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Versão A

Escola Secundária Padre Benjamim Salgado


TESTE DE PORTUGUÊS 11º ano
MAIO 2007 Professor: Manuel Seixas
TEXTO
1 Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar. (…) E eles iam, repassavam, com um
arzinho tímido e contrafeito, como mal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chique.
Carlos pasmava. Que faziam ali, às horas de trabalho, aqueles moços tristes, de calça esguia? Não havia
mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura adoentada, de lenço e xale, tomava o Sol. (…) O que
5 atraía pois ali aquela mocidade pálida? E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros,
botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e
reviradas como proas de barcos varinos...
— Isto é fantástico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o
10 Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João
VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas, sem originalidade,
sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro —
modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o
sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito
15 civilizado — exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era
levemente estreito na ponta — imediatamente o janota estica-o e aguça-o, até ao bico de alfinete. É o que
sucede com os pretos já corrompidos de São Tomé, que vêem os europeus de lunetas — e imaginam que
nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura,
acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de
20 tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros
— para serem imensamente civilizados e imensamente brancos... Carlos ria:
— De modo que isto está cada vez pior...
— Medonho! É de um reles, de um postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste
miserável país, nem mesmo o pão que comemos!
25 Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, num gesto lento:
— Resta aquilo, que é genuíno...
E mostrava os altos da cidade, (…) com o seu casario escorregando pelas encostas ressequidas e
tisnadas do Sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas
eclesiásticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, (…) e
30 foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miséria da sua muralha,
era o Castelo, sórdido e tarimbeiro. E abrigados por ele, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes
decrépitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brasões nas paredes rachadas, onde, entre a
maledicência, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, caquéctica e caturra, a velha Lisboa
fidalga!
35 Ega olhou um momento, pensativo:
— Sim, com efeito, é talvez mais genuíno. Mas tão estúpido, tão sebento! Não sabe a gente para
onde se há-de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda pior!
Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o Eusebiozinho. Parecia
mais fúnebre, mais tísico, dando o braço a uma senhora muito forte, muito corada, que estalava num vestido
de seda cor de pinhão. Iam devagar, tomando o Sol. E o Eusébio nem os viu, descaído e molengo, seguindo
40 com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra.
— Aquela aventesma é a mulher — contou Ega. — Depois de várias paixões em lupanares, o
nosso Eusébio teve este namoro. O pai da criatura, que é dono de um prego, apanhou-o uma noite na
escada com ela a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desapareceu, não o tornei
a ver... Diz que a mulher que o derreia à pancada.
45 — Deus a conserve!
— Ámen!

1
Versão A
I. Item fechado de verdadeiro/falso – Leitura e Funcionamento da língua
Identifique as afirmações verdadeiras (V) e as afirmações falsas (F), escrevendo, na folha
da prova, V ou F junto a cada uma das alíneas.
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1. O feitio das botas referidas no texto revela apenas o mau gosto da juventude portuguesa.
2. A referência à “criatura adoentada” (l. 4) no primeiro parágrafo pretende estabelecer um
contraste entre ela e o resto da sociedade portuguesa.
3. Na expressão “a velha Lisboa fidalga” (l. 33-34) ocorre a metonímia.
4. Com a expressão “enormes brasões nas paredes rachadas” (l. 32) o enunciador pretende
realçar o contraste entre a grandeza antiga da nobreza e o seu estado actual de
decadência.
5. O facto de as vivendas eclesiásticas, o castelo e os palacetes decrépitos se encontrarem
no alto da cidade (l. 28-34) simboliza a tradicional supremacia social do clero e da
nobreza.
6. Com a expressão “botas despropositadamente compridas” (l. 6), o enunciador realiza um
processo de retoma lexical por repetição.
7. O referente do pronome “o” (l. 16) na expressão “o janota estica-o e aguça-o” é “o bico de
alfinete”.
8. A expressão “até de cor” qualifica os pretos de São Tomé. (l. 19)
9. No trecho “Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miséria da sua muralha, era o
Castelo…” (l. 31-32) ocorre um exemplo de impressionismo descritivo.
10. A expressão “aqueles moços” (l. 3) constitui uma catáfora.

II. Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

10 1. Situe o excerto na estrutura interna da obra.

10 2. Explique a relação entre o exemplo dos pretos de São Tomé e a caracterização de Portugal
feita anteriormente por Ega, assim como a razão dessa comparação.
20 3. Explique de que forma a personalidade e o aspecto físico de Eusébio, patentes no excerto,
são reflexo da educação que recebeu.

10
4. Que queria dizer a personagem com a frase: “E se nos voltamos para nós mesmos, ainda
pior!”
10
5. Explique o sentido da ironia com que foi proferida a penúltima fala do texto.
10 6. Transcreva um segmento do texto em que ocorre o discurso indirecto livre.

2
Versão A

III. Para cada trecho da coluna A, faça corresponder um dos recursos estilísticos
indicados na coluna B. Escreva, na folha da prova, ao lado do número da frase, a alínea
30
correspondente.

A B
1. “… arzinho tímido e contrafeito … (l. 2) a) ironia
2. “modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de b) uso expressivo do
arte, de cozinha...” (l. 13) verbo
3. “…até ao bico de alfinete… “(l. 16) c) hipálage
4. “…No cimo assentavam pesadamente os conventos“ (l. d) hipérbole
28) e) uso expressivo do
5. “com o seu casario escorregando pelas encostas …” (l. advérbio
27) f) enumeração assindética
6. “com vistas saudosas para o rio…” (l. 32 ) g) enumeração
polissindética
h) antítese

IV. Redija um texto devidamente estruturado em que destaque as diferenças entre


50
Os Maias e a última obra literária que leu para o contrato de leitura. Tenha em
consideração nomeadamente os seguintes aspectos:
 título
 autor (nome, nacionalidade, …)
 extensão
 intenção do autor
 género narrativo
 tempo da escrita
 tempo e local da acção
 personagens (número, classe social, características …)
 protagonista

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