serviu de inspiração na concepção desses persona-
gens? Com certeza. Eu cresci cercado por jornalistas na
mesa de jantar. Meu pai é uma inspiração, assim como meu
padrinho e o padrinho do meu irmão, ambos correspon-
dentes de guerra. Eu quis ser jornalista, mas desisti.

Por quê? Sou melhor escrevendo ficção do que não fic-


ção. A reportagem não dá espaço para liberdades criati-
vas. Uma matéria jornalística precisa de apuração e pre-

9 | 10
INÊS249

cisão ao narrar fatos. Além disso, escrever é um processo


difícil e complexo. Sempre que escrevo analiso palavra
por palavra, para passar corretamente as informações.
Mas as pessoas raramente leem com tanta atenção e po-
dem interpretar erroneamente o texto. É como um sabo-
nete molhado na mão, que me escapa e não consigo con-
trolar. Com a ficção, me sinto mais confortável para pas-
sar a ideia que eu tenho.

É verdade que planeja se aposentar? Olha, eu preciso


dar um tempo de dirigir filmes. É bem exaustivo. Tam-
bém quero voltar a escrever romances. Vamos dar tem-
po ao tempo. ƒ

10 | 10
INÊS249

IMAGEM DA SEMANA

UMA TRISTE AULA


DE INTOLERÂNCIA

NA HISTÓRIA dos Estados Unidos, com ecos para todo o


mundo, os campi universitários foram sempre termômetro
democrático do que anda em corações e mentes — e não
haveria de ser diferente em torno da guerra entre Israel e
Gaza. Na semana passada, algumas das principais
SELCUK ACAR/ANADOLU/GETTY IMAGES

1|2
INÊS249

instituições de ensino americanas entraram em ebulição,


alimentadas pelos protestos de grupos favoráveis aos
palestinos. Dezenas de estudantes foram detidos em Yale
e na Universidade de Nova York (NYU). Em Columbia, a
reitora chamou a polícia. Aulas e provas
presenciais foram canceladas — e tiveram de ser
feitas on-line, como nos piores dias da pandemia. O
rastilho de pólvora corria com velocidade, alimentado pelo
ódio que mimetiza o confronto no Oriente Médio. Não há
dúvida: o direito à livre expressão, de ambos os lados, é
sagrado, e não há nada que impeça as pessoas de pensarem
e defenderem seus direitos. Contudo, são inaceitáveis os
episódios de antissemitismo que se espalharam entre os
bancos escolares, no ambiente mercurial, e às favas o bom
senso. O presidente americano Joe Biden deu o tom
equilibrado e necessário para baixar a fervura, avesso ao
radicalismo — instado a comentar a gritaria, ele foi direto
ao ponto: condenou os “protestos antissemitas” e também
aqueles “que não entendem o que está acontecendo com os
palestinos”. O escritor Amós Oz (1939-2018) deixou como
legado o caminho a ser trilhado pela civilização: “O conflito
do século XXI é entre os fanáticos e nós”. ƒ

Amanda Péchy

2|2
INÊS249

CONVERSA VINCENZO VISCIGLIA

“É UMA BOLHA DE LUXO”


O brasileiro que decora as casas dos bilionários
do Oriente Médio e veste as mulheres mais
ricas de Dubai e região diz que as guerras na
vizinhança não afetam a ostentação vivida ali
ARTÉM GILMAN

DAS ARÁBIAS O estilista e arquiteto: “É gratificante


ter me tornado um pilar da moda”

1|3
INÊS249

Como você caiu no gosto das árabes endinheiradas? Já


estou em Dubai há quinze anos, com um escritório de ar-
quitetura e um ateliê de moda. Faço as casas das famílias e
os vestidos das mulheres, que não podem se mostrar para
os homens, nem mesmo a seus pretendentes. Elas sabem
que sou bastante profissional. No começo, pediam para as
costureiras tirarem as medidas e eu desenhava. Com o tem-
po, pegaram confiança e me deixam vesti-las. Claro que é
mais difícil quando a família é tradicional: as mães nem se-
quer deixam ver suas filhas.

Qual é a preferência de estilo, ainda que elas tenham


que usar véus ou burcas em público? São vestidos extre-
mamente luxuosos. Feitos para eventos e casamentos.
Quanto mais próximo o anfitrião, maior o investimento.
São modelos de alta-costura, com metros de tecidos nobres
e muitos bordados, pedrarias, cristais e brilho, que levam
até quatro meses para ficar prontos. Quanto mais a roupa
ostenta, melhor. É a maneira que elas têm de mostrar que
são ricas. E existe muita competição. Temos até um esque-
ma contra vazamentos porque as clientes investigam e ten-
tam tirar informações sobre o vestido das outras.

Costura para personalidades também? Sim, visto as ce-


lebridades locais, não só de Dubai, mas também do Catar,
do Kuwait e da Arábia Saudita. Inclusive atrizes, cantoras e
influenciadoras sírias e libanesas, que são menos rígidas e

2|3
INÊS249

podem se expor mais. E ainda tem as xeicas, que geralmente


vão à loja, escolhem uns vinte vestidos, que mandamos à ca-
sa delas. Mas não podemos tirar fotos. Elas respeitam muito
os costumes, mas estão conquistando espaço e liberdade na
moda. Só que, nas redes sociais, as fotos ainda aparecem
com a cabeça cortada ou um borrão no rosto.

Até que ponto os conflitos no Oriente Médio afetam seu


trabalho? Estamos no meio de uma guerra, mas, em Dubai,
as pessoas vivem como se nada estivesse acontecendo, por-
que o governo consegue dominar as notícias e filtrar as redes
sociais. Então, acaba não impactando o nosso dia a dia. Vive-
mos em uma bolha de luxo — e com sensação de segurança.

Pretende voltar ao Brasil para ser mais reconhecido por


aqui? Penso em trazer minha marca para o país, obviamente
adaptada. Mas a ideia não é competir com os estilistas brasi-
leiros, que são muito talentosos. Já é muito gratificante repre-
sentar o Brasil e ter me tornado um pilar da moda no Oriente
Médio. Não preciso provar mais nada para ninguém. ƒ

Simone Blanes

3|3
INÊS249

DATAS

MARK DUNCAN/AP/IMAGEPLUS

REFÉM Terry Anderson, ao deixar o cativeiro xiita,


em 1991: 2 454 dias confinado

O MAIS LONGO
DOS SEQUESTROS
A jornalista americana Sulome Anderson só conheceu
o pai aos 6 anos — na tarde de dezembro de 1991 em que,
depois de 2 454 dias de cativeiro, ele foi libertado por um
grupo xiita libanês associado ao Hezbollah que o fizera
refém. Terry Anderson tinha 44 anos. Era o chefe do es-

1|4
INÊS249

critório da agência Associated Press (AP) em Beirute. Os


terroristas, apoiados pelo Irã, diziam retaliar o uso de ar-
mas americanas por Israel em ataques anteriores na dire-
ção de alvos muçulmanos e drusos no Líbano (atenção: tu-
do isso ocorreu há quatro décadas, não foi ontem). Busca-
vam também pressionar a administração do presidente
Ronald Reagan a facilitar secretamente a venda de armas
ilegais para as autoridades iranianas e, simultaneamente,
financiar os “contras” da Nicarágua — em esquema emba-
raçoso que ficou conhecido como o caso “Irã-Contras”.
Anderson foi o último dos dezoito reféns ocidentais li-
bertados pelos criminosos — ninguém ficou mais tempo
sequestrado do que ele. Embora não tenha sido torturado
durante o cárcere, chegou a ser acorrentado, segundo seu
próprio relato. Passou um ano em confinamento solitário.
“Não havia nada em que me agarrar, nenhuma maneira
de tranquilizar minha mente”, disse. “Tentava orar todos
os dias, às vezes por horas. Mas não havia nada ali, ape-
nas um vazio. Falava comigo mesmo, não com Deus.”
Depois daquele episódio — um dos mais rumorosos dos
anos 1980 e 1990 —, Anderson compraria um bar de blues
em Athens, no estado de Ohio. Concorreu sem sucesso co-
mo candidato democrata para o Senado estadual, em
2004. Na Justiça, venceria um processo que o autorizou a
receber 26 milhões de dólares em ativos iranianos. Ruim
de negócios, faliria em 2009. Morreu em 21 de abril, aos
76 anos, de complicações de uma cirurgia cardíaca.

2|4
INÊS249

BEATA ZAWRZEL/NURPHOTO/GETTY IMAGES

IDEIA Daniel Dennett: “Deus é um nome


para a beleza do universo”

DA ARTE DO CETICISMO
O americano Daniel Dennett não veio ao mundo a
passeio. Ateu e fervoroso evangelizador das ideias evolu-
cionistas de Charles Darwin, o filósofo fez muito barulho
ao opor, como muitos poucos, religião e ciência. Para
Dennett, acreditar em um ser superior era mais do que
simples perda de tempo: podia ser uma tremenda irres-
ponsabilidade. Em nome desse ou daquele deus, argu-
mentava ele, muita coisa errada acontece no mundo to-

3|4
INÊS249

dos os dias — da proibição do uso de preservativos à vio-


lação dos direitos humanos. Em uma entrevista para a
revista SUPERINTERESSANTE, da Editora Abril, ins-
tado a comentar a existência (ou não) do Todo-Poderoso,
respondeu com a clareza que o fez popular: “Deus signi-
fica tantas coisas que essa pergunta é impossível de ser
respondida. Para alguns, é apenas um nome para a bele-
za do universo e não tem nada a ver com forças sobrena-
turais. Esse Deus, obviamente, existe. O que não existe é
um agente sobrenatural que responde às nossas preces ou
supervisiona e guia a evolução das coisas”. O legado de
Dennett pode ser lido em mais de vinte livros, entre eles
Quebrando o Encanto e A Perigosa Ideia de Darwin. Ele
morreu em 19 de abril, aos 82 anos, em decorrência de
problemas pulmonares. ƒ

4|4
INÊS249

FERNANDO SCHÜLER

A PROFECIA DE
SCHUMPETER
VIROU MODA xingar Elon Musk. Como não temos nenhum
problema de censura prévia, e ninguém foi banido das redes
sem o devido processo, nossa prioridade é falar mal dessa
“perigosa conspiração da extrema direita global”. Quem sabe
liderada pelo próprio Musk entre uma e outra reunião sobre
foguetes e telhas solares, no Texas. Não deixa de ser divertido
isso tudo. Sempre foi uma boa jogada atirar no mensageiro e
empurrar a mensagem para debaixo do tapete. Mas há um
outro ponto aí. Elon Musk é um candidato quase perfeito para
vilão de história em quadrinhos de um certo pensamento lati-
no-americano. O sujeito que ficou rico gerando valor no mer-
cado, abre empresas em série, não dá bola para o politicamen-
te correto, diz o que pensa e, pecado dos pecados, gosta desse
novo monstrinho moderno, que é a liberdade de expressão.
Musk não gosta lá muito de protocolos. Em uma tarde de
sexta-feira, quase Natal de 2022, na sede do Twitter, recém-
comprado, ele escutava sem muita paciência a explicação de
uma engenheira sobre por que iria demorar oito meses para
deslocar o data center da rede de Sacramento para Portland.

1|6
INÊS249

Eram 5 200 hacks, cada um pesando 1 tonelada. Havia pro-


tocolos de segurança, conexões delicadas etc. “Vocês têm
três meses”, disse Musk, irritado. “Ou estão demitidos.” Na-
quela mesma noite, no seu jato, sobrevoando Las Vegas,
mandou o piloto dar meia volta e resolveu fazer ele mesmo o
serviço. Pousou em Sacramento, alugou um Corolla, fez o
chefe da segurança abrir o data center e começou a desligar
as máquinas com um canivete. Mobilizou sua tropa e, no fi-
nal, fez o serviço em pouco mais de um mês. Musk depois
avaliou que agiu por impulso, como tantas vezes, e tomou
um risco para o sistema. Mas funcionou. “Deixou claro para
a turma do Twitter”, escreveu seu biógrafo, “que não deve-
riam mais duvidar de seu senso de urgência”.
O biógrafo é Walter Isaacson, que acompanhou Musk de
perto por dois anos, e teve carta branca para escrever o que
quisesse. O resultado é interessante. Um livro sobre enge-
nheiros tentando resolver problemas, sobre um tipo obsessi-
vo e temperamental, mas sobretudo sobre um rapaz sul-
africano, com um pai autoritário, que se converte em herói
moderno da inovação. O tipo implacável, espécie de John
Galt moderno, que demite 75% dos funcionários do Twitter
sem piscar um olho. Que aposta todo seu dinheiro na quarta
tentativa de lançar um foguete, numa espécie de jogo de tu-
do ou nada. O tipo preocupado em nos transformar em uma
“espécie interplanetária”. O sujeito que um dia fica irritado
com os pedidos obsessivos de censura vindo de um estra-
nho país da América do Sul, e resolve dar um soco na mesa.

2|6
INÊS249

SONHO O plano de Elon Musk para uma


cidade em Marte: é preciso tentar

“Se o país realmente gosta de censura, o problema não é


meu”, dirá, em uma tarde quente de Austin, entre uma reu-
nião e outra sobre robôs, foguetes e inteligência artificial.
O que achei realmente curioso, nas últimas semanas, foi
Musk ser chamado de “menino mimado”, “líder da extrema
direita”, e coisas piores, aqui pelos trópicos. Me lembrei de
Umberto Eco, desgostoso, falando sobre os “idiotas da al-
deia”, na era digital. Musk é o sujeito que inventou o foguete
reutilizável, capaz de ir e voltar do espaço e pousar elegan-
temente; o primeiro a levar astronautas à Estação Espacial
Internacional e civis ao espaço, depois daquele voo trágico
da Challenger, em 1986. Foi também o primeiro a criar uma
SPACE X/DIVUGALÇÃO

3|6
INÊS249

“No mundo da
inovação, a economia
de mercado faz
prodígios”
empresa de carros elétricos realmente competitiva. Isso
quando não está entretido com a interface cérebro-máqui-
na, em sua Neuralink, ou com a criação de um robô huma-
noide capaz de gradativamente livrar a humanidade do tra-
balho braçal e pouco criativo.
Quando lia sobre Musk, me lembrava de Schumpeter.
Em parte pelo seu elogio do empresário inovador, aquele
que faz “novas combinações”, que “nunca dorme tranqui-
lo”, e cuja intuição para enxergar à frente produz o dina-
mismo da vida econômica. Mas também pelo seu lado me-
lancólico. A crença reafirmada em seu último artigo, A
Marcha para o Socialismo, de que o capitalismo caminhava
para o fim. E não porque o socialismo fosse um bom siste-
ma, mas por uma mecânica interna à própria economia de
mercado. O capitalismo faz crescer a produtividade, ele diz,
e com isso o bem-estar. E mais: viabiliza o crescimento de
uma influente “casta” intelectual, feita de acadêmicos e bu-
rocratas. Uma casta que vive dos sucessos do capitalismo,

4|6
INÊS249

mas cada vez mais distante de seu processo real de produ-


ção. Gente que não entende, ou não quer entender, como é
gerada a riqueza que, logo ali abaixo da superfície, sustenta
o seu interessante modo de vida.
A outra linha de força vem do próprio processo de pro-
dução cada vez mais cheio de regras, controlado por gran-
des corporações, de um lado, e pela intervenção governa-
mental, do outro, de modo que todo o sistema vai perdendo
o apetite pelo risco e força inovadora. Diagnóstico instigan-
te, mas apenas parcialmente correto. De fato, os intelectuais
tendem à incompreensão da economia de mercado e, por
vezes, a um anticapitalismo infantil. Muito do próprio “hor-
ror a Musk” e obsessão em torno dos “bilionários”, da “me-
ritocracia” fazem parte disso. E prossegue válida a ironia de
Schumpeter de que falar mal do capitalismo, nos meios inte-
lectuais, funciona “como uma espécie de regra de etiqueta”.
No mundo da inovação, porém, a economia de mercado
ainda faz prodígios. E é aí que entra Musk. Sua vida é a ne-
gação da tese de Schumpeter. Ele vende a Zip2, aos 28 anos,
ganha alguns milhões e aposta tudo em um banco digital,
que seria o PayPal; na venda da empresa, ganha outros tan-
tos milhões e aposta tudo de novo em uma improvável com-
panhia espacial, a SpaceX. Tudo ancorado em um certo
éthos. O asco pelos burocratas e “reguladores inúteis”. O
culto do risco, a crença na intuição (por vezes desastrosa),
no trabalho obsessivo e o desprezo por essa gente “bem-su-
cedida e que tira férias”. Vai nesse pacote o horror à ideolo-

5|6
INÊS249

gia woke e atração pelo seu contrário: a cultura libertária.


Coisas que levam àquele “go f. yourself” para eventuais
anunciantes que não querem investir no Twitter por causa
de uma postagem sua. Valendo o mesmo para pequenos di-
tadores bisbilhotando contas de ativistas e jornalistas.
O livro de Isaacson deveria ser recomendado nas faculda-
des. Estaríamos formando uma geração de empreendedores
investindo na cura de doenças, na invenção de baterias mais
eficientes, nos usos inteligentes da inteligência artificial, e
não uma turma formada no pensamento mágico sobre como
se produz a riqueza. Só por isso já valeria a pena contar a his-
tória do sujeito que fugiu de casa aos 17 anos e hoje repete em
relação a Marte a frase de Kennedy sobre a conquista da Lua:
“Temos de ir lá e fazer outras coisas... porque elas são difí-
ceis”. Porque somos humanos. Porque não sabemos do que
somos capazes. E por isso precisamos tentar. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
INÊS249

SOBEDESCE

SOBE
MOTOCICLETAS
A produção no país cresceu 42%
desde 2019 e chegou a 1,6 milhão
de unidades em 2023, o maior
número em dez anos, segundo a
Abraciclo, uma das associações
que reúnem empresas do setor.

MARÍLIA MENDONÇA
A cantora, que morreu em 2021,
chegou a 12 bilhões de streams
no Spotify e se tornou a primeira
artista do Brasil a bater a marca
de 10 bilhões na plataforma.

PRAÇA DOS TRÊS PODERES


Patrimônio mundial pela Unesco
desde 1987 e depredado no 8 de
Janeiro, o local terá 1 milhão de
reais do PAC para restaurações,
iluminação e acessibilidade.

1|2
INÊS249

DESCE
TIKTOK
O presidente Joe Biden sancionou
projeto aprovado pelo Senado
que dá um ano para que a chinesa
ByteDance venda o aplicativo a
uma empresa sediada nos EUA.

CARLA ZAMBELLI
A PGR denunciou a deputada do
PL e o hacker Walter Delgatti
Neto por invasão ao sistema do
CNJ e emissão de mandado falso
contra Alexandre de Moraes.

CIGARRO ELETRÔNICO
A Anvisa publicou, na quarta 24,
resolução que proíbe a fabricação,
importação, comercialização,
armazenamento, transporte e
propaganda desse tipo de
dispositivo para fumar.

2|2
INÊS249

VEJA ESSA
WEISS EUBANKS/NBCUNIVERSAL/GETTY IMAGES

“Será difícil fazer qualquer


coisa que supere a popularidade
daquela cena.”
MEG RYAN, atriz americana, hoje diretora, relembrando o
eterno sucesso da cena do falso orgasmo no restaurante
em Harry e Sally — Feitos Um para o Outro

1|5
INÊS249

“O que o Supremo está decidindo é qual a


quantidade que irá diferenciar o usuário de
traficante. (...) Nada justifica a prisão de
usuários de drogas.”
LUÍS ROBERTO BARROSO, presidente do STF

“Está superado. Não tem crise.”


ALEXANDRE PADILHA, ministro de Relações Institucionais,
a respeito do quiproquó com o presidente da Câmara, Arthur
Lira, que o chamou de “incompetente” e “desafeto pessoal”

“O Alckmin tem que ser mais ágil, tem que


conversar mais. O Haddad, em vez de ler
um livro, tem que perder algumas horas
conversando no Senado e na Câmara.”
PRESIDENTE LULA, passando pito em sua turma

“O que posso dizer é que se Lula e Petro


realmente querem pressionar Maduro por
eleições livres, o momento é agora.”
JUAN MANUEL SANTOS, ex-presidente da Colômbia,
instando o atual mandatário do país e o presidente do Brasil a
exigir democracia real na Venezuela

2|5
INÊS249

“O futuro é ancestral.”
ALOK, DJ e produtor musical, parafraseando o novo
imortal da academia, o indígena Ailton Krenak

“Vocês podem ter um presidente mais


competente do que eu. Existem muitas
pessoas, mas duvido que haja alguém
com o couro mais grosso do que o meu.”
JAIR BOLSONARO, ex-presidente, em ato realizado na
Praia de Copacabana, no domingo 21

“Existem mimados de todas as idades.


Veja o Elon Musk, que está aí para
confirmar a minha tese. A imaturidade
não tem idade. Isso é uma falácia.”
MARCELO TAS, humorista e apresentador
de televisão. Musk tem 52 anos

“Está tudo bem, mas dá muito trabalho.


É um dia de cada vez.”
CÉLINE DION, cantora canadense, que sofre de uma
doença rara, a síndrome da pessoa rígida, que afeta o sistema
nervoso central

3|5
INÊS249

“Tinha de duas
horas a uma semana
para morrer.”
TANDE, ex-atacante da seleção brasileira de vôlei,
medalhista de ouro na Olimpíada de 1992. Ele se
recupera de um infarto

“O rap é “Nunca achei


machista porque que eu fosse ser
é um espelho uma Gisele.”
da sociedade.” HELENA RIZZO, chef de
PROJOTA, cantor e cozinha, que chegou a
compositor de rap trabalhar como modelo

“Joguei mais do que Zidane, Xavi,


Beckham, Bergkamp, Del Piero e
Marcelinho Carioca.”
RIVALDO, campeão do mundo pela seleção
brasileira em 2002

“Pessoas que só têm pensamentos


bons são perigosíssimas.”
RAPHAEL MONTES, escritor

4|5
INÊS249

“Jovem, não
conversava
sobre sexo
com a minha
mãe. Aprendi
a dar prazer
para o homem.
Porém,
demorei muito
tempo para
entender
que o meu
prazer era
importante.”
GIOVANNA EWBANK,
atriz e modelo

INSTAGRAM @GIOEWBANK

5|5
INÊS249

RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Nicholas Shores e Ramiro Brites

Patrimônio militar todo o patrimônio em nome


O BNDES de Aloizio Mer- das Forças Armadas.
cadante assinou nesta se-
mana, com o ministro da Feirão da caserna
Defesa, José Múcio, um São quilômetros de fazen-
acordo histórico. Pela pri- das, praias, prédios públi-
meira vez, o banco usará cos e terrenos em áreas pri-
sua expertise para fazer um vilegiadas país afora. O ob-
detalhado levantamento de jetivo da parceria é avaliar o
LULA MARQUES/AGÊNCIA BRASIL

ESTUDO Mercadante: BNDES vai avaliar


todo o patrimônio das Forças Armadas

1|6
INÊS249

potencial financeiro das ao Congresso a liberação


instituições e, se possível, de 256 milhões de reais a
converter parte disso em re- obras do Exército em GO,
cursos para os projetos es- RS, MG.
tratégicos militares.
Falar não custa
Projetos imobiliários Chefe do Exército, Tomás
Há interesse privado, por Paiva teve uma conversa re-
exemplo, em imóveis e cente com Alexandre de
áreas militares em grandes Moraes, em que tratou da
centros, que poderiam ser libertação dos bolsonaristas
vendidos ao setor imobiliá- presos no QG.
rio. Com o estudo pronto,
as possibilidades serão ava- Tem gente na fila
liadas. Apesar de Paiva defender a
soltura de alguns militares,
Soldo reajustado ninguém no comando fica-
Se depender do ministro da ria triste com a prisão dos
Defesa, José Múcio, Lula generais metidos com o gol-
dará aos militares o mesmo pismo. Leia-se: Braga Netto
reajuste pensado pelo go- e outros de seus chegados.
verno para servidores civis.
Ele já pediu e Lula prome- Capitão em campanha
teu viabilizar. Enquanto a finada frente
ampla que elegeu Lula
Reforço de caixa perde tempo com intrigas
Lula pediu, nesta semana, e disputas de poder, Jair

2|6
INÊS249

Bolsonaro está em franca conteúdo difamatório con-


campanha. Desde janeiro, tra a primeira-dama Janja.
já visitou 37 cidades em
treze estados. Discurso de ódio
A PGR arquivou uma inves-
No terreno da esquerda... tigação contra um bolsona-
Cabo eleitoral de prefeitos, rista que defendeu, nas redes,
Bolsonaro fez carreatas e matar Alexandre de Moraes,
comícios em onze capitais. identificado como “ditador”
Só na Região Nordeste, es- do “Alexandrequistão”. A
teve em quatro estados: BA, PGR não viu crime.
CE, AL e PB.
Acelera, Xandão
... E no terreno feminino Apesar das críticas crescen-
Em outra frente, pilotando tes, Moraes, aliás, segue
o PL Mulher, Michelle Bol- com total apoio no STF.
sonaro também tem corrido “Nada mudará enquanto ele
o país. Ela visitou dezesseis não quiser”, diz um ministro
estados e filiou mais de 22 da Corte.
000 mulheres ao PL.
Criticar pode
Alvo preferencial A PGR arquivou uma inves-
Além de sonhos golpistas, a tigação sobre crime contra
PF descobriu que grupos de a honra da deputada bolso-
bolsonaristas do WhatsApp narista Julia Zanatta. O mo-
frequentados por Mauro tivo: criticar parlamentar
Cid adoravam espalhar não é crime.

3|6
INÊS249

WALDEMIR BARRETO/AGÊNCIA SENADO

RUÍDO Randolfe: base defende o STF,


mas é criticada por ministros da Corte

Ecos do 8 de Janeiro reaproximar Arthur Lira e


O S T F p revê i nve s t i r Renan Calheiros. Como se sa-
260 000 reais em equipa- be, os dois caciques de Ala-
mentos de fotografia. Os goas são inimigos declarados.
patriotas do 8 de Janeiro,
como se sabe, roubaram as “Bola nas costas”
câmeras e lentes da Corte. Sobre a fala de um ministro
do STF, que disse a Lula que
Supremo clipping ele joga uma Champions
O S T F va i g a s t a r at é League “com time de se-
295 000 por ano para mo- gunda divisão” na articula-
nitorar notícias sobre a Cor- ção política, diz o líder do
te em veículos de imprensa. governo, Randolfe Rodri-
gues: “É uma tremenda bo-
Missão quase impossível la nas costas dos poucos
Lula disse a um aliado que parlamentares que defen-
trabalha pessoalmente para dem o STF no Congresso”.

4|6
INÊS249

Sem respostas Melhor prevenir


Dias Toffoli tem enfrenta- O Banco Central vai reno-
do dificuldades para obter var o seguro de todos os
informações na vara da seus prédios e tudo que tem
Lava-Jato em Curitiba so- dentro deles. Custo:
bre atos de Sergio Moro. 323000 reais.
Nem todo mundo tem coo-
perado com a equipe do Melhor prevenir 2
ministro. Ainda está distante, mas o
governo já começou a orga-
Péssimo exemplo nizar a logística do desfile
A disputa pela vaga no de 7 de Setembro na Espla-
TST virou uma lama. Os nada. O foco, como sempre,
três advogados — Adriano é a segurança.
Avelino, Antônio Gonçal-
ves e Roseline Morais — Quem quer dinheiro?
que podem ser escolhidos Até março, a Caixa já libe-
por Lula já foram fritados rou 10,7 milhões de reais em
no Planalto. patrocínios a 38 organiza-
ções de diferentes setores,
Olha aqui, TCU! do agro aos movimentos de
A EBC quer torrar quase 1 esquerda.
milhão de reais para con-
tratar uma empresa que re- Evento internacional
formule seus ritos de licita- Jorge Kajuru quer conven-
ção. No Planalto, isso é fei- cer o governo a bancar um
to de graça. festival de música interna-

5|6
INÊS249

cional em dezembro, du-


rante o encontro do G20. A
proposta partiu dos músi-
cos Ivan Lins e Guarabyra,
e está orçada em 10 milhões
de reais.

Champions da favela
Organizada pela Globo e
pela Cufa, A Taça das Fa-
velas vai virar uma compe-
tição internacional, em
2025, com times de países
latinos, da Europa e da
África. Amauri Soares toca
o projeto.

Cadê Ivete?
A cantora Ivete Sangalo é
processada por um juiz de
Santa Catarina por causa
MAURÍCIO FIDALGO/TV GLOBO

de uma postagem sobre o


julgamento do caso Maria-
na Ferrer. Ele quer indeni-
zação de 15 000 reais. JUSTIÇA Ivete: juiz
A Justiça tenta notificar processou a cantora por
Ivete. ƒ causa de uma postagem

6|6
INÊS249

BRASIL SEGURANÇA

CRISTIANO BORGES

TIROS NO ALVO
Alguns estados são bons exemplos de como é possível
reduzir a criminalidade, com integração das polícias,
investimentos em efetivos, armas e veículos, uso de
tecnologia, inteligência e ações na área social

ADRIANA FERRAZ, BRUNO CANIATO


E VICTORIA BECHARA

TROPA NA RUA Policiais com novas viaturas


em Goiás: até o roubo de gado caiu

CAPA: MONTAGEM COM FOTOS DE FREEPIK; DIVULGAÇÃO SECOM/PR; SECR. DE SEGURANÇA PÚBLICA DO GOVERNO DE SP; CRISTIANO BORGES

1 | 19
INÊS249

segurança pública ganhou relevância política

A
nos últimos tempos e já desponta como um te-
ma central para a eleição nacional de 2026. O
avanço das facções criminosas, o entrelaça-
mento cada vez mais evidente da bandidagem
com o poder público, a persistência das altas taxas de
crimes em níveis vergonhosos, as cenas frequentes de
violência a que a população é submetida nos grandes
centros urbanos e a inoperância das autoridades para li-
dar com a escalada do problema assustam a população.
Em meio a esse cenário, no entanto, há ilhas de excelên-
cia que vêm experimentando resultados positivos nesse
enfrentamento, com reduções expressivas em ocorrên-
cias sensíveis como homicídios, latrocínios e roubos,
conforme mostra um levantamento feito por VEJA com
base em dados do Sistema Nacional de Informações de
Segurança Pública (Sinesp), que são fornecidos pelos es-
tados e compilados no Ministério da Justiça.
Um dos bons exemplos nesse sentido é Santa Catari-
na. No ano passado, metade dos 295 municípios não re-
gistrou um único caso de homicídio. Desde 2017, o esta-
do reduziu o número de assassinatos em 47% e o de la-
trocínios em 84%. A taxa de homicídios por 100 000 ha-
bitantes é de 6,78, a segunda menor do país (atrás de São
Paulo) e comparável à dos Estados Unidos. A Polícia Ci-
vil local alcançou uma marca histórica, com 80% dos
homicídios elucidados, desempenho semelhante aos de

2 | 19
INÊS249

NO CAMINHO CERTO
Estados que conseguiram reduções
superiores à média nacional em mais de um
indicador entre os principais crimes
(variação entre 2017 e 2023)

GOIÁS

HOMICÍDIOS
- 56%
LATROCÍNIOS - 8 8%
ROUBO E FURTO
DE VEÍCULOS - 80%
O QUE FEZ
Incentivou a integração das
polícias, transferiu líderes de facções, criou
polícia rural e direcionou recursos para
equipamentos (armas e viaturas) e pessoal

Fontes: Ministério da Justiça e Segurança Pública


e governos estaduais

3 | 19
INÊS249

Canadá e Austrália. “Os crimes acontecem e não ficam


esquecidos”, diz o delegado-geral, Ulisses Gabriel. Como
Santa Catarina, outros estados tiveram avanços consis-
tentes, entre eles Distrito Federal, Goiás, Rio Grande do
Sul, Pará e Espírito Santo (veja o quadro abaixo). Em co-
mum, todos tiveram quedas acima da média nacional em
mais de um dos principais crimes.
Nenhum desses estados inventou a roda. O êxito é
fundamentado em ações que deveriam ser básicas, como

DISTRITO FEDERAL

HOMICÍDIOS
- 5 4%
LATROCÍNIOS - 50%
ROUBO E FURTO
DE VEÍCULOS - 5 8%
O QUE FEZ
Apostou em melhorias urbanísticas, como
iluminação pública de LED, passou a monitorar
“manchas” criminais, ampliou o videomonitoramento
e unificou a base de ocorrências

4 | 19
INÊS249

integrar as diversas forças de segurança e aperfeiçoar a


análise das estatísticas para definir locais de maior cri-
minalidade e vulnerabilidade social e planejar melhor as
intervenções. Alocar recursos para a compra de armas e
veículos e contratação de pessoal é outra ação primor-
dial, assim como testar tecnologias modernas, como mo-
nitoramento por vídeo com inteligência artificial e equi-
pamentos para aprimorar o trabalho de perícia. É fun-
damental ainda traçar estratégias para minar o crime

S A N TA C ATA R I N A

HOMICÍDIOS
- 47 %
LATROCÍNIOS - 8 4%
ROUBO E FURTO
DE VEÍCULOS - 49%
O QUE FEZ
Integrou as polícias no planejamento de ações,
aumentou a vigilância ostensiva e investiu em
compra de viaturas, armas automáticas e
câmeras de leitura de placa veicular

5 | 19
INÊS249

organizado, separando líderes presos ou identificando (e


impedindo) o financiamento das facções. Também é re-
levante o trabalho de apreensão de armas e drogas, esta
a maior fonte de dinheiro dessas falanges e combustível
que alimenta a espiral da violência no país.
A ofensiva contra a criminalidade varia muito depen-
dendo do perfil dos governantes. Goiás, por exemplo,
governado por Ronaldo Caiado (União Brasil), à direita
no espectro ideológico, baixou os indicadores a partir do

RIO GRANDE DO SUL

HOMICÍDIOS
- 45%
LATROCÍNIOS - 56%
ROUBO E FURTO
DE VEÍCULOS - 65%
O QUE FEZ
Priorizou ações nas cidades mais violentas,
adotou programas de cultura e lazer nas
periferias, reduziu o tempo médio das perícias
e ampliou as vagas no sistema penitenciário

6 | 19
INÊS249

investimento pesado em armas, viaturas e agentes de se-


gurança e um policiamento ostensivo, inclusive no cam-
po, com tropas especializadas e georreferenciamento de
propriedades rurais. “Até o roubo de gado caiu”, celebra
o secretário de Segurança Pública, Renato Brum. Ex-co-
mandante-geral da PM, ele reconhece o efeito colateral
da política de confronto: no ano passado, 517 suspeitos
foram mortos, o que coloca a polícia goiana como a
quarta mais letal do país, à frente até de São Paulo, o es-

PA R Á

HOMICÍDIOS
- 3 8%
LATROCÍNIOS - 72%
ROUBO E FURTO
DE VEÍCULOS - 70%
O QUE FEZ
Estabeleceu metas para a redução da
criminalidade, transferiu líderes de facções e
lançou o Usinas da Paz, programa de segurança e
cidadania, em áreas com altos índices de violência

7 | 19
INÊS249

tado mais populoso (que teve 504 mortos). “Aumentou,


de fato, mas porque retomamos o controle”, justifica.
Não é apenas Goiás que enfrenta o desafio de equili-
brar os esforços de prevenção e repressão, sem fazer
com que o combate ao crime atropele direitos indivi-
duais e aumente a barbárie nas ruas. Jorginho Mello
(PL-SC), Ratinho Junior (PSD-PR) e Tarcísio de Freitas
(Republicanos-SP) seguem o discurso de tolerância zero
contra a bandidagem e são frequentemente criticados

ESPÍRITO SANTO

HOMICÍDIOS
- 31%
LATROCÍNIOS - 40%
ROUBO E FURTO
DE VEÍCULOS - 40%
O QUE FEZ
Criou índices regionais de criminalidade,
priorizou a resolutividade de homicídios,
instalou câmeras nas rodovias e combateu
a vulnerabilidade social nas periferias

8 | 19
INÊS249

por abusos. Para a socióloga Carolina Ricardo, diretora-


executiva do Instituto Sou da Paz, é necessária uma
abordagem realista, deixando de lado o populismo. “Um
programa estruturado exige metas conjuntas, bônus,
ações compartilhadas e visão de longo prazo. É preciso
ainda segurar a pressão pela ‘Rota na rua’ enquanto re-
sultados não chegam”, diz.
Há governantes que tentam somar ao policiamento ri-
goroso algumas abordagens menos ortodoxas. É o caso
do programa RS Seguro, lançado em 2019 por Eduardo
Leite (PSDB). Com quatro eixos principais (combate ao
crime, políticas sociais preventivas e transversais, quali-
ficação do atendimento ao cidadão e sistema prisional),
a ação é coordenada pelo gabinete do governador, que
faz reuniões mensais para monitorar os resultados. “É
preciso acompanhar, se possível, em tempo real. E com
um tripé baseado em três ‘is’: integração, investimento e
inteligência. Polícia na rua só não basta”, diz o tucano.
Outro ponto simbólico é a modernização do sistema pri-
sional. O governo demoliu a Cadeia Pública, conhecida
como Presídio Central, uma masmorra dos anos 1950 no
coração de Porto Alegre, que foi classificada pela CPI do
Sistema Carcerário, em 2008, como a “pior prisão do
país”. Com esgoto a céu aberto, celas sem trancas e livre
interação entre os presos, o local era uma “escola do cri-
me”, segundo Leite, que vai erguer outro presídio no lo-
cal, mais moderno e com maior controle dos detentos.

9 | 19
INÊS249

EDSON REIS/SECOM-PMS
OLHAR Projeto Cerco Inteligente,
no Espírito Santo: aposta nas câmeras

“Temos de aprimorar a inteligência para combatermos o


crime organizado dentro e fora da cadeia, senão é enxu-
gar gelo”, afirma.
O cerco ao crime combinado ao olhar social mostra
que pode haver bons resultados até em locais que eram
símbolos de terra violenta. É o caso do Pará, que nos úl-
timos anos enfrentou traficantes de drogas nas frontei-
ras, pistoleiros, garimpeiros, grileiros e desmatadores. A
taxa de homicídios ainda é alta (30,11), mas era de 54,68
em 2017. Parte da queda se deve a ações do governo Hel-
der Barbalho (MDB), como o Polícia Mais Forte, focado
na presença da PM nas ruas e no investimento em inteli-
gência e tecnologia. Também transferiu líderes de fac-

10 | 19
INÊS249

RICARDO WOLFFENBÜTTEL/SECOM
PREVENÇÃO Santa Catarina: estado adotou PMs nas escolas
após a morte de quatro crianças em creche de Blumenau

ções e instalou câmeras em presídios e nos uniformes


dos policiais penais. Por outro lado, investiu no Usinas
da Paz, complexos que oferecem serviços de saúde, do-
cumentos, capacitação profissional, esporte e lazer. Se-
gundo o governo, a violência nos bairros onde o projeto
foi implementado caiu 77%.
Outro investimento comum a esses estados é o uso de
tecnologia para prevenção e investigação de crimes. Um
exemplo é o Espírito Santo, onde o governo faz leitura
facial dos presos, usa inteligência artificial para ler pla-
cas de veículos e trabalha com microprocessadores ba-
lísticos capazes de identificar de que arma saiu determi-
nado projétil. Um dos programas, o Cerco Inteligente, se

11 | 19
INÊS249

MAURICIO TONETTO/SECOM
MUDANÇA Porto Alegre: pior prisão do país dará lugar a
presídio moderno

transformou numa vasta rede de câmeras instaladas nas


principais vias e cidades capixabas. Somada a outras
ações iniciadas em 2011, o estado conseguiu sair da se-
gunda posição de mais violento para a 18ª. Governador
no terceiro mandato, Renato Casagrande (PSB) diz que
planos de longo prazos são fundamentais. “A continui-
dade da política é que faz a diferença. Não existe bala de
prata na segurança pública”, defende.
A aposta na priorização do uso da tecnologia no com-
bate à criminalidade faz parte também da política ado-
tada no Distrito Federal. Unidade da federação com a se-
gunda maior concentração de policiais (6,6 por 1 000
habitantes, atrás do Amapá), o DF tem 500 dispositivos

12 | 19
INÊS249

AGÊNCIA BRASÍLIA
TROPA Ronda no Distrito Federal: taxa de 6,6 policiais por
1 000 habitantes

móveis (como um bip) para mulheres vítimas de violên-


cia e que estão sob medida protetiva, e 500 tornozeleiras
que são colocadas no agressor. O aparelho da vítima po-
de ser usado para acionar a polícia quando o limite de
proximidade não é respeitado. Outra medida foi distri-
buir um sensor, menor que uma chave de carro, aos co-
merciantes do Conic, tradicional centro de compras, que
pode ser usado para acionar diretamente a PM em caso
de algum risco à segurança.
Os estados mais populosos da federação conseguiram
avanços, só que mais pontuais, no período pesquisado
por VEJA. São Paulo reduziu homicídios (26%), latrocí-
nios (54%) e roubo e furto de veículos, mas essas quedas

13 | 19
INÊS249

VIOLÊNCIA DESIGUAL
Oito estados têm taxas de homicídios
abaixo da média nacional
Taxas de mortes por 100 000 habitantes*
(em 2023)
SÃO PAULO
5,64
SANTA CATARINA
6,78
DISTRITO FEDERAL
8,02
MINAS GERAIS
12,94
GOIÁS
14,07
MATO GROSSO DO SUL
14,94
RIO GRANDE DO SUL
15,12
PARANÁ
15,34
B R AS I L
18,53
SERGIPE
19,59
PIAUÍ
19,87
RORAIMA
20,42
ACRE
21,45
RIO DE JANEIRO
22,21
TOCANTINS
22,76

14 | 19
INÊS249

PARAÍBA
23,47
MATO GROSSO
23,86
RIO GRANDE DO NORTE
24,37
ESPÍRITO SANTO
24,47
MARANHÃO
25,35
RONDÔNIA
26,44
PARÁ
30,11
AMAZONAS
31,79
BAHIA
32,67
CEARÁ
32,89
ALAGOAS
35,01
PERNAMBUCO
36,78
AMAPÁ
41,29
O U T RO S PA Í SE S
EUA**
5,69
CANADÁ***
2,09
FRANÇA***
1,14
ALEMANHA***
0,83
NORUEGA***
0,54
JAPÃO***
0,23
Fontes:*Ministério da Justiça e Segurança Pública; **projeção para
2023 da consultoria AH Datalytics e ***ONU — dados de 2021

15 | 19
INÊS249

ficaram abaixo da média nacional — -30%, -59% e


-33%, respectivamente. O uso de câmeras corporais pela
PM desde 2020 fez a letalidade policial cair nos dois
anos seguintes. Ela voltou a crescer em 2023, já na ges-
tão Tarcísio de Freitas. Crítico do uso dos aparelhos, ele
se viu pressionado após dezenas de mortes em operações
recentes e, na quarta 24, comprometeu-se com o STF a
ampliar o uso dos equipamentos — hoje, são 10 125 em
metade dos 510 batalhões. Os novos modelos farão leitu-
ra de placas de veículos e terão recursos de áudio para
que policiais peçam ajuda em operações.
Estado que se tornou emblema nacional do avanço da
criminalidade, o Rio de Janeiro continua na direção con-
trária à dos bons exemplos: registrou alta dos homicídios
em 2023 (7%) após um período de baixas e o recrudesci-
mento das ações do crime organizado não aponta para
um local mais seguro — não à toa, a Força Nacional de
Segurança atua no estado desde outubro de 2023. Em
Minas Gerais, onde o governador Romeu Zema (Novo)
também empunha a bandeira da segurança, o roubo e
furto de veículos teve queda expressiva desde 2017
(48%), mas crimes como homicídio e latrocínio recua-
ram menos que a média nacional. O Paraná baixou o
roubo e furto de veículos acima da média (49%) e obteve
bons números na apreensão de armas e drogas. Nos ca-
sos de homicídios e latrocínios, no entanto, as reduções
não foram tão expressivas.

16 | 19
INÊS249

BRUNO CECIM/AG.PARÁ
EDUCAÇÃO Criança exibe cartaz no projeto Usinas da Paz,
no Pará: queda de 77% da violência nas comunidades

As políticas de segurança pública sempre foram uma


atribuição dos Executivos estaduais, mas nos últimos anos
a pressão vem batendo à porta do governo federal. O Con-
gresso transformou o tema em uma de suas prioridades,
com a bancada à direita, majoritária, avançando na aprova-
ção de medidas punitivistas, como a do fim da chamada
“saidinha” dos presos. Escalado para representar o Palácio
do Planalto nesse debate, o ministro da Justiça, Ricardo Le-
wandowski, afirmou nos últimos dias que a criminalidade
adquiriu um caráter transnacional, ressaltando que o poder
central não tem os instrumentos legais para enfrentar o
problema. Ele defendeu a aplicação compulsória de parte
do Orçamento em segurança, como já ocorre com saúde e

17 | 19
INÊS249

PM-PR/DIVULGAÇÃO
RECORDE Apreensão de armas em Iporã
em 2023: a maior da história do Paraná

educação. Também disse ser preciso reorganizar o papel de


cada ente federativo, para que a União possa traçar diretri-
zes para o país. Não será fácil. A discussão corrente é no
sentido de desvincular as verbas obrigatórias até para saú-
de e educação. Os estados também devem resistir a esse ti-
po de mudança. De qualquer forma, é um avanço que Le-
wandowski tenha aberto essa discussão. “Essa repactuação
entre os entes é essencial”, diz Renato Sérgio de Lima, pre-
sidente do Fórum Nacional de Segurança Pública.
Os dados mais recentes mostram que o Brasil avança
a passos muito lentos. A taxa de homicídios é de 18,53
(era de 18,57 em 2017), o que coloca o país no patamar
do Haiti. Não por acaso, pesquisa Datafolha de abril

18 | 19
INÊS249

TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL


ALERTA Ato contra o feminicídio no Rio:
crime cresceu 58% no país desde 2017

mostrou que dois em cada três brasileiros não se sentem


seguros. A constatação repercute na avaliação dos go-
vernantes. Levantamento da Quaest apontou que 42%
dos entrevistados acham ruim ou péssima a atuação de
Lula nessa área. Na esteira da escalada da criminalida-
de, não param de surgir discursos demagógicos tentan-
do vender a ideia à população assustada de que é possí-
vel resolver um problema complexo com discursos de-
magógicos e soluções simples. Os bons exemplos de
ações adotadas por alguns governos estaduais mostram
que essa batalha só pode começar a ser vencida com po-
líticas inteligentes, continuadas e coordenadas. É uma li-
ção que está mais do que na hora de o país aprender. ƒ

19 | 19
INÊS249

BRASIL PODER

REGRESSIVA Pacheco, Lula e Lira: ainda é


possível desarmar as bombas que podem
comprometer a estabilidade

ELES NÃO SE
ENTENDEM...
...e é você quem pode acabar pagando a conta da
irresponsabilidade de alguns, do populismo de outros e
da falta de compromisso de muitos com o país
DANIEL PEREIRA E HUGO MARQUES

MONTAGEM COM FOTOS DE ISTOCK/GETTY IMAGES; FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL; LULA MARQUES/AGÊNCIA BRASIL

1 | 10
INÊS249

A HISTÓRIA correu como um rastilho de pólvora a ressaltar


a insuperável desigualdade — de renda, de poder de pressão e
de força política — existente no país. No último dia 5, a Câma-
ra de Vereadores de Dias d’Ávila (BA) aprovou reajuste sala-
rial para os professores do município, que conta com pouco
mais de 70000 habitantes e está localizado na região metro-
politana de Salvador. Apresentado pelo prefeito Alberto Cas-
tro (PSDB), o projeto garantiu um aumento de 46 centavos
para um determinado tipo de docente a partir de dezembro.
Quarenta e seis centavos. Já professores com mestrado rece-
berão 106 reais a mais. A votação ocorreu em clima de cons-
trangimento. O sindicato da categoria alegou não ter sido pro-
curado para negociar. E o prefeito, alçado a uma notoriedade
repentina, disse que houve apenas um “ajuste” para adequar
os novos salários ao piso nacional do magistério, que é
4580,57 reais. “É um avanço pequeno, mas é um avanço”, de-
clarou, sem ruborizar, o vereador Renato Henrique (PP), que
preside a comissão de educação e tem vencimento mensal su-
perior a 10000 reais. Já a vereadora Professora Rosenir (PT)
protestou: “Eu acordei querendo queimar a minha carteira de
trabalho”. A indignação dela e de outros tantos brasileiros tem
razão de ser — e não se restringe a esse caso.
Menos de duas semanas depois da votação em Dias d’Ávi-
la, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a mais
poderosa da Casa, aprovou uma proposta de emenda consti-
tucional (PEC) que ressuscita o chamado quinquênio ao pre-
ver um aumento de 5%, a cada cinco anos, nos vencimentos

2 | 10
INÊS249

PABLO VALADARES/CÂMARA DOS DEPUTADOS

ORÇAMENTO Congresso: parlamentares argumentam que


conhecem mais que ninguém as necessidades da população

de determinadas categorias da elite do funcionalismo públi-


co. De autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), a PEC concedia o benefício, em sua versão origi-
nal, apenas a juízes e integrantes do Ministério Público, mas,
durante a tramitação, outras carreiras foram contempladas,
como defensores públicos, advogados da União e delegados
da Polícia Federal. O texto já está em discussão no plenário
do Senado e, se aprovado, terá de passar pelo crivo da Câma-
ra dos Deputados. Preocupado com o impacto nas contas pú-
blicas, o governo tenta detê-lo. Não será fácil, dadas a grande
adesão à proposta entre senadores, a desarticulação da base
governista no Congresso e a força do lobby dos setores envol-
vidos, que têm poder e influência diametralmente opostos
aos dos professores do pequeno município baiano. Segundo
estimativa da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e

3 | 10
INÊS249

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

NA CONTRAMÃO Haddad: apesar do empenho do ministro,


governo não consegue cortar despesas — pelo contrário

Controle do Senado, a “PEC do Quinquênio” pode custar


81,6 bilhões de reais entre 2024 e 2026 — isso, claro, se a lis-
ta de beneficiários não aumentar.
É muito dinheiro. Para cumprir a meta fiscal de 2025, o
ministro da Fazenda, Fernando Haddad, terá de conseguir
50 bilhões de reais em receitas extras, conforme projeções
da própria equipe econômica. Com 80 bilhões de reais, o go-
verno banca metade do custo anual do Bolsa Família. A di-
ferença é que o quinquênio deve engordar o contracheque
de cerca de 38000 servidores, enquanto o principal progra-
ma de transferência de renda sustenta 21 milhões de famí-
lias. A proposta tem outros vícios. O aumento de 5% a cada
cinco anos é automático, não importando se o servidor fez
por merecê-lo. Além disso, o prêmio está reservado ao topo
da elite do funcionalismo, que já tem vencimentos próximos

4 | 10
INÊS249

ao teto salarial, de 44 008,52 reais. Enquanto isso, metade


dos 11 milhões de servidores públicos do país, a grande mas-
sa esquecida pela PEC, tem salário médio de cerca de 3400
reais. “O Congresso Nacional precisa decidir se é uma Casa
em favor de todos os brasileiros ou se legisla em benefício de
uma minoria”, reagiu em nota o instituto República.org, de-
dicado à gestão no serviço público. “O Brasil é um campeão
mundial da desigualdade, e a disparidade da remuneração
no setor público é gritante.”
Diante da repercussão do tema, o senador Rodrigo Pa-
checo reforçou uma antiga promessa e declarou que a “PEC
do Quinquênio” só será promulgada caso seja aprovado an-
tes um projeto que acaba com os supersalários no Brasil. A
economia decorrente do projeto — que já passou pela Câ-
mara, mas dormita na mesma CCJ do Senado — seria maior
do que o gasto decorrente da PEC, de acordo com o senador.
Pacheco também declarou que não haverá repasses de re-
cursos adicionais para que cada órgão pague o quinquênio.
Parece um avanço, mas não é, já que o Judiciário e o Minis-
tério Público não geram suas próprias receitas, que são for-
madas pelos impostos pagos pelos contribuintes. “Carreiras
que têm poder de pressão ignoram o fato de que ocupam
0,1% da pirâmide de rendimentos do Brasil. Não é 1% mais
rico, é 0,1%. E aí se quebra um país, se quebra a Previdência,
para atendimento desse 0,1%”, declarou o senador Alessan-
dro Vieira (MDB-SE), que votou contra a proposta na CCJ.
No colegiado, prevaleceu o voto do relator, senador Eduardo

5 | 10
INÊS249

NÚCLEO APLB DIAS D´ÁVILA/DIVULGAÇÃO

REALIDADE Dias d’Ávila (BA): professores protestam


contra reajuste de 46 centavos

Gomes (PL-TO), que, ignorando as estimativas, disse que a


PEC — considerada o carro-chefe da chamada pauta-bom-
ba — não quebrará o país. A ministra do Planejamento, Si-
mone Tebet, discorda: “Não temos gordura, margem fiscal”.
O relator Eduardo Gomes externa uma lógica bem brasi-
leira: nada que me beneficia ou beneficia os meus aliados
prejudica as contas públicas. O cobertor orçamentário é cur-
to, mas não para atender às demandas e aos interesses de se-
tores poderosos. Segundo o cientista político Alberto Aggio,
da Universidade Estadual Paulista, os setores mais organi-
zados têm prevalecido cada vez mais na definição do Orça-
mento, inclusive porque atores políticos importantes do pas-
sado perderam força. O próprio PT não tem mais a capaci-
dade de articular com segmentos da sociedade para tentar
democratizar o Orçamento. Hoje, pelo contrário, o governo

6 | 10
INÊS249

Lula enfrenta críticas de aliados históricos. “Lula não está


sendo acossado pela Faria Lima, pelo Judiciário, pelo Ar-
thur Lira (presidente da Câmara). Ele é parte desse mundo”,
declara Aggio. “Na democracia lulista, o meu interesse vale
tudo, e, se o meu interesse vale tudo, é legítimo o que fazem
os homens do Judiciário: eu quero o meu”, arremata.
Desde que assumiu o terceiro mandato presidencial, Lula
briga com Lira pelo controle de fatias orçamentárias. A ten-
são é permanente, mas não inviabiliza acordos, como ficou
claro na aprovação de pontos da agenda econômica. A de-
pender dos termos, a parceria pode continuar. No último dia
9, a Câmara aprovou um dispositivo que liberou o governo a
antecipar o gasto de 15,7 bilhões de reais este ano. O favor
foi incluído num projeto, apresentado pelo presidente da Re-
pública, que recria o DPVAT, seguro que indeniza vítimas de
acidente de trânsito. A iniciativa deu fôlego extra ao minis-
tro Fernando Haddad e pode render dividendos aos parla-
mentares. Em retribuição, o governo cogita disponibilizar
parte dos 5,6 bilhões de reais em emendas de comissão que
haviam sido vetados por Lula. Nos bastidores, fala-se numa
contrapartida de cerca de 3 bilhões de reais.
Nos últimos dez anos, por sinal, o Congresso protago-
nizou o maior avanço sobre o Orçamento da União. Uma
das funções primordiais de deputados e senadores é votar
a lei orçamentária. Até a década passada, os ajustes feitos
pelos congressistas eram pontuais, e eles controlavam
módicas fatias das verbas públicas. Esse quadro mudou

7 | 10
INÊS249

EDILSON RODRIGUES/AGÊNCIA SENADO

FANTASIA Senado: projeto que cria supersalários


para algumas categorias

radicalmente. Em 2015, no primeiro ano do segundo


mandato de Dilma Rousseff, as emendas parlamentares
totalizaram cerca de 15 bilhões de reais. Em 2020, sob
Jair Bolsonaro e o impulso do chamado “orçamento se-
creto”, alcançaram 44 bilhões de reais.
Na campanha de 2022, Lula disse que colocaria ordem
na casa e acabaria com a farra das emendas. Não conse-
guiu. No Orçamento de 2024, havia previsão de 53 bi-
lhões de reais em emendas parlamentares. O presidente
vetou 5,6 bilhões, mas, por necessidade política, pode de-
volver parte dos valores vetados. Com a esquerda minori-
tária no Congresso, Lula precisa de Lira e do Centrão pa-
ra aprovar projetos estratégicos, caso da regulamentação
da reforma tributária, apresentada na quarta, 24, e do
programa de crédito lançado recentemente. Como as di-

8 | 10
INÊS249

vergências entre o presidente e o grupo político do depu-


tado quase nunca são resolvidas no mérito, sobram as
moedas de troca de praxe. O dinheiro das emendas, vale
ressaltar, é usado por deputados e senadores para obras e
investimentos. Os parlamentares costumam dizer que sa-
bem mais das necessidades da população do que os engra-
vatados de Brasília. Podem até ter razão, mas também é
verdade que nem sempre direcionam os recursos para
projetos prioritários ou atendem a quem realmente preci-
sa. Muitas vezes, preferem apenas privilegiar seus redutos
eleitorais. A falta de compromisso público gera desperdí-
cio, ineficiência e, segundo investigações da Polícia Fede-
ral, casos de corrupção. Os ralos são conhecidos.
Em meio aos problemas na articulação política, Lula
conversou com Lira no último dia 19. Nenhum dos dois
revelou o que foi tratado na ocasião. Dias depois, o petista
cobrou do vice-presidente Geraldo Alckmin e dos minis-
tros Fernando Haddad e Rui Costa, chefe da Casa Civil,
mais empenho na negociação com o Congresso. Numa
conversa com jornalistas, o presidente também declarou
que não há crise na relação com o Legislativo. “Não há di-
vergência que não possa ser superada. Se não houvesse di-
vergência, não haveria necessidade de a gente dizer que
são três poderes autônomos”, afirmou. Já Lira adotou um
tom um pouco diferente. Desde que o deputado conversou
com o presidente, seus aliados pararam de vazar a amea-
ça de que ele retaliará o Palácio do Planalto instalando

9 | 10
INÊS249

CPIs ou votando pautas-bomba. O ambiente aparente-


mente deu uma desanuviada. Mesmo assim, num evento
com empresários, Lira deixou claro que a disputa em tor-
no do Orçamento continuará. “Essa briga não vai acabar
nunca, são posicionamentos de placas tectônicas a respei-
to da destinação de políticas públicas. Toda democracia
vive isso”, afirmou o deputado.
A comparação com as placas tectônicas, em razão dos
poderes e dos cargos envolvidos na queda de braço, até faz
sentido. Já a referência a políticas públicas é relativa e, na
maioria dos casos, soa um tanto despropositada. A cúpula
da República pensa, antes de qualquer coisa, no seus pró-
prios interesses — políticos, eleitorais ou meramente pes-
soais. Já a base da pirâmide, num costume secular, fica em
segundo plano. “O professor sempre foi esquecido no país,
nunca foi prioridade. Apesar de estar previsto em lei de
2008, o piso do magistério não é pago por 90% das prefei-
turas”, diz o coordenador-geral do Sindicato dos Trabalha-
dores da Educação da Bahia, Rui Oliveira. “Pensa num ab-
surdo. Na Bahia, ele existe”, complementa, referindo-se à
votação em Dias d’Ávila. Não é um caso isolado. Ao con-
trário do que prega a propaganda oficial, há problemas
graves na educação, na saúde e na infraestrutura — não
necessariamente por falta de dinheiro. O contribuinte sus-
tenta um Estado ineficiente, gastador e muitas vezes cap-
turado por interesses bem específicos. A indignação de-
corre disso. Não é só pelos 46 centavos. ƒ

10 | 10
INÊS249

CRISTOVAM BUARQUE

O PADRÃO A
SER BUSCADO
É preciso ampliar e replicar o sucesso
das escolas públicas federais

ENTRE O MERENDA Escolar (1955) e o Pacto Nacio-


nal pela Alfabetização na Idade Certa (2023), o Brasil
lançou vinte programas federais com promessas de salto
na educação. A necessidade desse último, sete décadas
depois do primeiro, mostra o fracasso dos anteriores: os
bisnetos ainda estão precisando de pacto federativo para
realizar, aos 8 anos, o que deveria ter beneficiado seus bi-
savós, aos 5. Fracassamos porque, no lugar de projetos
executivos nacionais ambiciosos, optamos por intenções
modestas com execução municipal, pobre e desigual.
Sem uma política nacional ambiciosa e com instrumentos
federais efetivos, em 2041 apenas 50% dos 2,5 milhões
de brasileiros que nasceram em 2023 terminarão o ensi-
no médio; no máximo a metade deles preparada para as
exigências do mundo contemporâneo.
Essa ambição já serviu às crianças de famílias que po-
dem pagar algumas das boas escolas particulares ou que
conseguem vaga em escolas públicas de qualidade, quase

1|3
INÊS249

todas federais. A solução para a equidade, portanto, já


existe: ampliar para todas as crianças o sistema escolar
das públicas federais. O sistema atual é injusto, porque
exclusivo para poucos, e ineficiente, porque desperdiça
milhões de cérebros, principal recurso do mundo atual.
Além da injustiça, o Brasil continua barrando o potencial
de 80% de seus cérebros.
O presidente Lula parece ter entendido essa solução
direta quando recentemente elogiou Leonel Brizola
(1922-2004) por implantar os chamados Cieps, que Fer-
nando Collor rebatizaria de Ciacs. Mas, quase meio sécu-
lo depois, os Cieps e os Ciacs já não bastam pedagogica-
mente e escolas isoladas não deram o efeito esperado: o
país precisa fazer a revolução por meio das Cefes (Cida-
des com Educação Federal). As Cefes seriam passos vi-
tais de uma estratégia visando formar um sistema federal

“É um sistema
injusto, exclusivo para
poucos, e ineficiente,
ao desperdiçar
cérebros”
2|3
INÊS249

público de educação de base com eficácia e equilíbrio pa-


ra toda a população. O caminho: sucessivos governos na-
cionais substituiriam as escolas municipais por federais,
em horário integral; com edificações e equipamentos mo-
dernos; professores de uma carreira nacional com eleva-
da remuneração, formação, dedicação e avaliação de re-
sultados. Ao final de duas ou três décadas, estaria im-
plantado o sistema nacional com o padrão das atuais es-
colas federais: as técnicas, os colégios militares, o Colé-
gio Pedro II, no Rio, e os institutos de aplicação.
Nenhum governo será capaz de implantar esse sistema
em todo o território nacional durante apenas um ou dois
mandatos, mas até 2026 o governo Lula tem condições de
espalhar o padrão federal em cinquenta a 100 pequenas ci-
dades, com 1 000 alunos cada, que desejem trocar suas ins-
tituições municipais por federais, com descentralização ge-
rencial e liberdade pedagógica. Ao custo de 15 000 reais a
20 000 reais por aluno/ano, seu governo estaria dando iní-
cio à revolução que o país precisa se quiser aproveitar o re-
curso intelectual de cada brasileiro.
Outros presidentes adotaram estratégias para indús-
tria e infraestrutura — mas nenhum, contudo, para a raiz
do progresso, que é a educação de base. Lula tem a opor-
tunidade de deixar essa marca originada em seu governo
com ambição transformadora para todo o Brasil. A ver os
próximos passos. ƒ

3|3
INÊS249

BRASIL GOVERNO

PROBLEMAS
CASEIROS
Indígenas, sem-terra, sindicalistas e servidores
públicos — grupos historicamente alinhados
à esquerda — não estão nada satisfeitos com o governo
RICARDO CHAPOLA

ATO Manifestação em Brasília: críticas pela demora na


demarcação de terras e protestos contra a lei do marco temporal

MATHEUS ALVES/DPA/GETTY IMAGES

1|8
INÊS249

EM ABRIL do ano passado, a organização do Acampa-


mento Terra Livre, manifestação de grupos indígenas que
ocorre todos os anos, convidou Lula para participar do
evento em Brasília. O clima era de absoluta lua de mel. O
presidente, que tinha assumido o governo havia apenas
quatro meses, comprometeu-se a acelerar a demarcação de
áreas, anunciou a liberação de verbas, lembrou que havia
criado o Ministério dos Povos Indígenas e nomeado para
comandá-lo a ativista Sonia Guajajara — uma demonstra-
ção aparentemente inequívoca de apoio à causa. Um ano
depois, os indígenas reclamam que demarcações prometi-
das não saíram do papel, que os recursos liberados foram
insuficientes e que o ministério está esvaziado. Para deixar
explícita a insatisfação, dessa vez decidiram não convidar
Lula e, sim, eles mesmos irem ao Palácio do Planalto apre-
sentar a pauta de reivindicações. “O presidente tinha se
comprometido a demarcar as terras nos primeiros 100 dias
e não fez. Isso gerou um grande embaraço”, diz Paulo Tu-
piniquim, um dos organizadores.
Para as lideranças do grupo, o governo optou por desa-
celerar os processos de demarcação para tentar se aproxi-
mar do agronegócio. A insatisfação aumentou ainda mais
depois da aprovação do marco temporal, que restringe a de-
marcação a propriedades comprovadamente ocupadas pe-
los indígenas até 1988. Esse trecho da lei chegou a ser vetado
por Lula, mas acabou revogado pelo Congresso. Teria falta-
do empenho do governo e do presidente para tentar evitar

2|8
INÊS249

JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL


INSATISFAÇÃO Protesto de servidores
federais: ameaça de greve geral

esse desfecho. “Nós estamos vendo um alinhamento muito


próximo dele com o agronegócio, nossos inimigos históri-
cos”, disse Dinamam Tuxá, coordenador da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil, referindo-se à postura de Lula.
Na terça, 23, cerca de 8000 indígenas caminharam em di-
reção à Praça dos Três Poderes. Um forte esquema de segu-
rança manteve o grupo a distância das sedes do Congresso,
do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto.
Esse cenário de descontentamento com o governo atin-
ge outros setores tradicionalmente ligados à esquerda e ao
PT. O MST, que já foi até instado por Lula no passado a co-
locar o seu “exército” na rua em defesa do governo, emite
sinais de agastamento. Nos dois primeiros mandatos do

3|8
INÊS249

ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL


CAIXA VAZIO Esther Dweck: sem recursos
para aumentos salariais em 2024

presidente, os sem-terra eram usados como arma para


constranger grandes proprietários de terras, empresas liga-
das ao agronegócio e adversários políticos. Hoje, enfrentan-
do circunstâncias bem diferentes de antes, o presidente pre-
cisa se aproximar dos ruralistas por necessidade política.
Para construir pontes, Lula foi aconselhado a colocar o pé
no freio na reforma agrária e evitar conflitos no campo. Pa-
ra tentar compensar, cedeu espaços e deu cargos importan-
tes ao movimento, além de anunciar um ambicioso progra-
ma, cuja meta seria assentar 295000 famílias até 2026. Na-
da indica que isso vai aplacar os ânimos do MST.
Apenas nos primeiros vinte dias de abril, os sem-terra
invadiram 32 propriedades em quinze estados. Os dirigen-

4|8
INÊS249

tes do movimento dizem que não estão convencidos do em-


penho do governo em cumprir as promessas. Eles se quei-
xam de que foram assentadas até o momento apenas 1 400
famílias, contingente considerado pequeno demais, e dos
cortes orçamentários. O MST calcula que seriam necessá-
rios ao menos 2,8 bilhões de reais para atingir a meta em
2024, mas o Incra, órgão responsável pelo planejamento e
execução dos projetos, conta com apenas 567 milhões para
tocar o programa — um quinto do valor estimado. “Por
mais que haja certo esforço do governo em sinalizar a reto-
mada da reforma agrária, isso ainda não aconteceu. Há um
passivo que não foi ainda sequer mexido. É fundamental que
possamos seguir mobilizados e organizados para mostrar
que é uma demanda urgente e necessária”, ressaltou Ceres
Hadich, dirigente nacional do MST, no site da entidade.
Outro foco de problemas para o governo se encontra no
funcionalismo público. Em tempos de desequilíbrio fiscal,
reajustes salariais não encontram espaço no orçamento. Al-
gumas categorias estão pressionando o governo. Os técni-
co-administrativos, por exemplo, ameaçam entrar em gre-
ve caso não sejam concedidos reajustes que variam de 22%
a 34%. Em muitas universidades federais, a turma já cru-
zou os braços. O Ministério da Gestão, comandado pela pe-
tista Esther Dweck, também já informou que não haverá
aumentos neste ano, o que foi considerado pelos represen-
tantes da categoria como uma postura “intransigente” e
“decepcionante”. Sem acordo, ameaçam uma paralisação

5|8
INÊS249

ADRIANO ALVES/FOLHAPRESS
“EXÉRCITO” Ação dos sem-terra: onda de invasões para
chamar atenção para a lentidão nos assentamentos

que pode atingir todos os níveis da administração pública.


“O que o governo tem feito é colocar a gente sempre no fi-
nal da fila. Os servidores estão há sete anos com a remune-
ração congelada. A nossa paciência acabou”, diz Sérgio Ro-
naldo da Silva, secretário-geral da Confederação dos Tra-
balhadores no Serviço Público Federal, entidade que repre-
senta 80% dos funcionários do Executivo.
Para um governo do PT, partido que nasceu no berço do
sindicalismo, nada mais constrangedor que esse tipo de co-
brança. Afinal, foi nesse ambiente que Lula, um ex-metalúr-
gico, construiu sua carreira política. Por questões de ordem
prática, a ameaça de uma greve geral dos servidores públi-
cos tem preocupado o governo. “Nós estamos preparando

6|8
INÊS249

JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL


FALTA EMPENHO Sindicatos: cobrando
promessas feitas na campanha

aumento de salário para todas as carreiras. Nem sempre é


tudo que a pessoa pede. Muitas vezes é aquilo que a gente
pode dar. E nós vamos negociar com todas as categorias. Eu
quero até aproveitar para dizer que ninguém será punido
neste país por fazer uma greve”, disse o presidente na terça,
23. O Ministério da Gestão designou o secretário de Rela-
ções do Trabalho, José Lopez Feijóo, para tentar resolver o
impasse. Feijóo já foi presidente do Sindicato dos Metalúrgi-
cos do ABC e secretário-geral da Central Única dos Traba-
lhadores (CUT). Em uma das primeiras reuniões, ele condi-
cionou o avanço das negociações à não realização de greves
ou qualquer tipo de paralisação. A postura foi classificada
pelos sindicalistas como autoritária e inadmissível.

7|8
INÊS249

O fato é que as próprias centrais sindicais, inclusive


aquelas historicamente ligadas ao PT, demonstram certa
irritação com o governo. Desde a volta de Lula ao Planalto,
elas se articulam para tentar recriar o imposto sindical. A
contribuição compulsória, abolida pela reforma trabalhis-
ta, tirou 3 bilhões de reais por ano dos cofres das entida-
des. Na campanha eleitoral, Lula se comprometeu a criar
um mecanismo que compensasse a perda de arrecadação.
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, ex-sindicalista,
chegou até a elaborar uma minuta para a criação do cha-
mado “financiamento solidário e democrático”, um nome
mais bonito para definir a volta do tributo. Rejeitada pelos
patrões e pelos congressistas, a proposta não avançou. “Se-
guindo a orientação do Lula, estamos há um ano nego-
ciando com a área empresarial, mas falta empenho”, disse
Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhado-
res (UGT).“Também é preciso cobrar do governo a corre-
ção da tabela do imposto de renda e gritar contra a cares-
tia, que prejudica os mais pobres”, ressalta Miguel Torres,
presidente da Força Sindical. Essas e outras reivindicações
serão apresentadas no ato que vai celebrar o Dia do Traba-
lho, 1º de maio, em São Paulo. Lula foi convidado, mas ain-
da não confirmou presença. ƒ

8|8
INÊS249

MURILLO DE ARAGÃO

FREIOS E
CONTRAPESOS
O avanço do semipresidencialismo
foi bom para o Brasil

NO BRASIL contemporâneo, a dinâmica entre os poderes


Executivo e Legislativo evoluiu significativamente, marca-
da por uma constante busca de equilíbrio e eficácia gover-
namental. Há anos, alertei sobre a transformação do mo-
delo de governabilidade no país, onde o software político
exigia uma coabitação inequívoca, uma previsão que se
confirma atualmente.
Tradicionalmente, o governo controlava as ações legis-
lativas por meio da distribuição estratégica de verbas e
cargos, criando uma maioria no Congresso Nacional ba-
seada no princípio do “toma lá dá cá”. No entanto, a partir
de 2014, o Congresso despertou para seus poderes consti-
tucionais, especialmente quanto ao controle do Orçamen-
to, que, anteriormente, era apenas validado pelos parla-
mentares a pedido do Executivo.
Essa evolução representa um avanço democrático sig-
nificativo, pois incorpora um sistema de freios e contrape-
sos fundamental para a manutenção da democracia, já que

1|3
INÊS249

promove a divisão e o equilíbrio do poder entre Executivo,


Legislativo e Judiciário. No Brasil, essa divisão é evidente
não apenas na teoria, mas também na prática cotidiana,
com debates judiciais e legislativos frequentes sobre leis e
políticas públicas.
O processo decisório no Legislativo, exemplificado
pela gestão de Arthur Lira na Câmara dos Deputados,
revela uma sistemática com diálogo e pluralismo pouco
percebidos e que deveria ser valorizada, sobretudo pela
busca incessante de consenso. Toda terça-feira, o pro-
cesso começa com um café da manhã, do qual partici-
pam o presidente da Câmara e os líderes da oposição e
onde a pauta da semana é repassada. Na hora do almo-
ço, o quórum aumenta, incluindo os líderes partidários.
Nada do que é votado no plenário deixa de ser discutido
com os líderes. Todos.

“O fortalecimento do
Legislativo de 2015 para
cá foi decisivo para a
aprovação de diversas
reformas importantes”
2|3
INÊS249

Naquela mesa se define o futuro da legislação do país,


com Lira ouvindo todas as correntes políticas existentes e
representadas na Câmara e articulando consensos. Tal fa-
to revela uma pluralidade na condução do processo deci-
sório no país que, sem dúvida, é um avanço democrático,
já que, no mínimo, todas as forças representadas na Câma-
ra sabem o que está sendo votado, rejeitado ou aprovado.
O fortalecimento do Legislativo de 2015 para cá foi de-
cisivo para a aprovação de diversas reformas importantes,
como a trabalhista, a previdenciária e a tributária, todas
resultantes de intensas negociações e debates no Parla-
mento. Antes, era penoso o avanço das reformas constitu-
cionais e muitas vezes nada acontecia.
A atuação do Congresso em 2023 representa um exem-
plo da eficácia desse sistema, com mais de 7 000 proposi-
ções analisadas e 228 votadas, refletindo uma agenda le-
gislativa diversificada, que abrange desde reformas econô-
micas até a promoção de programas sociais e de sustenta-
bilidade ambiental.
Assim, o sistema de freios e contrapesos no Brasil tem
demonstrado sua vitalidade e relevância, garantindo que ne-
nhum ramo do governo detenha poder absoluto. E a reparti-
ção de poderes impediu que arroubos autoritários ameaças-
sem, de fato, a nossa democracia. Com um presidencialismo
autocrático, viveríamos um grave retrocesso. O Legislativo,
como a Casa do Povo, e também dos estados, é o centro do
debate das políticas nacionais. E é assim que deve ser. ƒ

3|3
INÊS249

BRASIL MINISTÉRIO

O BOMBEIRO CIVIL
Sem alarde, o ministro da Defesa driblou o Partido dos
Trabalhadores, conteve os radicais e conseguiu
pacificar as relações entre o governo e os militares
MARCELA MATTOS

CONCILIADOR José Múcio: apenas “alguns” fardados


“indisciplinados” se envolveram em planos golpistas

CHARLES SHOLL BRAZIL PHOTO PRESS/AFP

1|9
INÊS249

JOSÉ MÚCIO MONTEIRO tinha tudo para ser o ministro


menos longevo do governo Lula — quem sabe até um dos
menos longevos da história. Sete dias depois de tomar posse
no comando da Defesa, em 2023, ele estava na linha de fren-
te de uma das crises políticas mais graves desde a redemo-
cratização do país. No 8 de Janeiro, Múcio almoçava em um
restaurante em Brasília quando foi avisado de que apoiado-
res do ex-presidente Jair Bolsonaro haviam deixado o acam-
pamento montado no quartel-general do Exército em dire-
ção à Praça dos Três Poderes. A manifestação, como se sa-
be, terminou com a invasão e depredação dos prédios do
Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal
Federal. Ainda naquele dia trágico, o presidente Lula deu or-
dens para debelar a insurgência e prender imediatamente
todos os responsáveis pelos ataques, incluindo, se fosse o ca-
so, os militares envolvidos. Era o pior começo possível para
quem assumiu o cargo com a missão de normalizar as rela-
ções, que já não eram nada boas, entre o governo e a tropa.
Deputado federal por cinco mandatos, chefe da articula-
ção política de Lula entre 2007 e 2009 e ex-ministro do Tri-
bunal de Contas da União, Múcio é conhecido pela habilida-
de de conversar e pelo talento em circular pelos diferentes
espectros políticos. O momento exigia alguém com esse per-
fil para o cargo de ministro da Defesa. Inicialmente, ele che-
gou a recusar o convite do presidente justificando, em tom
de brincadeira, que não sabia “nem dar um tiro”, mas diz
que acabou cedendo por ser um “refém da gratidão”. Ao

2|9
INÊS249

RICARDO STUCKERT/PR

NORMALIDADE O presidente Lula e os comandantes:


relações restabelecidas

aceitar a função, um dos primeiros recados que recebeu foi o


de que até o Alto Comando das Forças Armadas estava con-
taminado pela politização do governo Jair Bolsonaro e que
uma significativa parcela dos militares resistia a prestar con-
tinência a Lula — um cenário de extrema gravidade. “O que
você vai fazer diante dessa situação?”, perguntou um inter-
locutor. “Eu vou evitar que eles se encontrem”, respondeu.
Era, evidentemente, uma brincadeira. A estratégia traçada
pelo ministro era justamente fazer o contrário disso.
Múcio organizou encontros, garantiu a participação do
presidente em solenidades militares, promoveu agendas

3|9
INÊS249

MATEUS BONOMI/AGIF/AFP

31 DE MARÇO Almeida: projeto abortado para


não criar suscetibilidades

com os comandantes para falar sobre assuntos administrati-


vos, discutir promoções e combinar investimentos. O 8 de
Janeiro, no entanto, continuava dificultando a aproximação
com a instituição como um todo, principalmente quando a
Polícia Federal passou a investigar oficiais de alta patente.
Os comandantes nunca admitiram o envolvimento da insti-
tuição em qualquer ato ilegal — muito menos que no dia 8
de janeiro houve uma tentativa de sublevação. Na medida
em que as investigações mostraram a participação isolada
de alguns militares, poupando a instituição, as resistências
diminuíram de ambos os lados.

4|9
INÊS249

Janja, por exemplo, não escondia sua ojeriza aos milita-


res, a ponto de recusar que eles atuassem em sua seguran-
ça. No mês passado, a primeira-dama foi madrinha de lan-
çamento de um submarino da Marinha. “Que Deus aben-
çoe este submarino e todos os marinheiros que aqui nave-
garem”, disse ela no evento. Do lado fardado, sobram elo-
gios à atuação de Múcio. “Nós podemos falar em pacifica-
ção. E isso significa uma relação de respeito, baseada na
cordialidade, na confiança e no profissionalismo com o co-
mandante, que é o presidente da República. Sem experiên-
cia pregressa e num momento difícil, o principal ator para a
construção disso é o ministro Múcio. Temos de fazer esse
reconhecimento”, afirmou a VEJA o general Tomás Paiva,
comandante do Exército.
Recentemente, coube a Múcio desarmar uma bomba que
podia ter colocado tudo a perder. O ministro foi alertado de
que havia uma programação especial do Ministério dos Di-
reitos Humanos para lembrar o dia 31 de março, aniversário
do golpe militar de 1964. O roteiro incluía homenagens às
vítimas de tortura e a criação de memoriais para os mortos
durante o regime. Ao saber da programação, Lula pediu ao
titular daquela pasta, Silvio Almeida, para cancelar o even-
to, argumentando que isso geraria um constrangimento des-
necessário neste momento. Em outro gesto na direção da
política de desarmar bombas, no último dia 19, o presidente
participou da cerimônia de comemoração do Dia do Exérci-
to na mesma praça onde funcionou, em janeiro do ano pas-

5|9
INÊS249

JOEDSON ALVES/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

CPF OU CNPJ? 8 de Janeiro: o governo acusou as Forças


Armadas de envolvimento na tentativa de golpe

sado, o famoso acampamento golpista. Entre o público pre-


sente, havia apoiadores e críticos do governo, houve peque-
nas manifestações de uma e de outra parte, mas a tensão
que havia antes não é nem de longe a mesma.
Passados dezesseis meses à frente de uma das missões
mais espinhosas da Esplanada, Múcio, além de continuar
sendo um estranho no ninho, também pode se considerar
um sobrevivente. O ministro já chamou Jair Bolsonaro de
“democrata”, defendeu os acampamentos em frente aos

6|9
INÊS249

quartéis militares e repetiu diversas vezes que as Forças Ar-


madas foram as responsáveis por evitar, em vez de articular,
um golpe contra Lula — ou seja, rezou todo esse tempo ao
contrário da cartilha empunhada pelos aliados do governo.
Além disso, o chefe da Defesa atuou para conter as investi-
das do PT, que, entre outras incursões, tentou alterar as re-
gras de promoções dos oficiais e ainda defendeu a criação
de uma Guarda Nacional, o que, na prática, esvaziaria a atu-
ação do Exército. Antes mesmo de completar um mês no
cargo, Múcio recebeu a ligação de um assessor palaciano
advertindo que ele poderia ser substituído no cargo. A res-
posta foi bem ao estilo dele: “Acho o máximo, ótima ideia.
Estou feliz que o presidente achou alguém para a Defesa”. A
demissão, por óbvio, não passava de fogo amigo.
No mês passado, na festa de aniversário do ex-ministro
José Dirceu, o deputado e ex-presidente do PT Rui Falcão
aproveitou a oportunidade para fustigar o ministro diante
de uma roda de jornalistas. Ao se aproximar de Múcio, o
parlamentar fez questão de criticar em alto e bom som o
cancelamento dos atos programados pelo Ministério dos Di-
reitos Humanos para o dia 31 de março. Depois, perguntou
ao ministro até quando ele seguiria na pasta. Quem assistiu
à cena ficou em dúvida se a pergunta era uma brincadeira
ou uma provocação. Se foi uma provocação, Rui Falcão tal-
vez desconheça que, ironicamente, os petardos do PT têm a
valia de fortalecer Múcio dentro da caserna. “Coloquem no
jornal que o PT quer a cabeça dele, porque isso o credencia”,

7|9
INÊS249

PAULO PINTO/AGÊNCIA PT

FOGO AMIGO Gleisi Hoffmann, presidente do PT: o ministro


da Defesa até hoje é alvo de intrigas por parte de petistas

brinca um aliado, sabedor da tendência conservadora dos


militares. Hábil, o ministro também conseguiu resolver situ-
ações delicadas sem criar marola. Ele se empenhou pessoal-
mente no afastamento de todos os militares arrolados nas
investigações sobre os atos golpistas e esteve no centro da
articulação que inviabilizou a promoção do tenente-coronel
Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro.
No último dia 17, o ministro da Defesa e os comandantes
das três Forças passaram por uma sabatina de mais de cinco

8|9
INÊS249

EVARISTO SÁ/AFP

MUDANÇA Janja: primeira-dama começou a participar de


eventos nos quartéis

horas na Câmara dos Deputados. Depois de fazer um balan-


ço positivo de sua gestão, Múcio reafirmou que apenas “al-
guns” fardados “indisciplinados” se envolveram em planos
golpistas. Garantiu também que a relação de confiança entre
o governo e os militares foi, enfim, restabelecida. “O que eu
quero dizer é que se quebrou o gelo. O mais importante que a
gente tem é a fala, e a gente deve usá-la para aproximar, para
pacificar e pedir desculpas”, disse depois a VEJA. O bombei-
ro saiu do Congresso aplaudido até pela oposição. ƒ

9|9
INÊS249

BRASIL ELEIÇÕES

A DELEGADA
VERMELHA
Policial há mais de vinte anos e nome da esquerda em
Goiânia, capital do agronegócio, Adriana Accorsi é,
por ora, a única candidata competitiva puro-sangue
do PT nas capitais ISABELLA ALONSO PANHO
DIVULGAÇÃO

ESTRATÉGIAS A pré-candidata petista: apostas na bandeira


da segurança e na interlocução com quem pensa diferente

1|5
INÊS249

EM 2020, quando tentou pela primeira vez a prefeitura de


Goiânia, Adriana Accorsi sentiu o tamanho da dificuldade
que teria para, como delegada da Polícia Civil, empunhar
no estado a bandeira do PT, ao qual é filiada desde 1990.
“Não existe policial esquerdista, porque defende bandido.
Tem que morrer. Goiás não é a m... do Nordeste”, ameaçou
em privado no Instagram um usuário, que foi encontrado e
preso logo depois. Adriana chegou em terceiro naquela dis-
puta, foi eleita deputada federal em 2022 e agora tenta no-
vamente o comando da cidade em uma condição bem pe-
culiar: no coração do agronegócio, a policial é, por ora, a
mais competitiva candidata do PT em todas as capitais.
A responsabilidade dela é grande, já que o petismo
planeja não repetir o fiasco de 2020, quando não elegeu
nenhum prefeito nas capitais, rompendo uma tradição
que vinha desde a criação da legenda. O partido, no en-
tanto, nem tem candidatos próprios nos dois maiores co-
légios eleitorais (São Paulo e Rio de Janeiro). Enquanto
isso, no Nordeste, onde tem a sua base eleitoral, não é fa-
vorito em nenhuma cidade. Em Goiânia, segundo levan-
tamento de fevereiro do instituto Paraná Pesquisas,
Adriana aparece numericamente à frente, com 22,1%, se-
guida do senador Vanderlan Cardoso (PSD) e do deputa-
do Gustavo Gayer (PL) — a margem de erro é de 3,8 pon-
tos. Ainda que pequena, a vantagem é significativa, con-
siderando-se que nenhum outro petista lidera hoje a cor-
rida em outras capitais.

2|5
INÊS249

Candidata de esquerda em
uma cidade que deu 64% dos
votos a Jair Bolsonaro no se-
gundo turno de 2022, Adria-
na aposta na sua longa trajetó-
ria política. Ela é filha de Dar-
ci Accorsi, professor e filósofo
que foi um dos primeiros pre-
feitos do PT no país ao vencer
a eleição em Goiânia em 1992.
Policial desde 2000, Adriana
KAIO LAKAIO

foi a primeira mulher a chefiar


CABO ELEITORAL a Polícia Civil no estado, entre
Caiado: com alta aprovação, 2012 e 2013. Depois, elegeu-
ele tenta quebrar tabu se deputada estadual por dois
mandatos e chegou em 2022
pela primeira vez à Câmara, onde é vice-líder do PT e autora
de 24 projetos de lei — boa parte sobre violência contra a
mulher e direitos civis. Ter como centro da sua atuação a
bandeira da segurança pública também é outro diferencial
para quem é de esquerda, segmento que tradicionalmente
tem dificuldades com a pauta, largamente explorada pela di-
reita. Adriana defende a atuação de Lula na questão, diz que
“a maior parte da política de segurança é feita pelos estados”
e que o “poder de atuação do governo federal é limitado”.
A principal aposta política de Adriana, no entanto, é na
interlocução com quem pensa diferente. “Não sou uma

3|5
INÊS249

GUILHERME HONORATO/PL GOIÁS

PADRINHO Gayer (no centro) e Bolsonaro:


64% dos goianos votaram no capitão

candidata extremista nem radical de esquerda. Sou conhe-


cida pela minha postura democrática”, diz. Afirma ter re-
lação “muito cordial” com o agronegócio e que sua candi-
datura atende a um pedido do próprio Lula, que pena para
ter inserção no Centro-Oeste e no agronegócio, que lhe
oferecem grande objeção política — o presidente planeja
visitar Goiás ainda no primeiro semestre, o que seria um
gesto inédito no seu terceiro mandato.
Considerada uma das prioridades do PT na eleição, a
conquista de Goiânia não será fácil. Vanderlan Cardoso foi
para o segundo turno nas duas últimas eleições municipais,
fazendo mais de 40% dos votos. Já Gustavo Gayer, da ala
mais panfletária do bolsonarismo, tem o apoio do ex-presi-

4|5
INÊS249

dente, um cabo eleitoral importante no estado. Também en-


trou na disputa recentemente Sandro Mabel, ex-assessor es-
pecial do então presidente Michel Temer e hoje presidente
da Federação das Indústrias de Goiás, que também tem um
padrinho que pode ser decisivo: o governador Ronaldo
Caiado (União Brasil), cuja gestão é aprovada por 86% dos
eleitores no estado, segundo pesquisa Quaest feita em abril.
Ele pretende quebrar a escrita de um candidato apoiado pe-
lo governador nunca ter vencido a eleição na capital goiana.
O fato de correr sozinha enquanto aposta do campo da
esquerda e o de enfrentar uma direita fragmentada no esta-
do representam trunfos para Adriana Accorsi, mas podem
ser um problema em um eventual segundo turno. É muito
provável que, nessa fase da disputa, os demais concorrentes
estejam juntos do outro lado — Caiado chegou a ir ao lança-
mento da candidatura de Gayer junto com Bolsonaro. “O
nosso trabalho é para o segundo turno”, afirma Vanderlan,
apostando na repetição dos feitos de 2016 e 2020.
Embora a eleição caminhe para um enfrentamento entre
direita e esquerda, Caiado acha difícil que a polarização seja
o fator decisivo. “O debate será sobre quem tem mais condi-
ções de gerir essa cidade”, diz. Historicamente, as eleições
municipais costumam, de fato, ser decididas por questões
locais, mas pesquisas mostram que segurança pública pode-
rá ter um grande peso no debate. A questão é saber quanto a
delegada vermelha terá de “bala na agulha” para vencer o
difícil duelo que se avizinha no cerrado. ƒ

5|5
INÊS249

BRASIL MEIO AMBIENTE

FISGADOS
PELO IBAMA
Levantamento feito por VEJA mostra que o mar de Santa
Catarina é o principal reduto da pesca ilegal no país, com
um terço das multas aplicadas entre 2018 e 2024
BRUNO CANIATO

NO RADAR Exploração em águas da Região Sul:


uso ilegal de apetrechos é o maior problema

PM AMBIENTAL DE SANTA CATARINA

1|6
INÊS249

HÁ MENOS de um ano, em junho de 2023, agentes do


Ibama abordaram uma embarcação no mar de Santa Cata-
rina em uma operação que entraria para a história ambien-
tal brasileira. No navio, os fiscais apreenderam 29 tonela-
das de barbatanas de tubarão de origem irregular, quanti-
dade que estabeleceu o novo recorde mundial de confisco
desse tipo. A carga pertencia a uma empresa de Itajaí, a
Kowalsky Pescados, cujo proprietário carrega consigo
também o desonroso troféu de campeão nacional da pesca
ilegal — Evaldo Kowalsky acumula 28 autuações e 32 mi-
lhões de reais em multas ambientais desde 2018. Embora
representativo, o personagem é mais um dos muitos infra-
tores que fizeram de Santa Catarina o estado campeão da
pescaria predatória, segundo levantamento feito por VEJA
com base nos registros do Ibama.
O desrespeito à legislação em Santa Catarina é enorme.
O estado abriga 7% da faixa litorânea brasileira, mas con-
centra um terço do volume de multas por pesca ilegal no pa-
ís. No período pesquisado pela reportagem, pessoas e em-
presas catarinenses foram autuadas em 153 milhões de reais
por atividade irregular, cerca de 34% do total de punições
aplicado em toda a costa brasileira, que chegou a 453 mi-
lhões de reais (veja o quadro na pág. ao lado). A ilegalidade
é tão arraigada que até o ex-presidente do Sindicato dos Ar-
madores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região, Giova-
ni Genázio Monteiro, figura em terceiro lugar no ranking de
multas, com 11,5 milhões de reais. Em 2015, ele chegou a ser

2|6
INÊS249

NA MIRA DOS FISCAIS


Os estados campeões em
infrações neste setor

PERÍODO 2018-2024
(em milhões de reais)

RR AP 28,5
37,6
20
MA CE RN
AM PA
PB
PI
PE
AC TO
RO AL
MT BA SE
DF

GO
MG
MS ES

SP
143 PR
RJ

SC 153
RS

Fonte: Ibama

3|6
INÊS249

preso pela Polícia Federal, acusado de comandar um vasto


esquema de fraudes na concessão de licenças pesqueiras.
A liderança catarinense em bandidagem na pesca não é
coincidência. A indústria de pescados é um forte motor eco-
nômico de Santa Catarina, que concentra cerca de 30% das
embarcações e o maior número de empresas do setor no
Brasil, segundo a Secretaria Executiva Estadual de Aqui-
cultura e Pesca. O estado movimentou mais de 5 bilhões de
reais com a atividade entre janeiro e outubro de 2023 — o
porto de Itajaí movimenta 55% do mercado brasileiro e li-
dera as vendas de congelados no país.
A pesca catarinense também tem considerável influên-
cia política. O estado é a base de Jorge Seif Jr., ex-secretá-
rio de Pesca e Aquicultura no governo Jair Bolsonaro, atu-
al senador do PL (mas arriscado a perder o mandato, em
julgamento em curso no TSE por abuso de poder econômi-
co na campanha) e dono de um longo histórico na ativida-
de pesqueira. Seu pai, Jorge Seif, é fundador da JS Pesca-
dos e acumula, com a esposa, Sara Kischener Seif, 6 mi-
lhões de reais em multas desde 2018. Os dados mostram
que a fiscalização afrouxou sob Bolsonaro, ao mesmo tem-
po que era comum ver o então presidente pescando com
Seif Jr. em águas catarinenses. Em 2018, o volume de mul-
tas no país superou 146 milhões de reais. Com a posse de
Bolsonaro, caiu pela metade. Em 2020, despencou para 25
milhões de reais. Com Lula, voltou a subir, para 135,6 mi-
lhões de reais. “Dois fatores foram bastante prejudiciais

4|6
INÊS249

TWITTER @JORGESEIFJUNIOR
POLÍTICA Jorge Seif Jr. (à dir.), seu pai e Bolsonaro:
retrocesso na fiscalização

para a fiscalização: a redução do quadro efetivo e a falta de


embarcações”, diz Igor de Brito, chefe do Núcleo de Fisca-
lização dos Recursos Pesqueiros (Nupesc), do Ibama.
Os crimes incluem irregularidades nas licenças, comer-
cialização de espécies vetadas e utilização de técnicas proi-
bidas, como o espinhel de superfície, apetrecho composto
por uma estrutura de linhas e anzóis que tem como foco a
pesca de atuns, mas atrai grandes quantidades de animais
protegidos, como tartarugas.
As espécies mais afetadas pela pesca predatória ilegal
variam entre as regiões. No panorama nacional, especialis-
tas apontam que tubarões, cações e arraias estão entre os
mais ameaçados. Outras espécies que sofrem com a ativi-
dade irregular são camarões, lagostas, tainhas e sardinhas.
Além dos apetrechos desproporcionalmente letais, causa
preocupação o desrespeito ao defeso, o período de reprodu-

5|6
INÊS249

ção dos animais. “A redução desproporcional de uma deter-


minada população causa desequilíbrio em toda uma cadeia
alimentar”, alerta Ronaldo Christofoletti, professor do Ins-
tituto do Mar da Unifesp e representante da Unesco para a
proteção dos oceanos brasileiros. Segundo ele, além de for-
talecer a fiscalização, é preciso revisar o arcabouço legal
para considerar o ecossistema, mais do que espécies indivi-
duais, e proteger a autonomia das comunidades que explo-
ram o mar de forma sustentável.
A pesca ilegal é um dos crimes que mais têm preocupado,
não só os agentes ambientais, como as autoridades policiais.
Quadrilhas envolvidas nesse tipo de prática têm, em alguns
lugares do país, conexões com outras atividades criminosas,
como garimpo e tráfico de drogas. Pescadores ilegais mata-
ram o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom
Phillips, em junho de 2022, no Amazonas — terceiro no
ranking da pesca ilegal, mas bem abaixo dos estados do Sul.
Segundo o fiscal Igor de Brito, na Amazônia, a atividade ocor-
re no mar e em rios, de forma muito espalhada, o que dificulta
a atuação quando se tem um baixo número de fiscais. Já no
Sul, a atividade é concentrada em determinadas regiões, faci-
litando a ação dos agentes. A exploração dessa modalidade de
crime encontra águas tranquilas quando a repressão reflui,
quase sempre em razão de uma visão ambiental permissiva.
Mas o país precisa agir com firmeza, porque é necessário pro-
teger a exploração econômica legal e punir quem suja as
águas dessa atividade importante para o Brasil. ƒ

6|6
INÊS249
INÊS249

RADAR ECONÔMICO
PEDRO GIL

Com reportagem de Diego Gimenes,


Felipe Erlich e Juliana Machado

NOS ARES KC-390, avião militar da Embraer:


em negociação com a Colômbia

Voando alto Colombiana opera quarenta


A Embraer mantém conver- aeronaves da Embraer.
sas avançadas para vender
seu cargueiro militar KC- Comboio elétrico
390 ao governo colombia- No embalo do programa fe-
no. O modelo já foi negocia- deral Mover, que dará crédi-
do com cinco nações euro- tos tributários às montado-
peias e com a Coreia do Sul. ras que investirem em pes-
Atualmente, a Força Aérea quisa e projetos de descarbo-
GORDZAM/ALAMY/FOTOARENA

1|3
INÊS249

nização, a Volkswagen vai mado o aluguel de equipa-


anunciar investimentos na mentos para empresas.
eletrificação de caminhões e Atualmente, 15% do fatura-
ônibus. “Os ciclos de veícu- mento da provedora vem do
los leves e pesados estão des- segmento B2B. A intenção é
casados”, diz Marco Saltini, aumentar esse volume.
vice-presidente da VW.
Retomada na saúde
Lar digital A compra do laboratório
Anunciada no ano passado, São Lucas pela rede de ser-
a fusão entre os provedores viços médicos Fleury, sa-
brasileiros de internet Vero cramentada na semana pas-
e Americanet começa a ren- sada, foi o primeiro sinal do
der frutos. A companhia re- reaquecimento do setor. A
sultante da operação — cha- última grande movimenta-
mada apenas Vero — vai ção havia ocorrido em
ampliar a oferta de telefonia 2022, quando a Rede D’Or
móvel e produtos digitais comprou a SulAmérica.
para residências. Para isso,
foram assinadas parcerias Vem mais por aí
com o Google e o serviço de Quem acompanha de per-
streaming Roku. to o mercado de saúde ga-
rante que fusões e aquisi-
Negócios com empresas ções serão retomadas com
A Vero também vai entrar força no setor em 2024.
no mercado de “hardware Há um grande negócio em
as a service”, como é cha- vista: Rede D’Or, Bradesco

2|3
INÊS249

Saúde e Amil estariam in- campeonato espanhol de fu-


teressadas no grupo de tebol, vai divulgar nos pró-
diagnósticos Dasa. ximos dias o ótimo desem-
penho financeiro do torneio
Olho na RJ na temporada 2022/23. As
As gestoras Strata Capital, receitas somaram 27 bilhões
Flow Invest, Jive Asset e Vin- de reais, o que representou
ci Partners estão à procura um aumento de 15% em re-
de empresas em processos lação à edição anterior.
de recuperação judicial para
investir. A avaliação de negó- A Selic ideal
cios é feita em parceria com O banco Itaú BBA realizou
a consultoria RGF. uma pesquisa com 160 ges-
tores financeiros para en-
Novos mercados tender qual seria o “número
Presente em 43 países e mágico” da taxa de juros bá-
com ações negociadas na sica no Brasil que estimula-
bolsa de Nova York, a plata- ria a entrada de investidores
forma brasileira de softwa- na renda variável. Segundo
re de comércio eletrônico os entrevistados, uma Selic
Vtex quer explorar novos de 9% ao ano aumentaria
mercados. A ideia é ingres- consideravelmente os apor-
sar na China e na Índia. tes em ações locais. ƒ

Bola cheia OFERECIMENTO


A La Liga, entidade respon-
sável pela organização do

3|3
INÊS249

ECONOMIA IMPOSTOS

CORRIDA CONTRA
O TEMPO
O governo encaminhou ao Congresso o projeto de
regulação da reforma tributária. Para aprovar a
proposta ainda em 2024, contudo, será preciso
superar diversos obstáculos
FELIPE ERLICH E JULIANA ELIAS

EM MÃOS Lira recebe documento de Haddad:


sintonia entre eles é vital para o texto andar

DIOGO ZACARIAS/MF

1|9
INÊS249

urante a implementação do Plano Real, em 1994, o

D
ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, foi alerta-
do, pelo candidato a presidente Fernando Henrique
Cardoso, sobre o risco de o Congresso desfigurar a
proposta. “Vão querer pendurar uma porção de
coisas que não têm nada a ver”, disse FHC à época. O relato
acima foi feito a VEJA pelo próprio Ricupero e ilustra como
é complexo emplacar grandes mudanças econômicas sem o
intrometimento implacável — para o bem ou para o mal —
do Congresso. Trinta anos depois, o Parlamento se volta à
reforma tributária, cuja regulamentação também está sujei-
ta à apreciação de deputados e senadores. Não será tarefa fá-
cil dar andamento ao projeto, especialmente diante do aper-
tado calendário do Legislativo
em 2024 — haverá eleições
municipais em outubro — e do
intrincado relacionamento en-
tre o governo e o Congresso.
Na noite da quarta-feira 24,
o presidente da Câmara, Ar-
thur Lira, recebeu das mãos
do ministro da Fazenda, Fer-
DIOGO ZACARIAS/MF

nando Haddad, o documento


de 354 páginas, 499 artigos e
24 anexos que compõem a PREOCUPAÇÃO Appy:
proposta do governo para a o secretário lamenta o
regulamentação da tão aguar- número alto de exceções

2|9
INÊS249

dada reforma tributária. É esse calhamaço que seguirá sob a


análise parlamentar nos próximos meses. Com ele, vão jun-
to dois grandes desafios do governo: aprovar as regras ainda
em 2024 e evitar que se repita a rodada de remendos que o
texto anterior sofreu na primeira tramitação no Congresso.
“A força dos grupos de interesse poderá ampliar os privilé-
gios e exceções e tirar ainda mais o brilho da reforma”, diz o
economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega,
sócio da Tendências Consultoria. “Quanto mais exceções,
maior o imposto que todo o resto terá que pagar.”
A promessa de Lira é aprovar o pacote na Câmara antes
do recesso parlamentar, em julho, para que no retorno, em
agosto, ele já possa ser apreciado pelo Senado. Trata-se de
um calendário bastante desafiador, dado o tamanho do pro-
jeto em proporção ao pouco tempo disponível. É por isso
que o presidente Lula tem defendido a ideia de que, tanto Li-
ra quanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, recon-
duzam para a relatoria dessa nova etapa da reforma o depu-
tado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e o senador Eduardo Braga
(MDB-AM), responsáveis por coordená-la nas votações do
ano passado. “O cara já está familiarizado, você ganha tem-
po”, disse Lula para jornalistas no início da semana.
O principal objetivo da reforma tributária, aprovada e
promulgada em dezembro, é simplificar o emaranhado
de impostos do consumo. O novo sistema pretende trocar
os milhares de legislações e alíquotas atuais por um futu-
ro imposto único, mais transparente e mais simples. Será

3|9
INÊS249

o chamado IVA, ou Imposto sobre Valor Agregado, e foi


inspirado nos melhores exemplos do mundo. Mas o Bra-
sil é o Brasil: a primeira versão aprovada pelos parlamen-
tares ganhou uma lista grande de categorias com o direi-
to de pagar menos ou nenhum imposto. Elas vão de re-
médios e alimentos, passando por profissionais liberais, a
times de futebol.

O QUE MUDA
A reforma tributária unifica os
impostos sobre consumo

COMO É HOJE

ISS: municipal

ICMS: estadual

PIS, Cofins, IPI: federais

COMO SÃO APLICADOS

Cada prefeitura e estado tem a sua legislação, as


alíquotas variam entre os produtos e os impostos
são aplicados uns sobre os outros

4|9
INÊS249

Pelos cálculos de Bernard Appy, secretário especial da Fa-


zenda e um dos pais da atual reforma tributária, a profusão de
exceções já elevaria o IVA padrão para algo entre 25,7% e
27,3%, o que o colocaria entre os mais altos do mundo. O papel
da regulamentação é, justamente, definir os produtos e serviços
que terão tratamento especial — o perigo está aí. Os parlamen-
tares estão expostos a lobbies de diferentes setores, e certamente
muitos deles defenderão seus interesses com afinco. Como se
não bastasse, a regulação chega ao Congresso em um momento
tumultuado da relação entre o governo Lula e o Legislativo. “A
tradução disso é uma reforma que pode demorar mais para pas-

C O M O VA I F I C A R

IBS (Imposto sobre Bens e


Serviços): municipal e estadual

CBS (Contribuição sobre


Bens e Serviços): federal

COMO SERÃO APLICADOS

Terão alíquota única


geral e a cobrança não
será cumulativa

5|9
INÊS249

ROQUE DE SÁ/AGÊNCIA SENADO

ANÁLISE Senador Eduardo Braga: ele deverá ser


o relator da proposta

sar e que, possivelmente, acabará mais distante do ideal deseja-


do pela equipe econômica”, diz o cientista político Rafael Cortez.
Há muitos obstáculos no horizonte. Ameaças de pautas-
-bomba, com as quais os parlamentares poderiam implodir o
Orçamento, ainda pairam no ar. A situação também é mais
delicada do que no ano passado, quando a reforma tributária
foi apreciada pela primeira vez por deputados. “A impressão é
de que agora a relação está mais descontrolada”, diz o ex-mi-
nistro Ricupero. Sobrou até para Haddad, que levou um pu-
xão de orelha público de Lula por, segundo o presidente, ler
livros demais e conversar com o Congresso de menos. “O mi-
nistro tem que fazer sua parte, mas o entendimento maior
com Lira precisa vir do próprio Lula”, afirma Ricupero.
Conta a favor o fato de o presidente da Câmara ser um
dos principais interessados na aprovação. O mandato do ala-

6|9
INÊS249

O QUE FALTA DECIDIR


Os pontos que a regulamentação da
reforma tributária detalha

CÁLCULO DO IMPOSTO

A metodologia que deverá ser


usada para o cálculo da alíquota e
a aplicação do IVA

C E S TA B Á S I C A

Quais alimentos terão direito a


desconto ou isenção do imposto

I M P O S TO S E L E T I VO

Quais itens terão a incidência do imposto


extra, destinado a produtos nocivos à
saúde ou meio ambiente

7|9
INÊS249

goano à frente da casa legislativa termina em menos de um


ano e ele quer incluir a matéria no currículo. “Lira será o
presidente da Câmara que vai aprovar a reforma depois de
trinta anos”, afirma o deputado Baleia Rossi (MDB-SP).
“Concluir a proposta é uma sinalização importante que o
país dará aos agentes econômicos nacionais e internacio-
nais”, diz o deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR), um
dos idealizadores da reforma. Há um entendimento entre
parlamentares de que Lira poderá blindar a pauta de seus
atritos com o Executivo. “Mas a coordenação política do go-
verno está bastante instável”, diz Murillo de Aragão, funda-

REGIMES ESPECIAIS

Como funcionará a cobrança dos setores previstos


para terem sistemas próprios (serviços financeiros,
mercado imobiliário, combustíveis e outros)

PROFISSIONAIS LIBERAIS

A lista de categorias de trabalhadores que


terão direito a pagar imposto menor

8|9
INÊS249

ISTOCK/GETTY IMAGES

COMPRAS No supermercado: definição de alíquota do novo


IVA é um ponto nevrálgico do texto

dor da casa de análises políticas Arko Advice. “Se esse diá-


logo com o Congresso melhorar, é possível, sim, termos uma
boa reforma aprovada até o fim do ano.”
As bases do sistema tributário brasileiro foram estabele-
cidas nos anos 1960 e, ao menos desde a redemocratização,
especialistas discutem como desatar o nó em que ele se
transformou. “São vários anos de debate, então não pode-
mos dizer que seis meses vão definir ou não o sucesso da
proposta”, afirmou a VEJA o ex-ministro da Fazenda Henri-
que Meirelles. “É uma questão de tempo para que as refor-
mas faltantes, a tributária e a administrativa, sejam consu-
madas.” Tudo indica, porém, que o caminho será longo e
tortuoso. Cabe ao Parlamento dar andamento célere às no-
vas regras tributárias, fundamentais para o país virar uma
página importante de sua história. ƒ

9|9
INÊS249

MAÍLSON DA NÓBREGA

SORTE NOSSA, O BC
É INDEPENDENTE
Sua nobre missão tem sido
religiosamente cumprida

ESTUDOS indicam que a economia e a sociedade se be-


neficiam da independência do Banco Central (BC), enten-
dimento que se firmou dos anos 1980 em diante. Provou-
se que taxas elevadas de inflação costumavam nascer de
medidas para forçar o BC a reduzir a taxa básica de juros
(no caso do Brasil, a Selic).
A taxa básica é um instrumento poderoso, que serve tan-
to para enfrentar surtos inflacionários quanto para ampliar
a liquidez em certos momentos, como ocorreu na crise fi-
nanceira de 2008 e na pandemia de covid-19, quando seus
respectivos custos foram minimizados. Líderes populistas
podem lançar mão desse instrumento para a expansão in-
flacionária da atividade econômica, o que gera incertezas,
inflação e queda do potencial de crescimento.
Recente estudo publicado no blog do FMI aponta os cus-
tos econômicos e sociais resultantes da ausência de um BC
independente (Strengthen Central Bank Independence to
Protect the World Economy). “Todos são prejudicados pela

1|3
INÊS249

alta inflação, especialmente as pessoas que vivem de rendi-


mentos fixos (salários, aposentadorias e pensões), que so-
frem a erosão de sua renda”, assinalou o estudo. Isso provo-
ca aumento da pobreza e da desigualdade.
Todos os BCs das nações ricas são independentes. O
mesmo ocorre na maioria dos países da América do Sul. Na-
ções que pretendam ingressar na União Europeia precisam
ter banco central independente. Aqui, nosso BC nasceu em
1965 com uma área para prover crédito em favor da agricul-
tura, da indústria e das exportações, o que acarretou pres-
sões inflacionárias. Essa contradição desapareceu com as
reformas realizadas em 1986 e 1987.
Desde então, o BC adquiriu paulatinamente as funções
básicas de um banco central moderno, quais sejam, cuidar
da estabilidade da moeda e do sistema financeiro. A inde-
pendência formal só viria, no entanto, em 2021. Entre os

“A velha esquerda
ainda resiste à ideia,
uma prova adicional da
incapacidade de modernizar
seu pensamento”
2|3
INÊS249

países relevantes da América Latina, fomos o último a dar


esse passo.
A velha esquerda brasileira ainda resiste à ideia, uma
prova adicional da incapacidade de modernizar seu pensa-
mento econômico e de aprender com políticas públicas bem-
sucedidas. Vêm daí, ao que parece, os ataques pessoais ao
presidente do BC, tratado como “esse cidadão” e acusado de
“não entender o Brasil”. Autoridades pedem publicamente
que o BC reduza a taxa Selic ou acelere sua queda.
Esse equívoco é comum em parte da classe política e do
empresariado. Às vésperas das reuniões do Comitê de Polí-
tica Monetária, líderes de associações de classe clamam por
redução dos juros, como se fosse mera questão de vontade.
Valendo-se de sua independência, o presidente do BC e os
demais membros do comitê ignoram tais pressões. Podem,
assim, manejar corretamente a taxa Selic, permitindo o
cumprimento das metas de inflação. Sorte nossa.
O nosso BC foi eleito recentemente o melhor do mundo.
Dificilmente a notícia teve a repercussão devida entre os in-
capazes de aprender e entender como funciona essa institui-
ção. Quem sabe nas próximas gerações. ƒ

3|3
INÊS249

ECONOMIA NEGÓCIOS

A CONECTIVIDADE
ENTRA EM CAMPO
Redes 4G e 5G estão chegando agora às regiões
agrícolas remotas, mas o ritmo de expansão dessa
infraestrutura pelo país precisa ser ainda maior
CAMILA BARROS
YUMI MINI/ISTOCK/GETTY IMAGES

NA PALMA DA MÃO Tablet na lavoura: equipamentos


modernos impulsionam a produtividade

1|6
INÊS249

O MUNICÍPIO de Caconde, a 290 quilômetros de São Pau-


lo, é um dos maiores polos de plantio de café no país. Loca-
lizado na sinuosa região da Serra da Mantiqueira, tem uma
topografia ideal para o desenvolvimento dos arbustos frutí-
feros, que crescem melhor em altitudes elevadas. Até pouco
tempo atrás, no entanto, essa característica mantinha os
produtores da região isolados. Sem contar com infraestrutu-
ra de internet, eles sofriam para acessar sites ou usar dispo-
sitivos que necessitam de boa conexão. Foi só em 2018 que
as primeiras antenas começaram a chegar à cidade. Em
2020, com a pandemia impulsionando a comunicação digi-
tal, o processo de instalação de torres ganhou fôlego. Atual-
mente, Caconde faz parte do projeto conhecido como Se-
mear Digital, criado pela Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa) para aumentar a conectividade
em áreas rurais. “O programa colocou a produção agrícola
de Caconde no mapa”, afirma o cafeicultor Ademar Pereira,
presidente da cooperativa agropecuária do município. De
acordo com ele, a internet ajudou a dar escala ao agro local,
além de ter estimulado o uso de novas tecnologias.
Em um país de dimensões continentais como o Brasil,
poucos desafios são tão urgentes para o agronegócio quanto
o de aumentar os índices rurais de conectividade. Apesar dos
avanços registrados nos últimos anos, eles permanecem bai-
xos. De acordo com o indicador de conectividade rural (ICR),
lançado há alguns dias pela associação ConectarAGRO, ape-
nas 19% da área rural brasileira tem cobertura de internet

2|6
INÊS249

BAIXO ALCANCE
Apesar dos avanços nos últimos anos,
há muito a melhorar
APENAS 19% DA ÁREA AGRÍCOLA NO
BRASIL TEM COBERTURA 4G OU 5G

ENTRE OS GRANDES PRODUTORES RURAIS,


SÓ 6% MANTÊM TODAS AS SUAS LAVOURAS
CONECTADAS POR REDE 4G OU 5G

REGIÕES AGRÍCOLAS DO DISTRITO FEDERAL,


RIO DE JANEIRO E ESPÍRITO SANTO POSSUEM AS
MELHORES CONEXÕES DE INTERNET. AMAPÁ,
RORAIMA E AMAZONAS, AS PIORES
Fonte: Indicador de Conectividade Rural (ICR), da ConectarAGRO

4G ou 5G — a pesquisa não contabiliza conexões 2G e 3G


por considerá-las tecnologias em declínio e com capacidade
de tráfego de dados muito limitada. O indicador ainda mos-
tra que a maioria das fazendas com acesso a internet está no
Sul e no Sudeste do país. “No Sul, as propriedades costumam
ser pequenas e estar perto das cidades, o que facilita em ter-
mos de infraestrutura”, diz Anselmo del Toro, vice-presiden-
te da ConectarAGRO. “Já regiões do Centro-Oeste e Norte
do país possuem áreas maiores para populações menores.”

3|6
INÊS249

ISTOCK/GETTY IMAGES

DESAFIO Torre: dimensões continentais


do Brasil dificultam ampliação do acesso

Uma força econômica do Brasil, o agronegócio depende


cada vez mais de boas redes de internet para desfrutar das
extraordinárias oportunidades trazidas pela nova era digi-
tal. É a conectividade que permite o uso de tecnologias ino-
vadoras, como drones que mapeiam lavouras, robôs pulve-
rizadores, equipamentos portáteis de análise do clima ou
tratores autônomos controlados por inteligência artificial,
entre muitas outras. Sem ela, os dispositivos não se comuni-
cam entre si e ficam impossibilitados de compartilhar dados
ou até mesmo de operar. Isso impõe uma barreira que, afi-
nal, diminui os índices de produtividade das áreas agrícolas.
Para tornar viáveis projetos fora das cidades, as opera-
doras têm apostado em novas estruturas econômicas. A

4|6
INÊS249

E+/GETTY IMAGES

VISÃO DO ALTO Drones: aparelhos voadores


são usados para mapear plantações

TIM, uma das apoiadoras da ConectarAGRO, trabalha em


parceria com grandes produtores rurais, que pagam pela
instalação das antenas em suas propriedades. Em terras de
20 000 a 30 000 hectares, que são os focos do projeto, a
instalação de estruturas de rede 4G custa em torno de
500 000 reais e leva de três a cinco anos para ser concluí-
da. “Se usássemos o nosso modelo tradicional de negócios,
não funcionaria”, afirma Paulo Humberto Gouvea, diretor
de Soluções Corporativas da TIM Brasil. Em uma fazenda
modelo em Água Boa, no Mato Grosso, a TIM calcula que
a chegada da internet aumentou a safra em 18% e reduziu
o uso de combustíveis em 10%.
Outra solução em alta são as redes não terrestres (NTN,

5|6
INÊS249

na sigla em inglês), baseadas em sistemas de comunicação


via satélite. A mais famosa delas é a Starlink, subsidiária da
empresa americana de foguetes SpaceX, de Elon Musk. No
Brasil, seu equipamento custa 2 000 reais, com mensalida-
de de 184 reais. Nesse caso, o apelo está em levar internet
para regiões afastadas e sem nenhuma infraestrutura, que
dependeriam de grandes projetos para acessar redes 4G.
“Não consideramos essas novas tecnologias como concor-
rentes”, diz Del Toro, da ConectarAGRO, que mira em levar
redes 4G às propriedades. “Qualquer modelo é apenas o
meio para um fim, que é o de conectar máquinas e pessoas
no campo.” Isso é ótimo para os produtores, mas melhor
ainda para o Brasil. ƒ

6|6
INÊS249

INTERNACIONAL ESTADOS UNIDOS

O TERCEIRO
ELEMENTO
Candidato sem partido e afeito a opiniões polêmicas
e teorias conspiratórias, Robert Kennedy Jr.
não tem nenhuma chance de ganhar a disputa pela
Casa Branca. Mas que atrapalha, atrapalha
ERNESTO NEVES

POR FORA O político independente: atraindo democratas


com o sobrenome e trumpistas com teorias conspiratórias

JOSH EDELSON/AFP

1|5
INÊS249

altando sete meses para as eleições presidenciais

F
dos Estados Unidos, até as rochas onde Elon Musk
quer fincar uma civilização em Marte (leia o artigo
de Fernando Schüler) sabem que os protagonistas
da batalha final serão o presidente Joe Biden, pelo
lado democrata, e seu antecessor, Donald Trump, pelo repu-
blicano. Empatados tecnicamente nas pesquisas, os dois dis-
putam voto a voto a vitória nas urnas, tal qual aconteceu em
2020, com uma diferença: a presença de um terceiro candi-
dato, sem chance nenhuma de ganhar, mas com grande ca-
pacidade de atrapalhar o jogo. É Robert Francis Kennedy
Jr., 70 anos, sem partido, bem-apessoado e bronzeado advo-
gado de Malibu, onde se concentram os ricaços da Califór-
nia. Além de mais jovem do que os dois adversários numa
votação em que o fator idade é crucial (Biden tem 81, Trump
completa 78 em junho), faz questão de propagandear em dis-
cursos e entrevistas tanto o sobrenome famoso de um clã
historicamente democrata quanto teorias conspiratórias
pregadas no ideário do trumpismo. É nesse cenário que ele
se mexe para cavar espaço entre eleitores nas duas frentes.
“Sou a oportunidade de restaurarmos este país, sua demo-
cracia e autoridade moral”, diz.
RFK Jr., como gosta de ser chamado (reeditando as ini-
ciais pelas quais o pai era conhecido), é filho do senador Ro-
bert Kennedy, alvejado fatalmente em uma primária demo-
crata quando tentava se candidatar à Casa Branca em 1968,
e sobrinho do ex-presidente John Kennedy, assassinado a ti-

2|5
INÊS249

X @KERRYKENNEDYRFK
APOIO O clã dos Kennedy na Casa Branca:
declaração de voto a Joe Biden

ros em 1963. A maioria das pesquisas o coloca com cerca de


10% das intenções de voto — a melhor performance de um
candidato independente em décadas. “Pesquisas mostram
que Kennedy tira mais votos de Biden, mas ele já causa preo-
cupação também a Trump”, diz Grant Davis Reeher, profes-
sor de ciências políticas da Universidade Syracuse. RFK Jr. já
conseguiu assinaturas suficientes para aparecer nas cédulas
em swing states, aqueles que definem eleições, como Arizo-
na, Geórgia, Nevada, Michigan e New Hampshire. Anuncia-
da recentemente, sua vice, Nicole Shanahan, 38 anos, investi-
dora e ex-mulher de Sergey Brin, fundador do Google, con-
tribuiu para aumentar seu apelo entre os jovens — justamen-
te a fatia do eleitorado que em 2020, sem opção entre Biden e
Trump, acabou votando no democrata como mal menor.
Candidato a ser agora a terceira via, Kennedy, como toda a
família, foi democrata de carteirinha. Vestiu essa camisa até

3|5
INÊS249

AP/IMAGEPLUS

TEORIA Com o tio assassinado:


ele acha que houve dedo da CIA na morte

2023 e se projetou no início dos anos 2000 como advogado


ambientalista, chegando a ser cotado para ocupar a direção
de órgãos do governo na área. Ao longo da última década, po-
rém, tornou-se mais conhecido pelo vigoroso discurso contra
a vacinação infantil, que, replicando teorias amalucadas, in-
siste em associá-la a doenças como autismo. A lista de sandi-
ces inclui ainda duvidar da relação entre HIV e aids e associar
o tratamento da água que o público consome a disfunções se-
xuais. E, claro, ele faz parte da turma de céticos contumazes
que vê o dedo da CIA nos assassinatos do pai e do tio.
Durante a pandemia, não perdeu chance de disparar bi-
zarrices a respeito da origem do vírus da covid-19, dos supos-
tos males da vacina e do lockdown. “Até na Alemanha de Hi-
tler as pessoas podiam cruzar os Alpes e se refugiar na Suíça
e se esconder no sótão, como Anne Frank. Hoje os mecanis-
mos em vigor nos impedem de fugir. Ninguém consegue se

4|5
INÊS249

esconder”, proclamou em uma manifestação antivacinas em


Washington. Por essas e outras, chegou a ser temporariamen-
te banido de redes sociais. Em 2021, lançou um livro demoni-
zando o médico Anthony Fauci, conselheiro da Casa Branca
no combate à pandemia que diversas vezes entrou em choque
com Trump. Por suas posições, Kennedy foi solenemente re-
negado pela família, que recentemente fez questão de se en-
contrar em peso com Biden para manifestar seu apoio.
Candidatos independentes como Kennedy não têm ne-
nhuma chance de emperrar a engrenagem da máquina elei-
toral dos partidos tradicionais, mas são capazes de causar so-
luços e imprevistos, ainda mais em uma eleição como a deste
ano, que deve ser decidida por margem muito estreita de de-
legados no Colégio Eleitoral. “Nem Biden nem Trump po-
dem se dar ao luxo de perder qualquer voto”, diz Alice Ste-
wart, consultora do Partido Republicano. Ao longo da histó-
ria, outsiders já mostraram que podem ser um fator de risco
para os políticos tradicionais. Na disputada eleição de 2000,
Ralph Nader, do Partido Verde, amealhou 3 milhões de votos
que fizeram muita falta ao democrata Al Gore e contribuí-
ram para a vitória do republicano George W. Bush. Anos an-
tes, em 1992, outro azarão, o bilionário conservador Ross Pe-
rot, sacudiu a tranquilidade das legendas mais conhecidas ao
atrair 19% do eleitorado, boa parte insatisfeita com a conjun-
tura econômica da época, e fortalecer o democrata Bill Clin-
ton. Resta ver que prejuízo Kennedy poderá causar desta vez,
e a quem. Tanto Biden quanto Trump que se cuidem. ƒ

5|5
INÊS249

INTERNACIONAL EQUADOR

MÃOS DE FERRO
Plebiscito confirma a aprovação dos equatorianos à
linha dura do presidente Daniel Noboa contra o crime
organizado, ampliando o poder das forças de segurança
para prender suspeitos e ocupar as ruas CAIO SAAD

CRUZADA
Em um discurso
recente: investindo
na política do prende
e arrebenta, de olho
na reeleição em
fevereiro do
ano que vem
GERARDO MENOSCAL/AFP

1|4
INÊS249

CAMINHANDO firme na direção de uma versão desco-


medida da política de tolerância zero contra criminosos que
anda fazendo sucesso pelo mundo, o Equador acaba de
aprovar em plebiscito um conjunto de medidas que aper-
tam o parafuso do uso da força extrema e prisões indiscri-
minadas no país. O resultado evidencia o apoio popular ao
presidente Daniel Noboa, de 36 anos, herdeiro da família
mais rica do Equador, que foi eleito e vem fazendo carreira
como comandante de uma cruzada para acabar com as
quadrilhas que aterrorizam a população. Entre as providên-
cias aprovadas no referendo de onze pontos estão a regula-
mentação das Forças Armadas ao lado da polícia no com-
bate ao crime organizado, a criação de tribunais especiais e
a extensão das penas de prisão — o que pode aumentar ain-
da mais a população carcerária, foco de aliciamento e coor-
denação das gangues que assolam o país.
Apenas os pontos relativos à segurança foram aprova-
dos e quase 30% dos eleitores se abstiveram. Mesmo assim,
o referendo avalizou o maciço apoio à linha-dura adotada
por Noboa. “Para os equatorianos, trata-se de uma guerra
entre grupos criminosos e o Estado por território e contro-
le. Há uma atmosfera de insegurança muito grande na so-
ciedade e essas medidas são uma resposta a essa situação”,
diz Maria Fernanda González, da Faculdade Latino-Ame-
ricana de Ciências Sociais do Equador. Antes uma ilha de
tranquilidade, o Equador entrou em ebulição nos últimos
anos: uma sequência de governos fracos coincidiu com mu-

2|4
INÊS249

JOSÉ JÁCOME/EFE
PROPAGANDA Suspeito detido em Quito:
imagens reforçam a linha dura

danças nas rotas do tráfico de drogas na América do Sul, e


de uma hora para outra os portos equatorianos se tornaram
o canal preferencial de escoamento de cocaína para Esta-
dos Unidos e Europa. Presos, os chefes das quadrilhas, sob
ordens de cartéis mexicanos, instalaram seu QG nas peni-
tenciárias e a violência disparou.
A nova realidade foi exposta ao mundo em janeiro, ao
vivo e em cores, quando bandidos invadiram um estúdio
da TV estatal e lançaram ameaças à população sobre as
consequências de “mexer com a máfia” do narcotráfico —
ação ousada que levou Noboa a declarar “estado de conflito
armado”. Investidos de novos e amplos poderes, no início
do mês policiais entraram à força na embaixada do México

3|4
INÊS249

em Quito e prenderam Jorge Glas, ex-vice-presidente equa-


toriano condenado por corrupção que lá se encontrava re-
fugiado. Além de cortar relações, o México vai levar o caso
ao Tribunal Internacional de Justiça.
Apesar da reação, o governo segue inabalável no proces-
so de “bukelização” no país, referência ao estilo truculento
do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, na guerra às
gangues locais, que hoje serve de inspiração para um rol
crescente de líderes latino-americanos. Em dois anos, o go-
verno salvadorenho encheu as ruas de soldados e prendeu
quase 75000 pessoas, ou 8% da população masculina, exi-
bidas em fotos e vídeos de pátios lotados de prisioneiros se-
minus. Quase ninguém foi julgado até agora.
No Equador, a violência diminuiu, mas está longe de ser
controlada: nos feriados da Páscoa, dois prefeitos foram as-
sassinados, e as denúncias de sequestros e extorsão são fre-
quentes. “O sistema judiciário está entrando em colapso e o
número de detidos aumenta dia a dia”, afirma Renato Rive-
ra, do Observatório Equatoriano do Crime Organizado.
Noboa, político de centro-direita, com 68% de aprovação
(já foram 85%) e em plena campanha pela reeleição em
2025, anunciou a construção de duas megapenitenciárias e
a compra de navios-prisão para acomodar a multidão de
detidos — provas de que ele continuará dobrando as apos-
tas na política de linha dura. ƒ

4|4
INÊS249

O MAXIMALISTA
E O MINIMALISTA
Lula e Milei estão em polos antagônicos
na relação com o mercado

O SITE BLOOMBERG propôs uma comparação intrinse-


camente injusta, mas irresistível: qual visão econômica se-
rá mais bem-sucedida, a de Lula da Silva ou a de Javier
Milei? É um game que está acontecendo diante de nossos
olhos e, como na série O Problema dos Três Corpos, afeta
nossas vidas de maneira crucial. O brasileiro e o argentino
são opostos em tudo; um, quer o governo máximo e o Es-
tado indutor; outro, o governo mínimo e o empreendedo-
rismo produtor. É uma questão em discussão permanente
nos países que ainda não acertaram o caminho para a
prosperidade coletiva, mas que nunca foi tão bem codifica-
da por dois presidentes vizinhos. Lula, o populista de es-
querda, pragmático e escolado na política, talvez obcecado
demais em replicar resultados do passado. Milei, um liber-
tário politicamente neófito que propõe uma visionária ava-
lanche liberalizante. Os resultados dirão quem tende a ter
mais razão, embora os jogadores tenham partido de posi-
ções diferentes — daí a injustiça da comparação —, com

1|3
INÊS249

um Brasil bastante em ordem, considerando-se as circuns-


tâncias, e uma Argentina martirizada por tudo o que de
pior tem o peronismo em suas diversas encarnações, a ca-
minho da hiperinflação.
Um exemplo entre tantos: Lula assumiu aumentando o
número de ministérios para 38 — espíritos mais céticos di-
riam que o objetivo mesmo é contemplar aliados e promo-
ver a eufemisticamente chamada governabilidade. Milei
cortou as pastas para nove e virou um serial killer de em-
pregos pendurados no enorme cabide que sustenta o que
chamou de casta. Lula é uma entidade conhecida, nos
acertos e nos erros. Milei continua a ser um enigma, embo-
ra, até o momento, menos alucinado do que se esperaria de
alguém que só cultiva laços de intimidade real com a irmã
e com os cães — a namorada, que muitos achavam ser um
arranjo de fachada, já foi para o espaço. O FMI elogiou o

“Os resultados dirão


quem tende a ter mais
razão, embora os
jogadores tenham partido
de posições diferentes”
2|3
INÊS249

“impressionante” avanço promovido por Milei em matéria


de ajuste fiscal, ao custo de uma queda prevista de 2,8%
do PIB para este ano. A inflação subiu “só” 11% em março
— uma vitória — e já despontou um superávit fiscal. So-
breviverão os argentinos com os cintos apertados até além
do último furo? A dureza do ajuste atiçará a famosa volati-
lidade social do país?
Em recente viagem à Colômbia, Lula fez um diagnósti-
co sobre a América Latina: “Não pode ser por coincidência
que todos nós, que já temos 500 anos de vida, não tenha-
mos nenhum país altamente desenvolvido, um país rico,
um país com estado de bem-estar social que possa ser
comparado aos países europeus. Alguma coisa está erra-
da”. Equivocou-se ao atribuir a “coisa errada” a uma dis-
posição de “nações colonizadas” a esperar por “muitos e
muitos séculos a ordem daqueles que nos colonizaram pa-
ra dizer o que a gente tinha que fazer”. A atual moda es-
querdista de pendurar todos os nossos males no colonialis-
mo ignora o fenômeno de um país como os EUA, uma co-
lônia selvagem quando o Brasil já era exportador da mais
cobiçada commodity da época — o açúcar —, mas que de-
senvolvia uma sociedade horizontalizada baseada na cria-
ção de riquezas por esforço próprio e na liberdade como
valor supremo. É isso que o “mileinarista” argentino quer
replicar com sua revolução cultural. Quem tem o melhor
plano, ele ou Lula? ƒ

3|3
INÊS249

GENTE
VALMIR MORATELLI

PRISIONEIRA DE UM ENREDO
A expectativa de PAOLLA OLIVEI-
RA, 41 anos, com a estreia da segunda
temporada de Justiça, no Globoplay,
era de que as atenções se voltassem
para o caráter mais que duvidoso da
protagonista a que dá vida, a psicopata
Jordana. Mas o roteiro foi bem diferen-
te. Desde que o primeiro lote de episó-
dios foi ao ar, só se fala mesmo das tór-
ridas cenas de sexo entre ela e a per-
sonagem de Nanda Costa, que acaba
parando na prisão por engano, justa-
mente no lugar de Jordana, a verdadei-
ra autora do crime que conduz a trama.
“É misógino levar tudo para o lado se-
xual. Nós ficamos aprisionadas nisso”,
queixa-se Paolla, que não é novata nos
takes em que se envolve com mulhe-
res, como na microssérie Felizes para
Sempre?, na qual os amassos eram
INSTAGRAM @PAOLLAOLIVEIRAREAL

com a atriz Maria Fernanda Cândido. “A


complexidade acaba se perdendo em
meio a essa leitura banal. Puro precon-
ceito”, enfatiza, muito séria.

1|5
INÊS249

INSTAGRAM @MRRICHARDGADD
A ARTE IMITA A VIDA
O escocês RICHARD GADD, 34 anos, anda celebrando o instantâ-
neo sucesso de Bebê Rena, a primeira série que produz, no ar na
Netflix. O enredo gira em torno de um comediante frustrado que pas-
sa a ser perseguido por uma mulher obsessiva, e sua vida vira um in-
ferno. O surpreendente detalhe, apenas agora revelado, é que o ro-
teiro é muito semelhante ao que Gadd viveu na própria pele. Ao longo
de quatro anos, segundo calculou, ele recebeu 41 000 e-mails, 350
horas de mensagens de voz e mais uma centena de cartas de uma
mesma mulher. A obsessão da fã, a princípio engraçada, se conver-
teu em pesadelo. “Ela começou a invadir a minha vida. Aparecia nos
shows, me esperava do lado de fora da minha casa. Não tive mais
paz”, relatou em entrevista ao britânico The Times. Ele só conseguiu
se livrar da figura que o assombrava na Justiça.

2|5
INÊS249

NÃO CHORES POR NÓS


O romance de FÁTIMA FLÓREZ, 43 anos, com JAVIER MILEI,
53, sempre foi envolto em suspeitas de que não passaria, na verda-
de, de uma boa fachada para o então candidato à Presidência ar-
gentina. Após oito meses, o enlace acaba de se desfazer, e o boato
voltou a toda. “Essa é a maior estupidez. Se alguém acha que eu se-
ria capaz de fingir, é porque não me conhece”, disparou a humorista,
que ganhou fama com sua debochada imitação de Cristina Kirchner,
a ex-ocupante da Casa Rosada. Ao tratar do tema, Milei, agora no
poder, justificou que o namoro seria incompatível com a carreira de-
la, que teria recebido ofertas de trabalho nos Estados Unidos e na
Europa, inviabilizando a relação. Ambos, porém, dizem que a afinida-
de segue firme. “Partilhamos o mesmo humor”, garante Fátima.

RODRIGO ABD/AP/IMAGEPLUS

3|5
INÊS249

CAMINHANDO E CANTANDO
Antes de lançar o novo álbum, The Tortured Poets Department,
TAYLOR SWIFT, 34 anos, já tinha dado um spoiler que deixou
muita gente em alerta: ela falaria ali de seus ex-namorados. E assim
fez. Sobre o fim do relacionamento de seis anos com o ator Joe Al-
wyn, disparou em uma das letras: “Você me traiu/ Você me machu-
cou/Você me ensinou/Você me enjaulou”. Não poupou também o
músico Matty Healy, a quem cutuca: “Alguma coisa foi real?”. Neste
caso, o tom, mais ame-
no do que se esperava,
foi recebido com alívio.
“A família de Matty esta-
va preocupada, achava
que Taylor iria expô-lo
como vilão”, contou o
assessor do músico ao
site US Weekly. Já a
cantora é só alegria.
Atualmente namorando
o jogador de futebol
americano Travis Kelce,
JAMES DEVANEY/GC IMAGES/GETTY IMAGES

ela contabilizou 200 mi-


lhões de reproduções
do álbum no Spotify em
um único dia.

4|5
INÊS249

CONSELHEIRA, NÃO MANOELLA MELLO/TV GLOBO

Aos 85 anos, ARLETE SALLES não pensou duas vezes ao acei-


tar ser protagonista em dose dupla de Família É Tudo, a trama
global das 7 em que interpreta as gêmeas Frida e Catarina. A
passagem do tempo, ela conta, trouxe mais firmeza para atuar.
“Nunca me senti tão confortável em cena”, garante a atriz, que
observa quanto a idade vem sendo implacável com várias de
suas colegas, hoje desvalorizadas e sem bons papéis. Para Arle-
te, ainda requisitada, o que mais incomoda mesmo é quando a
geração mais jovem pede conselhos durante as gravações. “Te-
nho muita preguiça disso. Todo mundo está aprendendo o tempo
todo, até eu”, encerra a veterana, sem rodeios. ƒ

5|5
INÊS249

GERAL SAÚDE

REVELAÇÃO
A atriz Letícia
Sabatella recebeu
o diagnóstico de
autismo leve aos
52 anos, logo depois
de descobrir que a
filha tinha a condição.
Sem constrangimento
algum, veio a público
dividir a existência
do quadro, o que
ajuda no processo
de esclarecer a
população, atalho
para diminuir
os tabus.

A DIFERENÇA
LIBERTADORA
Com o aumento dos casos de autismo, acompanhado
da maior aceitação e exposição do assunto, cresce o
número de pessoas que enxergam, em seu diagnóstico,
o caminho para uma vida melhor

VALÉRIA FRANÇA

GABRIEL MONTEIRO/AGÊNCIA O GLOBO

1 | 11
INÊS249

U
m diagnóstico médico costuma ser um divisor
de águas na trajetória de qualquer pessoa. Com
o maior conhecimento sobre o transtorno do es-
pectro autista (TEA), e o devido respeito que
vem angariando, sair de um especialista com a
notícia de que se tem a condição pode funcionar como
passaporte para uma vida mais consciente e feliz. É essa
a sensação de quem recebeu o diagnóstico tardio, já na
idade adulta. Nada de manifestações com tom de pesar,
desesperançoso. “A sensação foi libertadora”, diz a atriz
Letícia Sabatella depois de descobrir ter um grau leve de
autismo aos 52 anos. “Mudou minha vida”, postou no
Instagram Tallulah Willis, de 30 anos, filha caçula de
Bruce Willis com Demi Moore, após saber que integrava
o espectro. Não se trata de celebrar um quadro clínico,
muito menos de atribuir a ele uma aura inexistente, como
se fosse um modismo comportamental. Trata-se, na ver-
dade, de entender melhor as diferenças e as peculiarida-
des humanas — e aprender a utilizá-las ou contorná-las
em prol do próprio bem-estar.
O TEA é marcado por um funcionamento atípico do
cérebro, podendo afetar a comunicação, o comportamen-
to e a socialização em vários níveis — há quem tenha com-
prometimentos mais brandos, outros mais expressivos.
A causa foi abraçada, nos últimos meses, por personalida-
des que ou depararam com o diagnóstico ou decidiram
compartilhar como é cuidar de um familiar com a condi-

2 | 11
INÊS249

INSTAGRAM @MARCOSMION

PAI COM CAUSA


Para o apresentador Marcos Mion (à dir.), falar de
autismo virou um propósito de vida. Pai de Romeo,
diagnosticado há mais de dez anos, o astro do Caldeirão, da
TV Globo, divulga, nas redes sociais, a relevância de
reconhecer e respeitar a condição, ampliando também a
inclusão social de pacientes e famílias.

ção. Quando pessoas admiradas por milhares de fãs mos-


tram que o transtorno não é uma sentença nem um entra-
ve à qualidade de vida, todos os neurodivergentes (como
alguns preferem ser chamados) saem ganhando. A come-
çar pelo combate ao preconceito e aos estigmas que ainda
rondam o assunto. “Na década de 1960, as crianças com o
diagnóstico eram levadas a clínicas”, diz o psiquiatra Gui-
lherme Polanczyk, professor da Faculdade de Medicina

3 | 11
INÊS249

da USP. O entendimento sobre o quadro avançou signifi-


cativamente, e o autismo deixou de ser visto como um
obstáculo intransponível para ingressar na escola ou no
mercado de trabalho, muito embora casos mais severos
imponham, infelizmente, grandes limitações.
O que também avança é o número de diagnósticos pelo
mundo. Nos EUA, país de estatísticas fidedignas, havia um
caso para cada 10 000 crianças na década de 1970. Em
2022, o índice passou para um em cada 36. No Brasil, sem
registro oficial, estima-se contingente de 4 milhões de pes-
soas com TEA — resultado da maior conscientização so-
bre o tema e do maior acesso a especialistas aptos a identi-
ficar o transtorno. “O grupo com TEA já conquista lugar
de respeito, em fenômeno que lembra o que aconteceu com
os portadores da síndrome de Down nos anos 1990”, diz o
neurocirurgião Pedro Pierro Neto. “Antes, quem tinha Do-
wn era rotulado absurdamente de mongoloide.”
O apresentador de TV Marcos Mion, cujo filho Ro-
meo, de 18 anos, foi diagnosticado aos 7, é um dos princi-
pais nomes a erguer a bandeira do autismo, difundindo a
relevância do reconhecimento precoce e da inclusão so-
cial. No fim do ano passado, ele realizou o sonho do jo-
vem ao levá-lo ao palco do seu programa, o Caldeirão,
onde o menino dançou ao som de Elvis Presley. Hoje, o
maior volume de informações sobre o universo autista é
compartilhado e alimentado justamente pelos próprios
pacientes e familiares.

4 | 11
INÊS249

Filósofo e dramaturgo, Henrique Vitorino, de 32 anos,


é outro que, após entender sua condição, aprendeu a se re-
lacionar melhor com o ambiente ao redor. Seu percurso de
autodescoberta é narrado em Manual do Infinito: Relatos
de um Autista Adulto (Editora Nova Alexandria), fruto de
dois anos de pesquisas depois de receber o diagnóstico. O
escritor relata que precisa levar protetores auriculares
profissionais para conseguir andar de metrô, uma vez que
o barulho para ele é como uma “agulha espetando os tím-

EXPLOSÃO DE
DIAGNÓSTICOS
Aumento de informações voltadas ao
público e médicos treinados fazem o
número de autistas subir

O CENSO ESCOLAR DO BRASIL REGISTROU UM


AUMENTO DE 280% NA QUANTIDADE DE
ESTUDANTES COM TRANSTORNO DO ESPECTRO
AUTISTA (TEA) MATRICULADOS EM ESCOLAS
PÚBLICAS E PARTICULARES ENTRE 2017 E 2021

5 | 11
INÊS249

OS CENTROS DE CONTROLE E PREVENÇÃO DE


DOENÇAS (CDC), DO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS,
ESTIMAM QUE UMA EM CADA 36 CRIANÇAS
DE 8 ANOS É AUTISTA — O QUE SIGNIFICA
2,8% DA POPULAÇÃO AMERICANA

A ONU CALCULA QUE 70 MILHÕES DE PESSOAS


NO MUNDO ESTEJAM DENTRO DO ESPECTRO
DO AUTISMO

A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PLANOS DE SAÚDE


(ABRAMGE) APONTA QUE O CUSTO DOS TRATAMENTOS
DE TEA REPRESENTARAM 9% DOS GASTOS DOS
PLANOS DE SAÚDE, MAIS DO QUE O DAS TERAPIAS
ONCOLÓGICAS (8,7%), EM 2023

6 | 11
INÊS249

E+/GETTY IMAGES

ESTÍMULOS Especialistas indicam: quanto antes


começar a terapia, melhor

panos”. E, inclusive, criou estratégias para impedir que


um estímulo sonoro indesejável o lance a uma crise capaz
de deixá-lo três dias trancado no quarto.
O mundo, aliás, também está mudando para acolher os
autistas. “Estamos, aos poucos, tendo nossa condição res-
peitada”, diz Vitorino. “Até os estádios de futebol, como o
do Corinthians e o do Palmeiras, já têm salas especiais,
vedadas acusticamente, onde podemos assistir aos jogos.”
O fato é que, dentro ou fora da bolha, os integrantes do es-

7 | 11
INÊS249

pectro ganharam voz. No podcast Fractais, produzido por


quatro neurodivergentes com diagnóstico tardio, entram
em pauta temas que vão de crise de identidade a bullying.
Um dos apresentadores é o psiquiatra Alexandre Valver-
de, de 44 anos. Não por ser especialista, mas também por
ser... paciente. “Tirei as minhas algemas e agora quero sol-
tar as das outras pessoas”, diz o médico, diagnosticado há
dois anos, após o período de isolamento imposto pela co-
vid-19. Durante a pandemia, Valverde e a família se mu-
daram para o interior paulista. Com a vacinação e o con-
trole do vírus, todos voltaram a São Paulo, menos o psi-
quiatra, que encontrou ali sua zona de conforto.
Valverde diz ter dificuldades de interação social, sensi-
bilidade ao excesso de luz e ruídos, além de ansiedade.
Tanto que trabalha em pé o dia todo, mesmo quando aten-
de virtualmente seus pacientes. Os conhecidos sempre o
acharam “esquisito”, mas por ser superdotado. De fato, ele
tem QI comprovadamente mais alto do que a maioria da
população. “Conseguia esconder minhas dificuldades gra-
ças à minha capacidade cognitiva”, diz. “Só que isso invisi-
bilizava minhas dificuldades e o diagnóstico.” Avesso às
mistificações, o psiquiatra faz questão de sublinhar que
mesmo sintomas sutis do autismo tendem a gerar proble-
mas ao longo do tempo. Isso porque, ainda que disponham
de altas habilidades, os autistas podem conviver com uma
série de dificuldades no cotidiano. Daí a necessidade de
um bom acompanhamento e suporte especializado.

8 | 11
INÊS249

ARQUIVO PESSOAL

LIVRE DE AMARRAS
O psiquiatra Alexandre Valverde, de São Paulo,
suspeitou que podia fazer parte do espectro autista após
os meses de isolamento na pandemia de covid-19.
O diagnóstico foi confirmado por um especialista, e, desde
então, o médico readaptou a rotina e dá voz ao assunto em
um programa de podcast e nas onipresentes redes sociais.

As limitações — motoras, psíquicas ou sociais — são


justamente o que baliza os níveis do espectro. Quando o
indivíduo tem independência para tocar a vida, recebe o
diagnóstico de TEA leve, ou grau 1 — caso de Sabatella e
outros artistas e ativistas da causa. Mas, quando é preciso
contar com cuidadores e terapeutas no dia a dia, o autis-
mo perambula entre os níveis 2 e 3. Existem inúmeros de-

9 | 11
INÊS249

PISTAS CLÍNICAS
Alguns sintomas ajudam os médicos
a reconhecer crianças com autismo

O bebê não estabelece contato visual


com a mãe na amamentação

Não olha quando é chamado pelo nome


ou quando alguém compartilha um interesse
e aponta para algo

Não gosta do toque. Prefere ficar


sozinho no berço ou quarto

A criança tem seletividade alimentar


e problemas com texturas

Faz gestos repetitivos, com a cabeça


ou o tronco, e balança as mãos

Não fala ou, quando aprende a falar,


repete frases, sem se comunicar

Mudanças de rotina provocam irritação,


mesmo em jovens adultos

10 | 11
INÊS249

safios que cercam a detecção do quadro. Os pais nem


sempre captam sinais de atipicidade. Tampouco existem
exames de sangue ou imagem para bater o martelo. O
diagnóstico é eminentemente clínico, levando em consi-
deração uma soma de comportamentos desde a infância
(veja exemplos no quadro). Ainda assim, como eviden-
ciam relatos nas redes sociais, muitas pessoas vivem anos
sem saber que estão dentro do espectro.
Quanto antes se abre a caixa do autismo, contudo, me-
lhor. “Mesmo quando se encontra apenas um sintoma,
devemos tratar o paciente precocemente para que não
haja atraso no seu desenvolvimento”, afirma Polanczyk.
Foi o caso do autor de livros sobre o universo autista Fer-
nando Murilo Bonato, de 16 anos, que recebe ajuda espe-
cializada desde os 2. “O neurologista disse para estimu-
larmos o que podíamos”, diz a mãe e professora Karine
Bonato. Ainda que tenha começado a andar de bicicleta
sem rodinhas aos 3 anos e conte com uma boa autono-
mia, o garoto só começou a falar aos 12, depois que a mãe
passou a acompanhá-lo nos estudos em casa durante a
pandemia. Como ele não consegue escrever, dita para ela
os textos das lições e das obras que passou a publicar.
“Estou conhecendo meu filho, finalmente. E ele está se
realizando com essa nova via de expressão”, diz Karine.
Vivam as diferenças. ƒ

11 | 11
INÊS249

GERAL EDUCAÇÃO

O DIPLOMA
MORA AO LADO
A duríssima disputa por uma vaga em faculdades de
medicina no Brasil está levando uma crescente
turma a buscar alternativas em países vizinhos,
como a Argentina PAULA FREITAS

CIRCUITO PORTENHO Universidade de Buenos Aires:


ensino bem avaliado e portas abertas, sem vestibular

UBA

1|6
INÊS249

PASSAR para uma faculdade de medicina virou um daque-


les torturantes processos para estudantes brasileiros que,
quase sempre, tentam uma, duas, três vezes e não conse-
guem vencer a dura batalha por um lugar ao sol neste que é
o curso mais disputado no país. Em instituições públicas,
em média 66 candidatos duelam por uma vaga, concorrên-
cia que alcança extraordinários quase 300 aspirantes guer-
reando por uma única carteira na Universidade Estadual de
Campinas, que registra a maior concorrência nacional. A
briga dá uma atenuada no circuito das particulares, mas aí
são as cifras que espantam — de 10 000 reais mensais para
cima. Em meio aos obstáculos, uma crescente leva de jo-
vens vem encontrando alternativas menos onerosas e de
boa qualidade em nações vizinhas, como o Paraguai e,
mais ainda, a Argentina, onde o afluxo de alunos de nacio-
nalidade brasileira multiplicou-se por cinco desde 2017,
chegando a um contingente de 20 000, segundo recente le-
vantamento do governo. “A gente ouve português por todo
o campus”, diz a sergipana Renata Mendonça, 24 anos, que
estuda na Universidade de Buenos Aires (UBA) e esclarece:
“Na sala de aula, a regra é só espanhol”.
O nível do ensino é um atrativo, já que o curso ofereci-
do em algumas das universidades fora, sobretudo nas ar-
gentinas, se situa à frente, no ranking das melhores da
América Latina, do que é ofertado por ótimas brasileiras.
É o caso da UBA e da Nacional de La Plata, ambas públi-
cas, em colocações superiores às da Universidade de Bra-

2|6
INÊS249

ARQUIVO PESSOAL

O ESPORTE UNE Nathalia (à dir.) com colegas brasileiros:


à frente de torneios

sília e da Federal de São Paulo, por exemplo. Não existe


ali, nem tampouco no sistema paraguaio, nada como ves-
tibular ou o Enem — as vagas são liberadas conforme a
demanda, bastando apresentar a documentação e se sub-
meter a uma prova de espanhol em que se exige conheci-
mento intermediário. A migração é facilitada pelo acordo
do Mercosul, que prevê, sem exagerada burocracia, resi-
dência temporária de até dois anos (depois, ela precisa ser
convertida em permanente) — uma trilha que o presiden-
te Javier Milei avisou que pretende dificultar, tributando

3|6
INÊS249

os estrangeiros, mas, por ora, ficou no discurso. “A procu-


ra segue em escalada, é vantajoso vir para cá”, afirma
Monique Lemos, que fez do fenômeno um negócio: é dona
de uma assessoria que justamente auxilia brasileiros a de-
senrolar a papelada e se instalar no país.
Avistam-se as digitais da turma verde e amarela em vá-
rios setores do dia a dia, como a moda (nunca tantos pés
calçaram Havaianas na cena universitária portenha) e o
menu das lanchonetes, nos quais empanadas cedem espa-
ço a campeões de venda como coxinha, pão de queijo, açaí
e brigadeiro. O caldo de cultura, que inclui festas movidas
a funk e regadas a chope, também agita o ensino superior
dos hermanos, menos habituados a eventos tão informais,
assim como as associações que se reúnem em torno de es-
portes, as “atléticas”, com numerosa adesão dos locais.
Compartilhar o gosto por futebol ajuda. “São formas de
matar a saudade e sentir um pouco do Brasil na Argenti-
na”, diz a presidente de um desses grupos esportivos, Na-
thalia Lopes, 27 anos, que deixou Brasília´para estudar na
Universidade Barceló, outra de Buenos Aires.
Entre os gastos com a universidade (no caso das parti-
culares) e os custos de viver longe de casa, a conta com-
pensa: a estimativa dos que moram na capital argentina é
de uns 3 500 reais por mês, enquanto na rota paraguaia
sai por volta de 2 500 reais. “Os brasileiros já represen-
tam inacreditáveis 90% dos alunos de medicina por
aqui”, relatou a VEJA Eduardo Franco, diretor da Univer-

4|6
INÊS249

ARQUIVO PESSOAL
OLHO NO CANUDO Itallo Lemos, de São Paulo:
o sacrifício envolvido compensa

sidade do Pacífico (UP), que tem o selo de qualidade da


Agência Nacional de Avaliação do Ensino Superior do
Paraguai. Bem na fronteira com o Mato Grosso do Sul,
ainda fica distante do lar paulistano de Itallo Lemos, 24
anos, que acabou chegando lá por indicação de dois pri-
mos, formados naquele campus. “É um sacrifício, sim,
mas vale muito a pena ter esse diploma”, pondera Itallo.
Embora não seja comum, a invasão brasileira faz, vez ou
outra, aflorar manifestações de xenofobia. “Soube de alu-
nos que saíram chorando da sala após o professor falar

5|6
INÊS249

que a pessoa não sabia nem espanhol, imagina medicina”,


lamenta a carioca Maria Clara Viegas, 22 anos, da Uni-
versidade Nacional de La Plata. A maioria, porém, se sen-
te à vontade. “Fui bem acolhida, percebo um interesse
deles em conhecer nossa cultura”, diz Renata Mendonça,
da UBA, que havia tentado três vezes o vestibular no Bra-
sil antes de decidir emigrar.
Os passos que se seguem à formatura são, em geral,
envoltos em dúvida — permanecer ou não em solo es-
trangeiro é o grande ponto de interrogação que paira so-
bre essa turma. Logo de cara, os que regressam precisam
vencer uma barreira, o Exame Nacional de Revalidação
de Diplomas Médicos (Revalida), um teste conhecido pe-
la elevada complexidade, pré-requisito para exercer a
profissão no Brasil. Embora os currículos sejam pareci-
dos, muita gente não passa de primeira. “A prova é essen-
cial para garantir que apenas pessoas bem formadas che-
guem ao mercado”, afirma Julio Braga, do Conselho Fe-
deral de Medicina. Após se graduar na Bolívia, o primei-
ro dos países da América do Sul a ingressar no mapa de
brasileiros em busca do canudo, na década de 1980, Ales-
sandra Lima, 28 anos, mergulhou nos livros para enfren-
tar o Revalida. “Não foi fácil, mas hoje sou médica com
orgulho, atuando na minha cidade”, diz ela, que vive em
Manaus. Enquanto a ampliação de vagas por aqui se dá
vagarosamente, é saltando fronteiras que uma parcela
dos brasileiros vira doutor. ƒ

6|6
INÊS249

GERAL HISTÓRIA

UM GÊNIO
NOS TRÓPICOS
Em 1925, Albert Einstein visitou Argentina,
Uruguai e Brasil. Os registros daquela jornada
revelam o homem comum diante do inalcançável
criador de um universo ALESSANDRO GIANNINI

AGENDA CHEIA Diante do meteoro Bendegó, no Museu


Nacional do Rio: comentários ambíguos sobre miscigenação

DOMÍNIO PÚBLICO

1|6
INÊS249

É JORNADA que merecia, de fato, mais zelo. No primeiro


semestre de 1925, Albert Einstein (1879-1955), já premia-
do com o Nobel pelos estudos sobre física quântica e cele-
brado pela teoria da relatividade, fez uma viagem de três
meses na América do Sul. De 5 de março a 11 de maio, vi-
sitou a Argentina, o Uruguai e o Brasil para divulgar seus
trabalhos científicos e encontrar as comunidades judai-
cas. Sua única incursão pelo continente foi registrada em
um diário, hábito adquirido em périplos anteriores pelos
Estados Unidos, Extremo Oriente, Palestina e Espanha.
Ele anotou tudo em um caderno com 72 páginas pauta-
das, em entradas sucintas, pontuadas por comentários so-
bre os lugares que visitou, os eventos aos quais compare-
ceu e as pessoas que lhe apresentaram.
Todo esse material foi reunido no livro Os Diários de
Viagem de Albert Einstein (Editora Record), previsto para
chegar às livrarias na segunda semana de maio. O histo-
riador Ze’ev Rosenkranz, editor no Einstein Papers Pro-
ject, entidade que reúne os arquivos do cientista, foi o res-
ponsável por organizar a papelada. A fim de obter um re-
trato mais abrangente das aventuras no sul, Rosenkranz
cotejou as anotações com artigos de jornais, documentos
pessoais, discursos e relatórios diplomáticos. Na edição, o
arquivista também incluiu cartas e cartões-postais fami-
liares. É um tesouro.
Há muita especulação em torno da motivação de Eins-
tein para a travessia transoceânica. Alguns historiadores

2|6
INÊS249

batem na tecla evidente: atalho pa-


ra a disseminação das teorias que o
faziam famoso e para o intercâm-
bio científico. Pode ter havido, con-
tudo, outra razão, comezinha e hu-
mana, demasiadamente humana,
para a fuga do refúgio em Berlim:
afastar-se de uma relação extra-
conjugal com sua secretária à épo-
ca, Betty Neumann, muitos anos
mais jovem do que ele, um tímido OS DIÁRIOS DE
por excelência. “A viagem pode ter VIAGEM DE
fornecido uma maneira convenien- ALBERT
te de encerrar o relacionamento e EINSTEIN.
permitir que ele e a mulher, Elsa, Organização de
passassem algum tempo separados Ze’ev Rosenkranz;
depois de um período que deve ter tradução de
sido desafiador para ambos”, anota Alessandra
Rosenkranz. Bonrruquer (Record;
O Brasil representava capítulo 288 páginas;
fundamental da carreira de Eins- 79,90 reais e 49,90
tein, um ponto distante e sentimen- reais em e-book)
tal. Foi em Sobral, no interior do
Ceará, em 1919, a partir de um eclipse solar, que uma
equipe de astrônomos britânicos confirmou a mãe de to-
das as ideias, a da relatividade geral — um outro grupo de
investigação fora deslocado para a Ilha do Príncipe, na

3|6
INÊS249

REPRODUÇÃO

OLHAR FORASTEIRO
Cartão-postal da vista do bairro
de Botafogo, no Rio de Janeiro,
enviado por Einstein à mulher
e à enteada em carta de
5 de maio de 1925: “Guardem o
cartão-postal, porque é bonitinho”

4|6
INÊS249

África. “A questão que minha mente formulou foi respon-


dida pelo radiante céu do Brasil”, disse ao ser informado
dos bons resultados das experiências.
Foi nesse tom de júbilo, portanto, que Einstein desem-
barcou no Rio de Janeiro. De cara, espantou-se com a na-
tureza, como tantos europeus. No diário, anotou em 4 de
maio, com letra cuidadosa: “Chegada ao Rio ao pôr do sol,
com clima esplêndido. Em primeiro plano, ilhas de grani-
to de formato fantástico. A umidade produz um efeito
misterioso”. Foi levado ao Museu Nacional, diante do me-
teorito Bendegó, encontrado em 1784 no sertão da Bahia.
Celebrado como se fosse um chefe de Estado, era um gê-
nio a desfilar incômodo com os trópicos.
Embora mesmerizado pelo cenário natural da cidade
emoldurada pelo Pão de Açúcar (o Cristo Redentor ainda
não existia) e pela “miscelânea de povos nas ruas”, que
classificou como “deliciosa”, Einstein logo tratou de es-
corregar para reflexões um tanto absurdas, elitistas e ra-
cistas. Era o criador de um universo, improvável e im-
ponderável, a tratar do pequeno mundo aqui embaixo,
com todas as suas mazelas e incorreções. “Aqui sou uma
espécie de elefante branco para eles, e eles são macacos
para mim”, rabiscou. Se os argentinos são “indizivelmen-
te estúpidos”, atribuiu uma suposta indolência dos brasi-
leiros ao clima. “Todos me dão a impressão de terem sido
amolecidos pelos trópicos”, concluiu, como quem punha
a língua de fora.

5|6
INÊS249

OBSERVATÓRIO NACIONAL/DIVULGAÇÃO

1919 Astrônomos britânicos em Sobral:


o eclipse validou a relatividade geral

Não é o caso de absolvê-lo das estultices, nem mesmo


de justificá-las porque era ruim assim naquele tempo. Elas
assustam, lidas hoje, ao revelar o sujeito de carne e osso
por trás do totem inigualável. Mas há, sim, uma pequena
ponderação: as anotações não nasceram para exposição
pública. Serviam a interesses pessoais, de quem descreve
o que vê, e como ponte para a mulher e a enteada, Mar-
got, na Alemanha. “Temos certeza de que não dedicou o
diário à posteridade ou para publicação”, afirma Ro-
senkranz. O fascinante, na cuidadosa compilação, é poder
entrar na mente de quem nos ajudou a pensar de onde vie-
mos e, quiçá, para onde vamos. ƒ

6|6
INÊS249

GERAL TECNOLOGIA

OLHO VIVO
NAS CÂMERAS
Sistemas de reconhecimento facial ganham espaço
nos estádios, empresas e ruas ao promover a
segurança. Uma iniciativa bem-vinda, mas que
exige responsabilidade MARÍLIA MONITCHELE

ÉTICA O recurso de biometria de rosto da empresa SenseTime,


de Hong Kong: regido por normas cada vez mais severas

GILLES SABRIE/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

1|6
INÊS249

POUCAS DÉCADAS atrás, a ideia de abrir portas, desblo-


quear aparelhos e acessar eventos por meio da leitura das
características do rosto pareceria coisa de ficção científica.
Soava como quimera inalcançável. Hoje, porém, a tecnolo-
gia de reconhecimento facial avança com vigor por diversos
setores da vida cotidiana, de forma inexorável e muito bem-
vinda. As câmeras monitoram a circulação de pessoas em
prédios, ruas e estádios de futebol.
Nos campos esportivos, é iniciativa que evita o uso irre-
gular de cartões, emprestados a amigos e familiares ou
corrompidos pela sanha dos cambistas. Só entra quem
mostra a cara. “É atalho para que os torcedores tenham
uma experiência mais rápida e conveniente”, diz Tironi
Paz, executivo-chefe da Imply, empresa de controle de
acessos em palcos como a Arena MRV, do Atlético-MG; o
Beira-Rio, do Internacional de Porto Alegre; a Ligga Are-
na, do Athletico-PR; o Estádio São Januário, do Vasco da
Gama; e a Arena Pantanal, em Cuiabá.
Um outro efeito paralelo — e positivo — é a identificação
de criminosos que tentam atravessar as catracas como se
não tivessem contas a prestar para a Justiça. Uma parceria
da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo com o Al-
lianz Parque, do Palmeiras, resultou na prisão de 28 suspei-
tos que tentaram assistir a quatro partidas do time em 2024.
Um dos detidos era procurado por tráfico internacional de
drogas — estava foragido desde março de 2020. Relembre-
se que a Lei Geral do Esporte, de 2023, determina a imple-

2|6
INÊS249

FILIPE MACIEL/SPORT CLUB INTERNACIONAL

ACESSO Catraca eletrônica do Beira-Rio,


estádio do Inter: tranquilidade

mentação do monitoramento biométrico em recintos espor-


tivos com capacidade para mais de 20 000 pessoas em até
dois anos. “Ao tornar o estádio mais seguro, teremos mais
famílias, maior média de público e, consequentemente,
maior consumo e faturamento”, diz Victor Grunberg, vice
-presidente do Internacional.
Deve-se celebrar a iniciativa. Convém, contudo, não es-
quecer dos efeitos indesejados que podem provocar — e da
forçosa discussão ética alimentada pelo inteligente recurso.
Hoje, no Brasil, cerca de 72 milhões de pessoas estão poten-

3|6
INÊS249

cialmente sob vigilância de câmeras de reconhecimento fa-


cial na segurança pública (veja no quadro ao lado). É ideia
que faz as pessoas andarem com mais tranquilidade, embo-
ra não seja imune a erros. O personal trainer João Antônio
Trindade foi detido no intervalo do jogo entre Confiança e
Sergipe na Arena Batistão, em Aracaju. O torcedor foi con-
fundido com um criminoso depois de passar pelo compul-
sório reconhecimento eletrônico. Seria liberado em seguida.
A extensão da tecnologia é inegável. Até 2028, a expec-
tativa é de um crescimento acelerado, atingindo cifras de
12,6 bilhões de dólares em investimentos, em todo o mun-
do (pelo menos 48 países a usam maciçamente). É natural,
portanto, dada a novidade, que surgissem dores do parto.
A principal crítica cutuca um certo “preconceito algorítmi-
co”. A taxa de identificação bem-sucedida é imensa entre
homens brancos, segundo os estudos. Contudo, o patamar
de erro chega a 35% ao trabalhar com as faces de mulheres
negras, em distorção inaceitável. A disparidade cria um
ambiente propício para discriminação. Um levantamento
feito pela Rede de Observatórios da Segurança analisou as
prisões feitas a partir da biometria facial e apontou que
90% dos reconhecimentos resultantes em detenção no Bra-
sil foram de pessoas negras. “Temos visto movimentos con-
trários à adoção e até mesmo banimentos de uso no hemis-
fério norte, daí o crescimento do negócio em outras re-
giões”, diz Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos
em Segurança e Cidadania (CESeC).

4|6
INÊS249

SOB VIGILÂNCIA
Sistemas de reconhecimento facial ganham
espaço, mas podem oferecer riscos

72 MILHÕES
DE BRASILEIROS MONITORADOS
POR CÂMERAS

209 PROJETOS
DE RECONHECIMENTO FACIAL NO BRASIL

728 MILHÕES
DE REAIS INVESTIDOS PELO ESTADO DA BAHIA,
LÍDER DE USO DA TECNOLOGIA NO PAÍS

90%
DOS PRESOS POR RECONHECIMENTO
FACIAL EM 2018 ERAM NEGROS
Fontes: O Panóptico, Rede de
Observatórios de Segurança

5|6
INÊS249

Países como Bélgica e Luxemburgo não autorizam o uso


de reconhecimento facial para o monitoramento de seus ci-
dadãos. Nos Estados Unidos, cidades como São Francisco e
Boston também baniram instalações desse tipo. Na China,
país em que a ferramenta chegou a ser usada para controle
da população durante o período mais fechado da pandemia
de covid-19, com sucessivas denúncias de invasão de priva-
cidade e falta de consentimento, brotam leis de controle, em
passo necessário — é cuidado que não impede o extraordi-
nário crescimento de uma empresa como a SenseTime, de
Hong Kong, a campeã do mundo no negócio, que foi barra-
da nos Estados Unidos por suposta violação de direitos hu-
manos. O tema, aliás, será ruidoso durante a Olimpíada de
Paris, com a inteligência artificial atrelada a imagens, de
modo a evitar problemas de segurança. Não há dúvida: a vi-
gilância, dentro de normas morais, aprovadas pela socieda-
de, é crucial. Trata-se de avançar com cautela, ao equilibrar
inovação com responsabilidade. ƒ

6|6
INÊS249

GERAL E M P A R I S
ALEX FERRO
2 0 2 4

APONTAR, ATIRAR, MEDALHA! Marcus em Maricá: doze


horas por dia se preparando com a cabeça fixa em Paris

O ARQUEIRO
VERDE E AMARELO
Número 1 do mundo no tiro com arco, Marcus D’Almeida
coloca no mapa do país o esporte que tão poucos
brasileiros conhecem e vive hoje pelo ouro olímpico
MONICA WEINBERG

1|6
INÊS249

“Ninguém chega
a número 1
do mundo
sem gostar
de pressão.
Eu procurei isso
e adoro ser a
atração do show”
O ARCO E FLECHA integra o rol dos grandes inventos
da humanidade por seu papel essencial para a caça na ba-
talha pré-histórica pela sobrevivência e, mais tarde, como
uma valiosa arma nas guerras. Importantes civilizações
acabaram por fazer do artefato um esporte, especialmen-
te apreciado pelos faraós egípcios e que, nas mãos da no-
breza chinesa, lá pelo século XI a.C., ganharia seu caráter
competitivo. Várias voltas do mundo depois, eis que a mo-
dalidade, hoje chamada de tiro com arco e alçada à cate-
goria olímpica, desembarcou com tudo num ponto impro-
vável do planeta — Maricá, cidade a 60 quilômetros do

2|6
INÊS249

Rio de Janeiro, mais conhecida por se situar na profícua


trilha do petróleo fluminense. É lá que o carioca Marcus
Vinícius D’Almeida, de 26 anos, o atual número 1 no ran-
king mundial, mora e obsessivamente treina com a ideia
fixa de conquistar uma medalha de ouro na Olimpíada de
Paris, em julho. “Meu esporte é solitário, é você com seu
arco, um exercício constante de equilíbrio físico e mental
mirando o pódio”, diz Marcus, a quem todos, apesar de
seu 1,83 metro, se referem como Marquinhos.
No dia em que recebeu a reportagem de VEJA, ele se-
guia à risca um roteiro que começa às 8 e só termina às 20
horas. Tocava na caixa de som um trap, subgênero do rap,
o que o ajuda no minucioso gesto de posicionar a flecha,
congelar o corpo em busca da precisão e disparar em dire-
ção ao alvo 70 metros à frente. O ato, que seria repetido
300 vezes, parece quase como um balé, envolto em leveza,
mas apenas o arco pesa 4,5 quilos e, no instante do tiro, a
carga sobre o corpo sobe para 25. “É um esporte que alia a
força bruta ao movimento fino”, explica o biomecânico
Henrique Lelis, do Comitê Olímpico do Brasil (COB), que
conhece Marcus e ressalta sua capacidade de não se deixar
abater quando erra. Foi com frieza e excessiva autocrítica
que ele deu o saldo daquela manhã de treinos: de 100 tiros
lançados à velocidade média de 228 quilômetros por hora,
seis não atingiram a pontuação máxima. O que seria o ra-
zoável? “Uns dois tiros fora do alvo”, ele estimou, arrema-
tando bem ao seu estilo: “Mesmo assim, é intolerável”.

3|6
INÊS249

Em Paris, a competição será na esplanada em frente ao


Hôtel des Invalides, com seu luminoso domo dourado, on-
de está sepultado Napoleão Bonaparte. Marcus tem curio-
sidade de entrar lá (embora seu coração pulse mais pela
Torre Eiffel), porém, agora nem pensar. “Não dá para tirar
a cabeça das flechas, a visita vai ficar para a próxima”, es-
clarece ele, que já experimentou o lugar em 2023, quando
levou um bronze em uma etapa da Copa do Mundo. Gosta
da área, verde e rodeada de belas construções que funcio-
nam como anteparo para o vento — um fator imprevisível
com o qual nenhum atleta do arco gosta de lidar.
Em sua primeira Olimpíada, a do Rio, em 2016, o palco
do duelo era o Sambódromo, e na outra, em Tóquio, um
campo demasiado aberto. Encarou os Jogos cariocas com
18 anos e perdeu na largada. “Ele ficou obstinado em me-
lhorar e ganhar uma medalha no Japão”, lembra sua noi-
va, a médica veterinária Bianca Rodrigues, 28 anos, tam-
bém praticante do tiro com arco. Mas Marcus seria elimi-
nado ali nas oitavas de final, resultado que contribuiu pa-
ra ganhar estofo e mais controle sobre a mente. “A derrota
sem uma análise é só uma derrota. Com o tempo, eu
aprendi a extrair coisas dela”, conta.
Ele tinha 12 anos e já era afeito às atividades físicas —
natação, remo, capoeira —, quando a mãe, a contadora
Denise Carvalho, 60 anos, soube de um programa para
crianças e adolescentes no centro de treinamento da Con-
federação Brasileira de Tiro com Arco, recém-instalado

4|6
INÊS249

na cidade. Marcus resolveu tentar, mesmo que isso des-


pertasse comentários como os que ouviu Denise: “Diziam
que eu estava louca e me perguntavam: ‘Seu filho vai ser
índio ou o quê?’ ”. Pois aos 14 o menino ingressou como o
caçula da seleção brasileira e, aos poucos, o esporte, ainda
bem pouco conhecido no país, foi se fazendo mais disse-
minado em Maricá, onde Marcus e a mãe fundaram até
um clube, o Dispara Brasil. “É tudo muito novo. Estamos
aqui porque, quando não existia nem centro de treinamen-
to no Brasil, a prefeitura local nos ofereceu terreno. A pro-
fissionalização mesmo tem uns três anos”, relata o presi-
dente da confederação, João Cruz. São 2 000 atletas fede-
rados, mais que o dobro de 2021, mas nada que se compa-
re à multidão de adeptos da Coreia do Sul, hoje a nação
com resultados mais consistentes, onde o tiro com arco é
tão cultivado quanto o futebol por aqui.
Na Olimpíada, a modalidade terá cinco torneios — pa-
ra os individuais masculino e feminino (com o nome ain-
da em disputa) e o da dupla mista, os brasileiros já estão
garantidos. Falta ver se vão conseguir emplacar as vagas
por equipe. “As pessoas começaram a falar dos Jogos só
agora, mas, para mim, é todo dia, é a minha vida”, enfati-
za Marcus, que sente a alta pressão e diz não se incomo-
dar. “Ninguém chega a número 1 do mundo sem gostar de
pressão. Eu procurei isso e adoro ser a atração do show”,
admite, sem rodeios e demonstrando destreza ao posar
para a foto.

5|6
INÊS249

Em sua casa de três quartos, onde mora com Bianca,


um é reservado para alojar uma coleção de mais de 200
medalhas e vinte troféus, tratados como joias. Avistam-se
ainda referências a Paris-2024 em garrafas, canecas e um
ímã de geladeira que o transportam à Cidade-Luz. Ele
também tenta relaxar a mente (“faz parte”), jogando Fifa
na TV e estudando teoria musical, um hobby. Meditação
entra no cardápio dos preparativos. “O barulho depende
do silêncio”, lê-se em uma de suas cinco tatuagens, essa
no braço esquerdo. “Para ter barulho, plateia, aplauso, vo-
cê precisa descobrir esse silêncio interior antes”, filosofa,
e, sem tempo a perder, retorna a sua cronometrada rotina
rumo a Paris. ƒ

6|6
INÊS249

GERAL AMBIENTE

O PRÍNCIPE DA SELVA
Documentário do Disney+ celebra a beleza, o mistério
e a resiliência dos tigres na Índia, cuja população
mais do que dobrou nos últimos vinte anos
ALESSANDRO GIANNINI

QUEM RUGE Shankar, o macho protagonista do filme:


furtivo e à espreita da próxima presa

MARTYN COLBECK/DISNEY+

1|6
INÊS249

EM O LIVRO DA SELVA, o escritor britânico Rudyard


Kipling (1865-1936) conta a história de Mogli, um meni-
no criado por lobos que busca conciliar suas duas nature-
zas: a humana e a animal. No clássico da literatura, de-
pois levado ao cinema, a criança aprende da mãe loba os
ensinamentos da floresta, divididos entre a necessidade
de caçar para sobreviver e também para não ser caçado.
Há, naquele ambiente, algum equilíbrio improvável, e Ki-
pling tratou de não exagerar nas tintas. Com uma exce-
ção: o tigre Shere Khan, representação do mal, da violên-
cia e da crueldade. A má fama do bicho é indevida. Ele só
tem cara, jeito e rugido ameaçadores. O famigerado vilão
provavelmente morreria de fome, já que sua marca — a
pata defeituosa — não lhe permitiria ir atrás das presas e
se tornaria alvo fácil dos verdadeiros e grandes predado-
res do planeta, os humanos.
O lindo e enigmático felino é personagem central do
ótimo documentário Tigre, que acaba de estrear no Dis-
ney+. “É um animal maravilhoso”, diz Vanessa Berlo-
witz, codiretora da produção, ao lado de Mark Linfield.
“No passado, com as câmeras antigas, montávamos um
tripé na traseira de um jipe, dávamos uma olhada no bi-
cho e depois ele desaparecia. As novas tecnologias nos
permitem decifrar seus hábitos.”
É passeio necessário em torno do gatão e de mudan-
ças ambientais relevantes. Classificado como “em peri-
go” na Lista Vermelha da União Internacional para a

2|6
INÊS249

CENTRAL PRESS/AFP

NUNCA MAIS A rainha Elizabeth diante de um


animal abatido: cenas inaceitáveis hoje em dia

Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais, o ma-


mífero já esteve em situação mais confortável. Era encon-
trado em toda a Ásia — Central, Oriental e Meridional.
Porém, no último século, perdeu 93% de sua área de dis-
tribuição natural e agora só sobrevive de forma dispersa
em treze países, da Índia ao Sudeste Asiático, em Suma-
tra, na China e na extremidade leste da Rússia. Mais de
75% da população mundial dos felinos se concentra nas

3|6
INÊS249

selvas indianas que inspiraram Kipling — e nelas, eis aí


uma boa notícia, a espécie aumentou de forma meteórica
nas últimas duas décadas. De acordo com o Instituto da
Vida Selvagem da Índia, passou de 1 411 espécimes, em
2006, para 3 682, em 2022.
Não é matemática simples, a esmiuçada em Tigre. A
recente e localizada explosão populacional na Índia de-
ve-se a um trabalho de preservação que remonta aos
anos 1970, quando o governo local promulgou a Lei de
Proteção à Vida Selvagem e demarcou áreas que facilita-
ram a conservação dos animais e das florestas tropicais.
Com exceção de um período entre os anos 1980 e 1990,
quando o mercado paralelo de partes do bicho e de sua
pele cresceu de forma exponencial, o investimento na
manutenção da vida dos grandes gatos sempre foi priori-
dade, e exige atenção permanente. Há casos de inciden-
tes isolados em áreas urbanas, que assustam as popula-
ções. Daí a relevância de campanhas esclarecedoras, de
modo a apartar o medo.
O tigre é o animal selvagem mais popular em 44 paí-
ses do mundo, de acordo com dados de pesquisa do Goo-
gle — no Brasil, o campeão é a baleia. Mascote esportivo,
garoto propaganda de cereal e personagem de desenho
animado, além de figura de prosa e verso intrigante, fas-
cina tanto pela beleza quanto pela aura elusiva e o coti-
diano solitário. Por isso, é tão difícil registrá-lo na natu-
reza, seja o macho que vaga sozinho em busca de alimen-

4|6
INÊS249

LISTRADOS E CAMUFLADOS
Ferozes e intimidadores, os grandes gatos não
estão mais ameaçados de extinção

2 A 4 FILHOTES A CADA
DOIS ANOS É A NINHADA QUE
UMA FÊMEA PODE TER

14 A 20 HORAS POR
DIA É O TEMPO QUE PODEM
PASSAR DORMINDO

50 A 65 QUILÔMETROS
POR HORA É A VELOCIDADE
QUE ATINGEM

14 A 16 ANOS É O
TEMPO MÉDIO DE VIDA,
MAS CHEGAM ATÉ 20 ANOS

2,5 ATÉ 3,5 METROS DE


COMPRIMENTO É O TAMANHO
MÉDIO; PESAM DE 135 A
225 QUILOS
Fonte: Disney/Instituto da Vida Selvagem da Índia

5|6
INÊS249

YASHPAL RATHORE/DISNEY+

MÃE FELINA Ambar e dois de seus quatro filhotes: mimos e


carinhos só até os bebês terem idade para se virar

to, seja a fêmea que cria seus filhotes até considerá-los


aptos a se virarem sozinhos.
Caçá-los, como já fez a rainha Elizabeth nos anos
1960, com pompa e circunstância, em registros celebra-
dos com formosas fotografias, não é mais uma opção. Até
porque animais como Ambar e seus quatro filhotes ou o
enorme Shankar, protagonistas de Tigre, são essenciais
para a manutenção do equilíbrio ambiental e da diversi-
dade das florestas que habitam. O melhor a fazer é tratar
de entendê-los e compreender que a turma de Shere Khan
têm mais medo de nós, humanos, do que nós deles. ƒ

6|6
INÊS249

GERAL MODA
VICTORIA BECKHAM BEAUTY/GETTY IMAGES

EMPREENDEDORA Reação ao sucesso: “Me sinto


abençoada, e não apenas como mulher”

MÚSICA PARA
OS TECIDOS
Victoria Beckham, ex-Spice Girls, chega aos 50 anos
ainda mais reconhecida por seu trabalho como
estilista, dona de uma marca respeitada e cobiçada
SIMONE BLANES

1|6
INÊS249

EM LONDRES, uma festança regada a tequila e repleta da


nata da nata no exclusivo clube Oswald’s marcou o 50º ani-
versário de Victoria Beckham. Entre os convidados, estrelas
como Tom Cruise, Eva Longoria e Salma Hayek, além, é
claro, do marido e ex-jogador de futebol, David Beckham, e
dos quatro filhos do casal, Brooklyn, Romeo, Cruz e Har-
per. Quem mais fez barulho, porém, foram as ex-compa-
nheiras de carreira musical: as Spice Girls Geri Halliwell,
Melanie Chisholm (Mel C), Emma Bunton e Melanie Brown
(Mel B), parceiras no fenômeno pop dos anos 1990. Quando
um vídeo da reunião, com uma performance improvisada
do hit Stop, foi postado na internet, instantaneamente virou
trend topic. Era a celebração de uma figura interessantíssi-
ma, ícone de um tempo, mas sobretudo o aval de uma trans-
formação: Victoria virou estilista, e das mais cobiçadas.
Pode-se dizer que, ao sair do mundo da música, a ex-can-
tora — que sempre dividiu os holofotes com as colegas de
grupo — fez história também no universo fashion. E não à
toa: a inglesa tem talento e já é internacionalmente reconhe-
cida pelos desenhos de suas roupas, com direito a desfiles
reverenciados em Paris, na semana da moda mais prestigia-
da do planeta. “Me sinto abençoada por ter alcançado esse
marco não apenas como mulher, mas também por ver quão
longe minha marca de moda chegou”, postou. Os números
da fama não a deixam mentir: enquanto as ex-Spice somam
entre 1 e 1,6 milhão de seguidores nas redes sociais cada, a
senhora Beckham tem mais de 33 milhões, e contando.

2|6
INÊS249

CHANDAN KHANNA/AFP

CASAL FASHION Com o marido, David Beckham:


parceria na vida e no estilo

Filha de uma cabeleireira e um engenheiro, ela teve uma


infância confortável na cidade de Harlow. Descendente do
pintor alemão Carl Heinrich Pfänder, antes interessou-se
mais pela arte da dança do que pelo pop rock. Sempre ele-
gante, foi logo apelidada de Posh Spice ao fazer sucesso
com a banda de meninas — posh é a gíria em inglês para
“elegante, requintada”. O bom gosto ao vestir-se a distin-
guia das outras integrantes do grupo, que apelavam para
roupas coloridas e espalhafatosas. Victoria apostava em
looks limpos, com cores neutras, silhuetas ajustadas e sal-

3|6
INÊS249

VINNIE ZUFFANTE/GETTY IMAGE

FENÔMENO POP Spice Girls: Victoria (à esq.) já era


a mais elegante do grupo

tos altíssimos. Era o prelúdio da grife que criaria mais tar-


de. “Ela sempre se destacou mais pelas roupas do que pela
música em si”, diz Brunno Almeida Maia, pesquisador de
moda da Universidade de São Paulo (USP).
As Spice Girls se separaram em 2000, e, como as ou-
tras, Victoria até tentou carreira solo, mas logo percebeu
que tinha outra vocação. Colaborou com marcas de luxo,
foi embaixadora da Dolce&Gabbana e desfilou para Ro-
berto Cavalli. Em seis anos, fundou uma linha de jeans e
escreveu um best-seller com dicas de etiqueta visual, com

4|6
INÊS249

NCP/STAR MAX/FILMMAGIC/GETTY IMAGES


PETER WHITE/GETTY IMAGES

WIREIMAGE/GETTY IMAGES

ELEGÂNCIA A grife nas ruas e passarelas: aplaudida


em Paris e vestindo Kate Winslet e Miranda Kerr

mais de 400 000 exemplares vendidos. A marca que leva


seu nome nasceu em 2008 e, desde o princípio, pautou-se
por trajes sofisticados, de alfaiataria, e traços minimalis-
tas. Não foi preciso muito esforço para virar objeto de de-
sejo de gente influente, como a editora de moda Anna
Wintour, da top model Miranda Kerr e de estrelas do cine-
ma, caso de Kate Winslet e Cameron Diaz.
Em 2011, a estilista expandiu a atuação com linhas se-
paradas de jeans, óculos e perfumes, sendo premiada co-
mo marca de design do ano no British Fashion Awards e

5|6
INÊS249

estreando na Semana de Moda de Nova York. Os aplausos


dos colegas e designers ecoaram ainda mais forte que os li-
kes das celebridades e fãs. Em 2017, ela recebeu a Ordem
do Império Britânico pelos serviços prestados à indústria
do estilo e, nos anos subsequentes, passou a desfilar suas
peças com barulho e ótimos negócios.
Victoria, tudo somado, é retrato de uma tendência: o
casamento entre estilo e música. Madonna, sempre ela,
navegou por essas águas, de mãos dadas com Jean Paul
Gaultier. A diva até tentou lançar uma marca, a Material
Girl, em parceria com a filha, Lourdes Maria — exemplo
seguido por gente como as cantoras Rihanna e Avril La-
vigne. Nenhuma delas vingou como Posh, hoje sinônimo
de elegância. “Faço moda há mais tempo do que canções”,
diz ela. Ainda bem. E sempre com discreta e firme pre-
sença. Vale, como retrato de quem ela é, ver e rever a ade-
siva cena do documentário Beckham, da Netflix, em que,
simplesmente sexy, põe a mão no ombro do marido e jun-
tos dançam Islands in the Stream, de Dolly Parton e
Kenny Rogers. Victoria é chique demais. ƒ

6|6
INÊS249

GERAL GASTRONOMIA

DIVERSIDADE A variedade
Koroneiki, da Grécia: público busca
maior conhecimento

COMO SE
FOSSE VINHO
Com maior diversidade de produtos nacionais e
importados, o mercado de azeite brasileiro começa a
ser tratado de modo profissional — e a preços
caríssimos ANDRÉ SOLLITTO
FOTOS ANNIE & JEAN-CLAUDE MALAUSA/BIOSPHOTO/AFP; E+/GETTY IMAGES

1|4
INÊS249

QUEM PERCORRE as prateleiras de azeites nos super-


mercados com um tantinho de desatenção pode imaginar
ter parado numa adega. As garrafas, com tamanhos e for-
matos diversos, indicam as variedades de azeitonas usadas
na produção, como a espanhola Arbequina, a grega Koro-
neiki ou a portuguesa Cordovil, além de uma vastidão de
safras. Os preços, ressalve-se, também são equivalentes
aos dos vinhos. Rótulos mais simples estão na casa dos 30
reais — as alternativas especiais, tanto as nacionais como
as importadas, passam com folga dos 100 reais. As mu-
danças climáticas que atingem as regiões produtoras de
olivas, de verão inclemente e seca exagerada, sobretudo na
Europa, jogaram para baixo a colheita, atalho para o enca-
recimento na ponta final, do consumidor.
Bem-vindo ao novíssimo mundo do azeite, que deixa a
infância e a adolescência para entrar na idade adulta. O
mercado do produto, que em 2022 bateu em 70 bilhões de
dólares, deve alcançar os 90,5 bilhões de dólares em
2030. A título de comparação: o faturamento global com
vinhos é o dobro. Trata-se, agora, de buscar conhecimen-
to e incrementar a harmonização com diferentes pratos.
Um dos bons exemplos desse caminho de valorização cui-
dadosa brota da região do Alentejo, em Portugal. Ali, o
grupo Esporão, de celebrada viticultura, começou a ofere-
cer azeites cobiçados pelo gosto brasileiro. O catálogo aos
poucos se amplia, como reflexo natural do interesse. Há
blends, como são chamadas as misturas de variedades, ou

2|4
INÊS249

os tipos monovarietais, elaborados com uma única azeito-


na, caso da Cobrançosa, que saiu de Trás-os-Montes para
vicejar no Alentejo. “Não trabalhamos com nenhuma
azeitona estrangeira, porque faz parte da nossa proposta e
da nossa identidade”, diz a azeitóloga Ana Carrilho, do
Esporão. “Queremos mostrar a diversidade que há em
Portugal.” Hoje, 75% da produção da reputada casa lusita-
na é exportada, boa parte dela ao Brasil.
A procura do que vem de fora, é natural, alimentou o
plantio pelas bandas de cá, com bons resultados. Recente-
mente, o rótulo Potenza Frutado, elaborado pela Fazenda
Serra dos Tapes, em Canguçu, no Rio Grande do Sul, foi es-
colhido o melhor azeite de oliva extravirgem pelo Guia
ESAO, elaborado pela Escola Superior do Azeite de Oliva,
na Espanha, referência mundial.
A láurea é reflexo da animação do setor. Modalidades
artesanais têm chamado a atenção dos especialistas e fo-
mentado o movimento de olivoturismo, como é conheci-
do o negócio de viagem relacionada ao azeite. O Rio
Grande do Sul é o maior produtor brasileiro. Na Serra da
Mantiqueira, entre Minas Gerais e São Paulo, há riqueza
indizível de escolhas. O Oliq, em São Bento do Sapucaí
(SP), tem um restaurante que oferece até menu degusta-
ção de azeites, alguns deles premiados em concursos. Em
Itanhandu (MG), a Fazenda Serra que Chora oferece hos-
pedagem em pousada para os visitantes ansiosos por per-
noitar próximos aos olivais.

3|4
INÊS249

Apesar do avanço, há ainda muito espaço para evolu-


ção — e convém lembrar que nos restaurantes o azeite é
oferecido tal qual uma commodity sem graça, como se fos-
se tudo a mesma coisa. É comum a apresentação do pre-
cioso líquido em embalagens de vidro, insossas, sem indi-
cação de origem. Nesse aspecto, a bem da verdade, a estra-
da é longa. Se há sommeliers para vinhos, é urgente tê-los
também para um elemento da gastronomia que não se re-
sume a mero molho para saladas. Com a palavra o chef
francês radicado em Mônaco, Alain Ducasse, em cujos res-
taurantes já pousaram 21 estrelas do Guia Michelin: “Se
minha cozinha pudesse ser descrita por um único sabor,
seria o do azeite extravirgem, sutil e aromático”. ƒ

4|4
INÊS249

LUCILIA DINIZ

DESFILE DE CERTEZAS
Nos tempos atuais, sobra estridência
e falta moderação

DE PÉ EM UM CAIXOTE, ou no centro de uma roda,


um homem discursa. Alguns ficam para ouvir. Outros só
espiam e vão embora. É uma cena ainda comum em pra-
ças por aí. Ou melhor, em qualquer tela ao alcance de vo-
cê. Pois em cada post de rede social e, às vezes, também
em textos de jornal, vemos especialistas e palpiteiros des-
tilando certezas inabaláveis — ao menos até uma nova vir
desbancar as anteriores.
A temperança não é hoje artigo popular. Ao longo dos
anos em que acompanho o segmento de saúde e bem-estar,
vi uma série de “estridências” relacionadas a dietas para
emagrecer, desinchar, desintoxicar, além de treinos mais efi-
cazes e de remédios milagrosos de todo tipo, fossem receitas
caseiras ou fruto da farmacêutica de ponta. Cada novidade
que surge é anunciada por alguém como a solução definitiva
para o problema em pauta. E tem sempre alguém disposto a
ouvir — e também a contestar.
À diferença do que ocorre com os palanques físicos,
não é tão simples virar as costas para os virtuais. Ao bus-
car informação sobre algo que nos interessa, somos inva-

1|3
INÊS249

didos o tempo todo pelo “último grito”. Retomo essa ex-


pressão, tão usada em outras épocas para definir tendên-
cias, porque ela parece ter adquirido outro sentido, mais
literal. Este mundo no qual pouco se escuta o outro me
recorda uma frase de Desmond Tutu (1931-2021). Arce-
bispo da Igreja Anglicana e figura central da luta contra
o regime racista do apartheid na África do Sul, ele conta-
va que seu pai sempre dizia: “Não levante a sua voz; me-
lhore os seus argumentos”. Hoje parece que nem a chan-
cela do Nobel da Paz, que Tutu levou em 1984, basta pa-
ra ele ser ouvido em meio à balbúrdia.
Em lugar de diálogos, temos monólogos sucessivos.
Como se cada pessoa fosse detentora de uma verdade
única. Na prática, sabemos, não é assim. Alternativas ti-
das como milagrosas ao nascer tornam-se alvo de ques-
tionamento conforme se difundem. Quanto mais uma

“Como já
dizia Aristóteles:
‘O ignorante afirma,
o sábio duvida,
o sensato reflete’ ”
2|3
INÊS249

técnica se torna almejada, mais pessoas se tornam aptas


a exercê-la, fazendo-a mais acessível. Isso tem dois efei-
tos. Um é o risco de prática indiscriminada. O outro é o
conhecimento trazido pela repetição. Nesses “testes do
real”, problemas surgem.
A cirurgia bariátrica é um exemplo recente. Primeiro
realizada sob indicações médicas mais estritas, passou a
ser vista como panaceia. Há pouco, estudos mostraram
que uma grande parcela dos operados volta a ganhar pe-
so. A julgar pela grita que se seguiu, ela estaria condena-
da. Mas continua sendo útil, quando há indicação e com
o devido acompanhamento. As canetas emagrecedoras
passam por processo semelhante. A estridência se faz ou-
vir em ondas, ora para louvar seus benefícios, ora para
reclamar de seu alcance — como elas não têm genéricos,
ao menos até 2026 quando cairá a patente, seu uso se li-
mita às camadas de maior renda. No fim, falta temperan-
ça para aceitar que, assim como princípios ativos no pas-
sado — lembra do orlistat e da sibutramina? —, seu efeito
cessa com a interrupção do uso.
De minha parte, só prego, sem medo de arrependimen-
tos, uma coisa: a moderação. Como já dizia Aristóteles: “O
ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete”. Prefi-
ro observar com calma esse desfile de certezas e formar
minha própria opinião. Afinal, prudência e canja de gali-
nha não fazem mal a ninguém. Se bem que é capaz de al-
guém reclamar da canja. ƒ

3|3
INÊS249

PRIMEIRA PESSOA

JHONY AGUIAR

1|4
INÊS249

É UM DESAFIO VIVER
DE ARTE NO BRASIL
Dalton Paula, 41 anos, trocou o emprego de bombeiro pelos
pincéis — e hoje é destaque na Bienal de Veneza

MUITOS ARTISTAS NO NOSSO PAÍS precisam ter duas,


três, quatro, cinco profissões para obter sustento, e isso
mostra como é um desafio enorme viver disso no Brasil.
Comigo não foi diferente. Trabalhei como bombeiro militar
por quase uma década, época em que conciliei o emprego
fixo com a pintura, minha verdadeira paixão. Com muito
esforço, consegui vencer os obstáculos e hoje sou um dos
convidados na Bienal de Arte de Veneza, uma mostra de
grande prestígio internacional, onde exponho uma série de
retratos. Mas o início não foi simples.
Nasci em Brasília, mas prefiro dizer que sou um artista
goianiense. Mudei para a capital de Goiás com minha família
ainda na infância, quando minha mãe, funcionária pública,
passou em um concurso na cidade. E foi em Goiânia que me

2|4
INÊS249

tornei artista. Eu adorava histórias em quadrinhos e copiava


os desenhos de Os Cavaleiros do Zodíaco usando papel-car-
bono, para depois pintá-los com lápis de cor. Já que os gibis
eram em preto e branco, a escolha das cores ficava totalmen-
te em minhas mãos, brincadeira que eu adorava. Logo mais,
na adolescência, tratei de iniciar meus estudos sobre pintura.
A convite da mãe de um amigo, entrei aos 14 anos na Escola
de Artes Visuais de Goiás, instituto público de formação que
funcionava junto com o Museu de Arte Contemporânea da
capital. Lá, além de me aprofundar na pintura, tive contato
com a fotografia e a performance, técnicas que mexeram
muito com a minha cabeça. Frequentar aquele espaço foi o
que despertou minha ideia de viver da minha criatividade.
O próximo passo para realizar esse sonho foi cursar artes
visuais na Universidade Federal de Goiás. Vendia minhas
obras por preços baixos a quem se interessasse, para conse-
guir comprar mais material e continuar produzindo. Para
custear as despesas e permanecer nos estudos, prestei um
concurso público, e foi assim que me tornei bombeiro. Além
de um segundo emprego, o quartel foi como uma segunda
escola para mim. Eu frequentava a faculdade pela manhã e,
no restante do dia, me dedicava ao resgate de vítimas de aci-
dentes e incêndios. Aprendi muito sobre cuidar das pessoas
no tempo em que passei em hospitais, e até hoje a experiên-
cia se reflete na minha arte. Lido muito com a questão da
cautela e do respeito com os outros quando estou pintando.
Penso sempre em como esses personagens gostariam de ser

3|4
INÊS249

representados, quais roupas gostariam de vestir e em qual


contexto social eles estão inseridos. Nas minhas telas, busco
evidenciar as pessoas negras, que são maioria no Brasil, mas
quase não aparecem nos museus.
Em 2016, enquanto ainda equilibrava a profissão de artista
com a de bombeiro, fui convidado para expor na Bienal de
Arte de São Paulo. Naquele momento, uma voz ecoou na mi-
nha cabeça: “Do que mais você precisa para acreditar que a
arte é seu caminho?”. O país estava numa crise política, e eu
sabia que o desafio de viver de arte era uma constante. Então,
eu me arrisquei. Foi um baita gesto de coragem largar o Cor-
po de Bombeiros e abraçar de vez a outra carreira. Me agarrei
ao pensamento de que, se eu dedicasse toda minha energia
àquilo, as portas iriam se abrir. E, por sorte, elas realmente se
abriram. A venda dos meus trabalhos na Bienal foi um suces-
so, e desde então eu posso dizer que, sim, vivo de arte.
Para chegar aonde estou, fui muito ajudado. Uma pessoa
que me acolheu foi a Rosana Paulino, minha madrinha na
arte. Ela sempre dizia: “Quando você tiver condições, vai
passar essa história adiante”. E é o que busco fazer. Fundei o
Sertão Negro, ateliê e escola de artes em Goiânia, com o ob-
jetivo de apoiar novos talentos. Ser artista vai além de pin-
tar: é preciso deixar contribuições para o mundo. ƒ

Depoimento dado a Mariana Carneiro

4|4
INÊS249

CULTURA CINEMA

AS DONAS DO PRAZER
Com Zendaya no picante “trisal” de Rivais e Kristen
Stewart puxando o thriller lésbico O Amor Sangra,
a temporada prova que, apesar do recato e da
correção, ainda há lugar para o sexo explosivo na
tela — só que agora sob comando feminino
THIAGO GELLI

TRIÂNGULO FORTE Zendaya entre seus dois parceiros em


Rivais: ménage à trois empoderado

MGM PICTURES

1|7
INÊS249

os últimos dias de um torneio juvenil de tênis, os cole-

N
gas de quarto Art (Mike Faist) e Patrick (Josh O’Con-
nor) estão suados, cansados — e sugestivamente an-
siosos. Além da partida que decidirá o título no dia
seguinte, afinal, eles convidaram a menina de ouro da
modalidade feminina do esporte, Tashi (Zendaya), para tomar
umas bebidas em seu quarto de hotel. Surpreendentemente, ela
aceita o convite, aparece toda deslumbrante e sensual — e logo
tem os dois na palma da mão. Conversa vai, conversa vem,
ANNA KOORIS/A24

SOLTANDO FAÍSCA Katy e Kristen em O Amor Sangra:


nudez e cenas eróticas

2|7
INÊS249

Tashi se senta na beira da cama, chama a dupla — os marman-


jos correm para o seu lado como cachorrinhos —, beija um, re-
pete a ação com o outro e os puxa para um enlace triplo, antes
de se afastar para observá-los de lábios unidos. Satisfeita com a
manipulação fácil, ela sorri e vai embora, estabelecendo assim
o complexo ménage à trois que dura por mais de uma década e
é o foco de Rivais, estreia picante dos cinemas.
A cena pode não espantar pelo conteúdo, mas surpreende
pelas doses generosas de algo que Hollywood aparentava ter
perdido: a libido. Com estreia marcada para quinta-feira, 1º,

TELA QUENTE Três momentos do cinema que dizem muito


sobre a moral sexual de seu tempo:

SUNSET BOULEVARD/CORBIS/GETTY IMAGES

ÚLTIMO TANGO EM PARIS (1972)


No embalo da contracultura, o filme de Bernardo Bertolucci
resumiu uma era de erotismo nas telas. Hoje, porém, é
condenado pela visão machista e pelos abusos que a atriz Maria
Schneider teria sofrido em cenas com Marlon Brando

3|7
INÊS249

Love Lies Bleeding — O Amor Sangra colabora para essa


sensação ao apresentar o tórrido caso entre a herdeira de um
criminoso e uma fisiculturista homicida, vividas pelas atrizes
assumidamente lésbicas Kristen Stewart e Katy O’Brian. No
thriller, o par enfrenta as ameaças do pai da protagonista, um
poderoso traficante, mas ainda reserva tempo para as carícias
um tanto explícitas conduzidas pela diretora Rose Glass.
A temporada dá resposta explosiva, enfim, a uma inda-
gação que rondou o cinema nos últimos anos: é possível
existir vida sexual na tela grande nos dias de hoje? Uma mi-

DIVULGAÇÃO

NINFOMANÍACA (2013)
Com a ascensão conservadora nos Estados Unidos, coube ao
cinema europeu manter viva a chama da libido — e ninguém foi
mais radical nisso que o dinamarquês Lars von Trier, com o longa
em duas partes cheio de lances explícitos

4|7
INÊS249

ríade de fatores nada excitantes indicava que não: a priorida-


de dos estúdios para filmes adolescentes de heróis, o avanço
conservador nos Estados Unidos, as pesquisas que mostra-
vam o incômodo da geração Z com a nudez e as cenas for-
tes. A eclosão do movimento #MeToo, em 2017, acrescentou
a esses freios um argumento irrefutável: boa parte do que
era exibido nos filmes como prazer para adultos, especial-
mente a partir do final dos anos 1960, foi feita com base no
prisma machista da indústria — e pior: às custas de abusos
morais e sexuais inaceitáveis contra tantas atrizes.

UNIVERSAL PICTURES

CINQUENTA TONS DE CINZA (2015)


A escassez de desejo atingiu o fundo do poço com a trilogia
baseada nos livros de E. L. James, na qual fetiches “proibidos”
ganham uma roupagem asséptica e água com açúcar. Um sexo
burocrático e nada excitante — mas muito comercial

5|7
INÊS249

Caso clássico do revisionismo da libido se deu com o cult Úl-


timo Tango em Paris (leia no quadro). Nos últimos anos, bus-
cou-se fazer justiça à francesa Maria Schneider (1952-2011), que
se sentiu “violentada” por Bernardo Bertolucci e Marlon Bran-
do nos bastidores por não ter sido avisada de que o colega utili-
zaria manteiga com fins capciosos na cena mais famosa do lon-
ga. Quarenta anos depois, Azul É a Cor Mais Quente (2013)
causou polêmica com uma cena íntima de dez minutos cuja fil-
magem foi descrita como “horrível” pelas atrizes. Exemplos as-
sim foram a senha para uma nova classe profissional se impor:
os “coordenadores de intimidade”, profissionais (normalmente
mulheres) que asseguram o conforto das atrizes no set.
Passada mais de meia década desse novo e louvável mo-
do de conduta, porém, a atual safra de longas chega para
provar que, sim, os morros de Los Angeles ainda têm seu
quê de Babilônia — ainda que a chave para acessá-la agora
já não seja a mesma dos filmes que incendiaram a imagina-
ção no passado, como 9 1/2 Semanas de Amor (1986) ou Ins-
tinto Selvagem (1992), com seu apelo principalmente ao
voyeurismo masculino. O quente agora é o desejo feminino
— e isso vem dando uma baita química.
Um exemplo dessa nova forma de ousadia é Pobres Cria-
turas, filme do diretor Yorgos Lanthimos em que a vencedo-
ra do Oscar, Emma Stone, encarna uma criatura com corpo
de mulher adulta e cérebro despudorado, que então se entre-
ga a dezenas de experimentos carnais notadamente gráficos.
Para as múltiplas cenas, ela teve o auxílio de uma coordena-

6|7
INÊS249

SEARCHLIGHT PICTURES

SERELEPE Emma Stone (com Mark Ruffalo) em


Pobres Criaturas: haja energia

dora de intimidade, mas também tomou as rédeas para si, as-


sumindo o papel de produtora do longa. “Quando dizem que
o filme é exemplar do olhar masculino por ser dirigido e es-
crito por um homem, estão negando minha colaboração ar-
tística”, disse em conversa com a colega Olivia Colman.
Seguindo a trilha de Emma, Zendaya é a produtora que está
no comando de seu próprio “trisal” em Rivais — que, apesar de
não conter cenas explícitas, exala malícia a cada curva. Já Kris-
ten Stewart, homossexual assumida e militante, pode chocar
quem só se lembra da mocinha da franquia juvenil Crepúsculo:
em O Amor Sangra, ela está soltíssima — postura que credita
ao clima construtivo e de diálogo no set. “É como ter uma con-
versa aberta sobre o que todos desejam e, assim, proporcionar
uma ótima transa”, já resumiu. As novas musas do prazer no ci-
nema são senhoras de seus corpos — ainda bem. ƒ

7|7
INÊS249

CULTURA CINEMA

ASTROS ANÔNIMOS
O filme O Dublê se vale do humor e do carisma
de Ryan Gosling para celebrar o perigoso ofício
dos profissionais que garantem ótimas cenas
de ação, mas ainda lutam pelo reconhecimento

DURO NA QUEDA Gosling no filme: cenas exuberantes e


roteiro cômico sobre uma busca a um ator desaparecido

ERIC LACISTE/UNIVERSAL PICTURES

1|3
INÊS249

VESTIDO com um macacão antichamas e usando acessó-


rios para proteger os dentes e o pescoço, Colt (Ryan Gos-
ling) está pronto para encarar uma perigosa cena de ação
em um filme de Hollywood. O momento é essencial para
ele: dublê de uma grande estrela do cinema, Colt estava ha-
via mais de um ano afastado do trabalho após um grave aci-
dente em outro set. Na sequência que marca seu retorno, ele
deve dirigir um carro em alta velocidade pela praia, com
pouca tração na areia, e capotar várias vezes. A meta é atin-
gida e superada: o veículo gira oito vezes e meia — um re-
corde histórico. A comemoração é dupla: enquanto em cena
o personagem de Gosling é celebrado pelo feito, nos bastido-
res de O Dublê (The Fall Guy, Estados Unidos, 2024), que
estreia nos cinemas na quinta-feira 2, o diretor David Leitch
urra de alegria enquanto o time tira do carro Logan Holla-
day, dublê de Gosling — e que entrou ali, de verdade, para o
Guinness, o livro dos recordes.
Na trama de contorno metalinguístico, Colt deve não só
ser o profissional que se arrisca no lugar do astro mimado
Tom Ryder, vivido com gosto por Aaron Taylor-Johnson,
como precisa ainda encontrá-lo, já que o ator desapareceu
antes do fim das filmagens de uma rocambolesca produção
apocalíptica. O longa usa e abusa dos dotes cômicos de Gos-
ling e também das excelentes cenas de perseguição, lutas e
fugas — no ar, na terra e até no mar. Tal resultado é fruto de
experiências passadas do diretor: Leitch começou a carrei-
ra, ele próprio, sendo dublê de medalhões como Brad Pitt e

2|3
INÊS249

Matt Damon, antes de se embrenhar com sucesso na função


de diretor. Conduziu alguns exemplares exuberantes e cria-
tivos do gênero de ação, caso de Atômica, Velozes e Furio-
sos: Hobbs e Shaw e do hilário Trem-Bala, e ainda assina
como produtor a saga John Wick — a qual conta com a dire-
ção de outro ex-dublê, Chad Stahelski.
A trilha desses profissionais até a direção não é raridade
— e atesta o valor de quem sabe manobrar uma boa atua-
ção física, o ângulo ideal e o ritmo da cena. Leitch engrossa
uma fila puxada por outros talentosos ex-dublês, como
Bruce Lee, Jackie Chan e até mesmo o incomparável ci-
neasta John Ford, que começou entre carros explodindo
antes de levar quatro estatuetas do Oscar por obras essen-
ciais, entre elas No Tempo das Diligências (1939) e As Vi-
nhas da Ira (1940). Enquanto O Dublê se prepara para cha-
coalhar as bilheterias, o diretor e seus colegas intensificam
o lobby que pede à Academia de Hollywood uma categoria
específica no Oscar para premiar o ofício. É justo: os astros
anônimos merecem reconhecimento. ƒ

Raquel Carneiro

3|3
INÊS249

CULTURA ENTRETENIMENTO
JON KOPALOFF/WIREIMAGE/GETTY IMAGES

HULU

4 5
NETFLIX

NETFLIX

O VALOR DA
INTIMIDADE
Uma nova série sobre o roqueiro Bon Jovi reforça
tendência curiosa: todo artista agora quer um
documentário tocante para chamar de seu — e se
autopromover FELIPE BRANCO CRUZ

1|5
INÊS249

EXPOSIÇÃO
CALCULADA
Selena Gomez
SWAN GALLET/WWD/PENSKE MEDIA/GETTY IMAGES

(1), Bon Jovi (2),


Céline Dion (3),
Arnold
Schwarzenegger
2
(4), Sylvester
6 Stallone (5) e
Lady Gaga (6):
biografias
devassadas,
JAMES DEVANEY/GC IMAGES/GETTY IMAGES

mas sem perder


o controle
narrativo da
história

DONO DOS FAMOSOS agudos de Livin’ on a Prayer, Jon


Bon Jovi alarmou os fãs há um mês com uma revelação
dramática. O roqueiro americano de 62 anos confidenciou
que, após operar as cordas vocais, não se sente capaz de
fazer shows — e sinalizou uma eventual aposentadoria.
Embora seus problemas sejam reais, a declaração foi mili-
metricamente pensada para outro fim: despertar interesse
pela série documental Thank You, Goodnight: A História

2|5
INÊS249

de Bon Jovi, já disponível no Star+. Em quatro episódios, o


programa acompanha o músico de Nova Jersey em sua úl-
tima turnê, em 2023, marcada por críticas à sua voz e pela
ruidosa briga com seu principal parceiro, o guitarrista Ri-
chie Sambora — que havia deixado a banda alguns anos
antes e participa do doc contando uma versão pouco con-
vincente do rompimento. Ao final, a verdadeira utilidade
da série fica clara: Bon Jovi anuncia seu novo álbum, Fore-
ver. Spoiler: sem Sambora nas guitarras.
Com o chapa-branca Thank You, Goodnight, Bon Jovi
reforça um fenômeno curioso: numa era em que essas
produções ganharam peso nas plataformas de streaming,
toda celebridade quer um doc para chamar de seu. Nos
últimos anos, esses programas surgiram aos montes, ace-
nando ao espectador com acesso inédito à intimidade de
famosos tão díspares quanto astros de ação e divas pop,
de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone a Lady
Gaga ou Selena Gomez.
Não é difícil detectar o pulo do gato dos novos docu-
mentários. Eles fascinam o público ao vender um mergu-
lho confessional nas fragilidades dos grandes artistas —
expondo como, lá no fundinho, eles são gente como a gen-
te. Algumas produções são de fato impactantes e expõem
histórias reais corajosas. O ator americano Val Kilmer se
abre de forma tocante sobre o câncer que arruinou sua car-
reira num filme de 2021; em junho, chegará ao Prime Vi-
deo o antecipado I Am: Céline Dion, em que a cantora ca-

3|5
INÊS249

nadense mostrará os bastidores de sua luta contra a sín-


drome da pessoa rígida, doença autoimune que afeta o sis-
tema nervoso central. Mas mesmo os melhores docs da sa-
fra atual oferecem um anteparo valioso aos artistas: seus
rasgos de franqueza e até as confissões mais dolorosas se
dão sempre num ambiente controlado e seguro.
Como as celebridades têm total controle da narrativa, os
documentários se transformaram, sobretudo, em excelentes
peças de autopromoção. A Netflix desbravou a seara em
2017, quando lançou Five Foot Two, produção em que Lady
Gaga conta como lida com a fibromialgia, doença que lhe
causa dores lancinantes. Num expediente narcisístico típico,
a musa pop fala de dor, mas faz questão de enfatizar seu po-
der: a certa altura do filme, posta um vídeo no Instagram e
imediatamente recebe milhões de likes.
Nos casos de Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallo-
ne, que também lançaram produções autobiográficas na
Netflix, demonstra-se outro uso marqueteiro dos docs: eles
servem para amenizar sua imagem de brutamontes machis-
tas e egocêntricos. Os dois atores participam dos programas
um do outro para falar de sua propalada rivalidade — sem-
pre com declarações elogiosas. E os dramas verdadeiros em
suas biografias são amortizados por uma narrativa açucara-
da. Schwarzenegger expõe detalhes sobre o passado nazista
do pai e se abre sobre o filho Joseph Baena, fruto de um rela-
cionamento fora do casamento. Stallone dedica boa parte do
tempo a falar do filho Sage, que sofria de depressão e mor-

4|5
INÊS249

reu aos 36 anos, e também de seu pai, Frank, homem vio-


lento que jamais aprovou sua carreira. O espectador sai dos
programas nutrindo mais simpatia pelos pobres fortões.
Na música, Katy Perry foi uma das primeiras a se expor
dessa forma, em Katy Perry: Part of Me, lançado nos cine-
mas em 2012. Boa parte do filme é dedicada a falar sobre
como ela se recuperou de um divórcio e foi capaz de lançar
um novo disco de sucesso. Lançado ano passado na Apple
TV+, Minha Mente e Eu mostra os duros anos de tratamen-
to de Selena Gomez contra o lúpus e o transtorno bipolar,
justificando por que ela parou de fazer shows e decidiu virar
atriz. Meses atrás, a Netflix trouxe a mania ao Brasil, com
Se Eu Fosse Luísa Sonza, em que a cantora fala sobre vida
amorosa, como lida com os haters e também de saúde men-
tal — além de promover seu álbum mais recente, claro. A in-
timidade nunca teve tanto valor na tela. ƒ

5|5
INÊS249

CULTURA ARTE
INTESA SANPAOLO COLLECTION GALLERIE D’ITALIA

EPITÁFIO GENIAL
Mostra em Londres lança luz sobre o quadro misterioso,
considerado o trabalho final de Caravaggio, que revela o
rosto sofrido do mestre pouco antes da morte
AMANDA CAPUANO

1|4
INÊS249

AUTORRETRATO?
O Martírio de Santa Úrsula, com o rosto
que se acredita ser do pintor em
destaque (acima): o mestre barroco
costumava se representar de maneira
trágica nas próprias obras, e deixou
esse registro de sua face dilacerada
pelos ferimentos que sofreu em briga
numa taverna

EM MAIO DE 1606, o genial e encrenqueiro Michelan-


gelo Merisi — ou, simplesmente, Caravaggio (1571-1610)
— entrou em uma briga violenta com um cafetão chama-
do Ranuccio Tomassoni. Provocado por uma partida de
jogo ou uma disputa amorosa, teorizam estudiosos, o
combate acabou com o assassinato de Tomassoni e uma

2|4
INÊS249

caçada a Caravaggio: como punição, qualquer pessoa nos


estados papais poderia matar o pintor barroco e oferecer
sua cabeça como prova. Amedrontado, Caravaggio fugiu
de Roma e fez um périplo pelo país: nos quatro anos se-
guintes, esteve em Nápoles, Malta, Sicília e retornou a
Nápoles antes de partir para Porto Ercole, na Toscana,
onde morreu em julho de 1610. Antes disso, no entanto,
produziu obras como a magistral Salomé com a Cabeça
de João Batista (1609-1610) e, dois meses antes da via-
gem final, deu suas derradeiras pinceladas no glorioso O
Martírio de Santa Úrsula — estrela da mostra O Último
Caravaggio, que acaba de entrar em exibição na National
Gallery de Londres.
A representação de Santa Úrsula é a pintura documen-
tada mais próxima da data de sua morte. Inicialmente
atribuída a pupilos de estilo caravaggesco, a obra só foi
apontada como sendo dele nos anos 1980, depois que car-
tas preservadas em Nápoles, e datadas de maio de 1610,
revelaram que fora encomendada a Caravaggio por Mar-
cantonio Doria (1572-1651), então príncipe de Angri. Mais
tarde, a autoria foi reforçada pelo achado de inscrições no
verso do quadro: a assinatura póstuma d. Michel Angelo
da/Caravaggio 1616 e as iniciais M.A.D., adornadas por
uma cruz, escritas após a morte do dono, em 1651, refor-
çando a encomenda do nobre ao pintor.
Sob posse da família original durante séculos, a pintura
ficou pendurada despercebida no Palazzo Doria d’Angri até

3|4
INÊS249

o século XX, e passou para outra coleção particular ao ser


adquirida como parte de uma villa antes pertencente ao clã.
Publicamente, só foi revelada em 1963, em uma exposição
em Nápoles, ainda sem a autoria de Caravaggio. Hoje per-
tencente ao Banco Intesa Sanpaolo, a pintura fica exposta
na Gallerie d’Italia, na Via Toledo, em Nápoles, de onde foi
retirada para a mostra inglesa.
Com o jogo de luz e sombras típico do mestre, a pin-
tura captura Santa Úrsula pouco antes de seu martírio.
Diz a crença que ela e um grupo de virgens que a se-
guiam foram capturados e mortos pelos hunos. O rei te-
ria se oferecido para salvar a vida de Úrsula casando-se
com ela, mas a moça recusou a oferta e foi morta por
uma flecha. Acima da mulher martirizada, surge um
provável autorretrato do artista, que costumava se pintar
de modo trágico nas obras — aqui, aparece desfigurado
e pálido assistindo à cena. “É nosso último vislumbre de
um homem desesperado emergindo de um dos momen-
tos mais conturbados de sua vida”, escreve a curadora
Francesca Whitlum-Cooper.
A falta de vitalidade não é à toa: meses antes, ao sair
de uma taverna, ele foi surpreendido por inimigos e feri-
do no rosto com golpes tão graves que suas feições se
tornaram quase irreconhecíveis. Morreu pouco depois,
possivelmente vítima de uma sepse adquirida através de
um ferimento de outra briga, sugerem pesquisas recen-
tes. O epitáfio do gênio é tão trágico quanto sua obra. ƒ

4|4
INÊS249

WALCYR CARRASCO

QUEM É VOCÊ,
ADOLESCENTE?
As eternas (e novas) dores e
delícias de ser jovem

ROMEU E JULIETA eram adolescentes, como tão bem


mostrou Zefirelli no cinema. Verdade: a intensidade de seus
sentimentos só poderia ocorrer na adolescência. Um adulto
pensaria duas vezes em atitudes tão radicais quanto o suicí-
dio por amor. Até mesmo desconfiaria do próprio amor.
“Será que eu gosto mesmo dela? Ou dele?” — pensaria Ro-
meu. “Mas ele nem passou no Enem”, refletiria uma Julieta
contemporânea e cautelosa. O limbo que existe entre a in-
fância e a fase adulta, é disso que estou falando. Você não é
mais criança para ganhar festas temáticas com balões. Ao
mesmo tempo, não costuma ter as obrigações da vida adul-
ta. Mas é claro que estou falando de um recorte da socieda-
de, da classe média em diante. É uma fase terrível. O adoles-
cente não sabe quem é, os pais não sabem como agir diante
de tantas angústias e tensões. Inclusive, na medicina surgiu
uma especialidade para dar conta desse período: o hebiatra.
Antes, os sofridos adolescentes eram obrigados a esperar a
consulta em salas de pediatras com ursinhos, joguinhos e

1|3
INÊS249

crianças chorando. Justo eles, que já se consideravam adul-


tos e aguardavam a data de tirar carteira de motorista! É um
momento de definições: escolher uma faculdade, por exem-
plo, é um martírio. Pior: na maioria das vezes, o adolescente
pouco sabe da profissão que está escolhendo ao se inscrever
no vestibular; fugir dos estudos para entrar num mosteiro;
ou arrumar um emprego e já despencar no mercado de tra-
balho. Os hormônios estão explodindo. Frequentemente, as
espinhas também. Há grandes paixões no ar, mas pode ser
difícil realizá-las sem um cantinho só seu. Alguns vivem sua
grande história de amor na intimidade do cinema — ou até
mesmo no toalete de uma festa.
A que grupo pertencer: o da frente da sala, do meio ou do
fundão? Cada escolha é um universo que se abre. Os pais
que se segurem. Dizer não para um adolescente da época di-
gital pode ser muito difícil. A nova geração está acostumada

“A nova geração
está acostumada a dar
unfollow se algo lhe
desagrada. Só que não
pode deletar os pais”
2|3
INÊS249

a dar unfollow quando algo lhe desagrada. Só que não pode


deletar os pais. Portas batem.
Os pais projetam sonhos que não realizaram. Os filhos,
muitas vezes, só acham que eles são chatos.
– Pai, posso fazer isso?
– Pergunta pra sua mãe.
– Mãe, posso fazer aquilo?
– Pergunta pro seu pai.
O adolescente é um ser sensível, mesmo quando age co-
mo um pit bull. Mas cada época tem seu DNA. Na minha, eu
pensava que ia mudar o mundo. Hoje, realmente o mundo
mudou para os adolescentes que estão por aí. Não é fácil
construir uma vida no universo digital. Existir fisicamente,
no metaverso, conviver com a IA, e correr o risco de ver um
robô roubar seu futuro emprego é de arrasar.
Os desafios da minha adolescência eram outros: me
posicionar contra o regime militar, aprender inglês, e não
perder nem uma passeata. Na adolescência, a gente pode
votar. É uma grande responsabilidade das muitas que de-
sabam. Mais que tudo, o jovem precisa descobrir quem é e
como será. E isso só se faz no caminho, que pode ser difí-
cil. Mas um dia todos nós descobrimos que o caminho é a
melhor parte da vida. ƒ

3|3
INÊS249

CULTURA VEJA RECOMENDA


BETH DUBBER/MAX

ESTRELA Jean Smart (no centro) na série Hacks:


comediante desfruta de um novo sucesso após ostracismo

TELEVISÃO
HACKS — TERCEIRA TEMPORADA
(no Max a partir de quinta-feira 2)
Pioneira entre as poucas mulheres da comédia stand-up, Debo-
rah Vance (Jean Smart) desfrutou de anos gloriosos — até cair
no ostracismo. Na primeira temporada de Hacks, a veterana
contrata a jovem Ava (Hannah Einbinder), uma roteirista que
foi cancelada nas redes sociais. Juntas no limbo, elas vão de
uma turnê micada pelo interior dos Estados Unidos até a pro-
dução de um elogiado especial. Na nova e apetitosa leva de epi-
sódios, a dupla inicialmente está separada: Deborah desfruta de
um novo auge na carreira, e Ava vive um raro bom momento
na vida pessoal e profissional. Mas o sucesso, quem diria, as
deixa entediadas. Quando se reencontram, as parceiras que bri-
gavam como cão e gato se aliam para sair da mesmice — mes-
mo que para isso arrisquem tudo o que foi conquistado.

1|8
INÊS249

RAÍZES
LITERÁRIAS
Leïla Slimani:
bela narrativa
inspirada
na história
dos avós

CATHERINE HÉLIE
LIVRO
O PAÍS DOS OUTROS,
de Leïla Slimani (tradução de Dorothée
de Bruchard; Intrínseca; 320 páginas;
R$ 69,90 ou R$ 46,90 em e-book)
Em meio à Segunda Guerra, a jovem francesa Mathilde se
apaixona pelo soldado marroquino Amine, que faz parte do
Exército francês. Ao fim do conflito, o casal fixa residência
em Meknés, cidade do país africano cheia de colonos euro-
peus. Inspirada na família da franco-marroquina Leïla Sli-
mani, vencedora do prestigioso Goncourt, a trama mergu-
lha em temas como colonialismo e racismo ao seguir o casal
no dia a dia marcado por diferenças culturais, dando aten-
ção especial às dificuldades vividas pelas mulheres.

2|8
INÊS249

DISCO
THIS AIN’T THE WAY YOU GO OUT,
de Lucy Rose (disponível nas plataformas de streaming)
Umas das mais celebradas cantoras da nova música
folk do Reino Unido, a pianista Lucy Rose achou que
jamais voltaria a tocar. Após o parto de seu filho em
2021, a artista de 34 anos desenvolveu uma forma
rara de osteoporose que lhe causava excruciante dor
nas costas. A superação a inspirou a retornar ao pia-
no. Ao contrário do que se poderia supor, as canções
que surgiram são alegres, mesmo em letras confes-
sionais como Could You Help Me, em que descreve a
busca pela cura, ou No More, a mais animada e sel-
vagem do álbum. ƒ

3|8
INÊS249

CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 a biblioteCa Da meia-noite
Matt Haig [2 | 94#] BERTRAND BRASIL

2 tuDo é rio
Carla Madeira [3 | 82#] RECORD

3 é assim que aCaba


Colleen Hoover [5 | 136#] GALERA RECORD

4 em agosto nos Vemos


Gabriel García Márquez [8 | 6#] RECORD

5 uma família feliZ


Raphael Montes [1 | 5] COMPANHIA DAS LETRAS

6 é assim que Começa


Colleen Hoover [7 | 73] GALERA RECORD

7 VeritY
Colleen Hoover [9 | 105#] GALERA RECORD

8 as meninas
Lygia Fagundes Telles [4 | 2] COMPANHIA DAS LETRAS

9 a emPregaDa
Freida McFadden [10 | 15#] ARQUEIRO

10 o aVesso Da Pele
Jeferson Tenório [6 | 8#] COMPANHIA DAS LETRAS

4|8
INÊS249

NÃO FICÇÃO
1 nutrir
Gisele Bündchen [0 | 1] BEST SELLER

2 as seis lições
Ludwig von Mises [0 | 2#] LVM

3 nação DoPamina
Dra. Anna Lembke [2 | 39#] VESTÍGIO

4 a CaDa Passo
Anderson Birman [7 | 7#] CITADEL

5 ráPiDo e DeVagar
Daniel Kahneman [0 | 193#] OBJETIVA

6 o PrínCiPe
Nicolau Maquiavel [5 | 41#] VÁRIAS EDITORAS

7 se não eu, quem Vai faZer VoCê feliZ?


Graziela Gonçalves [3 | 12#] PARALELA

8 em busCa De mim
Viola Davis [0 | 75#] BEST SELLER

9 soCieDaDe Do Cansaço
Byung-Chul Han [4 | 56#] VOZES

10 mulHeres que Correm Com os lobos


Clarissa Pinkola Estés [10 | 185#] ROCCO

5|8
INÊS249

AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 Café Com Deus Pai 2024
Junior Rostirola [1 | 18#] VÉLOS

2 ou Vai ou Voa
Josef Rubin e Hendel Favarin [3 | 2] BUZZ

3 o liVro que VoCê gostaria que seus Pais


tiVessem liDo Philippa Perry [0 | 5#] FONTANAR

4 Como falar sobre sexualiDaDe Com


as Crianças Leiliane Rocha [0 | 1] ASTRAL CULTURAL

5 mais esPerto que o Diabo


Napoleon Hill [6 | 245#] CITADEL

6 o PoDer Da autorresPonsabiliDaDe
Paulo Vieira [2 | 93#] GENTE

7 Hábitos atômiCos
James Clear [4 | 45#] ALTA BOOKS

8 o Homem mais riCo Da babilônia


George S. Clason [8 | 165#] HARPERCOLLINS BRASIL

9 a PsiCologia finanCeira
Morgan Housel [5 | 31#] HARPERCOLLINS BRASIL

10 os segreDos Da mente milionária


T. Harv Eker [9 | 455#] SEXTANTE

6|8
INÊS249

INFANTOJUVENIL
1 o fabriCante De lágrimas
Erin Doom [1 | 3] HARPERCOLLINS

2 o Pequeno PrínCiPe
Antoine de Saint-Exupéry [3 | 415#] VÁRIAS EDITORAS

3 Promessas Cruéis
Rebecca Ross [2 | 2] ALT

4 a lenDa Da Caixa Das almas


Paola Siviero [0 | 1] GUTENBERG

5 HarrY Potter e a PeDra filosofal


J.K. Rowling [5 | 423#] ROCCO

6 Coraline
Neil Gaiman [0 | 71#] INTRÍNSECA

7 Diário De um banana
Jeff Kinney [8 | 27#] VR

8 as aVenturas De miKe
Gabriel Dearo e Manu Digilio [7 | 27#] OUTRO PLANETA

9 o menino, a touPeira, a raPosa e o CaValo


Charlie Mackesy [6 | 22#] SEXTANTE

10 as aVenturas De miKe 4 — a origem De robson


Gabriel Dearo e Manu Digilio [9 | 14#] OUTRO PLANETA

7|8
INÊS249

[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas
Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo,
Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau:
Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura,
Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas: Disal, Leitura, Livraria da Vila,
Loyola, Senhor Livreiro, Vozes, Campo Grande: Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim,
Campos dos Goytacazes: Leitura, Canoas: Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos,
Caruaru: Leitura, Cascavel: A Página, Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura,
Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma: Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal,
Evangelizar, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Catarinense, Fortaleza:
Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Frederico Westphalen: Vitrola, Garopaba:
Livraria Navegar, Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS, Governador Valadares: Leitura, Gramado:
Mania de Ler, Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos: Disal, Leitura, Livraria da
Vila, SBS, Ipatinga: Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa Vamos Ler, João Pessoa: Leitura,
Joinville: A Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes, Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins:
Koinonia, Londrina: A Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura,
Livro Presente, Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar, Leitura, Natal:
Leitura, Niterói: Blooks, Palmas: Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis:
Vozes, Poços de Caldas: Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron, Disal,
Leitura, Macun Livraria e Café, Mania de Ler, Santos, SBS, Taverna, Porto Velho: Leitura,
Recife: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila, Rio Claro: Livruz, Rio
de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Leonardo da Vinci, Odontomedi, SBS, Rio Grande:
Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura, SBS, Santa Maria: Santos, Santana de
Parnaíba: Leitura, Santo André: Disal, Leitura, Santos: Loyola, São Bernardo do Campo: Leitura,
São Caetano do Sul: Disal, Livraria da Vila, São João de Meriti: Leitura, São José: A Página,
Curitiba, São José do Rio Preto: Leitura, São José dos Campos: Amo Ler, Curitiba, Leitura, São
José dos Pinhais: Curitiba, São Luís: Hélio Books, Leitura, São Paulo: A Página, B307, Círculo,
Cult Café Livro Música, Curitiba, Disal, Dois Pontos, Drummond, Essência,
HiperLivros, Leitura, Livraria da Tarde, Livraria da Vila, Loyola, Megafauna, Nobel
Brooklin, Santuário, SBS, Simples, Vozes, Vida, WMF Martins Fontes, Serra: Leitura,
Sete Lagoas: Leitura, Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura, Teresina:
Leitura, Uberlândia: Leitura, SBS, Umuarama: A Página, Vila Velha: Leitura, Vitória: Leitura,
SBS, Vitória da Conquista: LDM, internet: Amazon, A Página, Authentic E-commerce, Boa
Viagem E-commerce, Canal dos Livros, Curitiba, Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza,
Sinopsys, Submarino, Travessa, Um Livro, Vanguarda, WMF Martins Fontes

8|8
INÊS249

JOSÉ CASADO

VENTO ELEITORAL
LULA TEVE uma ideia: “Criar uma espécie de um ‘190’, um
‘180’, um telefone para que as pessoas pudessem telefonar e
se queixar se as coisas não estão acontecendo (no governo)”.
Na semana passada, justificou-se: “Eu preciso que tenha um
lugar para o povo colocar para fora as suas angústias”.
O “Disque-Lula” não existe, mas já tem a primeira quei-
xa para registro: o presidente reclama da rotina dormente
do próprio governo — problema do qual tenta se eximir co-
mo um crítico distanciado, talvez por achá-lo insolúvel a es-
ta altura do mandato.
Governar, dizia Bill Clinton do lado de fora da biblioteca
da Casa Branca, é como dar ordens num cemitério: tem mui-
ta gente abaixo de você e ninguém ouve. No Palácio do Pla-
nalto, “erro” é palavra temida. Ali predomina o receio de le-
var problemas ao chefe, e a frase mais repetida é: “Quem vai
contar para o Lula?”. Mês passado, ele reuniu o ministério.
Passou cinco horas ouvindo e concordando com ministros
que elogiavam... o governo Lula.
No Partido dos Trabalhadores, a opção preferencial tem
sido pela máscara. Como relatou o deputado paulista Arlin-
do Chinaglia, em recente reunião interna: “O que se ouve

1|4
INÊS249

na bancada federal do PT sobre o ministério do Lula nem


sempre são elogios. A gente finge que está concordando,
que está todo mundo satisfeito”. O partido tem culpa, ele
acha: “Não temos coragem para falar. O que estamos fazen-
do? Só batendo palmas”.
A aflição com o governo disfuncional, sem bússola nem
rumo, não é privilégio do presidente e dos aliados. Queixas e
reclamações dos eleitores reluzem em diferentes pesquisas
dos cinco meses. “O brasileiro quer ver a luz do fim do túnel,
o que Lula não está oferecendo”, interpreta Renato Meirel-
les, do Instituto Locomotiva/Data Favela. Insatisfações cres-
centes captadas nas sondagens de opinião incomodam Lula
porque contêm potencial corrosivo para os planos de reelei-
ção. Já animam conversas entre banqueiros, industriais e co-
merciantes do eixo São Paulo-Rio sobre mudanças na dire-
ção do vento eleitoral num cenário de baixo crescimento
econômico e alta desigualdade social.
No outono do ano que vem, Lula precisará escolher uma
entre três alternativas: vai à reeleição; se aposenta depois de
três décadas e meia no ofício de candidato presidencial per-
manente do PT; ou indica substituto para a disputa em 2026.
Em qualquer opção estará condicionado pelos resultados
das eleições municipais deste ano.
O Ipec constata que quase metade (47%) do eleitorado pro-
cura candidatos a prefeito e vereador sem vínculos com Lula e
Jair Bolsonaro. Essa busca sugere duas coisas, acha Marcia Ca-
vallari, responsável pela pesquisa: uma é a vontade de renova-

2|4
INÊS249

“Quase metade (47%)


do eleitorado procura
candidato sem vínculo
com Lula e Bolsonaro”
ção, outra é a expectativa de novo modelo de liderança política.
Elas permitem, também, um vislumbre da sutileza e elegância
dos eleitores no aviso sobre fadiga de material na política.
No Congresso, há consenso sobre a tendência de reforço
dos partidos de centro e de direita nas eleições de outubro,
para prefeito e vereador, em coerência com o panorama tra-
çado nas pesquisas. Na leitura interessada do governador
paulista, Tarcísio de Freitas, isso significa que “a população
está cada vez mais de saco cheio, ninguém aguenta mais, e
acho que ela vai dar o tom (em outubro)”.
Antonio Lavareda e Vinícius Silva Alves, do Ipespe, estu-
daram as disputas municipais dos últimos 39 anos. Suspei-
tam que elas têm funcionado como uma espécie de barôme-
tro das eleições gerais seguintes. Ou seja, sinalizando as
chances dos blocos políticos nos embates posteriores pela
Presidência, governos estaduais e bancadas parlamentares.
Certo mesmo é que há década e meia a direita avança nas
eleições municipais. Ampliou seu espaço (de 41,9% para

3|4
INÊS249

45,1%) na soma nacional de votos nas cidades, entre 2008 e


2012. Na sequência, em 2016, cresceu nas câmaras munici-
pais (de 45,1% para 52,6% do total) e nas prefeituras (de
29,8% a 37,7%). Na disputa de 2020, aumentou a votação
para vereadores (59,2%) e prefeitos (54,3%).
Faltam cinco meses para o primeiro turno em 5 570 cida-
des. Os erros do governo, as frustrações dos eleitores estam-
padas nas pesquisas e o histórico recente do desempenho
eleitoral nos municípios incitam a marcha da direita no mapa
político. Mas, vale lembrar: o lulismo venceu cinco das seis
eleições presidenciais realizadas nas últimas duas décadas. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

4|4
INÊS249
INÊS249

Você também pode gostar