Você está na página 1de 3

Teste Episódio Jornal A TARDE (alheio)

https://blogesss-biblioteca.blogspot.com/2015/05/teste-de-portugues-11-ano-turma-g-prof.html

I
Lê atentamente o seguinte excerto d’ Os Maias:
Subitamente, com uma ideia, apalpou por sobre o bolso a carteira onde na véspera
guardara a carta do Dâmaso… «Eu t’ arranjo!», murmurou ele. E abalou, desceu a Rua da
Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da Praça de Camões,
num grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redação d’ «A Tarde».
Dentro do pátio desse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um
sujeito acatarroado que lhe disse que o Neves estava em cima no cavaco. O Neves, deputado,
político, director d’ «A Tarde», fora, havia anos, numas férias, seu companheiro de casa no
Largo do Carmo; e desde esse Verão alegre em que o Neves lhe ficara sempre devendo três
moedas, os dois tratavam-se por tu.
Foi encontrá-lo numa vasta sala alumiada por bicos de gás sem globo, sentado na borda
de uma mesa atulhada de jornais, com o chapéu para a nuca, discursando a alguns cavalheiros
de província que o escutavam de pé, num respeito de crentes. Num vão de janela, com dois
homens de idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabeleira crespa que
parecia erguida numa rajada de vento, bracejava como um moinho na crista de um monte. E,
abancando, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.
Ao ver o Ega (um íntimo do Gouvarinho) ali na redacção, naquela noite de intriga, Neves
cravou nele os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:
– Nada de política, negócio particular… Não te interrompas. Depois falaremos.
O outro findou a injúria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fora
meter no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do Reino» – e na sua impaciência saltou da mesa,
travou do braço do Ega, arrastando-o para um canto:
– Então que é?
– É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi ofendido aí por um sujeito muito
conhecido. Nada de interessante. Um parágrafo imundo na «Corneta do Diabo», por uma
questão de cavalos… O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, numa
carta que quero que vocês publiquem.
A curiosidade do Neves flamejou:
– Quem é?
– O Dâmaso.
O Neves recuou de assombro:
– O Dâmaso!? Ora essa! Isso é extraordinário! Ainda esta tarde jantei com ele! Que diz a
carta?
– Tudo. Pede perdão, declara que estava bêbado, que é de profissão um bêbado…
O Neves agitou as mãos com indignação:
– E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Dâmaso, nosso amigo político!... E que
não fosse, não é questão de partido, é de decência! Eu faço lá isso!... Se fosse uma ata de duelo,
uma coisa honrosa, explicações dignas… Mas uma carta em que um homem se declara bêbado!
Tu estás a mangar!
Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma
revolta àquela ideia de o Dâmaso se declarar bêbado!
– Isso não pode ser! É absurdo! Aí há história… Deixa ver a carta.
E, mal relanceara os olhos ao papel, à larga assinatura floreada, rompeu num alarido:
– Isto não é o Dâmaso nem é letra do Dâmaso!... Salcede! Quem diabo é Salcede? Nunca
foi o meu Dâmaso!
– É o meu Dâmaso – disse o Ega. – O Dâmaso Salcede, um gordo…
O outro atirou os braços ao ar:
– O meu é o Guedes, homem, o Dâmaso Guedes! Não há outro! Que diabo, quando se diz
o Dâmaso é o Guedes!...
Respirou com alívio:
– Irra, que me assustaste! Olha agora neste momento, com estas coisas de Ministério,
uma carta dessas escrita pelo Guedes… Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá… Não é um
gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Sintra? Isso! Um maganão que nos entalou
na eleição passada, fez gastar ao Silvério mais de trezentos mil réis… Perfeitamente, às ordens…
Ó Parreirinha, olhe aqui o sr. Ega. Tem aí uma carta para sair amanhã, na primeira página, tipo
largo…
O sr. Parreirinha lembrou o artigo do sr. Vieira da Costa sobre a reforma das pautas.
– Vai depois! – gritou o Neves. – As questões de honra antes de tudo!

Documentando as tuas afirmações com passagens do texto, responde ao seguinte


questionário:

1) Identifica o episódio transcrito e localiza-o na ação da obra.


2) Tendo em conta o período literário em que se insere a obra, analisa a função deste episódio.
3) Caracteriza a personagem Neves e estabelece um paralelo com Palma Cavalão.
4) « […] discursando a alguns cavalheiros de província que o escutavam de pé, num
respeito de crentes.»
Qual é a figura de estilo que, ao nível semântico, se realiza nesta passagem? Qual é a sua função
no que se prende com a representação social?
5) Identificando o artifício teatral que se realiza nesta passagem, que tem a ver com a
diferença de saberes dos interlocutores, comenta a sua função na mensagem deste episódio.

Cenários de resposta
( Madalena Novais e Tiago Jerónimo)

1. A passagem transcrita pertence ao episódio do jornal “A Tarde” (“Era a redação d’


«A Tarde» ”), que se encontra no capítulo XV d’ Os Maias e faz parte da crónica de
costumes. Antes deste episódio, Dâmaso fez publicar no jornal “A Corneta do Diabo”,
cujo diretor é Palma Cavalão, um artigo onde insultava Carlos e expunha a sua relação
amorosa com Maria Eduarda. João da Ega, ao saber desta publicação, informa Carlos;
os dois encontraram-se com Palma para descobrirem o autor (Dâmaso). Assim, depois
de o terem obrigado a escrever uma carta de pedido de desculpas a Carlos, declarando
que estava bêbado, Ega publicou-a no jornal “A Tarde”.
Imediatamente antes, porém, de Ega se ter deslocado ao jornal “A Tarde” com o
objetivo de publicar a carta de Carlos, ele viu a antiga amante, Raquel Cohen, na
companhia de Dâmaso Salcede, no teatro Ginásio, o que veio provocar o seu ciúme e a
sua ira, razões imediatas da decisão do amigo de Carlos de publicar a mesma carta.
2. Esta obra insere-se no período literário em que o Ultrarromantismo está em
decadência e o Realismo e o Naturalismo são valorizados. Os Maias pretendem criticar
os vícios da sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX. Este episódio, em
particular, tem a função de realçar a parcialidade, os subornos, a corrupção e a
incompetência dos jornalistas da época e o seu compadrio com a política.
O Realismo defendia uma literatura com uma função crítica e morigeradora dos
males da sociedade, o que Eça faz relativamente à vida social de Lisboa da segunda
metade de oitocentos.
Neste episódio, o jornalismo português é criticado pela falta de deontologia do
redator d’ “A Tarde” (“[…] Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá… Não é o
gordalhufo, um janota que tem propriedade em Sintra?”), jornal este que é uma extensão
política do partido de Neves: “[…] discursando a alguns cavalheiros de província que o
escutavam de pé, num respeito de crentes.”. Assim, denuncia igualmente a macrocefalia
da capital relativamente à província.

3. Neves, “deputado, político”, é o diretor do jornal “A Tarde”. Tem um ascendente


político sobre correligionários da província (“[…] discursando a alguns cavalheiros de
província que o escutavam de pé, num respeito de crentes.”) e é uma personagem que
representa o jornalismo partidário que só publica o que interessa à cor política dos seus
proprietários e correlegionários.
Quando Ega lhe pede para publicar a carta de Dâmaso a pedir desculpa a Carlos,
Neves mostra-se parcial por pensar estarem a falar de Dâmaso Guedes, seu amigo
político, a quem não queria ofender. Após perceber que Ega e Carlos falavam de
Dâmaso Salcede, aceitou publicar a carta e aproveitou-a para se vingar politicamente (“-
Isto não é o Dâmaso nem é letra do Dâmaso!... Salcede! Quem diabo é Salcede? Nunca
foi meu Dâmaso! […] Se é o Salcede, bem, acabou-se!”).
Palma Cavalão, diretor do jornal “ A Corneta do Diabo”, tem o único objetivo
de lucrar com o jornalismo nem que seja através de subornos, sem se preocupar com
quem possa prejudicar. Representa o jornalismo reles, escandaloso e corrupto, mas,
também, a falta deontologia e de serviço público no jornalismo.
Assim, podemos concluir que tanto Palma com Neves representam o meio jornalístico
em decadência.

4. A figura de estilo que, ao nível semântico, se realiza nesta passagem é a ironia. Eça
de Queirós pretende ridicularizar a tão grande importância que os “cavalheiros de
província” davam às altas posições sociais na capital. Nesta passagem, Neves aproveita
a sua posição influenciando politicamente os seus ouvintes ignorantes, que o
respeitavam e o ouviam atentamente: “[…] cavalheiros de província […], num respeito
de crentes.”. Eça denuncia, assim, a macrocefalia da capital relativamente ao resto do
país.

5. O artifício teatral que se realiza nesta passagem é o qui pro quo, que consiste num
equívoco pela diferença de saberes. Isto acontece quando Neves pensa que Ega está a
falar de Dâmaso Guedes. O equívoco é destruído quando Neves percebe que, na
verdade, ele está a referir-se a Dâmaso Salcede (“- O Dâmaso!? Ora essa! Isso é
extraordinário! Ainda esta tarde jantei com ele! Que diz a carta? […] Isso não pode ser!
É absurdo! Aí há história… […]”).
Com este artifício, cria-se tensão nas personagens e no leitor, concorrendo, assim, para
o interesse em conhecermos a razão da recusa e o aumento do interesse da leitura.

Você também pode gostar